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distintas possibilidades de entendimento do termo, de razão ante a um objeto que podia conhecer e sobre
para, finalmente, sugerir os riscos inerentes ao su- o qual existiria uma só verdade.
posto de resolução imediata da contradição entre Essa fé na razão impregnaria o programa ilumi-
teoria e prática: a instrumentalização da teoria e o nista para o qual a extensão da razão a todos os cam-
praticismo na educação. pos do conhecimento, se era limitada pelo próprio
fenômeno e não poderia ir além desse, não encontra-
Conhecimento e intervenção social ria limites. Nenhum campo havia que não devesse ser
submetido à indagação racional, inclusive a política
O dilema das possibilidades e condições do co- e a religião. A conformação da ciência como o único
nhecimento desde sempre tem sido um impasse para conhecimento possível, e de seu método como o úni-
os homens, e tem-se restabelecido, por diferentes pers- co válido, implicaria que o recurso a causas ou prin-
pectivas, matizes teóricos e propostas metodológicas cípios que não fossem acessíveis a esse método não
de variados aportes, em distintos momentos históri- daria origem ao conhecer. E qualquer conhecimento
cos. Afinal, quais são as condições de possibilidade que não recorresse a tal método também não teria
de apreensão da realidade pelo sujeito de conheci- valor. O método da ciência devia ser estendido a to-
mento? Qual é a relação desse conhecimento com a dos os campos da indagação e da atividade humana, e
objetividade, com a prática? Seja na mitologia, na fi- a vida humana deveria ser por ele guiada. Nessa pers-
losofia, nas ciências naturais, nas ciências humanas, pectiva, o método da ciência constituiu-se descritivo,
nas artes, ou nas relações sociais cotidianas, a ques- no sentido de que os fatos e as suas relações constan-
tão tem-se recriado e seu enfrentamento desafiado o tes foram compreendidos pelas leis que consentiam
pensamento e compreendido processos teóricos im- na sua previsão.
portantes. A discussão acerca da pesquisa-ação deve Assim, a possibilidade do conhecimento, o modo
ser tomada como um desses momentos. de conhecer, seu valor e finalidade deslocaram-se para
Nos quase três séculos que vão desde os finais a afirmatividade da forma, ou seja: a verdade havia
de 1600 até meados de 1800, de Descartes a Comte, de ser garantida mais pela forma como era obtida,
passando por Kant e Hegel, constituem-se as bases pelos procedimentos e instrumentos, do que pelo con-
da moderna compreensão da relação entre o sujeito teúdo que pudesse revelar. A discussão epistemológi-
que conhece e a objetividade a ser conhecida, suas ca migrou para a afirmatividade de regras e métodos
possibilidades e seus limites, suas condições e exi- de bem conhecer, e a empiria constituiu-se como ex-
gências – a constituição da razão como uma faculda- pressão exclusiva do real.
de propriamente humana. Já em Descartes (1983, Já as ciências humanas e sociais, que se consti-
p. 29), a razão revelava-se substância e possibilidade tuirão a partir de meados do século XIX, serão soli-
da subjetividade de todos os homens, e não encontra- dárias e contemporâneas de um questionamento radi-
va sua validade e garantia em Deus, mas no respeito a cal dessa possibilidade de conhecimento, apreensão
regras precisas: “ o poder de bem julgar e distinguir o do objeto pelo sujeito que conhece e relação desse
verdadeiro do falso, que é propriamente o que se de- conhecimento com a objetividade e a prática históri-
nomina o bom senso ou a razão, é naturalmente igual cas. Da complexa revolução social que a Europa trans-
em todos os homens”. poria para o resto do mundo se desenvolveriam no-
Descortinavam-se o desencantamento, a secula- vas formas de sociabilidade, de entendimento, de
rização e a humanização da razão, que encontrará na objetivação que constituiriam novas realidades sociais
ciência, particularmente na matemática, o fundamen- e desafios para o conhecimento científico. Processa-
to do método a ser aplicado a todos os campos do ram-se a afirmação da razão, da ciência, da cultura
saber, e mais: a afirmação do sujeito como portador secular e do comportamento, a indústria e a urbaniza-
ção, a divisão do trabalho social e a mercantilização, interpuseram-se entre o sujeito e o objeto para garan-
num decurso crescente de intelectualismo e raciona- tir a inteireza presumida e interna deste, e a pesquisa
lidade que reduziu os espaços da tradição, da supers- não se comprometeu para além da representação desse
tição, da religião. mesmo objeto. E, como exigência de validade, con-
A compreensão desse mundo complexo elabo- firmava-o, confirmando ao mesmo tempo uma reali-
rou propostas distintas para o conhecimento da reali- dade que podia ser explicada, quantificada, compro-
dade. De um lado, foram traduzidos para o campo da vada, prevista e, pois, controlada. Dessa forma, o
sociedade, da cultura e do indivíduo os procedimen- conhecimento postulou-se objetivo e neutro. Contu-
tos que já haviam sido elaborados e continuavam a do, ao descrever a realidade e afirmá-la na sua
elaborar-se nas ciências físicas e naturais; de outro, exterioridade, ele também se tornou confirmativo e,
produziram-se novos procedimentos de reflexão ante a despeito de sua pretensa neutralidade e isenção, aca-
a originalidade dos acontecimentos e dilemas que bou por constituir-se como prática, ao conceber como
caracterizavam a vida social e o indivíduo no mundo verdade a realidade manifesta, reiterando-a e confir-
moderno. Institucionalizadas nesse quadro, as ciên- mando-a.
cias humanas e sociais desenvolveram-se sobrema- A neutralidade ante a objetividade efetivou-se,
neira a partir da virada do século XX, enfrentando, portanto, como conservação e afirmação da realida-
sem resolver, as questões fundamentais da relação de mesma, revelando-se pseudopretensão, porque
entre sujeito e objeto e entre teoria e prática. efetivada historicamente como conservação, manu-
O pensamento positivista foi um momento radi- tenção, funcionalidade e controle. Daí que se tenha
cal dessa elaboração. Assentou-se no suposto da rup- realizado como prática tomada como aplicação e
tura entre o sujeito e o objeto, possibilitando a apro- utilidade.
priação dos modelos e métodos das ciências naturais Entretanto, diante dos desafios que se colocavam
como garantia e critério da verdade do conhecer. A no mundo que se revolucionava, já no século XIX,
verdade do objeto estava assegurada pela fiel e com- avançando para o século XX, tendências e vertentes
provada apreensão empírica, pela possibilidade de re- nas ciências humanas e sociais buscaram libertar-se
petição, refutação e experimentação, descrição do ob- da epistemologia das ciências naturais. Do modelo
jeto em sua representação, forma de manifestação explicativo das abordagens positivistas, organicistas
imediata ou aparência. Tanto mais verdadeiro seria o e funcionalistas, os cientistas sociais voltaram-se para
seu conhecimento quanto mais fossem fiéis sua des- uma abordagem compreensiva: “ em lugar da
crição e representação, de maneira que qualquer su- ‘causação funcional’, a ‘conexão de sentido’, a ‘com-
jeito poderia comprovar a sua verdade, desde que ga- preensão’, o mundo da vida, as ações e relações so-
rantidos os mesmos procedimentos e regras de ciais, o indivíduo, a identidade, a alteridade, a subje-
conhecer. tividade, os valores, os ideais, as fabulações” (Ianni,
Não se distinguiram, nessa perspectiva, os mo- 2003, p. 21).
mentos de pesquisa e de exposição do objeto. O pro- Tratava-se, nessa perspectiva, de assumir a uni-
cesso do conhecer era a expressão exata do objeto dade originária da relação entre sujeito e objeto, a in-
conhecido. A descrição do caminho da pesquisa e de vestigação científica devendo aceitar o desafio de um
sua metodologia era já exposição do objeto investi- objeto que não se revela pela descrição de sua mani-
gado e confirmação de sua verdade. Este era o que a festação, mas somente pela apreensão e compreen-
regra de conhecer permitia apreender, e essa regra era são da diversidade de seus nexos, processos e estru-
a garantia de seu conhecimento. turas de diferentes ordens. Um objeto ao mesmo tempo
Afastando qualquer possibilidade de interferên- singular e universal, particularidade e totalidade, que
cia do sujeito, portanto, as regras e os procedimentos não se revela na sua expressão imediata e aparente,
mas carrega o passado e o futuro na sua expressão Esse debate fertilizou-se e ainda ecoa no presen-
presente, que é história, que faz história, que se trans- te, e pode ser retomado nos diferentes programas e
forma, que é razão, emoção, sentido, desejo. Enfim, projetos de pesquisa que, a partir da crítica às possi-
um objeto que se põe como desafio, seja ele o indiví- bilidades postas na incorporação do modelo das ciên-
duo, a sociedade, o grupo, a classe, o movimento so- cias naturais aos objetos das ciências históricas, apre-
cial, a escola, o ser humano na sua intricada e contra- sentam propostas de pesquisa e intervenção no campo
ditória realidade individual e histórica: as formas das social. E uma das perspectivas que podem ser apre-
objetivações humanas que constituem a realidade endidas nessa direção é aquela que se convencionou
objetiva e as subjetivações da objetividade que cons- chamar pesquisa-ação, que se constituiu a partir da
tituem o sujeito. primeira metade do século XX.
É nessa perspectiva que se compreende que “ as
ciências naturais realizam principalmente a explica- Pesquisa-ação e prática social
ção, ao passo que as ciências sociais propiciam prin-
cipalmente a compreensão, reconhecendo-se que as Diversos autores descrevem a trajetória da pes-
artes surpreendem e fascinam pela revelação” (idem, quisa-ação desde os anos de 1940 até o presente.
p. 24-25, grifos do original). Assim, o desafio da com- Numa perspectiva bastante abrangente, é possível
preensão da realidade social passou a ser enfrentado situá-la em dois grandes períodos: o primeiro, mais
pelo sujeito que conhece num outro patamar. norte-americano, a partir da emergência do termo
Num sentido amplo, e de início, pode-se afirmar cunhado por Kurt Lewin nos anos anteriores à Se-
que o objeto constitui uma totalidade que conecta e gunda Guerra Mundial, indo até os anos de 1960; o
sintetiza sentidos e significados, descortinando pro- segundo, mais europeu, australiano e canadense, do
cessos em desenvolvimento. A fidelidade ao objeto final dos anos de 1960 até os dias atuais (Barbier,
diz respeito à apreensão dos diferentes nexos que o 2002; André, 1995). Trata-se, na verdade, de um gran-
constituem. No entanto, não se trata simplesmente de de mosaico de concepções de pesquisa-ação, cuja
arrolar e descrever tais nexos, mas de apreendê-los abordagem qualitativa nas ciências sociais terá seu
como síntese significativa e histórica de seus proces- conceito, justificativa e explicitação metodológica
sos, numa totalidade que não se reduz à relação de constituídos a partir de distintas vinculações teórico-
tudo que lhe diz respeito, mas se refere a um todo metodológicas.
significativo que apreende o objeto como expressão A noção de intervenção poderá variar de uma po-
objetivada de sujeitos humanos em condições histó- sição mais próxima à experimental (como a de
ricas determinadas e elabora a síntese da experiência Lessard-Herbert, 1991 apud Barbier, 2002) até proje-
recriada pelo pensamento. tos de ação social com vistas à solução de problemas
Tomadas dessa forma, a teoria e a prática consti- coletivos (Thiollent, 1984). Assim, à pesquisa-ação
tuem-se reciprocamente, porque a objetividade histó- são atribuídas leituras que adotam uma perspectiva
rica e não-natural é, antes, produto de objetivações mais explicativa (experimental) ou mais compreensi-
humanas. O objeto é sempre objetivação de sujeitos, va (fenomenológica ou dialética). Em princípio, as
e compreendê-lo é apreender os sentidos e significa- abordagens da pesquisa-ação constituem-se como crí-
dos humanos que ali se depositam. O seu conheci- tica ao positivismo, ainda que se possa entender que
mento será o reconhecimento da história e, portanto, nem todas logrem afastar-se inteiramente dessa con-
das práticas sociais que ali se cristalizaram, sendo o cepção. Também é certo que, em princípio, elas se
desvendamento da realidade ou o conhecimento pro- situam como abordagens compreensivas, uma vez que
duzido acerca dos seus objetos sempre práxis que reconhecem que “ a realidade social não é algo que
descortina e se compromete com a realidade. exista e possa ser conhecida com independência por
aquele que queira conhecê-la, mas é uma realidade De uma perspectiva vinculada a Jürgen Habermas,
subjetiva, construída e sustentada por meio dos signi- os canadenses Carr e Kemmis (1988, p. 142-143), ao
ficados dos atos individuais” (Carr & Kemmis, 1988, formularem sua concepção de pesquisa-ação na edu-
p. 116). cação, defendem que a teoria educativa deve
Na atualidade, delineiam-se algumas concepções corresponder a cinco exigências: a) rejeitar as noções
que buscam distinguir-se dos aportes clássicos das positivistas de racionalidade, de objetividade e de
ciências sociais descritos. Dentre outras, pode-se es- verdade; b) admitir a possibilidade de utilizar as cate-
tabelecer um paralelo entre duas dessas novas gorias interpretativas dos docentes; c) encontrar meios
releituras da pesquisa-ação: as abordagens francesa e para distinguir as interpretações que estão ideologi-
canadense, destacando-se, respectivamente, René camente distorcidas das que não estão, devendo pro-
Barbier (2002) e André Morin (2004); e a abordagem porcionar também alguma orientação sobre como su-
australiana, cujos principais expoentes são Wilfred perar os auto-entendimentos distorcidos; d) preocupar-
Carr e Stephen Kemmis (1988). Ao tomar como refe- se em identificar aspectos da ordem social existente
rência esses autores e algumas de suas obras, não se que frustram a obtenção dos fins racionais, devendo
pretende uma exegese de seu pensamento e de sua poder oferecer explicações teóricas mediante as quais
produção, mas situar alguns aspectos gerais que per- os docentes vejam como eliminar ou superar tais as-
mitem apreender os desdobramentos da pesquisa-ação pectos; e) reconhecer que a teoria educativa é prática
no campo da educação na atualidade. no sentido de que a questão de sua consideração edu-
René Barbier (2002) atribui à pesquisa-ação o cacional seja determinada pela maneira pela qual se
sentido de uma revolução epistemológica ainda não relaciona com a prática. Assim, a verdadeira finalida-
suficientemente explorada nas ciências humanas. Sua de da teoria educativa seria informar e guiar a prática
noção de pesquisa-ação é a de “ uma arte de rigor clí- dos educadores, indicando quais ações devem empre-
nico, desenvolvida coletivamente, com o objetivo de ender se querem superar os problemas e eliminar as
uma adaptação relativa de si ao mundo” (p. 67), o dificuldades.
que implica uma mudança do sujeito (indivíduo ou Inegavelmente, podem ser feitas muitas distin-
grupo) com relação à sua realidade. Reputa como bas- ções entre as abordagens de pesquisa-ação desses
tante próxima da sua noção a do canadense André autores. No entanto, a que reputamos mais importan-
Morin (2004), de quem agrega o sentido de pesquisa- te se refere aos aportes teóricos adotados: a teoria da
ação “ integral”, que visa à mudança pela “ transfor- complexidade de Edgar Morin (e o viés sistêmico que,
mação recíproca da ação e do discurso”. Ambos re- ao seu modo, René Barbier e André Morin lhe confe-
correm à teoria da complexidade de Edgar Morin para rem) e a teoria da ação comunicativa de Habermas,
contrapor-se ao “ ideal de simplicidade” das ciências trazida por Carr e Kemmis.
da natureza. Afinal, só um paradigma da complexida- Em que pesem as distinções entre as abordagens
de poderia apreender o ser humano entendido como de Barbier e Morin, de um lado, e de Carr e Kemmis,
“ uma totalidade dinâmica, biológica, psicológica, so- de outro, são muitas as suas aproximações e elas são
cial, cultural, cósmica, indissociável” (Barbier, 2002, essenciais para a compreensão do que tem sido for-
p. 87). Esse paradigma, como reconhece Barbier, im- mulado como pesquisa-ação na atualidade, especial-
põe ao pesquisador uma visão sistêmica aberta: “ Ele mente na educação. Primeiro, os autores são bastante
deve combinar a organização, a informação, a ener- incisivos na crítica ao positivismo nas ciências so-
gia, a retroação, as fontes, os produtos e os fluxos, ciais, aos limites de sua noção cientificista de pesqui-
input e output, do sistema, sem fechar-se numa sa, de objetividade, racionalidade e verdade. Segun-
clausura para onde o leva geralmente seu espírito teó- do, com maior ou menor aproximação, recorrem às
rico” (idem, p. 91). abordagens compreensivas para extrair delas as pos-
sibilidades do sujeito (do conhecimento ou da ação) e to menos quanto mais crê ser, quanto mais se ilude
dar significado à realidade vivida mediante catego- em ser algo para si objetivo” (p. 198).
rias interpretativas.1 Terceiro, vinculam a noção da É importante ressaltar a crítica que a pesquisa-
pesquisa à idéia de mudança, de transformação dos ação faz a uma noção de teoria contemplativa e abs-
atores e sua realidade. Quarto, e conseqüentemente, trata. A afirmação de Marx de que não se trata apenas
investigam o conceito de pesquisa junto à ação, à prá- de compreender o mundo, mas de buscar transformá-
tica, com a resolução dos saberes nas ciências huma- lo, é sempre presente e deve ser entendida na pers-
nas e sociais dando-se, preferencial ou exclusivamen- pectiva das mediações constitutivas das relações pos-
te, no campo da prática e da ação social. Quinto, tas entre sujeito e objeto, teoria e prática.
postulam uma noção de totalidade que se afirma refe- Deve-se, no entanto, estar atento para que o im-
rida à prática e diz respeito a tudo que nela se consti- perativo de transformação da realidade social não
tui, abrangendo a ação e a experiência do sujeito. Sex- implique a perda da mediação teórica na apreensão
to, a pesquisa-ação, mais do que uma abordagem dessa realidade. Nesse sentido, é importante discutir
metodológica, é um posicionamento diante de ques- a tendência que hoje se verifica de estabelecer o pri-
tões epistemológicas fundamentais, como a relação mado da ação sobre a reflexão, da prática sobre a teo-
entre sujeito e objeto, teoria e prática, reforma e trans- ria, da experiência sobre o pensamento, tendência de
formação social. que resultam pelo menos dois graves reducionismos:
o praticismo e a instrumentalização da teoria (Miranda,
O praticismo e seus riscos 2004, p. 21). O suposto de que a produção do conhe-
cimento seja orientada para subsidiar a ação pode in-
Quais as implicações desse posicionamento epis- correr numa noção bastante pragmática de teoria,
temológico para a pesquisa-ação? Antes de tudo, deve- aquela que se orienta para um fim útil, o que viria a
se reconhecer o quanto é importante que a pesquisa- conferir-lhe um caráter de instrumentalidade ou, no
ação se posicione como crítica ao objetivismo estéril limite, a sua negação como teoria. Não é demais lem-
próprio do positivismo, e que possa buscar, na pers- brar que teoria e prática guardam entre si uma rela-
pectiva compreensiva, uma apreensão da relação en- ção de contradição: mesmo sendo sempre e necessa-
tre sujeito e objeto que contemple essas polaridades riamente vinculada à prática, teoria não é prática, não
reciprocamente referidas e contraditórias. Está em se reduz a esta e não pode orientar-se imediatamente
causa, portanto, a natureza da relação entre sujeito e pelo seu interesse.
objeto nas ciências humanas e sociais. Adorno (1995) Tal praticismo pode afetar a formação inicial e
lembra que a separação entre sujeito e objeto, ao mes- continuada do professor, especialmente tudo o que
mo tempo real e aparente, se torna ideologia sempre diga respeito ao seu trato com a teoria, entendida aqui
que for fixada sem mediação. Por isso, deve-se evitar de modo bastante abrangente e envolvendo, além das
incorrer na armadilha de, ao se contrapor ao primado chamadas teorias da educação, a filosofia, as ciências
da objetividade, resvalar no subjetivismo. Mesmo humanas e sociais, a arte, a cultura humana. O ideal
porque “ o sujeito tanto mais é quanto menos é, e tan- de formação não pode, por qualquer pretexto, passar
ao largo da defesa de uma sólida formação teórica,
cujo princípio não deveria ser a instrumentalidade da
1
Nesse ponto, há uma distinção importante a ser ressaltada ação (“ teoria para quê?”), mas a fecundidade da prá-
em Carr e Kemmis com relação aos outros autores citados: os tica social em sua estreita vinculação com a mesma
australianos afirmam que o limite da abordagem compreensiva teoria. É nesse sentido que se deve propor a teoria
(que eles chamam de interpretativa) seria o não-reconhecimento efetivada como prática, sobretudo quando aquela exer-
de que a realidade pode afetar (“ deformar”) a consciência. ce seu vigor crítico: crítica da sociedade, das refor-
mas educacionais, das políticas públicas, dos conteú- Uma outra implicação de um incorreto enten-
dos ensinados, das práticas de gestão, do discurso dimento da pesquisa-ação seria responsabilizar os
educacional, das teorias adotadas, da prática cotidia- sujeitos (da ação, da pesquisa) pela mudança pre-
na. Não há dúvida de que o ponto de partida e de che- tendida, quando se sabe que – sob as mediações teó-
gada dessa crítica seja a prática. Mas não há crítica ricas, históricas, políticas, sociais e culturais já re-
possível sem a mediação da teoria. Como a teoria não feridas – são limitadas as possibilidades da ação
é algo que possa ser buscado ou constituído para um individual docente. Pode-se incorrer no voluntaris-
fim dado (como instrumento), não há alternativa se- mo messiânico da ação bem-sucedida ou, o que é
não assegurar uma formação teórica aos professores. mais provável, no insucesso frustrante da ação ma-
Isso, evidentemente, custa caro, requer uma mudan- lograda. Ambos os enredos contrariam uma atua-
ça cultural de gigantescas proporções, contraria os ção política refletida, realista e efetivamente trans-
interesses da indústria cultural e, sobretudo, tem o formadora.
inconveniente de gerar um professorado crítico e Por fim, deve-se insistir no risco de fazer com
reivindicativo, difícil de ser administrado. que a pesquisa-ação seja convertida em estratégia de
Assim, uma grave conseqüência do praticismo é políticas públicas com a finalidade de imprimir refor-
que sua defesa vem alimentando a retórica reformista mas no campo da retórica e da ação do professor, quan-
da educação e seus efeitos se vêm fazendo sentir nas do então a sua discussão epistemológica e conceitual
diversas expressões de repúdio à teoria e à cultura se transfere para normalizações instituidoras da prá-
acadêmica. Outra vez, são muitos os riscos: o aligei- tica docente. A instituição da pesquisa como prática
ramento da formação, a descaracterização da univer- comum e generalizada aos professores ou às escolas
sidade como agência de formação de professores, a desconsidera que ela requer suporte institucional e
banalização da pesquisa, a redução das condições de acadêmico adequado, condições de trabalho compa-
autonomia e rigor para o exercício da crítica. tíveis, além da disposição e do interesse dos docen-
Voltando à questão da pesquisa-ação, deve-se tes. Sem essas condições, pode-se alimentar uma re-
considerar que, do ponto de vista da atuação pedagó- tórica reformista que institui o imperativo de que o
gica do professor, é preciso estar atento aos exageros professor assuma sozinho a decisão e o risco de se
do praticismo. Uma incorreta compreensão da pes- contrapor a uma realidade que não dá sinais de pre-
quisa-ação pode gerar a falsa noção de que essa atua- tender se transformar.
ção deva orientar-se para a solução de problemas iso-
lados na sala de aula ou escola. Ou seja, as idéias de Referências bibliográficas
ação, mudança, intervenção podem ficar condiciona-
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