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AS MÃOS DO SR. OTTERMOLE

THOMAS BURKE

(1886-1945 - Inglaterra)

Às seis horas de uma tarde de janeiro, o Sr.


Whybrow retornava para casa pelos labirintos de becos
do East End londrino. Acabara de deixar os rumores
dourados da grande High Street, a que o bonde o
conduzira do rio e do trabalho cotidiano, e enveredara
pelo emaranhado de atalhos que se chama Mallon End.
Nada da agitação e dos brilhos da High Street nesses
atalhos. Poucos passos ao sul - uma verdadeira onda de
vida, espumando e pulsando. Aqui, apenas figuras
tardias e pulsos agasalhados. O Sr. Whybrow penetrara
nos buracos de Londres, último refúgio dos marginais
da Europa.
Em harmonia com o espírito da rua, ele andava
devagar e cabisbaixo. Talvez ruminasse alguns
problemas. Andava devagar porque ficara em pé o dia
todo, e curvava-se, absorto, porque ia pensando se a
mulher lhe havia preparado arenque ou bacalhau para a
ceia; e procurava pensar no que seria mais apetitoso
numa noite como aquela. Uma noite horrível, úmida e
nevoenta, a neblina lhe penetrando garganta e olhos
adentro, a umidade, na calçada e na rua, devolvendo,
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onde incidia os raros lampiões, uns reflexos gordurosos


que lhe causavam calafrios. O próprio contraste, no
entanto, tornava suas especulações mais agradáveis,
preparando-o para o chá - com arenque ou bacalhau.
Desviou-se-lhe a vista dos sujos tijolos que formavam o
horizonte e pousou-a meio quilômetro mais a frente.
Viu uma cozinha iluminada a gás, um fogo crepitante e
a mesa posta para o chá. Havia torradas no fogão e, ao
lado, uma chaleira que cantava e uma profusão de
arenques picantes, ou talvez de bacalhau, ou quem
sabe de salsichas. A visão emprestou-lhe aos pés, que
doíam, uma nova energia. Sacudiu os ombros afastando
a umidade imperceptível e apressou o passo na direção
de sua própria realidade.
Mas o Sr. Whybrow não iria tomar chá naquela noite
- nem em qualquer outra noite. O Sr. Whybrow iria
morrer. Atrás dele, a uns cem metros, caminhava outro
homem, um homem muito parecido com o Sr. Whybrow
ou com qualquer outro, mas sem a única qualidade que
permite aos pertencentes do gênero humano viver
pacificamente em sociedade e não como dementes
numa selva. Um homem com o coração morto, que se
devorava a si mesmo, segregando os imundos
organismos que nascem da morte e da corrupção. E
essa coisa com forma humana, impelida por um
capricho ou por uma idéia fixa - quem saberia? -,
dissera a si mesmo que o Sr. Whybrow nunca mais
provaria arenque ou bacalhau. Não que o Sr. Whybrow
lhe tivesse ofendido. Não que ele tivesse alguma
antipatia pelo Sr. Whybrow. Na verdade, dele só sabia
que era uma figura familiar por aquelas ruas. Mas
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movido por uma força que se apossara de suas células


vazias, escolhera o Sr. Whybrow ao acaso, como se
prefere uma mesa de restaurante sem que ela seja
diferente de quatro ou cinco outras mesas, ou se opta
por uma das maçãs de um prato com meia dúzia de
maçãs perfeitamente iguais; ou como manda a
natureza um ciclone a um canto qualquer deste planeta,
para destruir quinhentas vidas e deixar outras tantas
vivas no mesmo lugar, sem um arranhão. Desta forma,
o homem escolhera o Sr. Whybrow como poderia ter
escolhido a nós, a mim ou ao leitor, se nos
encontrássemos sob a sua observação diária; e naquele
momento, arrastava-se pelas ruas de tonalidades azuis,
acariciando as enormes mãos, muito brancas, e
aproximando-se cada vez mais da mesa de chá do Sr.
Whybrow e mais exatamente do próprio Sr. Whybrow.
E aquele homem não era um mau homem. Possuía,
em verdade, muitas qualidades sociais e pessoais, e
passava por ser um cidadão respeitável, como acontece
com a maioria dos criminosos bem-sucedidos (que os
há). Mas incrustara-se na sua mente, que desmo-
ronava-se aos poucos, a idéia de que gostaria de matar
alguém, e como não tinha temor a Deus nem a
ninguém, faria a experiência e voltaria depois para casa
para tomar o seu chá. Não digo isso brincando;
enuncio-o tão-somente como a um fato. Por estranho
que pareça aos humanos, os assassinos, depois de
praticar um assassinato, precisam comer, e comem.
Não há razão para que deixem de comer, e muitas para
que o façam. Uma delas é que têm a necessidade de
conservar em perfeitas condições a vitalidade física e
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mental para poder esconder o crime. Outra é que o


próprio esforço lhes provoca fome, e a satisfação que
proporciona a realização de uma coisa desejada produz
um relaxamento propício aos prazeres humanos. É
opinião generalizada entre os não-assassinos que o
assassino vive dominado pelo medo de ser preso e pelo
horror que cometeu; mas esse tipo é raro. Está claro
que a própria vaidade é uma das qualidades mais
acentuadas da maioria dos assassinos e, aliada à
emoção da vitória, dá-lhe a segurança de consegui-la;
por isso, depois de haver restaurado as forças
comendo, dedica-se a assegurá-la, como uma jovem
dona de casa se dedica aos preparativos de seu
primeiro jantar de cerimônia - com algum grau de
ansiedade e nada mais. Criminologistas e detetives
afirmam que todo assassino, por mais inteligente ou
astuto que seja, comete sempre um erro tático - um
pequeno erro que nos leva ao descobrimento do crime.
Mas isso nem sempre é verdade. Só é verdade em
relação aos assassinos que são capturados. Muitos não
são descobertos: conseqüentemente, muitos não
cometem erro algum. Nosso homem não cometeu erro
algum.
No que diz respeito ao horror e ao remorso,
capelães de prisão, médicos e advogados dizem que,
dentre os assassinos condenados à morte e
entrevistados nas vésperas de morrer, só um ou outro
mostrou arrependimento do ato que cometera e revelou
indícios de algum tipo de angústia. Muitos demonstram
apenas exasperação, por terem sido presos quando
tantos outros continuam ignorados, ou indignação, por
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serem condenados em conseqüência de um ato


perfeitamente razoável. Por mais normais e humanos
que possam ter sido antes do crime, revelam-se
inteiramente inconscientes depois dele. Mas o que é a
consciência? Apenas um apelido gentil da superstição,
que é por sua vez um gentil apelido do medo. Os que
associam o remorso ao crime baseiam-se naturalmente
na lenda universal do remorso de Caim, ou projetam
suas frágeis mentes na mente do assassino, o que
acaba resultando em falsas reações. Mas pessoas
pacíficas não conseguem estabelecer contato com essa
mente, pois além de terem um tipo mental
completamente diferente da do criminoso, dele diferem
também na química e na construção pessoais. Alguns
homens podem matar e matam, não um homem, mas
dois ou três, voltando calmamente à sua vida cotidiana.
Outros homens são incapazes, mesmo sob as mais
angustiosas provocações, de sequer ferir o seu
semelhante. São homens deste último tipo que
imaginam o assassino atormentado pelo remorso e pelo
medo da lei, quando ele, na verdade, está apenas
tomando chá.
O homem de enormes mãos brancas estava pronto
para o seu chá, como o próprio Sr. Whybrow, mas antes
disso precisava fazer uma coisa. Depois de fazê-la sem
nenhum deslize, estaria mais pronto ainda e iria para o
chá tão confortavelmente como fora na véspera,
quando tinha as mãos ainda limpas.
Continue andando, Sr. Whybrow, continue andando;
e enquanto anda, contemple pela derradeira vez as
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imagens familiares de sua jornada noturna. Persiga a


visão da sua mesa de chá. Olhe bastante para o calor,
para o colorido e para a generosidade dela; alimente
com ela os seus olhos e o nariz com os delicados odores
domésticos; pois o senhor nunca mais terá uma ceia. A
dez minutos de distância, um fantasma, que o persegue
neste momento, condenou-o irremediavelmente em seu
coração. Lá vão vocês, o senhor e o fantasma - dois
nebulosos pedacinhos de mortalidade que se movem
pelo ar esverdeado sobre paralelepípedos azulados, um
para matar, outro para ser morto. Continue andando.
Não castigue os pés doloridos apertando o passo, pois
quanto mais se demorar, por mais tempo irá respirar o
ar verde do lusco-fusco de janeiro, e verá o lampião
quase irreal, e as lojinhas, e ouvirá o agradável
comércio das multidões londrinas e a ternura presente
no realejo de rua. O senhor não o percebe neste
momento, mas daqui a 15 minutos terá dois segundos
para compreender quão indescritivelmente caras lhe
são elas.
Continue andando por esse insano emaranhado
conjunto de atalhos. Está agora em Lagos Street, entre
as tendas dos vagabundos da Europa Oriental. Mais um
minuto e estará em Royal Lane, entre pardieiros que
abrigam os parasitas inúteis e derrotados de Londres. A
viela retém-lhes o odor, e a sua sombra mansa parece
carregar os lamentos dos marginalizados. Mas o senhor
não é sensível às coisas impalpáveis, e por elas
caminha pachorrentamente, sem nada ver, como é de
seu costume, e chega a Blend Street, e por ela também
caminha. Todas as noites erguem-se, do porão aos
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céus, os moradores de uma colônia estrangeira. Suas


janelas mancham-se de verde, e de negrume, as
paredes. Atrás das janelas movimenta-se uma vida
estranha, com formas que não são de Londres nem da
Inglaterra, mas que em sua essência representam a
mesma vida agradável que o senhor viveu até este
momento e que não viverá mais esta noite. Lá de cima
vem uma voz entoando a "Canção de Katta”. Através de
uma janela o senhor pode avistar uma família em pleno
ritual religioso. Através de outra, enxerga uma mulher
servindo chá ao marido; um homem remendando um
par de botas; uma mãe dando banho no filho pequeno.
O senhor já tem visto essas cenas, nunca reparou
nelas. Nem agora repara, mas se soubesse que não as
voltará a ver, haveria, sim, de reparar. Nunca mais as
verá, não porque sua vida tenha chegado ao fim de seu
curso natural, mas porque um homem, e por ele o
senhor passou muitas vezes pela rua, decidiu a seu bel
e solitário prazer usurpar a tremenda autoridade da
natureza e destruí-lo. Por isso, talvez seja melhor que o
senhor não repare nelas, pois a parte que nelas
desempenha chegou ao fim. Nunca mais conhecerá
esses suaves momentos de nossa labuta na Terra:
apenas um instante de terror e depois as trevas.
A sombra da destruição aproxima-se mais e mais e
está agora a apenas uns vinte metros atrás. O senhor
pode escutar-lhe os passos, mas não irá virar a cabeça.
Está familiarizado com os passos. Está em Londres, na
fácil segurança de seu próprio território diário e, passos
atrás, é o seu instinto que fala: são apenas uma
mensagem da companhia humana.
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Mas será que o senhor não percebe alguma coisa


nesses passos - alguma coisa que soa como uma batida
adversa? Alguma coisa que diz: "Atenção, atenção!"
"Cuidado, cuidado!" Não escuta, escondidas, as silabas
que dizem: "as-sas-si-no, as-sas-si-no?" Não; nada
existe naqueles passos. São neutros. Os passos do vilão
têm o mesmo barulho tranqüilo dos passos de um
homem de bem. Mas aqueles passos, Sr. Whybrow,
aproximam um par de mãos do senhor, e há qualquer
coisa naquelas mãos. Atrás do senhor um par de mãos
já agora contraindo os músculos, preparando-se para o
seu fim. O senhor tem visto mãos humanas em todos
os minutos de sua vida. Mas já reparou no puro horror
das mãos - esses apêndices que são um símbolo para
os nossos momentos de confiança, de afeto e de
saudação aos outros? Já pensou nas tétricas potencia-
lidades que residem na esfera de ação destes membros
tentaculares? Não, nunca pensou; pois todas as mãos
humanas que tem visto foram-lhe estendidas em
impulsos de bondade ou de camaradagem. No entanto,
se bem que os olhos possam odiar e os lábios possam
ferir, só esse membro pendente pode reunir a essência
acumulada do mal e energizá-la em correntes de
destruição. Satanás pode penetrar no homem por
muitas portas, mas só nas mãos encontra ele o servidor
de sua vontade.
Mais um minuto, Sr. Whybrow, e o senhor irá
conhecer todo o horror das mãos humanas.
Está quase chegando em casa. Já entrou na sua
Gaspar Street - e alcançou o centro da teia
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emaranhada. Já pode avistar a janela da frente de sua


casinha de quatro cômodos. A rua está às escuras e os
três lampiões projetam apenas um borrão de luz que
confunde mais do que a própria sombra. Ei-la escura - e
vazia também. Não se vê vivalma; não há luzes nas
salas da frente das casas, pois as famílias estão
tomando chá nas cozinhas; e só um brilho fortuito em
alguns dos cômodos superiores ocupados por inquilinos.
Não há ninguém, senão o senhor e o seu companheiro
que o segue, mas em quem o senhor sequer repara.
Vê-o tão raramente que na verdade ele nunca é visto.
Ainda que virasse a cabeça e desse de cara com ele,
dir-lhe-ia apenas "boa noite" e continuaria andando. A
insinuação de que era um possível assassino sequer lhe
provocaria uma risada, tão idiota seria.
E eis que o senhor acaba de chegar à sua porta. E
encontrou a chave na fechadura.
E entrou, e pendurou no cabide o chapéu e
sobretudo. A mulher acaba de saudá-lo lá da cozinha,
cujo cheiro também é um eco da saudação (arenque!).
e o senhor responde a ela, quando a porta é sacudida
por uma enérgica pancada.
Vá-se embora, Sr. Whybrow. Afaste-se desta porta.
Não toque nela. Afaste-se imediatamente. Saia de casa.
Pegue sua mulher e corra com ela para o jardim - e
pule a cerca. Ou grite pelos vizinhos. Mas não toque
nesta porta. Não, Sr. Whybrow, não abra ...
O Sr. Whybrow abriu a porta.
Foi esse o princípio do que passou a ser conhecido
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como "Os Horrorosos Estrangulamentos de Londres".


Chamaram-nos horrorosos porque era algo mais do que
assassínio: não havia motivo e foram cercados de um ar
de magia negra. Todo crime era cometido numa ocasião
em que a rua na qual se encontravam os cadáveres
estava limpa de qualquer assassino perceptível ou
possível. Haveria um beco deserto. Haveria um polícial
numa das extremidades que daria as costas para o beco
deserto por menos de um minuto. Depois olharia à sua
volta e se poria a correr pela noite adentro com a
notícia do novo estrangulamento. E em qualquer
direção que olhasse, não veria ninguém e ninguém
saberia lhe dizer que vira quem quer que fosse. Ou
estaria de serviço numa longa e sossegada rua e de
repente seria chamado a uma casa de mortos que,
segundos antes, vira com vida. E novamente, para onde
quer que olhasse, não veria ninguém; e se bem que os
apitos dos guardas pusessem imediatamente um cordão
de isolamento em volta da área, e todas as casas
fossem revistadas, não, não se encontraria nenhum
possível criminoso.
As primeiras notícias da morte do Sr. e Sra.
Whybrow partiram do sargento de serviço. Ele
caminhava pela Gaspar Street, já no fim do expediente,
quando notou a porta do número 98 aberta. Espiou lá
dentro e viu, à luz de lampião de gás do corredor, um
corpo imóvel no chão. Um segundo depois, assoprou o
apito, e quando os primeiros guardas responderam,
levou consigo um deles para revistar a casa, e mandou
que outros vigiassem a rua vizinha e interrogassem os
moradores das casas contíguas. Mas nem na casa nem
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nas ruas foram encontrados vestígios do assassino. Os


vizinhos dos lados e da frente não tinham visto
ninguém, nem nada ouviram. Um deles escutara o Sr.
Whybrow voltando para casa - o barulho da chave na
fechadura era um ruído tão regular àquela hora da
noite, disse, que a gente podia até acertar o relógio por
ele: seis e meia - mas não ouvira outra coisa que não o
rumor da porta que se abria e, logo depois, o guarda
apitando. Ninguém fora visto entrando ou saindo da
casa, pela frente ou pelos fundos, e as gargantas das
vítimas não mostravam impressões digitais nem outro
sinal qualquer. Um sobrinho foi chamado para examinar
a casa, mas ele não deu falta de coisa alguma; o tio,
aliás, nada possuía que valesse a pena roubar. Um
pouco de dinheiro guardado em casa continuava
intacto, e não havia indícios de qualquer alteração nos
cômodos, nem de luta ou resistência. Não havia sinais
de coisa alguma, a não ser de um crime inútil e brutal.
O Sr. Whybrow era conhecido dos vizinhos e dos
colegas de trabalho como um homem tranqüilo,
simpático, que gostava de casa; desses homens que
nem poderiam ter um inimigo. Mas o fato é que as
pessoas assassinadas raramente os têm. Um inimigo
implacável, que odeia uma pessoa a ponto de querer
machucá-la, raramente deseja tirar-lhe a vida, já que a
morte dela a impedirá de continuar sofrendo. Assim
sendo, viu-se a polícia diante de uma situação
impossível: nenhuma pista deixada pelo criminoso e ne-
nhum motivo para os crimes - a não ser o fato de que
tinham sido praticados.
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As primeiras notícias causaram um calafrio


generalizado em toda Londres, e um verdadeiro choque
elétrico em Mailon End. Duas criaturas inofensivas
foram assassinadas e o móvel do crime não fora nem o
roubo nem a vingança; o assassino, para quem
aparentemente matar era um impulso gratuito,
continuava solto. Não deixara vestígios e, se tivesse
agido sozinho, seria pouco provável que não
continuasse em liberdade. Qualquer homem inteligente
e solitário, sem temer a Deus nem aos homens,
poderia, se quisesse, submeter uma cidade e até uma
nação ao estado de medo; mas o criminoso comum
raramente é inteligente, além de abominar a solidão.
Precisa, quando não do apoio de todos, pelo menos de
alguém com quem falar; a sua vaidade exige a
satisfação de se constatar logo o efeito de sua obra. Por
isso freqüenta bares, cafés e outros lugares públicos.
Depois, mais cedo ou mais tarde, num assomo de
camaradagem, pronuncia a palavra reveladora; e a
tarefa da polícia, que está em todos os lugares, é fácil.
Mas, ainda que todos os albergues, bares e outros
locais fossem postos de quarentena e atulhados de
investigadores, embora se propalasse à boca pequena
que a polícia daria bom dinheiro e segura proteção a
quem fornecesse informações, nada se descobriu sobre
o caso Whybrow. Parecia evidente que o assassino não
tinha amigos e trabalhava sozinho. Homens conhecidos
que faziam esse perfil foram interrogados, mas todos
puderam explicar direitinho o que estavam fazendo na
hora do crime; e poucos dias depois, a polícia se
encontrava num beco sem saída. Diante da constante
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ironia popular de que o crime se dera quase que sob as


barbas da polícia, os policiais estavam irrequietos e
todos trabalharam sob pressão durante quatro dias. No
quinto dia, a agitação aumentou.
Chegara a época dos chás e comemorações anuais
para as crianças das escolas dominicais e, numa noite
de neblina, quando Londres transforma-se em um
mundo de fantasmas a andar vacilantes, uma
menininha, vestindo sua melhor roupa e sapatos de
domingo, rosto brilhante e cabelos bem escovados, saiu
de Logan Passage em direção a St. Michael's Paris Hall.
Mas quem disse que ela chegou a seu destino? Morreu
às seis e meia; era porém como se estivesse morta
desde o momento em que transpusera a porta da casa
de sua mãe. Um vulto de homem que passava pela rua
que desembocava em Logan Passage viu quando ela
saía; e, a partir daquele momento, ela estava morta.
Através do nevoeiro, as enormes mãos brancas de
alguém saíram atrás dela e, quinze minutos depois, lhe
apertavam a garganta.
Às seis e meia um apito se ouviu, e aqueles que
acorreram encontraram o cadáver da pequena Nellie
Vrinoff na entrada do armazém de Minnow Street. O
sargento foi o primeiro a chegar e distribuiu os homens
pelos pontos estratégicos, dando ordens aqui e ali em
tons ácidos de raiva contida, recriminando o guarda que
deveria ter vigiado a rua.
- Eu vi você, Magson, lá no final do beco. O que é
que você estava fazendo lá? Levou dez minutos para
dar a volta.
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Magson começou a se explicar, dizendo que estivera


de olho num suspeito, mas o sargento interrompeu-o,
dizendo:
- Os suspeitos que vão para o inferno. Você não tem
nada que andar atrás de assassinos, perdendo tempo...
e isso acontece justamente onde você deveria estar.
Imagino só o que o povo vai dizer.
Com a rapidez das más notícias, esta chegou logo à
população, pálida e perturbada; e ao ouvirem a história
de que o monstro desconhecido voltara a agir, e desta
vez com uma criança, seus rostos como que pintaram o
nevoeiro com manchas de ódio e horror. Mas logo
chegaram a ambulância e mais policiais; e à medida
que eles se espalhavam, a reflexão do sargento
condensou-se em palavras e de todos os lados surgiram
os comentários.
- Bem nas barbas da polícia!
Investigações subseqüentes demonstraram que
quatro pessoas do bairro, acima de qualquer suspeita,
tinham passado por aquela rua minutos ou segundos
antes do crime e nada tinham visto ou ouvido. Nenhum
deles passara pela criança ainda viva, nem a vira
morta. Nenhum deles avistara quem quer que fosse na
rua, a não ser eles mesmos. E a polícia novamente se
encontrava sem o móvel do crime e sem pista alguma.
A partir daí, como se lembrará o leitor, entregou-se
o bairro todo, não ao pânico, que os habitantes de
Londres jamais se entregam a ele, mas à apreensão e
ao desalento. Se as coisas assim aconteciam nas ruas
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familiares, tudo poderia acontecer. Onde quer que duas


pessoas se encontrassem - nas vielas, nos mercados,
nas lojas -, conversavam sempre sobre o mesmo
assunto. As mulheres puseram-se a passar ferrolho nas
portas e janelas assim que começava a anoitecer.
Mantinham os filhos sempre sob suas vistas. Faziam as
compras antes de escurecer, e espreitavam ansiosas,
embora fingissem não fazê-lo, a chegada dos maridos
que vinham do trabalho. Sob a quase acachapante
resignação do povo pobre diante do desastre,
escondiam um permanente pressentimento. Por causa
do capricho de um homem e suas duas mãos,
abalaram-se a estrutura e o tipo de vida cotidianos,
como podem elas ser sempre abaladas por qualquer
homem que desdenhe da humanidade e não tema as
suas leis. Compreenderam então que os pilares que
sustentavam a pacifica sociedade em que viviam eram
de barro e estavam à mercê do primeiro que se
propusesse a desmanchá-los; que as leis só eram
poderosas quando obedecidas; que a polícia só tinha
poder quando temida. Pela força de suas mãos, aquele
homem, sozinho, obrigara a todos a pensar, deixando-
os boquiabertos diante do que parecia tão óbvio.
E enquanto a população ainda estava boquiaberta
com os dois primeiros golpes, ele vem e desfere o
terceiro. Cônscio do horror que suas mãos haviam
criado, e faminto como um ator que já conheceu a
emoção eletrizante da platéia, voltou ele a se anunciar;
e na quarta-feira de manhã, três dias após a morte da
criança, os jornais levavam às mesas de almoço o relato
de um crime ainda mais impressionante.
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Às 9h30 da noite de terça-feira, estava um policial


de serviço em Jarnigan Road falando com um colega
chamado Peterson no alto de Clemming Street. Vira o
colega descer a rua. Podia jurar que a rua estava
deserta naquela hora, a não ser por um engraxate coxo
que conhecia de vista e que, passando por seu colega,
continuava caminhando.
Tinha o hábito, como todos os policiais nessa época,
de olhar constantemente para trás e para os lados,
fosse qual fosse a direção que tomava, e podia jurar
que a rua estava vazia. Passou pelo sargento às 9h33,
saudou-o e, respondendo à pergunta do superior, falou
que não vira nada. E continuou andando. O trecho que
lhe cumpria patrulhar terminava a pequena distância de
Clemming Street e, tendo ali chegado, voltou-se para
estar outra vez, às 9h34, no alto da rua. Apenas lá
chegando, ouviu a voz rouca do sargento:
- Gregory! Você está aí? Depressa, depressa.
Misericórdia! É Peterson! Esganado.
Depressa, depressa, chame a turma!
Foi esse o terceiro dos Estrangulamentos Horro-
rosos, ao qual se seguiram ainda um quarto e um
quinto; e os cinco horrores passariam para o terreno do
desconhecido e do incognoscível. Isto é, desconhecido
no que dizia respeito às autoridades e ao público. A
identidade do assassino era conhecida; mas apenas de
dois homens. Um, o próprio; o outro, um jovem jorna-
lista.
Esse jovem, encarregado do caso pelo jornal Daily
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Torch, não era mais esperto do que outros zelosos


jornalistas que vagaram por aqueles atalhos na
esperança de encontrarem alguma história para contar.
Mas era paciente, e aproximou-se do caso um pouco
mais do que seus colegas, e de tanto dar tratos à bola,
extraiu a figura do assassino como um duende atrás
das pedras em que este se escorava para perpetrar os
crimes.
Passados os primeiros dias, os repórteres tinham
desistido de obter histórias exclusivas, porque
simplesmente não as havia. Encontravam-se
regularmente no posto policial e partilhavam irmamente
as poucas informações distribuídas. Os policiais
mostravam-se amáveis, não mais do que isso. O
sargento discutia os pormenores de cada assassínio;
sugeria possíveís explicações sobre os métodos do
homem; relembrava casos do passado que
apresentavam algumas semelhanças com aqueles, e
não havia motivo do crime; e aludia ao trabalho que
estava sendo feito e que logo, logo desvendaria aquele
mistério; mas sobre o próprio trabalho nada dizia. O
inspetor também se mostrava agradavelmente loquaz
sobre a tese do assassinato, mas toda vez que alguém
do grupo desviava o assunto para as providências que
estariam sendo tomadas naquele caso, fazia ouvidos de
mercador. Se sabiam de alguma coisa, os policiais não
revelavam aos jornalistas. O caso pesava-lhes muito, e
só com uma captura efetuada com seus próprios
esforços conseguiriam se reabilitar na estíma oficial e
pública. A Scotland Yard naturalmente trabalhava no
caso, e tinha todo o material do posto; mas a esperança
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dos policiais era resolver o assunto com os próprios


meios.
Por isso mesmo, o sargento falava à vontade, e
propunha uma teoria interessante atrás da outra, todas
elas já aventadas pelos jornalistas. O jovem logo se
cansou dessas conferências matutinas sobre a Filosofia
do Crime e pôs-se a divagar pelas ruas e a escrever
brilhantes reportagens sobre os efeitos dos crimes na
vida normal das pessoas. Melancólico trabalho que o
bairro tornava mais melancólico ainda. A desordem nas
calçadas, nas janelas sujas - em tudo pairava um ar de
miséria amarga; a miséria do poeta frustrado. Obra dos
estrangeiros que viviam daquela maneira provisória
porque não tinham lares estabelecidos, e não queriam
dar-se ao trabalho de construir um lar onde se
estabelecer, sem continuar na pura vagabundagem.
Havia pouca coisa a colher. A única coisa que ele viu
e ouviu foram rostos indignados e fantásticas
conjeturas sobre a identidade do criminoso e o segredo
do seu truque de aparecer e desaparecer sem ser visto
por ninguém. Desde que até um policial lhe caíra nas
garras, as acusações contra a força pública tinham
cessado e o desconhecido ganhara um manto lendário
na imaginação popular. Homens se entreolhavam como
se pensassem: "Pode ser ele. Pode ser ele."
Já não se procurava alguém que tivesse um
estereótípo de assassino; procuravam um homem, ou
talvez uma megera, responsável por aqueles assassi-
natos específicos. Os pensamentos se dirigiam sobretu-
do para a colônia estrangeira. Tamanha atrocidade não
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poderia provir da Inglaterra, como não poderia ser


inglesa a espantosa astúcia do assassino. Por isso se
voltaram para o ciganos romenos e para os turcos
vendedores de tapetes. Entre eles, estaria a chave do
caso. Entre os orientais - que conheciam todos os ardis
e não tinham uma religião de verdade - nada havia que
impusesse limites aos seus atos. Marinheiros
regressando desses países contavam histórias de
bruxos que se tornavam invisíveis; e comentava-se
sobre poções egípcias e árabes para os usos mais
estranhos. Talvez aquilo, para eles, fosse possível;
nunca se sabia. Eram tão suaves e tão cheios de
manhas! Inglês nenhum poderia eclipsar-se como
aquela gente. Era quase certo que, no fim das contas,
se descobriria ser o criminoso um deles - dono de
algum negro feitiço próprio -, e exatamente porque
tinham a certeza de que era um feiticeiro, achavam
inútil procurá-lo. Era uma energia capaz de mantê-los
sujeitos e de manterem-se intangíveis. A superstição,
que tão fácil rompe o frágil invólucro da razão,
planejara-os. Poderia fazer o que quisesse; jamais seria
descoberto. Estabelecidos esses dois pontos, andavam
pelas ruas sob o domínio de um fatalismo irritado.
Expunham suas idéias aos jornalistas em voz baixa,
olhando em volta como se ELE pudesse ouvi-las e
visitá-las. E embora todo o bairro só pensasse nele e
estivesse pronto para recebê-lo, era tão poderoso o
efeito que produzia sobre aquele povo que, se qualquer
homem da rua - digamos, um sujeitinho de traços e
formas comuns - houvesse gritado "Eu sou o Monstro!",
eles seriam tomados por uma torrente de fúria
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represada que os derrubaria. Ou então veriam algo de


sobrenatural nos costumeiros sapatos, algo de so-
brenatural no chapéu, alguma coisa que o assinalasse
como invulnerável a todas as armas deles? E não
recuariam diante daquele diabo, como o diabo recuou
diante da cruz formada pela espada de Fausto? Não sei;
mas tão firme era a crença deles na sua invencibilidade
que é pelo menos provável que tivessem hesitado, se
surgisse a ocasião. Mas ela nunca surgiu. Atualmente
esse sujeito comum, saciada a sua fome de morte, é
ainda visto e observado entre eles, como sempre; mas
porque ninguém então imaginou, nem imaginara agora,
que ele fosse o que era, observou-o então e continua a
observá-lo como as pessoas observam um poste de luz.
Quase que essa crença deles na sua invencibilidade
se justifica; cinco dias após o assassinato do guarda
Peterson, quando a experiência e a inspiração de todo o
departamento de detetives de Londres dirigiam-se no
sentido de sua identificação e da sua captura, ele
desferiu o quarto e o quinto golpes.
Às 9h daquela noite, o jovem jornalista que lá
passara a noite até a saída do jornal, percorria a
Richards Lane. Richards Lane é uma rua estreita,
metade feira e metade residencial. O jovem se
encontrava na parte residencial, que apresenta vilas
operárias de um lado e, do outro, projetava um manto
de sombra sobre o beco, e a sombra e os cadavéricos
contornos das barracas da feira, então desertas,
davam-lhe o aspecto de uma viela viva e congelada no
momento entre o hálito e a morte. Os próprios
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lampiões, que em outros lugares são auréolas de ouro,


tinham aqui a rigidez das gemas. Sentindo essa
mensagem de uma eternidade de gelo, dizia a si
mesmo o jornalista, já cansado de tudo aquilo, quando
de repente o gelo se quebrou. No intervalo entre um
passo e outro, o silêncio e as trevas foram rasgados por
um grito agudo, depois do qual se ouviu uma voz:
- Socorro! Socorro! Aqui, ele está aqui!
Antes de pensar no movimento que devia fazer, o
beco ressuscitou. Como se a sua população invisível
estivesse apenas à espera daquele grito, as portas das
casas se escancararam e todas elas e todos os becos
passaram a enviar figuras imprecisas, curvadas como
pontos de interrogação. Por um segundo, ou menos
ainda, ficaram rígidos como lampiões; mas logo o apito
de um guarda lhes indicou a direção, e o rebanho de
sombras dirigiu-se para o alto da rua. O jornalista e
outros tantos seguiram o apito. Vinham da via principal
e das ruelas transversais, alguns tirados de um jantar
inacabado, outros perturbados no seu descanso de
chinelos e mangas de camisa, e outros ainda eretos,
armados de alguns instrumentos de trabalho. Cá e lá,
sobre a nuvem ondulante de cabeças, moviam-se
afoitos capacetes de polícia. Precipitaram-se numa
massa confusa sobre uma casa cuja porta estava
assinalada pelo sargento e dois guardas; e atrás das
sombras, vozes provocativas:
- Entrem! Descubram ele! Dêem a volta por trás!
Saltem o muro! Ao passo que, da frente, as sombras
gritavam:
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- Para trás! Para trás!


E estourou a fúria de uma malta estimulada pelo
perigo desconhecido. Ele estava lá - naquele lugar.
Desta vez, com certeza, não havia como escapar. Todos
se voltavam para a casa; todas as energias se dirigiam
para as suas portas, para as suas janelas, para o seu
telhado; todos os pensamentos se concentravam num
homem desconhecido e no seu fim. De maneiras que
nenhum homem enxergava outro homem. Nenhum
homem via o beco estreito, entulhado, e a massa de
sombras que se agitava, e todos se esqueceram de
procurar entre os vizinhos o monstro que nunca
demorava ao lado das vítimas. Todos realmente se
esqueceram de que a sua cruzada de vingança em
massa lhe propiciava um perfeito esconderijo. Viram
apenas a casa e apenas ouviram o gemer da madeira
quebrada e o tinir dos vidros partidos, na frente e nos
fundos, e a polícia dando ordens ou instigando a
perseguição; e assim continuaram.
Mas não encontraram criminoso algum. Só a notícia
de outro crime e vislumbraram a ambulância chegando.
E para a fúria deles, só restou a própria polícia
procurando removê-los como embaraços que eram para
o seu trabalho.
O jornalista conseguiu, à força dos braços, chegar à
porta da casa e ouvir a história da boca do guarda que
lá estava. Na casa moravam um marinheiro aposen-
tado, mulher e filha. Estavam jantando, e a princípio se
pensou que algum gás venenoso houvesse liquidado os
três no meio da refeição. A filha jazia morta no tapete
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da lareira, com um pedaço de pão com manteiga na


mão. O pai caíra da cadeira para o lado, deixando uma
colher cheia de arroz-doce no prato. A mãe tinha
metade do corpo debaixo da mesa, com cacos de uma
xícara e manchas de chocolate no regaço. Três
segundos depois, a idéia de gás foi afastada. Um
simples olhar para a garganta dos três mostrava que
aquilo era obra do Estrangulador; e os policiais ficaram
olhando aquilo, partilhando do fatalismo do povo.
Impotentes.
Era a quarta visita dele, num total de sete mortos.
Ainda iria realizar mais uma como haverá de saber o
leitor - naquela mesma noite; e depois passaria à
História como o Horror Desconhecido de Londres, e
voltaria à vida decente que sempre levara, pouco se
lembrando do que fizera e nada preocupado com suas
lembranças. Por que parou ele? Impossível dizer. Por
que começou? Impossível também. Aconteceu,
simplesmente; e se ele hoje chega a pensar naquelas
noites e naqueles dias, imagino que pense como nós
pensamos dos pecadilhos tolos ou feios que cometemos
na infância. Dizemos que não éramos conscientes: não
tínhamos chegado à compreensão das coisas; e
olhamos para a boba criaturinha que já fomos, e a
perdoamos porque ela não sabia. Acredito que a mesma
coisa ocorra com esse homem.
Existe muita gente como ele.
Mas ele escapou por pouco e talvez tenha sido por
isso que ele resolveu parar. Sua salvação deu-se por um
erro de julgamento do jornalista. Assim que obteve um
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relato completo do caso, passou o jornalista uns quinze


minutos ao telefone transmitindo a matéria - em
seguida sentiu-se exausto. E resolveu entrar num bar
para comer alguma coisa.
Foi aí então, depois de afastar da cabeça aquela
história toda, quando examinava o bar e admirava o
bom gosto do proprietário na decoração cheia de
correntes de relógios, que sua mente recebeu, sabe-se
lá de onde, uma centelha de luz. Não estava nem
pensando nos Horrorosos Estrangulamentos; estava
pensando no sanduíche. O pão fora cortado fininho,
besuntado de manteiga e o presunto fresco. A sua
cabeça lembrou-se do inventor do lanche que estava
comendo, o Conde Sandwich, e depois de George IV, e
depois de... Levantou-se para pedir um outro sanduíche
e, naquele momento, um cantinho ativo da sua cabeça
resolveu o caso todo. Se havia presunto no sanduíche é
que alguém o pusera lá. Se sete pessoas tinham sido
assassinadas, é que alguém devia estar lá para
assassiná-las. Não existiam aeroplanos nem automó-
veis de bolso; conseqüentemente, esse alguém só
poderia ter escapado fugindo ou ficando no mesmo
lugar; conseqüentemente ...
Imaginou então a reportagem de primeira página
que o jornal estamparia se fosse certa a hipótese, e de
que - era uma questão de conjetura - o editor tivesse
coragem suficiente para dar um golpe atrevido, quando
ouviu o grito:
- Está na hora, cavalheiros, por favor! Saiam todos,
vamos fechar!
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Lembrou-se do tempo. Levantou-se e saiu para um


mundo de névoa, interrompido pelos círculos rotos de
poças nas calçadas e pelos jorros de luz lançados pelos
ônibus. Tinha a certeza de ter destrinchado a história,
mas, ainda que a provasse, duvidava que a política do
jornal lhe permitisse publicá-la. Tinha um grande
defeito. Era verdade, mas era uma verdade
inverossímil. Abalava os alicerces de tudo aquilo que os
leitores de jornais acreditavam e que os diretores de
jornais os ajudavam a acreditar. Acreditariam que os
turcos vendedores de tapetes possuíam o dom de se
tornarem invisíveis. Mas não acreditariam no que
estava pensando.
Na verdade, ninguém lhes pediu que acreditassem
pois a história nunca seria escrita. Como o jornal,
àquela hora, já houvesse saído e como ele se sentisse
recuperado pelo sanduíche e estimulado pela teoria,
achou que poderia perder meia hora verificando a
veracidade de sua teoria. Começou assim a procurar o
homem em que pensava - um homem de cabelos
brancos e mãos brancas e enormes; quanto ao resto,
uma figura bastante comum para a qual ninguém
olharia duas vezes. Pretendia apresentar-lhe sua idéia
de chofre e iria colocar-se ao alcance de um
personagem blindado de lendas de terror e pavor. Isso
poderia parecer um gesto de extrema coragem -
colocar-se diante de um homem assim, sem esperança
de nenhum auxílio externo, à mercê do outro que
aterrorizava um bairro inteiro. Mas não era. Nem
pensou no risco. Nem pensou na obrigação para com os
editores, nem na lealdade para com o jornal. Movia-o
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simplesmente o instinto; o instinto que mandava seguir


uma história até o fim.
Saiu do bar lentamente e cruzou a Fingal Street, em
direção à Deever Narketm, onde esperava encontrar o
homem. Mas sua caminhada foi abreviada. Na esquina
da Lotus Street deu com ele - ou com um homem
parecido. A rua estava mal-iluminada e pouca coisa se
via do homem: mas viu-lhe as mãos brancas. Durante
uns vinte passos seguiu-o; depois alcançou-o; e no
ponto em que o viaduto cruza a rua, percebeu que o
homem era aquele mesmo. Aproximou-se com a frase
com que todas as conversas começavam no bairro:
- E então? Descobriu alguma coisa sobre o
assassino?
O homem parou e fitou seus olhos diretos no
jornalista; depois, como que concluísse que o jornalista
não era o assassino, respondeu:
- Não. Nem ninguém descobriu. E duvido que
descubram.
- Não sei. Estive pensando sobre isso e cheguei a
uma conclusão.
- Não diga!
- Cheguei, sim. Me surgiu de repente. E compreendi
logo que todos nós temos sido cegos. A solução está na
frente dos nossos narizes.
O homem voltou-se outra vez para encará-lo, num
movimento em que transparecia uma vaga descon-
fiança por quem parecia saber tanto.
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- Ah, sim? E por que não me faz o favor de contá-


la?
- É o que eu vou fazer.
Caminhavam juntos e chegavam no fim da ruazinha,
quando o jornalista se voltou casualmente para o
homem, tocando o dedo no braço dele.
- E agora o caso me parece simplíssimo. No
entanto, ainda existe um ponto que eu não
compreendo. Um pontinho à toa, que eu gostaria de
esclarecer. Me refiro ao motivo dos crimes. De homem
para homem, diga-me, sargento Ottermole, por que
matou toda aquela gente pobre e inofensiva?
O sargento parou e o jornalista também. Vinha do
céu a luz exatamente suficiente, sustendo a luz refletida
de Londres, para dar-lhe uma visão do rosto do
sargento; e o rosto do sargento estava voltado para ele
com um largo sorriso de tanta urbanidade e tamanho
encanto que os olhos do jornalista gelaram ao vê-lo. O
sorriso durou alguns segundos. Depois, o sargento
disse:
- Bem, para lhe ser franco, Sr. jornalista, não sei.
Realmente, não sei. Na verdade, eu mesmo tenho me
preocupado com isso. Mas tenho uma idéia ... como o
senhor tem. Todos sabem que não podemos controlar
as atividades da alma. É ou não é? As idéias nos
invadem sem pedir licença. Mas suponhamos que a
gente seja capaz de controlar o corpo. Por quê? Hein?
Recebemos a mente sabe Deus de onde - de gente que
morreu centenas de anos antes de nascermos. Não
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poderíamos receber o corpo da mesma maneira? O


nosso rosto ... as nossas pernas ... a nossa cabeça ...
não são completamente nossos. Não os fazemos nós.
Só os recebemos. E não poderiam idéias penetrar o
nosso corpo como invadem o nosso espírito? Hein? As
idéias não podem viver no nervo e no músculo como
vivem no cérebro? Não pode se dar que as partes do
nosso corpo não sejam realmente nossas, e não
poderiam idéias invadir essas partes de repente, como
as idéias invadem ... as ... as ... - e estendeu os braços
mostrando as mãos enormes calçadas de luvas brancas
e com os punhos peludos; estendeu-os tão rapidamente
em direção à garganta do jornalista, que ele sequer
chegou a vê-los - ... invadem as minhas mãos!

Tradução de Flávio Moreira da Costa

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