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Resumo
Apresentação da perspectiva epistemológica habermasiana, evidenciando - como o fio condutor e
traço unificador problematizado nos dois volumes da Teoria da Ação Comunicativa – uma mudança
de paradigma da tradicional filosofia do sujeito para o paradigma comunicacional, empreitada teórica
que constitui um deslocamento sensível da problemática clássica centrada na esfera produtiva, eixo
assentado nas relações de produção, para a esfera da comunicação, ou seja, da linguagem. Em outras
palavras, evidenciação de que a contribuição contemporânea de Habermas, desenvolvida na Teoria
da Ação Comunicativa, envolve uma mudança de concepção considerável no campo da episteme
moderna a partir de um duplo enfoque. Em termos de uma teoria da ação, a concepção dialógica
desvela a relação intersubjetiva que os sujeitos assumem nos momentos em que procuram se
entender sobre algo dos três mundos (objetivo, social e subjetivo). No que tange à problemática da
razão, existe uma mudança na compreensão e no entendimento da racionalidade humana na medida
exata em que a postulação habermasiana estrutura-se fundamentalmente no primado de uma
descentração/descentramento da razão.
I - Prólogo
Jürgen Habermas é na contemporaneidade o principal herdeiro e representante da segunda
geração da Escola de Frankfurt, formada em torno do Instituto de Pesquisa Social (Institut für
Sozialforschung). Criado em 1923, o instituto reuniu, em diferentes períodos históricos,
pensadores marxistas heterodoxos como Walter Benjamin, Theodoro W. Adorno, Herbert
Marcuse, Erich From e Max Horhkheimer.
Notas a Respeito de epistemologia e mudança de paradigma na teoria da ação comunicativa de Jürgen
Habermas
Walmir da Silva Pereira
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Ao longo do texto, pretende-se tecer comentários introdutórios que apresentam alguns pontos que julgo
significativos e elucidativos no que concerne à contribuição habermasiana no plano epistemológico e no que
tange a perspectiva de construção/materialização de uma teoria da ação comunicativa. Visando cumprir tal
intento, foram realizadas as seguintes leituras das obras do autor: Para a Reconstrução do Materialismo
Histórico (1983); Teoria de la Acción Comunicativa Volumes I e II (1987); e Consciência Moral e Agir
Comunicativo (1989). Foram consultados também, além dessas obras, os textos em forma de apresentação
e introdução crítica de Bárbara Freitag, & Sérgio Paulo Rouanet (1993) e dois artigos de Habermas:
“Modernidade versus pós-modernidade” (1987) e “Ciência e técnica como ideologia” e a entrevista do autor
concedida a Perry Anderson e Peter Dews, publicada no Brasil pela Revista Novos Estudos CEBRAP (1987).
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Nesta seção elegem-se como referências básicas, e norteadoras do texto, os trabalhos de Freitag &
Rouanet (1993), além de Siebeneichler (1988) para apresentar alguns aspectos considerados relevantes da
contribuição habermasiana referente à problemática epistemológica.
Com sua teoria consensual da verdade, Habermas se distancia mais ainda da epistemologia
positivista, que postula uma relação não problemática com o real. Verdadeira não é uma
afirmação que corresponde a um objeto ou a uma relação real, mas uma afirmação considerada
válida num processo de argumentação discursiva. A verdade não tem a ver com conteúdos, e
sim com procedimentos: aqueles que permitem estabelecer um consenso fundado. A verdade,
num certo sentido, confunde-se com as condições formais para alcançá-la “. (Freitag&Rouanet;
1993,21)
Nesse sentido, Habermas desenvolve um projeto filosófico que pode ser classificado como uma
crítica do positivismo e, por conseguinte, da ideologia tecnicista daí resultante. De acordo com o
autor, o tecnicismo é a ideologia que consiste em impulsionar na prática o saber científico,
racionalismo cartesiano moderno, e a atividade técnica dele resultante. Assim pode-se falar de
uma junção e imbricamento entre ciência e técnica, na medida exata em que a segunda, apesar
de uma dependência em relação à primeira, retroage sobre a ciência acabando por determinar
seus rumos e caminhos.
Daí que, no capitalismo tardio, ciência e técnica tornam-se as principais forças produtivas,
subordinando todas as demais conhecidas. Claramente na contribuição do autor postula-se a
identificação de ciência e técnica enquanto ideologias da (na) modernidade. Um outro ponto que
merece destaque especial é o ataque à ilusão objetivista da ciência. Em oposição à teoria pura –
preconizada pela ciência tradicional – busca-se trazer a tona às raízes antropológicas da práxis
teórico-científica, evidenciando-se os interesses que se encontram no princípio do conhecimento
humano.3
Já em conhecimento e interesse, trata-se de realizar o aprofundamento de sua reflexão
epistemológica anterior.
3
Conforme Freitag & Rouanet, “É na intenção de desvendar e recuperar estes pressupostos do conhecimento
que Habermas procura, em Conhecimento e Interesse, fazer uma pré-história do positivismo (da mesma
forma que fizera sua história na Lógica das Ciências Sociais). Pois somente através da crítica, compreendida
como auto reflexão e auto-questionamento é que os momentos reprimidos, ocultos, distorcidos pelo
processo histórico do conhecimento, podem ser recuperados, reelaborados e conscientizados, permitindo
redescobrir o interesse fundamental, o da emancipação”. ( 1993, 13)
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Nesses temos, é plausível a afirmação de que a razão comunicativa - dialógica – é concebida por
Habermas como uma exigência teórica que afirma o postulado de um primado da razão mais do que
propriamente como uma visão humanista.
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De acordo com Siebeneichler, uma hipótese plausível é distinguir duas grandes etapas no desenvolvimento
da teoria crítica de Habermas vista como teoria do agir comunicativo. A segunda etapa, corresponderia ao
trabalho que se estruturou a partir de 1981 – Theorie des Kommunikativen Handels - , “quando tenta um
novo começo onde procura superar as dificuldades encontradas nos 14 anos anteriores, assim
caracterizados:
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Habermas trabalha num registro de caráter marcadamente sociológico; por outro lado, é nítida a presença
de pressupostos, fundamentos, antropológicos em sua visão macroscópica. Pretende, por exemplo, a
vinculação entre uma teoria da identidade e problemática da racionalidade comunicativa, investigando as
condições de possibilidades das sociedades complexas virem a formar uma identidade racional de si
mesmas. Ver a respeito, Para a Reconstrução do Materialismo Histórico, em especial Introdução e Cap. II,
pp. 49-103.
teórica que integrasse os três mundos numa totalidade pressuporia uma forma de ação que não
apresentasse as limitações de nenhuma das outras três”. (1988, 35-36).
Para pensar essa nova totalidade, Habermas propõe uma mudança de paradigma: da filosofia da
consciência para a teoria da interação, de uma razão reflexiva para uma razão comunicativa. A
razão comunicativa proposta por Habermas é dialógica, substituindo o conceito monológico da
razão pura de Kant. Ela não mais se assenta no sujeito epistêmico, mas pressupõe o grupo
numa situação dialógica ideal. A verdade produzida nesse contexto é processual e depende dos
integrantes do grupo. Nesta nova concepção da razão comunicativa, a linguagem torna-se
”.
elemento constitutivo “. (Idem op.cit.págs.35; grifos meus)
A noção categorial de ação comunicativa em Habermas se refere à interação de pelo menos dois
sujeitos capazes de linguagem e ação que, seja com meios verbais ou extra-verbais, entabulam
uma relação interpessoal. Os atores buscam entender-se sobre uma situação de ação para
poderem assim coordenar de comum acordo seus planos de ação e com eles suas próprias
ações. O conceito decisivo, o de interpretação, refere-se primordialmente ao espaço para
negociação de definições suscetíveis de consenso.
O mundo da vida é, por assim dizer, o locus transcendental em que falantes e ouvintes se
encontram; lugar em podem criticar e exibir os fundamentos de suas pretensões de validade,
resolver dissentimentos e chegar a construção de um acordo tácito e socialmente válido, isto é,
de um consenso argumentativo.
Fundamentalmente a aposta que Habermas faz é na validade da argumentação, na possibilidade
de instauração de uma discursividade compartilhada, o que significa dizer, na fixação de éticas
geradas no campo do debate. Nesses termos, para ele o mundo da vida não aceita – ou não
pode aceitar - passivamente imperativos morais de ordem particular, mas ao contrário, postula
sempre normas universalizáveis sob pena de que todas sejam corroídas pelas contradições
internas.
IV – Considerações finais
No plano epistemológico, é mister reconhecer que a verdade continua a ter primazia na filosofia
habermasiana. Entretanto, o princípio de ordem norteador das práticas vividas é sempre o
melhor argumento, e nunca a verdade como categoria revelada por qualquer saber especializado
– entendido enquanto ciência particular – alçado ao patamar de autoridade decisória.
Uma consideração producente, que merece ser feita a respeito de tal concepção de verdade na
obra do autor, diz respeito ao seguinte tipo de questionamento: em nível da realidade concreta,
será que a perspectiva habermasiana não se consubstancia numa utopia racional – espécie de
utopismo – e de que este consenso imaginado por Habermas para se atingir a verdade,
necessariamente, não acabará por resultar em uma comunidade ideal de linguagem, o que
poderia ser homólogo de, equivaler a, eliminação dos conflitos do mundo da vida?
A resposta para tal questionamento vem do próprio Jürgen Habermas, em entrevista concedida
no final da década de oitenta a Perry Anderson e Peter Dews, publicada no Brasil pela Revista
Novos estudos CEBRAP, momento em que afirmou categoricamente:
Finalmente, é importante reiterar que uma das principais contribuições da concepção teórica do
autor vista em sua totalidade, quando comparada com as formas canônicas do marxismo
ocidental, é uma permanente tentativa de realizar a transição da esfera da “produção” à esfera
da “comunicação”, tanto enquanto foco analítico quanto como fonte de valores. (Habermas,
1987b). Daí que, a força do paradigma comunicativo não recai na categoria de representação e
no conhecimento objetivo, mas sim num entendimento não coagido, isto é, na possibilidade de
compreensão.
Objetivamente, a concepção habermasiana envolve uma mudança da episteme moderna a partir
de um duplo enfoque. Em termos de teoria da ação, a perspectiva dialógica desvela a relação
intersubjetiva que os sujeitos, capazes de discursividade e ação social, assumem nos momentos
em que procuram se entender sobre algo referente aos três mundos (objetivo, social e
subjetivo).
No que tange à problemática da razão, existe uma mudança sensível na compreensão e no
entendimento da racionalidade humana, na medida exata em que a postulação habermasiana
estrutura-se fundamentalmente no primado de uma descentração da razão.
Referências