You are on page 1of 64

O IMIGRANTE: UM OLHAR ARQUETÍPICO

ANA MARÍA SALAZAR VILLEGAS


Psicóloga, Especialista em Psicoterapia e em Psicologia Analítica.
Atualmente em formação de analista do Instituto Junguiano do Rio de Janeiro

I. Introdução

a) Tema

Relação entre os arquétipos próprios das etapas da viagem do herói e o processo de

adaptação dos estudantes estrangeiros no Rio de Janeiro.

b) Delimitação do tema

Os processos de adaptação dos estrangeiros são diversos e influenciados por muitos

fatores. A idade, o sexo, o país de origem, a atividade a desempenhar ou as razões

para viajar, a situação emocional, espiritual, econômica, familiar e social antes e

depois da viagem, são todos fatores que de alguma maneira determinam a

experiência de cada pessoa que enfrenta a situação de ser imigrante.

A presente monografia pretendeu encontrar as relações entre os arquétipos

relacionados com cada etapa da viagem do herói de Campbell com o processo de

adaptação de estudantes estrangeiros no Rio de Janeiro.

c) Problema

Tendo em vista a diversidade dos processos de adaptação dos estudantes

estrangeiros no Rio de Janeiro:

a) Quais os fatores associados ao êxito ou fracasso desse processo.


b) Como se relacionam os arquétipos das etapas da viagem do herói com esse

processo.

d) Objetivos

Geral

Identificar as relações entre os arquétipos relacionados com cada etapa da viagem do

herói de Campbell com o processo de adaptação dos estudantes estrangeiros no Rio

de Janeiro.

Específicos

• Aprofundar nos fatores que facilitam o processo de adaptação dos estudantes

estrangeiros no Rio.

• Aprofundar nos fatores que obstaculizam o processo de adaptação dos

estudantes estrangeiros no Rio.

• Identificar os arquétipos que são ativados nesse processo.

• Identificar as relações entre esses arquétipos e o processo de adaptação.

e) Justificativa

Os processos e situações vividos pelas pessoas que moram num país diferente ao

próprio são tão diversos como os mesmos indivíduos. Porém, existem elementos que

todas as pessoas que têm passado ou estão passando por essa situação encaram.

Esses elementos têm a ver com o sentido de pertencia, o arraigamento e a própria

individuação. Aprofundar nesse fenômeno desde a perspectiva junguiana, pode ajudar a

compreender os processos psicológicos e espirituais que se experimentam nessa

situação e definir elementos importantes nos programas de apoio para imigrantes.

2
Tendo em vista a alta porcentagem de estudantes estrangeiros no Rio de Janeiro, se

trabalhou com essa população específica.

f) Metodologia

Pesquisa bibliográfica e pesquisa qualitativa.

Amostra

Foram realizadas duas entrevistas com estudantes estrangeiros da América Latina, que

atualmente se encontram realizando seus estudos no Rio de Janeiro.

Instrumentos

• Entrevista semi-estruturada: Se desenhou um instrumento semi-estruturado de

entrevista.

• Índice de Mitos Heróicos: Como complemento à informação obtida nas entrevistas,

se aplicou esse questionário, que permite identificar arquétipos ativados,

relacionados com as etapas da viagem do herói.

Análise de resultados

Por se tratar de informação principalmente qualitativa, os resultados foram processados

e analisados utilizando o software Atlas Ti, a partir da definição de categorias

previamente definidas e categorias emergentes.

Os resultados do Índice de Mitos Heróicos foram processados e analisados segundo o

manual do instrumento.

1. Características do processo de adaptação do


imigrante

3
As complexas problemáticas sociais dos países latino americanos e o desenvolvimento

acelerado da globalização têm levado a que o fenômeno da imigração seja um dos mais

comuns de nosso continente. Anualmente milhares de pessoas transladam-se de seu país

de origem para um novo destino.

As razões que levam às pessoas a imigrar são muitas e compreendem desde

problemáticas de refugiados por causas de guerra, deslocamento pela violência ou crises

políticas, até oportunidades de trabalho e intercambio acadêmico ou cultural.

I.1Alguns conceitos relacionados

Para começar, é importante definir alguns dos conceitos relacionados com esse

fenômeno. Em primeiro lugar, emigrante e imigrante são duas formas de se referir à

mesma situação, mas desde diferentes pontos de vista. Para uma pessoa nascida e

residente no país de origem do migrante, trata-se de alguém que emigra para outro país,

enquanto para quem tem nascido no país de destino e mora nele, o estrangeiro é um

imigrante.

Além disso, é necessário diferenciar o migrante de outras categorias como viajante ou

turista. Para Grinberg e Grinberg (1994) a migração supõe o deslocamento de um lugar

para outro suficientemente distante, por um tempo suficientemente prolongado como

para morar nele e desenvolver atividades da vida cotidiana.

Segundo esses autores, pode se falar de migrantes voluntários e migrantes forçados,

sendo os primeiros aqueles que viajam pela sua vontade, e os segundos aqueles que

precisam abandonar seu país para proteger a sua integridade ou a de sua família e

pessoas próximas. Dentro da primeira categoria estão os estudantes, tema do presente

estudo.

Por outra parte, o fenômeno da migração supõe uma serie de processos de adaptação

onde é precisa a negociação e a interação com o novo meio para se ajustar a ele e

4
desenvolver uma “nova identidade”.

Nesse sentido, a identidade é o “conjunto de auto-representações que permitem que o

indivíduo sinta-se, por uma parte como semelhante e pertencente a determinadas

comunidades de pessoas e por outra parte, diferente e não pertencente a outras”

(Achotegui, 2002: 2).

O processo de adaptação pode implicar altos níveis de estresse no imigrante e

geralmente um doloroso processo de luto frente às pessoas e pertenças deixadas atrás.

Segundo Achotegui (2004), o estresse é um desequilíbrio substancial entre as demandas

ambientais e as capacidades de resposta do sujeito.

À sua vez, o luto é entendido como o processo de reorganização da personalidade que

acontece quando o indivíduo perde algo significativo para ele. Pode se dizer então que o

luto é um estresse prolongado e intenso e sua elaboração envolve a totalidade da

personalidade do indivíduo.

I.2O luto migratório

Embora os processos de luto causados pela morte de uma pessoa próxima não sejam

totalmente comparáveis ao luto migratório, trata-se em todo caso de um

desprendimento, muitas vezes forçoso, do cotidiano do imigrante.

O luto é necessário para o imigrante, mas não se apresenta do mesmo jeito em cada um

deles. Gonzáles Calvo (2006) chama de “luto migratório” à situação de perdas

psicológicas e sociais que tem que afrontar o imigrante. Esse luto pode ser “simples”

quando a migração é realizada em boas condições para a pessoa, encontrando um

ambiente acolhedor que facilita a inclusão e o desenvolvimento do projeto migratório.

Mas o luto pode ser também “complicado” quando as circunstâncias pessoais e sociais

dificultam a elaboração das perdas e do projeto migratório. Nesse caso, podem se

5
apresentar dificuldades de adaptação tão fortes que exista um perigo para a saúde

mental do imigrante.

Segundo Achotegui (2002), o imigrante tem que vivenciar sete lutos: a família, os

amigos, a linguagem, a cultura, a terra, o nível social e o contato com o grupo étnico.

Todos esses elementos estão associados a memórias e afetos que levam a que o

desprendimento seja difícil desde o ponto de vista psicológico.

I.3Etapas do processo de adaptação

Embora sejam muitas as circunstâncias que vão definir a maneira como se desenvolveo

processo de adaptação ao novo meio, existem características comuns à vivência do

estrangeiro que emigra a um novo país.

Segundo Arnal (2004), a migração como processo de adaptação compreende

necessariamente dois momentos. Em primeiro lugar uma adaptação espacial que visa

preservar a identidade cultural, econômica, familiar, etc. O segundo momento consiste

na integração à nova sociedade ou o ambiente que o recebe.

Trivonovitch (1980), por sua parte, identificou quatro etapas que normalmente

aparecem em pessoas que estão se ajustando em um novo contexto cultural:

• Lua de mel: etapa de empolgação, surpresa e felicidade frente às novidades

do ambiente.

• Hostilidade: etapa de frustração, raiva, ansiedade, medo, tristeza ou

depressão. A pessoa se sente alheia à nova cultura e julga as diferenças como

algo negativo.

• Integração: A pessoa se sente mais cômoda com seu meio, não tem tantas

dificuldades e sente que pode ter controle sobre as situações, o que traz

consigo um relaxamento frente ao meio.

6
• Lar: A pessoa se adapta exitosamente à nova cultura e começa a se sentir na

sua casa.

Essas etapas se apresentam de diversas maneiras e os tempos em que acontecem mudam

segundo diferentes variáveis e características de cada indivíduo. Algumas pessoas não

vivenciam todas as etapas ou não conseguem se sentir na quarta etapa nunca.

Pela sua parte, Grinberg e Grinberg (1994), desde uma perspectiva mais clínica,

propõem as seguintes etapas:

1. Existem sentimentos de intensa dor associados a tudo o que foi abandonado ou

perdido, o medo ao desconhecido e vivências profundas de solidão, carência e

desamparo. É possível que esta etapa esteja acompanhada ou seja substituída por um

estado maníaco no qual o imigrante magnífica as vantagens da mudança e minimiza

sua transcendência.

2. Depois de um tempo determinado se apresentam sentimentos de saudade e o

imigrante começa a reconhecer sentimentos antes dissociados ou negados por serem

dificilmente tolerados, e a viver sua dor ao mesmo tempo em que começa a ser mais

accessível à incorporação lenta e progressiva dos elementos da nova cultura. A

interação entre o mundo interno e o mundo externo se torna mais fluida.

3. Recuperação do prazer de pensar, desejar e fazer projetos para o futuro, em relação

com o qual o passado já não é vivenciado como “paraíso perdido”, sem que interfira

na possibilidade de viver plenamente o presente. Nessa última etapa pode-se falar de

um “sentimento de identidade remodelado”.

Embora essas etapas sejam só um intento por compreender o processo de adaptação dos

imigrantes, não se pode afirmar que se apresentem nessa ordem ou de igual forma de

indivíduo a indivíduo. Isso é devido a que existem muitos fatores associados com a

vivência da mudança e assimilação da nova vida.

7
I.4Fatores associados

Tendo em vista a complexidade desse fenômeno, poderia se falar de fatores internos,

associados ao indivíduo e fatores externos prévios e posteriores à experiência no novo

país de residência.

Podemos definir os fatores internos como aqueles que estão associados com as

características demográficas tais como idade, sexo, escolaridade, estado civil e

profissão. Além disso, compreendem os recursos pessoais e psicológicos como a

capacidade de responder a situações de estresse, capacidade de estabelecer relações

sociais, maturidade ao nível emocional e intelectual, crenças ou papel da espiritualidade

e situação afetiva atual, entre outros.

Os fatores externos anteriores à viagem têm a ver com o país de origem, a atividade ou

oficio que se desempenha, as razões para viajar, características do grupo familiar,

desempenho profissional ou acadêmico.

Depois da viagem influem, entre outras variáveis, o país de destino, as redes de apoio, o

nível de integração social, as condições de vida, satisfação no trabalho ou estudo ou a

atividade que se desempenhe, a nova língua, a situação econômica, ter a possibilidade

de retorno e ter relações interpessoais satisfatórias.

Alguns dos fatores que facilitam a adaptação serão ampliados no ítem 1.7

I.5A síndrome de Ulisses

No nível clínico, a condição do imigrante pode gerar problemas psicológicos diversos,

até o ponto que em países com altos níveis de imigração, alguns pesquisadores têm

começado a trabalhar sobre as incidências clínicas dessa problemática. Nesse sentido,

tem se proposto a Síndrome de Ulisses, como o conjunto de sintomas que se apresentam

nas pessoas em situação de imigração que têm um nível de estresse maior à sua
8
capacidade de adaptação. Desse jeito, a problemática é agora reconhecida como uma

condição clínica que atinge milhares de imigrantes em situação de risco psicológico e

está começando a se considerar como prioridade de saúde pública.

Embora a apresentação dos sintomas esteja influenciada por aspectos culturais do

imigrante, em geral pode se falar de desequilíbrios na área emocional, na área da

ansiedade, na área da somatização e na área confusional. Tristeza, choro, culpa, idéias

de morte, tensão, nervosismo, preocupações excessivas e recorrentes, irritabilidade,

insônia, dor de cabeça, fatiga, problemas de memória, atenção e desorientação, são

alguns dos sintomas mais comuns nessa situação.

Segundo Gonzáles Calvo (2006) a tristeza é o mais comum dos sintomas, acompanhado

geralmente pelo choro, mas a culpa se apresenta com maior freqüência nos imigrantes

provenientes de países ocidentais e o que tem a ver com que esse sentimento de culpa é

uma relação importante com a religião e o temor ao castigo.

Por outra parte, os problemas confusionais podem até chegar a um nível psicótico,

levando o indivíduo a uma perda do sentimento de identidade e a uma desorientação no

tempo e no espaço, sendo esse o quadro mais comum nos imigrantes hospitalizados

(Grinberg e Grinberg, 1994).

Esses mesmos autores destacam uma das problemáticas mais comuns nos imigrantes

que conseguem uma rápida adaptação ao novo país. Eles parecem se adaptar às

características, hábitos e demandas pouco depois da sua chegada. Arrumam trabalho,

aprendem o idioma e estabelecem um lugar para morar. Nos primeiros dois ou três anos

de permanência estão num estado de aparente equilíbrio psíquico e físico e até podem

conseguir êxitos profissionais e sociais. Mas depois caem num estado de profunda

tristeza e apatia, quando finalmente poderiam estar desfrutando dos seus sucessos.

9
Esse quadro é chamado de Síndrome da Depressão Postergada que se apresenta em

alguns casos nos que as defesas maníacas que têm permitido a adaptação inicial,

desaparecem.

Em outros casos, a depressão postergada pode ser substituída por manifestações

somáticas graves de tipo digestivo, respiratório e circulatório.

I.6Mecanismos de adaptação

Neste ponto é importante falar sobre esses mecanismos que permitem a adaptação do

indivíduo em situação migratória. A psique se protege por meio de defesas de diferentes

tipos, que fazem possível que o indivíduo não perca seu sentido de identidade e o ego

mantenha seus limites apesar das ameaças do ambiente. Com esse fim, a pessoa pode se

aferrar a seus padrões culturais, seus costumes, sua língua, sua comida, sua música, se

negando a incorporar os padrões culturais do novo país. Por exemplo, é comum o caso

das pessoas que não aprendem o novo idioma apesar de ter passado anos no país, ou que

só se relacionam com pessoas de seu país de origem e não geram vínculos com quem

tem nascido no país de residência. Desse jeito, o lugar de origem é sobre-dimensionado,

atrasando a reestruturação necessária da identidade.

Também são comuns os comportamentos regressivos de queixa e raiva frente às

múltiplas situações que experimenta o imigrante. Esses comportamentos regressivos não

necessariamente são demonstrações de imaturidade mas sim uma reação de proteção da

psique frente às ameaças e o estresse causado pela interação com o ambiente.

Adicionalmente, os objetos inanimados também têm um papel importante na proteção

da identidade, e é por isso que muitos imigrantes viajam com objetos que não são

necessários, mas que possuem um valor emocional. Muitas vezes trata-se de objetos

grandes e difíceis de transportar como móveis, adornos, bonecos, etc.

10
Achotegui (2002, p. 15) coloca que os mecanismos de defesa ativados no imigrante são

parecidos com os mecanismos de defesa próprios da situação de luto. Esses mecanismos

são:

• Negação: Tendência a desconhecer os sentimentos e evitar confrontar a

realidade emocional. Ex.“tudo é igual no meu país”, “as mudanças não me

afetam”.

• Projeção: Atribuição de características próprias aos outros. Ex: “aqui a gente é

diferente”, “no meu país não somos tão mal intencionados”.

• Idealização: Tendência a olhar de um jeito mais positivo, situações, pessoas,

lugares ou elementos, acrescentando valor a eles. Ex: “Meu país é o mais

bonito do mundo”, “aqui sim se vive bem”.

• Animismo: Atribuir uma conotação humana a aspectos ou elementos

inanimados. Ex: “O país está sofrendo”, “O idioma é poético e musical”.

• Formação reativa: Fazer o contrário do que demanda o impulso para ser aceito.

Ex. Apresentar atitudes racistas frente a pessoas da mesma origem.

• Racionalização: Separar o componente afetivo do cognitivo para evitar o

sofrimento. Ex: “Aqui tenho mais e melhores oportunidades e não existe razão

para voltar”.

No entanto, existem fatores que facilitam ou dificultam o processo de adaptação. Não é

o mesmo passar por esse processo quando existem condições favoráveis para

desenvolver o projeto migratório.

I.7A adaptação do imigrante voluntário

A adaptação dos imigrantes que viajam com um projeto acadêmico, difere daqueles que

o fazem por necessidade econômica ou por razões de segurança. Como se falou

11
anteriormente, os estudantes correspondem à categoria de imigrantes voluntários, que

são nosso eixo de interesse.

Os sintomas da síndrome de Ulisses, mencionados anteriormente, podem apresentar-se

de um jeito muito menos intenso e emalguns deles podem até nem aparecer, quando o

estudante encontra circunstâncias favoráveis de integração e começa a conseguir as

metas de seu projeto migratório. Esses fatores ajudam à reestruturação da identidade de

uma maneira mais tranqüila e simples.

Grinberg e Grinberg (1994, p. 65) mencionam que se a personalidade do imigrante tem

sido sã, as motivações da migração racionais (embora sempre existam motivações

inconscientes), as condições nas que tem-se realizado adequadas e o novo meio

razoavelmente acolhedor, será capaz de aprender o novo da experiência e valorizar os

aspectos positivos do novo país, o que fará possível um enriquecimento psicológico e

um ajuste real ao meio.

Não é que o imigrante voluntário não tenha que passar pelos mesmos lutos do que o

imigrante forçado, mas o processo pode ser totalmente diferente para eles. Pouco a

pouco, o indivíduo começa a se familiarizar com seu novo ambiente e a criar vínculos

com os lugares e pessoas, e começa a sentir como próprios muitos dos aspectos que ao

princípio pareciam alheios e ameaçantes.

Um fator que marca uma diferença muito importante do nível psicológico entre os

imigrantes voluntários e os imigrantes forçados, é a possibilidade de retorno ao país de

origem. Embora a pessoa não tenha planejado voltar, a certeza de que pode retornar

permite que não se sinta desarraigado. Essa perspectiva é tranqüilizante e permite que o

imigrante possa apreciar e desfrutar do empreendimento de sua nova aventura. O

estabelecimento de um limite de tempo para o retorno também ajuda a viver o processo

de um jeito mais tranqüilo, embora em muitos casos o projeto de viagem tenha uma

duração de vários anos.


12
Também é importante levar em conta que a idade na que se empreende a emigração

pode influenciar o processo, sendo menos intenso para as pessoas jovens, por ter maior

flexibilidade psicológica e geralmente não possuir responsabilidades de tipo familiar ou

econômico, que dificultem sua partida.

Além do anterior, outro fator que facilita a adaptação do estudante é morar em cidades

pequenas onde as comunidades são muito mais unidas. Nas grandes cidades, a

experiência do imigrante geralmente é totalmente diferente. O fenômeno do crescimento

descontrolado que geralmente se apresenta nessas cidades, leva à urbanização

desmedida, onde é difícil se relacionar com os outros. Ninguém conhece ninguém.

Grandes distâncias são percorridas diariamente para realizar as atividades cotidianas,

através de meios de transporte massivo que movimentam milhares de pessoas anônimas.

Essas características da vida nas grandes cidades podem dificultar ao estudante a criação

de vínculos, a apropriação dos espaços e da cultura e podem até ser ameaçantes para sua

identidade.

Nas cidades pequenas é muito mais fácil gerar redes sociais e fomentar relacionamentos

fortes. As pessoas se conhecem e existe um sentimento muito mais forte de identidade

entre elas, como comunidade e como indivíduos. No entanto, é importante levar em

conta às circunstancias nas quais o imigrante morava no seu país. Nem todo mundo

gosta de morar em cidades pequenas, especialmente quando a cidade de origem é uma

grande urbe. Nesse caso, o estudante pode-se até sentir limitado em vez de seguro e

confortável.

Por último, é importante mencionar que as condições de migração dos últimos anos tem

tido uma enorme mudança a partir das novas tecnologias de comunicação e informação.

Hoje é possível manter o contato diariamente, a baixo custo, com as pessoas próximas e

os eventos que acontecem no país de origem, o que gera uma sensação de cercania que

alivia muito o processo de adaptação e desprendimento. De alguma maneira, pode se


13
dizer que a tecnologia facilita ao imigrante manter sua estrutura psicológica e sua

identidade.

Como temos visto, a adaptação do imigrante é um processo de grande complexidade, no

que muitas variáveis influem. Mas é tanta a riqueza que implica a aventura da viagem

que é sem dúvida uma enorme oportunidade de crescimento e desenvolvimento pessoal.

Esse será precisamente o tema do próximo capítulo.

2. A viagem do herói

2.1 Jung e sua obra

Desde seu começo, a psicologia analítica, desenvolvida pelo psiquiatra suíço Carl

Gustav Jung (1875-1961), teve uma influência importante no desenvolvimento da

psicologia e em muitas outras áreas do conhecimento e das ciências sociais. A

profundidade de seus fundamentos levou a reconsiderar o determinismo do inconsciente

individual proposto por Freud, assim como muitas outras concepções da psiquiatria e do

estudo das doenças mentais na época.

Enumerar as contribuições do pensamento junguiano na área da psicologia e em outras

áreas do conhecimento é uma tarefa muito difícil, considerando as vastas possibilidades

de um trabalho tão profundo. Suas concepções sobre a libido, a neurose, a individuação,

o trabalho com os arquétipos e os complexos, o papel do símbolo, a abordagem dos

sonhos e das bases da psicoterapia, entre outros, não somente foram inovadoras, mas

tocaram os lugares mais profundos do ser humano e da psique.

Considerando que a psicoterapia teve seu maior nível de desenvolvimento no século

XX, não é possível desconhecer a influência de C.G. Jung nas escolas psicológicas que

reconhecem o papel do inconsciente como base ou parte fundamental da sua

epistemologia.
14
Sobre a natureza dos conteúdos do inconsciente, Jung afastou-se da concepção negativa

freudiana e reconheceu nesta instancia da psique, uma fonte inesgotável de criatividade

desde onde o indivíduo pode “se curar”. Neste sentido, a neurose é compreendida como

uma tentativa de sarar, que procura restabelecer o equilíbrio psíquico. Para Jung, a

neurose deve ser tratada com as ferramentas que cada indivíduo tem em seu momento

atual, segundo seu desenvolvimento psicológico. Desde esse ponto de vista, considerou

que a Psicanálise não funciona para as neuroses que aparecem na segunda metade da

vida, é dizer no momento da chamada “psicologia do entardecer”.

Adicionalmente, ao incluir a concepção de um desenvolvimento psicológico que não se

centra unicamente nos anos da infância, mas durante a vida toda e incluso após da

morte, Jung gerou uma verdadeira diferença frente à concepção da psicologia

contemporânea e construiu as primeiras colunas da psicologia transpessoal, que inclui a

dimensão espiritual na psicologia do indivíduo. A maneira de se aproximar às

experiências psicológicas como se fossem tão reais como as experimentadas fisicamente

pelo corpo, deu um novo sentido a esse tipo de conteúdos, que até o momento

consideravam-se fantasias, mas cujo poder e força nunca tinham sido vistas desde uma

perspectiva psicológica.

Jung fez também grandes contribuições ao preparar o campo para o uso de novas

ferramentas terapêuticas a partir de seu método da imaginação ativa, no que uma cena

ou imagem de um sonho ou pensamento, são o ponto de partida para a fantasia. Daqui

depreendem-se possibilidades ilimitadas de trabalho corporal e manual (dança, desenho,

escultura, etc.), atualmente usados em diferentes correntes terapêuticas.

2.2 Alguns conceitos fundamentais da psicologia


analítica

15
Jung considerou à psique como um modelo em constante dinamismo movimentado pela

libido ou energia psíquica. Essa energia é neutra e não se trata somente de uma energia

sexual, como Freud propôs. Neste modelo, o inconsciente e o consciente têm uma

relação de compensação baseada no princípio de auto-regulação da psique.

Adicionalmente, no modelo junguiano não existe só o inconsciente onde estão os

conteúdos pessoais do individuo. Jung propôs o conceito de inconsciente coletivo como

uma instância ainda mais profunda da psique, que não corresponde à historia pessoal do

individuo, mas a uma dimensão coletiva do humano. Ele contém toda a herança

espiritual da evolução da humanidade e seus conteúdos aparecem constantemente na

mitologia, no folclore, nos sonhos e expressões artísticas de diversas culturas em

diferentes momentos da história universal.

Esses motivos recorrentes do inconsciente coletivo são os elementos estruturais e

primordiais da psique humana e são chamados de arquétipos. Não se consideram idéias

herdadas, mas sim possibilidades de que essas idéias ou imagens se apresentem. Os

arquétipos são tendências psíquicas da espécie e podem se manifestar através dos

complexos a nível pessoal.

Os complexos são grupos de idéias ou imagens que têm uma forte carga emocional.

Quando os complexos são incompatíveis com a atitude consciente, são constelados,

gerando reações no comportamento do indivíduo. Jung não considerava que os

complexos fossem por si mesmos negativos, mas seus efeitos geralmente são

problemáticos para o indivíduo. Seu efeito negativo geralmente se apresenta como uma

distorção em alguma das funções psicológicas (sentimento, pensamento, sensação,

intuição).

Enquanto não se tenha consciência dos complexos, estamos expostos a ser dominados

por eles. (Jung, Vol. 8 pár. 5). A identificação do ego com um complexo produz

freqüentemente neuroses e comportamentos dissonantes com a atitude consciente.


16
Desta maneira, pode-se dizer que os complexos são a personificação dos arquétipos.

Embora existam muitos, o modelo junguiano da psique possui alguns complexos

relacionados diretamente com o desenvolvimento pessoal. Eles são a persona, a sombra,

a anima, o animus e o ego.

2.3 Os complexos pessoais

2.3.1 A Persona

Assim como no teatro os atores usam máscaras para fazer as representações dos

personagens, Jung propõe que todos nós possuímos uma máscara própria que chamou

de persona. Trata-se de todos esses papéis que desempenhamos na vida diária e que

parecem definir quem somos nós, mas não são realmente nossa essência, mas uma

personagem que permite nosso movimento no mundo.

A persona não é uma criação de nossa consciência. Sua formação depende de múltiplos

fatores e começa mesmo desde a infância. As expectativas dos pais, o número de

irmãos, o lugar na sua família, são todos determinantes, entre muitos outros, dos fatores

que levam a atuar de um ou de outro jeito na vida. ()

É assim como a persona não tem origem somente na individualidade, mas também na

coletividade. Jung fala de duas fontes da persona:

“De acordo com as condições e os requisitos sociais, o caráter social é


orientado, por uma parte, pelas expectativas e demandas da sociedade, e
por outra, pelos objetivos e aspirações do individuo” (Jung, Vol. VI. Par.
798)

Tendo em vista o anterior, o meio social da pessoa tem um valor fundamental, não só na

formação, mas também na permanência da persona. Isso quer dizer que sem a referência

social, o papel da persona não sobrevive, porque precisa ser reconhecida pelos outros

para continuar atuando sua personagem.


17
Quando a persona tem muito reconhecimento e logra ter êxito no seu entorno, é possível

que o ego se identifique com ela. Neste caso, o ego se identifica com os papéis que

desempenha e a persona vira protagonista da identidade. Essa identificação do ego com

a persona pode levar a certa “sensação de segurança” na que o indivíduo sente que tem

tudo sob controle. Mas o risco de permanecer identificado com a persona é alto,

enquanto essa identificação se opõe ao processo natural do ego de buscar sua

individualidade por meio da individuação.

No entanto, terminar essa identificação não é tarefa fácil e precisa da integração dos

conteúdos da sombra para abrir o caminho para a individuação. O reconhecimento

desses elementos que não fazem parte de nossa máscara social pode mudar o jeito em

que o individuo se relaciona consigo mesmo e com o entorno, dando passo ao

surgimento de uma nova identidade.

2.3.2 A Sombra

O complexo da sombra abarca aqueles aspetos de nós mesmos que se encontram

reprimidos pelo ego, e por tanto permanecem inconscientes e não são reconhecidos

como próprios. Geralmente se trata de desejos reprimidos, fantasias, motivações

moralmente inferiores e todo aquilo pelo qual o indivíduo não se orgulha.

Tendo em vista que esses conteúdos não são reconhecidos como próprios, geralmente

são projetados em outros indivíduos de maneira que não sejam ameaçantes para a

persona. É por isso que a sombra e a persona têm uma relação compensatória, e seu

conflito geralmente é fonte de neurose.

“A sombra é aquela personalidade oculta, reprimida, quase sempre de


inferior valor que estende suas últimas ramificações até o reino dos
pressentimentos animais e abarca, assim, todo o aspecto histórico do
inconsciente”. (Jung, Vol. IX-2 p. 359)

18
Não entanto, não se trata só de conteúdos negativos ou moralmente reprováveis, mas

também de instintos, habilidades positivas e impulsos criativos que, por alguma razão,

não estão em sintonia com o ego.

A integração dos conteúdos da sombra é um dos principais objetivos da análise e parte

fundamental do processo de individuação, que será tratado depois.

Jung diferenciou a sombra pessoal da sombra coletiva e a sombra arquetípica. Enquanto

a primeira se relaciona com os conteúdos pessoais, a sombra coletiva tem a ver com os

mandatos culturais em termos de moralidade e regulação social. Assim mesmo, a

sombra arquetípica se refere à maldade própria da natureza humana, geralmente

personificada na figura do diabo, e seus conteúdos obedecem às idéias do mal

expressadas desde os primórdios da humanidade.

2.3.3 A Sizígia – Anima e Animus

A anima e o animus são tanto complexos pessoais como imagens arquetípicas. A anima

é a personificação de todas as tendências psicológicas femininas na psique de um

homem. Ela é personificada em sonhos através de mulheres que podem jogar um papel

desde sedutor até de guia espiritual (Sharp, 1994). Pode ser a mãe, a deusa, a amada, a

mulher infernal ou a feiticeira.

A anima é a mediadora dos elementos da psique com o self. Segundo Jung se relaciona

com sentimentos e estados de humor vagos, suspeitas proféticas, captação do irracional,

capacidade para o amor pessoal, sensibilidade para a natureza e relação com o

inconsciente.

Por sua vez, o animus é a personificação de todas as tendências psicológicas masculinas

no inconsciente de uma mulher. O animus é o depósito de todas as experiências

ancestrais de homem que tem a mulher. Na sua expressão negativa pode levar à

obstinação, frialdade e inacessibilidade. Se expressa em opiniões fortes que não podem

19
ser contraditas porque geralmente tem a razão. No entanto, desde seu aspecto positivo,

possui uma grande qualidade criadora, iniciativa, objetividade, sabedoria espiritual e

entendimento.

O animus é geralmente projetado em pessoas espirituais, ou em homens que tem

conseguido sucesso em suas áreas, como esportistas ou artistas destacados.

Anima e animus tem um papel importante no caminho para o self. A anima tenta

unificar e vincular, em quanto o animus quer diferenciar e reconhecer.

2.3.4 O Ego e a identidade

O ego é considerado o complexo que surge a partir do arquétipo do Self e está

diretamente relacionado com o senso de identidade. É o centro da consciência e o

organizador das quatro funções psicológicas.

Por ser o centro da consciência o ego “acredita” ser o centro da psique, mas não é assim.

Como se mostrou anteriormente, os complexos são relativamente autônomos do ego,

gerando um conflito com a atitude consciente do indivíduo, o que pode desencadear

uma neurose. Quanto menos consciente seja um complexo, maior será sua autonomia.

O grande perigo do ego é a identificação com os complexos ou sua projeção, o que

levará à conseqüente perda de equilíbrio com respeito aos conteúdos inconscientes.

No entanto, a função do ego é fundamental para o desenvolvimento da psique e o

funcionamento do indivíduo no mundo. Ele é quem permite ao indivíduo ter um senso

de identidade e conhecer seus limites, quem é ele e quem são os outros. Quais são as

características da sua personalidade, suas fortalezas e seus defeitos.

Embora se trate só de um olhar parcial da personalidade, é graças a esse senso de

identidade que o indivíduo consegue se desenvolver psicologicamente e se relacionar

20
com outros.

Mas esse desenvolvimento do ego faz parte da primeira metade da vida segundo Jung,

tendo em vista que a psique, uma vez diferenciada, procura integrar os elementos ao

redor de um novo centro, na segunda metade da vida. Esse centro integrador é o Self.

2.4 O Self e a individuação

O self é o arquétipo da totalidade e o centro regulador da psique. É o núcleo que abarca

o consciente e o inconsciente. Sua natureza, como a de todo arquétipo, não se pode

conhecer, mas suas manifestações aparecem repetidamente em mitos, contos de fadas,

lendas, sonhos e fantasias. Sua personificação pode tomar diversas formas tais como

salvador, herói, rei, profeta e velho sábio. Como símbolo da totalidade pode aparecer em

diversas formas de mandalas circulares ou quadrados e na cruz. Também se apresenta

como pares de opostos ou a dualidade unificada. (Jung, Vol. VI. par 790).

A meta do self é a unidade e manter o sistema psíquico em equilíbrio. É por isso que

gera símbolos compensatórios de integração quando existe o perigo de que o sistema

psíquico se fragmente (Stain, p.144).

No entanto, o ego, como centro da consciência, não aceita facilmente a “intromissão” do

inconsciente nos seus domínios. Desse jeito, a atitude consciente vai-se afastando do

inconsciente, gerando o desequilíbrio próprio da luta do ego por continuar sendo o

centro.

A reação do inconsciente é compensatória, para manter o equilíbrio frente à

unilateralidade da consciência. Com o tempo, e a partir do trabalho com os diferentes

complexos, essas compensações têm uma influência importante no funcionamento

psíquico, desenvolvendo o que Jung chama de processo de individuação.

Como seu nome o indica, a individuação é chegar a ser indivíduo, por meio da

integração dos elementos da psique e de sua unificação. Quando o ego já não se

21
reconhece mais como o centro da psique, o self assume esse papel. Poder-se-ia dizer

então que a individuação é a realização da potencialidade do self.

Mas não se trata de um estado de iluminação espiritual como alguns acham, mas de um

processo vital que procura a unificação da psique por meio da conciliação dos opostos.

O enfrentamento entre os opostos gera uma tensão carregada de energia que cria um

terceiro elemento onde os opostos podem se unir através da chamada função

transcendente.

Assim, a individuação é um processo que toma a vida toda e que tem sido ilustrado por

múltiplas culturas e tradições como um caminho de trabalho pessoal e espiritual.

2.5 O caminho do herói

O escritor, filósofo e historiador Joseph Campbell, a partir dos seus estudos sobre

religiões comparadas, mitologia e simbologia, identificou as etapas do que ele chama o

caminho do herói. Essas etapas, que aparecem repetidamente em múltiplas expressões

culturais da história da humanidade, representam a luta contra o ego em procura do

desenvolvimento espiritual.

As seguintes são as etapas apresentadas por Campbell no seu livro O Herói de Mil

Faces.

• A Partida: No começo da viagem, o herói recebe o chamado para a aventura que é

freqüentemente rejeitado no inicio. O herói que aceita o chamado começa seu

caminho, geralmente com a ajuda sobrenatural de uma figura que lhe dáferramentas,

conselhos e as vezes objetos que o ajudarão na sua viagem, como armas ou

amuletos. O herói então empreende a aventura e cruza o primeiro umbral, entre seu

mundo conhecido e o mundo desconhecido. Esse cruzamento implica o

enfrentamento com o guarda do umbral que deve ser encontrado para continuar a

22
passagem. O passo ao novo mundo representa renascimento. O ventre da baleia é

um símbolo da prova de transformação necessária para o começo da aventura.

“O herói mitológico, saindo de sua cabana ou castelo cotidianos, é atraído,


levado ou se dirige voluntariamente para o limiar da aventura. Ali,
encontra uma presença sombria que guarda a passagem. O herói pode
derrotar essa força, assim como pode fazer um acordo com ela, e penetrar
com vida no reino das trevas (batalha com o irmão, batalha com o dragão;
oferenda, encantamento); pode, da mesma maneira, ser morto pelo
oponente e descer morto (desmembramento, crucifixão)”. (Campbell, 1949.
p. 223)

• A Iniciação: Uma vez o herói cruza o umbral, tem que afrontar e sobreviver a uma

série de provas, que permitem a ampliação da sua consciência. Neste ponto

geralmente recebe auxílio de um ajudante sobrenatural ou descobre poderes que o

protegem. Geralmente aparece o casamento com a princesa, o encontro com a deusa,

simbolizando o poder feminino da força vital e o domínio total da vida por parte do

herói. Mas aparece também a mulher como a tentação que deve ser superada para

continuar o caminho. Além disso, é preciso que o herói se reconcilie com a figura de

autoridade do pai e seus aspectos protetores e tiranos, para se compreender a si

mesmo. Finalmente chega o momento da apoteose, onde o ego do herói é

desintegrado dando passo à expansão da consciência. Essa experiência muda seu

olhar do mundo e o leva a descobrir novas habilidades que antes não foram

reveladas. Agora ele está pronto para obter o objeto da sua busca e retornar obtendo

benções para ele e para seu povo.

“Além do limiar, então, o herói inicia uma jornada por um mundo de forças
desconhecidas e, não obstante, estranhamente íntimas, algumas das quais o

23
ameaçam fortemente (provas), ao passo que outras lhe oferecem uma ajuda
mágica (auxiliares). Quando chega ao nadir da jornada mitológica, o herói
passa pela suprema provação e obtém sua recompensa. Seu triunfo pode ser
representado pela união sexual com a deusa-mãe (casamento sagrado),
pelo reconhecimento por parte do pai-criador (sintonia com o pai), pela sua
própria divinização (apoteose) ou, mais uma vez — se as forças se tiverem
mantido hostis a ele -—, pelo roubo, por parte do herói, da bênção que ele
foi buscar (rapto da noiva, roubo do fogo); intrinsecamente, trata-se de
uma expansão da consciência e, por conseguinte, do ser (iluminação,
transfiguração, libertação)”.

• O Retorno: Depois de encontrar a iluminação naquele mundo desconhecido, o herói

pode recusar o retorno ao mundo conhecido, que agora se torna mundano demais

para ele. Se o herói decide voltar e recebe a benção das forças mágicas que o

acompanharam, seu regresso se realizará através de algum elixir mágico fechando o

ciclo com as benções e os poderes ganhados dos deuses. Mas se ele não conta com a

aprovação deles, terá que vencer novas provas para conseguir chegar a casa. O herói

cruza de novo o umbral que o levará a seu mundo e perde seu ego, sendo agora

senhor dos dois mundos. Com as experiências vivenciadas e as benções e poderes

recebidos, o herói chega ao final da sua viagem, agora com liberdade para viver.

“O trabalho final é o do retorno. Se as forças abençoaram o herói, ele


agora retorna sob sua proteção (emissário); se não for esse o caso, ele
empreende uma fuga e é perseguido (fuga de transformação, fuga de
obstáculos). No limiar de retorno, as forças transcendentais devem ficar
para trás; o herói reemerge do reino do terror (retorno, ressurreição). A
bênção que ele traz consigo restaura o mundo (elixir)”

A aventura do herói se resume no seguinte diagrama:


Figura 1. A viagem do herói

24
Chamado à
aventura
Como se falou anteriormente, a viagem do herói simboliza o caminho de
Cruzamento do umbral Elixir
Luta com o irmão
desenvolvimento e integração da psique no self. A individuação
Luta com o dragão como processo de
Regresso
Desmembramento
Ressurreição
Crucifixão
Resgate
diferenciação
Abdução psicológica visa a conseguir o desenvolvimento da personalidade
Luta no umbral
Jornada do mar e a
noite
individual. Provas
Jornada Nesse sentido,
do assombro herói é aquele que consegue assumir a responsabilidade por
Ventre da baleia Fuga
Auxiliares
seu destino e por sua realidade.

1. Casamento sagrado
“O objetivo não é dominar2.
àReconciliação
pai
com o
psicologia pessoal, chegar a ser perfeito, mas
3. Apoteose
se familiarizar com ela. 4.
Assim, a elixir
Roubo do individuação implica uma crescente
percepção de nossa realidade psicológica única, incluindo fortalezas e
limitações pessoais, e ao mesmo tempo uma apreciação mais profunda da
humanidade em geral.” (Sharp, 1994. p. 107)

3. Os arquétipos no processo de adaptação do


imigrante

3.1 Ulisses o herói migrante

Ulisses é a máxima expressão do viajante que sempre está desejando seu paraíso

perdido: Ítaca. Não é por acaso que a síndrome que descreve a condição clínica dos

imigrantes que não conseguem se adaptar a seu novo entorno, descrito no capítulo 1,

leve seu nome.

A Odisséia ilustra de um jeito único a travessia no caminho do autoconhecimento.

Embora Ulisses não se estabelecesse num lugar só durante sua longa viagem, é possível

fazer um paralelo entre as etapas de adaptação do imigrante e a jornada que ele viveu.

A impossibilidade de voltar e os obstáculos cada vez maiores levam Ulisses a constantes

episódios de desespero e tristeza. Mas, apesar dessas dificuldades, ele nunca perde a

esperança do retorno.

25
No início da sua jornada, Ulisses chega à terra dos lotófagos, onde tudo é esquecido

para quem come lótus. Esse capítulo é especialmente significativo na viagem do

imigrante, tendo em vista que os problemas de memória, atenção e desorientação são

típicos da síndrome, também relacionados com um momento de negação das raízes e da

origem. As vezes é preferível o anestésico esquecimento à confrontação com a

realidade.

Mas Ulisses não cai na armadilha de comer lótus, equivalente a usar drogas para fugir

do sofrimento, comum em alguns casos de imigrantes que, embora nunca antes tivessem

consumido esse tipo de substâncias, começam a fazê-lo sob situações de pressão e de

perda de identidade.

É por essa lucidez que Ulisses sofre a maior parte do tempo e mostra todos aqueles

sintomas próprios da síndrome que leva seu nome. Tristeza, tensão, idéias de morte,

nervosismo, preocupações excessivas e recorrentes, são algumas das manifestações que

aparecem constantemente na Odisséia.

Mas também surge o sentimento de culpa, próprio de certas etapas da adaptação do

estrangeiro, especialmente quando as condições nas que ficaram seus seres queridos no

país de origem não são as melhores. Ulisses sente essa culpa (Vernant, J.P, 2000, p.121)

na ilha de Calipso, onde vive anos de idílico romance com a ninfa:

Hermes, porém, não encontrou dentro ao magnânimo Ulisses; ele estava a chorar,
assentado na praia, onde, já antes, lágrimas, suspiros e aflições lhe tinham consumido
o peito. (A Odisséia, Canto V)

Por outro lado, é interessante observar que um dos fatores associados ao êxito da

adaptação do estrangeiro é a possibilidade de voltar ao seu país. Essa esperança nunca

abandona Ulisses e é personificada na figura de Tirésias, o vidente – cego (dualidade

maravilhosamente representada por Borges em nossos dias), que lhe anuncia seu retorno

a Ítaca e seu reencontro com Penélope.

26
No entanto, para Ulisses essa é uma possibilidade cada vez mais remota e parte do seu

desespero tem a ver com o regresso frustrado que acontece, em seu caso, em duas

situações. Neste ponto, é importante dizer que assim como a possibilidade de voltar é

um fator de êxito na adaptação do estrangeiro, a impossibilidade de fazê-lo é um fator

de risco.

A primeira vez que essa impossibilidade se apresenta na Odisséia, Ulisses, ao deixar a

terra dos lotófagos, consegue olhar as costas de Ítaca, mas uma repentina e forte

tempestade o leva a regiões desconhecidas muito longe de seu lar. A segunda vez

acontece ao abandoar a ilha de Éolo, quem entrega-lhe um odre onde estão guardadas as

fontes dos ventos e as tempestades. Ulisses confiado acha que agora voltará a casa e cai

num profundo sonho, em quanto seus companheiros, curiosos com o presente de Éolo,

abrem o odre, levando o barco se afastar de novo de Ítaca em meio da tempestade.

Estas duas situações provocam no Ulisses a mais profunda frustração.

Eu, que despertara, reflecti se devia morrer nas ondas, saltando da nau, ou suportar
tudo em silêncio e ficar entre os vivos. Resolvi sofrer e ficar. Recobrindo-me, continuei
deitado na minha nau. Entretanto, o sopro funesto do vento levava-nos todos de novo
para a ilha Eólia, enquanto os companheiros se iam lamentando. (A Odisséia, Canto X)

Mas nem tudo é desesperança na jornada de Odisseu assim como na jornada do

imigrante. Em várias ocasiões ele encontra alivio e felicidade, como é o caso do

encontro com Circe e Calipso. Essas etapas da viagem correspondem ao momento em

que descem as defesas do estrangeiro e ele começa a viver no presente e a desfrutar das

novas possibilidades que o contexto lhe oferece. Neste ponto pode-se falar de um

“sentimento de identidade remodelado” (Grinberg e Grinberg,1994).

E é precisamente essa nova identidade quem vai dificultar o retorno ao país de origem,

como o propõe Campbell na última etapa da viagem do herói.

27
Essa problemática do retorno é belamente ilustrada por Homero, quando Ulisses recebe

a maldição do Ciclope de voltar como um estrangeiro à sua terra. E é assim como

Ulisses volta finalmente a Ítaca, como um desconhecido e disfarçado de mendigo.

Esse simbolismo de quem tem mudado tanto que já não se encaixa no lugar de origem,

também é uma metáfora sobre o processo de individuação e o crescimento espiritual

vivenciado na viagem. Quer dizer, quem volta ao ponto de início da aventura já não

volta igual. Embora pareça que se retorna ao mesmo lugar, o retorno é feito por uma

pessoa diferente e o ponto de chegada é, como numa espiral, o mesmo ponto, mas agora

localizado num lugar mais elevado.

Dessa maneira, a viagem do herói simboliza o caminho de desenvolvimento e

integração da psique no self, a individuação como processo de diferenciação psicológica

em busca do desenvolvimento da personalidade individual.

Como temos visto, a adaptação do imigrante é um processo de grande complexidade, no

que muitas variáveis influem. Mas a riqueza da viagem é uma enorme oportunidade de

desenvolvimento pessoal. Ulisses representa o exilo mas também o herói que volta a

casa depois de se transformar. Ele nunca esquece sua origem nem sua pátria.

Dito isto, a deusa dissipou o nevoeiro e deixou aparecer a terra; e o paciente e egrégio
Ulisses regozijou-se com a vista da sua pátria, cujo solo fecundo beijou. (A Odisséia,
Canto XIII)

3.2 Os arquétipos associados às etapas da viagem do


herói

Como se falou no capítulo anterior, a jornada do herói é uma metáfora sobre o

desenvolvimento psicológico e a busca da individuação. As três grandes etapas descritas

por Campbell mostram um caminho associado a vários arquétipos. A presencia desses

28
arquétipos e a forma na que se encontram constelados vai ter uma influência importante

no desenvolvimento da jornada.

Embora sejam muitos os arquétipos que poderiam se relacionar com a viagem heróica,

centrar-nos-emos em doze deles, cujas características básicas, em seus aspectos

luminosos (criadores e motivadores) e seus aspectos sombrios (problemáticos,

inibidores), se descrevem a seguir (Pearson, C. Seivert, S. Leonard, M. Marr, H.,1990).

3.2.1 A partida

3.2.1.1 O Inocente:

Aspectos Luminosos Aspectos Sombrios


• Capacidade de confiar em si • Recusa ao crescimento e
e nos outros desenvolvimento
• Fidelidade ao ideal • Recusa em aceitar uma
verdade que contraria o que
ele acredita ser a verdade
• Otimismo inquebrantável • Negação dos próprios atos
• Lealdade à promessa feita, ao • Recusa em assumir uma
grupo e ao compromisso parcela de responsabilidade
assumido pelos problemas; dificuldade
em assumir imperfeições
• Fé nos processos que se • Negação de inadequações
iniciam
• Entusiasmo. Vale a pena • Sentimentos velados de culpa
tentar de novo
• Perseverança • Medo de se expor ao ridículo
• Capacidade de estar no • Projeção dos próprios erros
presente, aqui e agora sobre os outros
• Espontaneidade autêntica • Repressão de verdadeiros
sentimentos
• Vitalidade e jovialidade • Excessiva dependência à
autoridade exterior
• Sinceridade de intenções • Necessidade excessiva de
aceitação e reconhecimento

Desde o ponto de vista da viagem do herói, o arquétipo do Inocente está relacionado

com a confiança nos outros e na perfeição do universo. O Inocente afronta as provas de

29
um jeito positivo porque sabe que “as coisas serão como têm que ser”. O arquétipo do

Inocente aparece também nas pessoas que têm um olhar otimista sobre seu entorno e

encontram sempre o positivo das situações.

3.1.1.2 O Órfão:

Aspectos Luminosos Aspectos Sombrios


• Capacidade de processar • Cinismo e ceticismo que
dificuldades e desafios impedem o líder de atrair,
positivamente influenciar e cativar pessoas
• Consciência de interdependência: • Mentalidade de escassez, crença
estamos todos juntos numa na falta
experiência comum
• Capacidade de ver a realidade • Atitude critica constante,
sem distorções – “com os dois pés depreciativa de si mesmo e dos
no chão” outros
• Capacidade de suportar e aceitar • Atitude de vítima autojustificada,
as incoerências em si mesmo e na utilizada para manipular o
sociedade ambiente e as pessoas
• Libertação de qualquer estado de • Incapacidade de olhar para dentro
dependência de si mesmo
• Solidariedade • Atitude isolacionista que gera
antipatias
• Capacidade de recuperar • Traição de princípios de grupo ou
integridade pessoas diante do de si mesmo
fracasso auto-infligido
• Capacidade de comunicar com • Pessimismo resultante da não-
clareza suas necessidades elaboração do sofrimento
• Capacidade de desenvolver • Utilização de válvulas de escape
expectativas realistas por meio do vício e da
dependência.
• Condições de recuperar a • Impotência, perda de esperança e
confiança em si e nos outros da confiança

Na viagem do herói o Órfão está relacionado com assumir a idade adulta, o que quer

dizer, se fazer cargo de si mesmo. No aspecto luminoso o Órfão afronta a jornada com

independência e consciente de que estará sozinho no caminho, mas sem assumir o papel

de vítima.

30
3.1.1.3 O Guerreiro:

Aspectos Luminosos Aspectos Sombrios


• Capacidade de estabelecer metas • Necessidade obsessiva de vencer
e cumpri-las sempre mesmo que por meios
inescrupulosos
• Capacidade de autodisciplinar-se • Uso do poder para dominar e
subjugar pessoas
• Capacidade de lutar por princípios • Desumanidade, crueldade na
e verdades conquista de poder
• Coragem, destemor diante de • Competitividade exacerbada:
desafios e dificuldades toda diferença é uma ameaça
• Capacidade de catalisar ação e • Uso de capacidade para ganho
apoio para causas nobres e justas pessoal
• Capacidade de ir além do • Comportamento antiético, ego
interesse pessoal centrado
• Capacidade de focar a atenção • Indiferença, frieza em relação ao
que realmente importa sentimento naquilo dos outros
• Habilidade para definir e criar • Sentimento de estar sendo
estratégias constantemente ameaçado pelo
“inimigo” (concorrência /
colegas)
• Habilidade para resolver conflitos • Combatividade desmesurada
e preferência por soluções ganha-
ganha
• Facilidade de tomar decisões • Manipulação da realidade por
rápidas medo da perda do poder

O Guerreiro é fundamental para empreender o caminho, estabelecer metas e cumpri-las.

Sua fortaleza tem que estar presente na viagem do herói, pois ele terá que se enfrentar a

múltiplas provas sem se render. A coragem e a característica mais importante do

Guerreiro.

3.1.1.4 O Servidor:

Aspectos Luminosos Aspectos Sombrios


• Capacidade de ajudar e servir por • Capacidade de atrair situações em
meio de cuidado amoroso e do que está sempre no papel do
sacrifício mártir/sofredor
• Atitude generosa e compassiva • Comportamento controlado e
repressor que gera dependência e
incompetência
31
• Capacidade de identificar e • Manipulação por meio de fazer os
desenvolver os outros se sentirem culpados de
talentos/habilidades de pessoas e seu fracasso
grupos
• Atitude de ser “educador” em • Dá de si, porém sempre esperando
qualquer circunstancia algo em troca
• Habilidades em criar ambientes • Preocupação excessiva em ser o
onde as pessoas se sentem seguras “salvador da pátria’”.
e à vontade
• Facilitador de relacionamentos • Incapacidade de dizer não por
cooperativos e do sentido de medo de afetar a auto-imagem de
comunidade “bonzinho/boazinha”
• Disponibilidade para assumir • Incompetência, ineficiência por
responsabilidade pela geração de assumir mais do que pode
bem-estar realmente cumprir
• Atenção às pequenas coisas que • Dificuldade de reconhecer e
fazem a grande diferença aceitar os entraves de uma
emocionalidade excessiva
• Eficiência em fazer cumprir • Sentimento de dever/obrigação de
tarefas fazer as coisas com prazer
• Modéstia, paciência e • Baixa auto-estima – jamais
perseverança conseguirá o que deseja ou
precisa do grupo

Embora o herói esteja sozinho para cumprir sua jornada, terá encontros e desencontros

no seu caminho. A interação com as pessoas poderá ser de grande valor ou, pelo

contrário, poderá atrapalhar a viagem. Enquanto o Servidor, unido com outros

arquétipos como o Amante, estiver constelado desde o lado luminoso, o processo será

muito mais enriquecedor para o herói. O Servidor luminoso não só está sempre pronto a

ajudar, mas também a receber a ajuda dos outros.

3.2.2 A iniciação

3.2.2.1 O Buscador:

Aspectos Luminosos Aspectos Sombrios


• Receptividade a novas idéias e • Ambição obsessiva e implacável
experiências que proporcionem
uma vivência de espiritualidade
• Aspiração profunda, desejo de • Orgulho e imprudência

32
aprender mais sobre si mesmo e
sobre a realidade mais abrangente
• Capacidade de ir além do que é • Perfeccionismo exagerado e
conhecido persecutório
• Habilidade para reconhecer o • Dificuldade de assumir
momento certo e agir compromissos ou envolver-se em
adequadamente processos de aprendizagem
• Valorização do esforço e das • Busca, investigação, exploração
iniciativas individuais que vazia, sem direção clara
fortalecem o grupo
• Necessidade de expandir a • Idéias/pessoas são descartáveis
consciência para além das quando não satisfazem o ego
fronteiras do ego – desejo de
transformação
• Atitudes pioneiras inovadoras • Discurso dissociado da ação
motivadas pela necessidade de
explorar novos horizontes
• Busca de encontro com a • Incapacidade de ser pragmático
verdadeira vocação na realização
• Inquietude saudável que questiona • Conhecimento buscado em fontes
todo tipo de exclusivamente externas
acomodação/conformismo
• Disponibilidade de assumir • Incapacidade de refletir sobre as
compromissos e criar vínculos próprias ações e seu impacto no
verdadeiros; autenticidade grupo/ambiente

Comparando a viagem do herói com o processo de individuação, é claro que o arquétipo

do Buscador tem um papel fundamental. É ele quem sempre está procurando o

desenvolvimento espiritual e quem encontra em cada experiência uma razão para

crescer. É seu desejo de transformação quem leva à pessoa a empreender novos

caminhos e ir além do evidente para encontrar significado nas diferentes situações da

vida.

3.2.2.2 O Amante:

Aspectos Luminosos Aspectos Sombrios


• Capacidade aplicada de amar ao • Ciúme, inveja resultante de
próximo como a si mesmo. Auto- insegurança pessoal
aceitação e auto-estima
• Capacidade de combinar • Fixações e compulsões atitudinais
33
prudência, respeito e paixões no que levam à manipulação de
trabalho e na vida pessoas
• Capacidade de resolver conflitos • Paixão cega, promiscuidade ou
entre vida familiar e vida puritanismos excessivos
profissional
• Compreensão ampla e irrestrita do • Sedução como instrumento de
sentido de manipulação
complexidade/diversidade.
Capacidade de fazer síntese
• Ausência do medo em se mostrar • Negação do poder pessoal,
como realmente é timidez paralisante
• Capacidade de correr riscos • Incoerência entre discurso e ação.
movidos por entusiasmo Prega-se uma coisa
apaixonado e vitalidade (fundamentalismo) e pratica-se
outra
• Carisma resultante de atitudes • Assédio sexual e violência
compassivas e amorosas estrutural
• Capacidade de conviver com • Narcisismo que leva à dominação
paradoxos e polaridades. e à ausência de reverência pela
Equilíbrio entre corpo e espírito vida
• Capacidade de formar vínculos e • Confronto e desequilíbrio entre
assumir compromissos autênticos valores masculinos e femininos
• Capacidade autêntica de perdoar • Antagonismo, frieza, ausência de
erros e fracassos interpessoais afeto nas relações
• Facilitador de clima harmonioso e • Objetificação do indivíduo,
afetuoso no ambiente onde atua desvitalização

O herói Amante é aquele que se mostra como ele é e que consegue lidar com as

situações sem agressividade nem violência. O entusiasmo pela viagem é fundamental

para não recuar frente às situações. O arquétipo do Amante está relacionado também

com boas capacidades de interação e relacionamento e boa auto-estima.

3.2.2.3 O Destruidor:

Aspectos Luminosos Aspectos Sombrios


• Capacidade de operar • Comportamentos destruidores de
transformações no si mesmo que si mesmos em dos outros no
causam impacto no ambiente em ambiente em que atua
que atua
• Capacidade de exercer a vontade • Vícios, compulsões, dependência
para dissolver impedimentos e por e uso de drogas

34
fim a questões dúbias
• Unidirecionalidade, certeza • Descuido, negligência e
interior de saber aonde quer indiferença levados ao extremo
chegar nas questões pessoais e
organizacionais
• Habilidade para romper e por fim • Despreocupação com o resultado
a estruturas limitantes de ações que afetam o bem-estar
das pessoas e do meio
ambiente/organização
• Prontidão em soltar, desapegar-se • Grosseria, impolidez, abuso de
e dar a volta por cima posição de autoridade
• Aceitação construtiva de tudo que • Recusa ao reconhecimento da
chega ao fim existência da “morte” e
dificuldade de aceitar o
transcendente
• Aceitação do transcendente, do • Autodestrutividade
mistério, daquilo que a mente
racional não explica
• Humildade, resignação; • Ausência de qualquer
capacidade de lidar com a preocupação com questões éticas,
adversidade e a transitoriedade do caráter duvidoso
sucesso e da fama

O arquétipo do Destruidor é necessário para empreender novos caminhos e deixar atrás

o lar. É o Destruidor luminoso quem permite o desapego necessário para cortar os

vínculos e as cargas do passado e entender que todo ciclo chega a seu fim. Não há

transformação sem destruição. Esse arquétipo é também importante nas etapas da

partida e o retorno, devido a que nessas etapas o herói deverá deixar atrás seu lar, para

reacomodar-se num novo lugar.

3.2.2.4 O Criador:

Aspectos Luminosos Aspectos Sombrios


• Responsabilidade pela • Criar sem senso de
maximização do próprio poder responsabilidade
pessoal
• Capacidade de Ter uma visão e de • Inércia mental e
comunicá-la aos outros emocional/incapacidade de tomar
iniciativas
• Criatividade pessoal em sintonia • Deixar-se limitar excessivamente
35
com a criatividade universal por normas e regras impostas e
auto-impostas
• Capacidade de enxergar o futuro • Rigidez conceitual/racionalismo
no presente reducionista que não oferece
brechas à intuição
• Intuição aplicada e predominante • Sentimento de impotência auto-
à lógica justificada por não estar no
controle do que acontece no
ambiente onde atua
• Consciência abrangente do seu • Desorganização generalizada
papel na criação global
• Capacidade de transformar o • Falta de imaginação e indiferença
sonho em realidade à beleza
• Consciência clara do valor e do • Alienação, tédio e recusa de
impacto de suas escolhas e buscar significados mais
decisões no ambiente onde atua profundos ao que lhe acontece
• Equilíbrio entre experiência do • Trabalhar compulsivamente
ego e valores da alma
• Senso de identidade (sabe quem • Criar obsessivamente infinitas
é) e vocação (sabe o que quer possibilidades que não se
verdadeiramente) para ser o concretizam
verdadeiro artista social
• Sinceridade e autenticidade. • Impedir que sua energia criativa
Catalisador de aprendizagem flua e deixar de estimular a
coletiva. energia criativa de outros para
manter status quo.

O Criador consegue transformar problemas em soluções e idéias em realidades. Sua

intuição e criatividade estão presentes na resolução de cada obstáculo do caminho. O

criador conhece seu talento e consegue aplicá-lo nas situações mais inesperadas. Os

problemas são vistos pelo criador luminoso como oportunidades a desfrutar,

enfrentando a situações difíceis porque sabe que pode superá-las.

3.2.3 O Retorno

3.2.3.1 O Mago:

Aspectos Luminosos Aspectos Sombrios


• Capacidade de transformar a • Tendência a transformar
realidade/condição/situações por ocorrências positivas em

36
meio da transformação da negativas. Negatividade
consciência generalizada
• Capacidade de curar/reverter • Uso do poder para causar o mal
condições não saudáveis ao todo das pessoas/situações
de uma pessoa ou organização
• Tolerância e • Negação de realidades subjetivas
afirmação/visualização do que e sutis no interior da consciência
precisa acontecer
• Capacidade de influenciar e de • Apego excessivo à materialidade,
ajudar os outros a se ao lucro indiscriminado
transformarem pela irradiação do
próprio exemplo vivo
• Percepção da ordem sagrada • Atitudes hostis e nocivas ao
(interior e exterior) que atrai ambiente
“coincidências” significativas às
experiências
• Capacidade de compreender o • Tendência a ignorar o fato de que
todo de qualquer questão/situação tudo está interligado – uma ação
e evento. Visão sistêmica prejudicial localizada tem efeitos
globalizantes
• Consciência do Propósito Maior, • Desconfiança/Falta de tato
da motivação espiritual de uma
pessoa/organização ou nação
• Capacidade de atuar com os dois • Frieza/Desqualificação do
hemisférios do cérebro em sofrimento alheio
equilíbrio
• Equilíbrio entre consciente e • Toda forma de ajuda implica uma
inconsciente imaginação e forma de controle/manipulação
racionalização que conduzem
palpites corretos
• Habilidades com a palavra: não só • Distorção da realidade,
para nomear e criar identidade reducionismo e manipulação da
mas para comunicar-se com escolha humana através da
eficácia publicidade abusiva

Poder-se-ia dizer que o Mago consegue fazer no espiritual, o que o Criador faz no

mundo material. Ele também é um transformador de situações, obtendo proveito pessoal

dos retos e obstáculos. Além disso, o mago consegue enxergar o futuro e planejar o

presente. Sua intuição está presente durante a jornada toda.

3.2.3.2 O Governante:

37
Aspectos Luminosos Aspectos Sombrios
• Humildade, empatia, competência • Comportamentos dominadores e
rígidos com tirania e abuso de
posição de autoridade
• Conhecimento dos desafios • Ira, arrogância e distanciamento
enfrentados por pessoas comuns das pessoas que fracassam
• Jovialidade interior independente • Crença no valor do
de idade física escalonamento hierárquico como
fonte de poder
• Equilíbrio interior de polaridades, • Desordem e desorganização
manifestado na capacidade de resultantes da incapacidade de
expressar eficazmente valores e lidar com situações autocriadas
verdades universais
• Responsabilidades exercidas com • Incapacidade de identificar as
excelência reais necessidades das
pessoas/egoísmo
• Vida interior e exterior em • Incapacidade de confiar nos
equilíbrio dinâmico processos
• Habilidade em promover a ordem, • Perda de autenticidade
a paz e a prosperidade
• Talento especial em lidar e gostar • Mentalidade de escassez
de pessoas, realçando-lhes o acreditando que não há o
melhor suficiente para todos
• Uso sábio e amoroso do poder • Intolerância/”cortar cabeças”
pessoal quando contrariado
• Capacidade de organizar, delegar, • Contrastes entre indolência e
influenciar e dirigir com eficácia e auto-indulgência e/ou rigidez
excelência espartana e intolerância
• Humildade criadora de ver várias • Arrogância destrutiva que
faces/aspectos da realidade aprisiona na atitude de ver apenas
aquilo que quer ver

As qualidades de liderança do Governante fazem do herói um bom planejador e um bom

executor de planos. As pessoas ao redor lhe seguem naturalmente, poisparece ter um

ímã para atraí-los. O governante luminoso sabe tomar decisões não só pensando no seu

próprio bem-estar, mas num ganho coletivo.

3.2.3.3 O Sábio:

Aspectos Luminosos Aspectos Sombrios


• Profundo interesse em participar • Postura de quem “sabe tudo” e
na dissipação de todo o tipo de fica acima de qualquer
38
ignorância questionamento. Atitude de
Superioridade
• Habilidade em aplicar • Ausência de sentimento por
conhecimento e transformá-lo em isolar-se numa “torre de marfim”
sabedoria
• Capacidade extraordinária de • Causador de “confusões” por
compreensão que transcende excesso de dúvidas ou opções
necessidade de controlar ou
modificar o mundo
• Dedicação à descoberta da • Inconsciente dos preconceitos que
“verdade que liberta” carrega acerca da realidade
• Capacidade de fazer diagnósticos • Entorpecimento do intelecto e do
precisos e indicar caminhos coração
adequados
• Capacidade de identificar as • Esforço em excesso para ser
causas reais, pontos fortes e perfeito e estar sempre certo
oportunidades de crescimento de
pessoas e organizações
• Habilidades extraordinárias em • Crítica e intolerância: nada lhe
“dissolver confusões”. Calma parece suficientemente bom
• Capacidade de adequar a • Ceticismo devido à incapacidade
metodologia à tarefa de saber alguma coisa com
segurança
• Reflexão imparcial • Pensamentos obsessivos na
tentativa de entender
• Capacidade de lidar com • Tentativa de explicar tudo pelo
complexidade e aceitação da método científico limitando o
subjetividade e relatividade da número de maneiras aceitáveis de
condição humana. Sabedoria perceber a realidade

A capacidade de ver além das situações específicas e imediatas de um jeito objetivo, e

dar um sentido a experiências que parecem isoladas e que não se relacionam entre si,

são características próprias do Sábio desde seu lado luminoso. Esse arquétipo apresenta-

se especialmente na etapa do retorno da viagem, quando o herói tem acabado sua

jornada.

3.2.3.4 O Louco:

Aspectos Luminosos Aspectos Sombrios


• Capacidade de mostrar a verdade • Auto-indulgência, falsidade
sem ser uma ameaça para
39
ninguém
• Capacidade de mudar o curso das • Preguiça, desinteresse
coisas por meio do bom humor ou
da alegria contagiante
• Ausência total de medo • Irresponsabilidade baseada na
crença de que nada vale a pena e
de que não existe saída
• Senso de liberdade e soltura que • Clandestinidade, marginalização
não ameaça ou intimida do potencial criativo
• Capacidade de fazer tudo com • Gula e parasitismo: perda do
fruição, prazer e vivacidade sentido de dignidade e
autocontrole
• Crença de que “a gente nasceu • Vida dupla. Dupla personalidade
para ser feliz”
• Visão inclusiva da totalidade – • Ações que levam ao escândalo
mente abarcante envolvendo outras pessoas
• Capacidade de dissolver barreiras • Corrupção
e quebrar o gelo pela irreverência
• Capacidade de viver • Exageros que levam à insanidade
integralmente o momento e à autodestruição
presente
• Capacidade de lidar com absurdos • Estupidez – incapacidade de
do mundo e suas burocracias enxergar o que está fazendo de
mecânicas e amorfas errado.

Embora sejam muitas as características do arquétipo do Louco que contribuem na

viagem do herói, são a falta de medo e a espontaneidade as mais relevantes. O herói

deve ser Louco tanto para empreender sua jornada como para empreender o retorno. E

deve ser impulsivo para continuar o caminho apesar das dificuldades. O Louco vive

aqui e agora e não se paralisa frente às barreiras do caminho. Toma decisões que nem

sempre são informadas ou racionais, mas que de outro jeito não teriam sido feitas.

3.3 Entrevistas

Para aprofundar sobre o fenômeno da migração e o processo de adaptação dos

imigrantes voluntários, foco do presente trabalho, foram realizadas duas entrevistas

(anexo 1) a estudantes latino-americanos que moram no Rio de Janeiro.

40
Adicionalmente, foi aplicado o questionário Índice de Mitos Heróicos (anexo 2), como

um complemento à informação obtida nas entrevistas. O IMH visa a identificar o nível

de influência de cada um dos arquétipos relacionados com as etapas da viagem do herói.

A seguir se apresentam os apartes mais significativos das entrevistas realizadas1.

3.3.1 Dados gerais

Manuel é engenheiro mecânico, peruano, está com 27 anos e chegou ao Rio há dois

anos, para fazer um mestrado em engenharia mecânica na PUC. É o caçula de três

irmãos, sendo ele o único homem.

Ângela é engenheira metalúrgica, colombiana, está com 34 anos, e está há um ano e

meio no Rio. Veio para fazer um doutorado na UFRJ. Ela têm um irmão mais novo e

seu pai morreu há alguns anos.

Os dois entrevistados são solteiros e vieram sozinhos ao Rio, sem conhecer ninguém

pessoalmente, mas com alguns contactos realizados por e-mail antes da sua viagem.

Na entrevista, realizada individualmente, foram abordados diferentes aspectos

relacionados com seu processo de adaptação até o momento atual.

Os entrevistados foram selecionados por se tratar de casos muito diferentes na sua

experiência de adaptação no Rio.

È interessante observar especialmente essas diferencias que se relacionam com os

arquétipos constelados em cada um deles.

3.3.2 Resultados das entrevistas

A seguir se apresentam os principais pontos de vista frente aos diferentes conteúdos

tratados na entrevista:

Razões para vir ao Rio

Manuel Ângela
1Para proteger a identidade dos entrevistados seus nomes têm sido modificados.

41
Eu estava me preparando para ir a Puerto Quando acabei o mestrado na Argentina e
Rico ou USA. Um amigo meu, que estava voltei à Colômbia tinha todas as
fazendo doutorado aqui me falou sobre a expectativas de ficar lá. Mas as condições
PUC. Eu nem sabia que existia. Me falou não me permitiram ficar e apareceu a
sobre as bolsas, que para mim era uma oportunidade de viajar ao Brasil. Ganhei
ajuda importante, e acabei por enviar uma bolsa e decidi vir para fazer o
meus papéis para aqui. doutorado.
Foi muito inesperado, tudo aconteceu
muito rápido.
Vim com a intenção de ver como era a
experiência. Mas não tinha deixado de
lado as outras opções, Não sabia se ia
acabar o mestrado no Brasil e continuei o
processo de seleção em USA durante o
primeiro ano.
No final do primeiro ano decidi ficar e
acabar o mestrado na PUC.
Fui conhecendo a PUC e quando vi as
possibilidades, os laboratórios, os
professores, as conexões, decidi ficar.

Situação antes da viagem

Manuel Ângela

Morava longe de meus pais, em outra Trabalhava na Universidade de Antioquia,


cidade. Estava fazendo a faculdade. mas meu contrato acabou.
Desde essa época estava com minha Morava com minha mãe e dois tios. As
namorada atual que mora lá. vezes meu irmão ficava em casa com a
gente.

No aspecto afetivo, não tinha nenhuma


relação. Estava sozinha e com
dificuldades, sanando alguns processos
que ainda estão sanando.

O que foi o mais difícil de deixar

Manuel Ângela

42
Acho que o difícil foi deixar à minha O mais difícil foi deixar minha família, a
namorada. Mas na verdade o resto não foi possibilidade de compartilhar tudo com
muito difícil. Como não morava com eles. Queria ficar trabalhando na
minha família há um tempo, não senti Colômbia e não consegui fazê-lo, foi um
tristeza por deixá-los. pouco frustrante.
Obviamente foi bom pela oportunidade,
mas não era o que estava procurando nem
planejando fazer, simplesmente chegou à
minha vida.

Os primeiros meses no Rio

Manuel Ângela

Quando você chega e passa por as coisas Foi muito difícil, especialmente no
que têm que passar, tudo parece muito primeiro mês, porque morava com umas
difícil. Mas depois de um ou dois anos pessoas muito difíceis e diferentes a mim.
acho que não foi tão difícil assim.
No entanto essas pessoas me mostraram a
cidade e me ajudaram com os trâmites
iniciais.
Cheguei a morar num apartamento com
sete desconhecidos. Não é fácil conviver
com pessoas com as quais você não tem
Além disso a barreira do idioma é muito
nenhuma afinidade. Não conseguia dormir
grande. Eu sou uma pessoa que gosta
porque meu companheiro de quarto saía
muito de falar e de repente me vi na
de festa e fazia muito barulho ao voltar. O
condição de não conseguir me comunicar.
mesmo acontecia com os outros.
Passei muito tempo isolada, no laboratório
da universidade, que era onde passava a
maior parte do dia. À noite, quando
Estive morando lá o primeiro semestre.
chegava a casa, o ambiente ficava tenso e
Fui aoPeru de férias e quando voltei fiquei
foi muito difícil.
mais dois meses. Procurei muito até
encontrar um quarto com banheiro, perto Depois de um mês fui morar sozinha e
da universidade, num prédio bonito e fiquei mais tranqüila com meu espaço.
tranqüilo.
Mas no princípio foi muito difícil
emocionalmente e chorei muito.
Perguntava-me freqüentemente o que
estou fazendo aqui?

Também foi muito difícil porque no meu


projeto de vida eu queria trabalhar. Ser
estudante de novo não era o que eu estava

43
procurando, porque era seguir no mesmo e
eu não queria ficar nesse papel. Isso foi
muito difícil.

Tempo planejado VS tempo real

Manuel Ângela

Não tinha nada planejado. Ao final do Tinha planejado vir por quatro anos, mas
primeiro ano decidi ficar por mais um ano, não vou cumprir esse tempo porque vou
até acabar o mestrado. embora, depois de um ano e quatro meses.
Agora que acabei vou voltar para o Peru Se apresentou uma situação familiar que
na próxima semana. me obriga a enviar algum aporte
econômico e já que tinha tantas dúvidas
sobre o que estou fazendo no Rio, decidi
ir embora e trabalhar, que era o que
realmente queria fazer.

Estou com um sentimento de felicidade e


tristeza ao mesmo tempo, porque gerei
uns vínculos afetivos importantes. É
provável que não volte a ver essas pessoas
ou que passe muito tempo para vê-las.
Mas estou contente porque finalmente vou
fazer o que queria e deixar de ser
estudante e ser profissional. Acho que
agora estou preparada para enfrentar esse
papel.

Não tenho uma sensação de frustração de


estar deixando algo que não quero deixar.
Estou deixando algo que é importante e
que também não foi tão ruim assim, mas
eu nuca fiquei satisfeita.

É um alívio ir embora sem me sentir


fracassada.

44
O processo de adaptação

Manuel Ângela

Não sabia nada de português quando O mais difícil foi conseguir onde morar.
cheguei. Mas como minhas aulas eram Isso é muito complicado numa cidade
técnicas, com as matemáticas a gente se como o Rio, porque tudo é velho e feio e a
entende. Por isso, meu desempenho gente está acostumada com outros padrões
acadêmico não foi afetado pelo idioma. totalmente diferentes.
Por exemplo na Colômbia ninguém aluga
um apartamento com umidade ou sujo.
Mas para conseguir me comunicar sofri
Embora seja velho, o dono o conserta e o
pelo menos dois meses.
arruma antes de alugá-lo. Mas aqui é
Tomei a aula de português para assim e você o toma ou o deixa.
estrangeiros da PUC e me ajudou muito.
Também toma tempo conhecer os bairros
Mas durante os dois primeiros meses só
e saber mais ou menos onde gostaria de
me comunicava com peruanos que
viver e encontrar algo que se acomode ao
conheci na PUC.
orçamento de um estudante não é fácil.
Isso tudo teve uma incidência emocional
em mim, especialmente durante o
primeiro mês.
Depois consegui um apartamento
mobiliado, mas era muito caro e tive que
procurar um mais barato e comprar os
móveis.

Acho que me adaptar, me sentir cômoda


na cidade, com as pessoas, com os ritmos,
me tomou 6 meses mais o menos.
Porque os primeiros 3 meses foram de
total falta de comunicação e aos 6 meses
já conseguia sair pela cidade, pegar o
ônibus sem me sentir insegura e essas
coisas.

O desempenho acadêmico foi sempre bom


porque o português era técnico e é muito
mais fácil de entender. Eu entendia tudo
nas aulas e na rua não entendia nada. Mas
45
aprendi rápido.

Rede social

Manuel Ângela

Quando cheguei ao Rio estava estressado Só conhecia umas pessoas por e-mail
e não tinha muitas opções para me relaxar. quando cheguei aqui. Foi na casa dessas
Com as pessoas que conhecia só tinha pessoas onde morei o primeiro mês.
duas opções, ficar bêbado ou procurar
Durante todo o tempo que tenho morado
mulheres todas as noites. Não era nada
no Rio não fiz amigos brasileiros. Fiz
disso o que eu queria.
quatro bons amigos colombianos e um
Não conhecia às pessoas adequadas para ir amigo chileno e um argentino. Mas os
à praia, ao cinema, beber alguma coisa, brasileiros que conheço não sinto que
bater papo, ouvir música. No Peru eu fazia sejam meus amigos. Só são pessoas com
muito essas coisas. quem compartilhei algumas coisas, mas
não os sinto amigos. Isso pode se
Tomou-me mais o menos um ano
relacionar com o idioma. Além disso, tem
conhecer amigos.
diferencias culturais importantes que não
Tenho boas amizades peruanas e de outros facilitam se relacionar com eles. Por
países de América Latina. Tenho alguns exemplo, eu nunca consegui ter um papo
amigos brasileiros, mas são poucos, a transcendente com um brasileiro, porque
maior parte dos brasileiros que conheço eles estão pensando mais na festa e levar
não os considero meus amigos. uma vida mais leviana.
Isso não quer dizer que não se perguntem
certos temas, mas não dá para falar com
eles sobre um tema pessoal ou de
atualidade mundial. É por isso que não
temos muito em comum.

O tempo todo tive contacto com minha


família pela internet. Falava quase todos
os dias com minha mãe. Essa
possibilidade é ótima porque você não se
sente tão sozinho nem tão longe. A gente
continua conectada e isso facilita muito as
coisas, em comparação com ler uma carta
cada três meses quando já as notícias nem
sequer continuam vigentes. Isso faz uma
diferença importantíssima.

46
A saudade

Manuel Ângela

O que mais me fez falta não era nada Sinto falta das pessoas mais do que
complicado. Eram as coisas simples. Por qualquer outra coisa. A comida também.
exemplo, a comida, meu cachorro.
Também minha namorada e as
possibilidades de me distrair e relaxar.

Saúde

Manuel Ângela

Tenho um problema na coluna e precisei Tive várias crises de alergias e resfriados.


de atendimento médico. Tinha uma hérnia Uma vez estive uma semana de cama.
há muito tempo mas nunca tinha me Também ha mudanças no tipo de tempero
incomodado até que vim para o Brasil. me caiu mal e eu sofro de cólon irritável.
Mas acho que estar aqui me tem ajudado Mas depois me acostumei.
com a coluna. Estou medicado, no Peru
Não sei se adoecer era uma resposta a
tomava mais o menos 10 comprimidos
essas mudanças emocionais e das dúvidas
diários. Mas aqui cheguei a tomar um
que tinha. Quando ficava doente tinha
comprimido a cada dois dias.
muito tempo para pensar e então me
Em parte se devia à tensão que tinha antes questionava se valia a pena ficar aqui.
de vir e aqui eu administrava meu tempo e Mas no fundo sabia que sim valia a pena
meus horários. estar longe, sim valia a pena estar só, sim
valia a pena continuar sendo estudante
Mas eu tinha que fazer fisioterapia e não a
pobre e tudo isso.
fiz porque não tinha seguro médico.
Quando você fica doente está muito mais
Aqui o doutor me permitiu voltar a fazer
vulnerável e emocionalmente fraco.
exercício e comecei a nadar e a malhar,
mas por isso apareceu a hérnia e tive que
deixar o exercício. Decidi esperar para
voltar ao Peru e fazer a cirurgia. Mas tive
que voltar a me medicar.
Tudo isso foi um pouco difícil
emocionalmente, mas não demais na
verdade.

Momentos de crise

47
Manuel Ângela

Tenho tido momentos difíceis, mas depois Depois de mais ou menos 2 ou 3 meses de
do primeiro ano nunca pensei seriamente ter chegado tive a primeira crise do
em voltar ao meu país sem acabar o doutorado e quis voltar. Perguntava-me o
mestrado, quando decidi fazê-lo aqui. que estava fazendo aqui, para que vim,
queria ir embora.
Não fui embora porque me custa muito
abandonar as coisas que começo. E
também porque essas são sensações que
vivi em outro momento e que muitas
vezes correspondem a um estado de ânimo
específico e não a um desejo real.
O que acontece é que nesse momento
você fica mais susceptível por ficar longe
das pessoas que quer e do entorno. Se
sente uma vontade de ir embora logo.
Mas acho que têm muito a perder quando
deixa tudo por um impulso.
Acho que isso é válido e que se a pessoa
acha que não quer ficar mais tempo pode
ir embora. Mas acho que isso não pode
acontecer frente a um impulso, mas frente
a algo mais elaborado.
Só agora tenho a sensação real de ter que
ir embora, pela situação familiar, porque
isso não só tem a ver comigo mas também
com minha mãe e meu irmão. Eu vou
embora porque ha outras prioridades, não
só por mim.

Situação econômica

Manuel Ângela
A bolsa era suficiente alugando um quarto Tive uma bolsa que dava para o básico.
só e obviamente sem nenhum luxo. Mas pelo menos consegui morar sozinha o
tempo todo, nunca recebi dinheiro da
Não tive dificuldades nesse sentido.
Colômbia.

Acho que agente tem que se reconhecer


como estudante no exterior, e que não vai
48
morar numa casa como a que tem no seu
país, nem vai ter comodidades nem luxos.
Como estudante tem que viver com o
básico e se você não entende isso não vai
conseguir se adaptar e vai se frustrar.

Opinião do Brasil

Manuel Ângela

As pessoas são muito amáveis, mas Gosto da alegria das pessoas. Sempre
obviamente tem todo tipo de gente. É estão contentes, é difícil vê-los tristes, não
claro que a PUC é outro Brasil. Há importa a situação, sempre riem. É um
pessoas com muito dinheiro e que nem povo mais feliz, pelo menos
falam com você pelo fato de ser aparentemente.
estrangeiro. Mas também tem gente muito
amigável e sem preconceitos.
Brasil é um país muito rico em muitos
aspectos. Musicalmente conheci muitos
Em outros aspectos, gosto muito da ritmos que não sabia que existiam.
música e da comida.
Gosto também da variedade da comida.

Mas só posso falar do Rio porque não


Rio é uma cidade linda, mas também é
conheço outras cidades.
uma cidade violenta, agressiva. O jeito
como as pessoas conduzem seus carros, os
ônibus, por exemplo.
“Por favor” não existe no vocabulário
carioca, quase que nem “obrigado”, não
respondem uma saudação. Isso é um
choque para agente.

Outras coisas como a sujeira, e o


comportamento das pessoas.
Sinto o Rio sujo e acho isso agressivo e
faz que me sinta violentada. Pela
formalidade que a gente tem na Colômbia,
tem muitas coisas que incomodam como a
impontualidade, isso é agressivo para
mim.

As aprendizagens
49
Manuel Ângela

Foi uma experiência muito boa para mim. Espiritualmente têm acontecido muitas
Aprendi a me relaxar um pouco e não coisas. Tenho tido vários encontros
ficar tão preocupado com as coisas. comigo mesma. Fiz terapia e percebi que
tenho problemas de relacionamento. Não
tinha percebido isso porque sou muito
No Peru alguma coisa sai mal e se forma sociável. Aqui descobri muitas barreiras
um grande problema com as pessoas. Mas que tenho e comecei a trabalhar nelas.
aqui é muito mais relaxado e isso me tem
tranqüilizado muito.
Além disso, foi muito bom reafirmar que
o que eu queria realmente era trabalhar,
Fiz boas amizades e essas ficam comigo. que era meu desejo desde vários anos
atrás.
Voltaria a fazer tudo de novo se tivesse
que eleger.
No emocional e no profissional foi muito
importante.
Vou embora muito agradecido com o Rio
e com o Brasil pela oportunidade.

3.3.3 Análise das entrevistas

São muitos os aspectos nos quais os entrevistados se diferenciam frente à sua

experiência no Rio.

É interessante observar que as razões para viajar ao Brasil são muito diferentes nos dois

casos. Manuel estava procurando opções de mestrado em outros países e fazendo os

processos necessários. Ele não tinha planejado vir ao Brasil, mas decidiu tentar e acabou

por ficar.

Ângela, por outro lado, não tinha planejado continuar estudando e a opção de fazer um

doutorado no Brasil foi inesperada, mas aceita frente à situação de ficar sem trabalho no

seu país.

50
Antes da viagem Manuel já morava sozinho, enquanto a Ângela morava com sua

família, o que pôde influir no fato de que Manuel se mostrar mais independente

enquanto Ângela menciona que a família foi o mais difícil de deixar.

Por outro lado, frente à experiência dos primeiros meses no Rio, ambos os entrevistados

falam sobre as dificuldades, mas são claras as diferenças sobre a experiência do ponto

de vista emocional.

Manuel acha que sua dificuldade principal foi conseguir um lugar para morar, mas

lembrando a situação acha que emocionalmente não foi tão difícil assim. No entanto

Ângela fala de várias dificuldades (moradia, conflitos interpessoais, idioma, projeto de

vida) acompanhadas de uma situação emocional muito difícil. Ela se mostra muito

dependente de sua família e vínculos pessoais.

Assim mesmo, Manuel nunca teve uma crise na qual pensasse em voltar a seu país e

deixar o mestrado. No caso da Ângela as crises foram várias, razão pela qual não é uma

surpresa que Manuel ficou no Rio até acabar o mestrado, enquanto Ângela deixou o

doutorado um ano e quatro meses depois de iniciá-lo. Embora tenha razões de caráter

familiar, ela mesma acha que não estava satisfeita e que não teria deixado o doutorado

por si mesma, quer dizer, sem uma razão externa que a obrigasse a deixá-lo. Desse jeito

ela sente que não fracassou, segundo o falado na entrevista.

É interessante neste ponto o sentimento de culpa que aparece em Ângela e que não lhe

teria permitido voltar a seu país antes de acabar o doutorado, enquanto não fosse por

razões externas e especialmente de caráter familiar.

Como se viu no primeiro capítulo, segundo Gonzáles Calvo (2006), a culpa é um

sintoma freqüente em muitos imigrantes. Adicionalmente, a tristeza acompanhada

geralmente pelo choro, são também sintomas muito comuns, que aparecem na Ângela

freqüentemente.

51
Por outro lado, centrando-nos agora nos diferentes aspectos do processo de adaptação, é

interessante que ambos os entrevistados fizeram amizade principalmente com pessoas

de seu país ou de sua mesma língua e não consideram os brasileiros que conhecem

como seus amigos. Esse fenômeno pode estar relacionado com um mecanismo de

defesa próprio do imigrante, onde a pessoa se aferra a seus padrões culturais, seus

costumes, sua língua, sua comida, sua música, se negando a incorporar os padrões

culturais do novo país.

Frente aos problemas de saúde, os dois entrevistados tiveram dificuldades nesse sentido,

afetando-os emocionalmente. Porém, mais uma vez o olhar sobre essa experiência é

muito mais prático no caso do Manuel e muito mais emocional no caso da Ângela.

É interessante observar que Ângela fala ao longo da entrevista sobre aspectos negativos

do Rio (sujeira, agressividade, violência, falta de educação das pessoas,

impontualidade). Evidentemente sua experiência de adaptação não foi tão boa e são

poucos os aspectos positivos que consegue resgatar do Brasil. Essa atitude pode ter a

ver com a etapa de adaptação correspondente à hostilidade descrita por Trivonovich

(1980), onde a pessoa se sente alheia à nova cultura e julga as diferenças como algo

negativo.

Adicionalmente, o mecanismo de defesa dos comportamentos regressivos de queixa e

raiva frente às múltiplas situações que experimenta o imigrante, pode se relacionar com

essa atitude, como uma reação de proteção da psique frente às ameaças e o estresse

causado pela interação com o ambiente.

No caso da Ângela, dado o alto nível de ansiedade e do abandono do projeto da viagem,

pode-se falar de um luto migratório complicado (Calvo, 2006), que não chegou a

alcançar as etapas de adaptação de integração e lar (Trivonovich,1980).

No caso do Manuel, o luto migratório foi elaborado de um jeito positivo, o que permitiu

um desenvolvimento bem sucedido do processo de adaptação. Nesse sentido Grinberg e


52
Grinberg (1994) mencionam que se a personalidade do imigrante tem sido sã, as

motivações da migração racionais, as condições nas que tem-se realizado adequadas e o

novo meio razoavelmente acolhedor, o imigrante será capaz de aprender o novo da

experiência e valorizar os aspectos positivos do novo país, o que fará possível um

enriquecimento psicológico e um ajuste real ao meio.

Sobre as aprendizagens, ambos coincidem em que foi uma experiência muito

enriquecedora como pessoas e falam de aspectos de si mesmos que descobriram graças

ao tempo que passaram no Brasil.

3.3.4 Os arquétipos presentes no processo de adaptação

Os seguintes são os resultados do questionário IMH, aplicado no final da entrevista. É

importante esclarecer que essa informação só é utilizada no presente estudo como um

complemento à informação obtida nas entrevistas e não como uma descrição exaustiva

do momento psicológico dos entrevistados.

Tendo em vista o anterior, é interessante observar os valores maiores e menores, como

um guia dos arquétipos constelados em cada caso.

Resultados IMH Manuel


Arquétipos Valor Atribuição
Inocente 21 Luminoso
Órfão 27 Luminoso
Guerreiro 18 Indeterminado
Servidor 21 Luminoso
Buscador 25 Luminoso
Amante 23 Luminoso
Destruidor 22 Luminoso
Criador 22 Luminoso
Mago 22 Luminoso
Governante 24 Luminoso
Sábio 25 Luminoso
Louco 19 Luminoso

Resultados IMH Ângela


Arquétipos Valor Atribuição
53
Inocente 18 Indeterminado
Órfão 28 Luminoso
Guerreiro 26 Luminoso
Servidor 18 Indeterminado
Buscador 28 Luminoso
Amante 18 Indeterminado
Destruidor 27 Luminoso
Criador 24 Luminoso
Mago 26 Luminoso
Governante 28 Luminoso
Sábio 25 Luminoso
Louco 19 Luminoso

Embora sejam muitos os arquétipos que estão em jogo, a partir da informação obtida é

possível enxergar a influência de alguns deles relacionados com o processo de

adaptação.

Manuel apresenta traços característicos do arquétipo do Órfão, que tem a ver com a

sensação de empreender os caminhos com uma independência sadia, e se fazer cargo de

si mesmo como adulto. Nesse sentido, em Manuel o Órfão aparece desde o luminoso, na

sua capacidade de afrontar os desafios positivamente e na independência para

empreender o caminho sozinho.

Por outra parte, o arquétipo do Buscador aparece em Manuel, como uma pessoa

interessada no crescimento espiritual e em se enriquecer de cada situação afrontada.

Esse arquétipo é fundamental para uma boa adaptação na situação do imigrante, pois o

desejo de transformação é uma das razões mais importantes para empreender a viagem.

Por outro lado, as qualidades de liderança são fundamentais para planejar e executar as

idéias. Manuel conseguiu realizar seu projeto migratório realizando o mestrado. Sem

essa liderança própria do governante luminoso, o herói fica perdido em meio da

travessia, sem saber para onde ir, e muitas vezes abandonando a jornada.

Manuel se comprometeu com seu projeto de mestrado até o final e as dificuldades foram

confrontadas com otimismo. Deixou com tranqüilidade sua vida no Peru e empreendeu

uma nova jornada sem as dificuldades do apego neurótico. O Sábio aparece em Manuel,
54
especialmente na avaliação de sua viagem ao Brasil, tranqüilo e dando valor à sua

experiência e aos aprendizados no Rio. Agora que sua viagem acabou, se sente

agradecido pela oportunidade e vai embora com a satisfação do objetivo cumprido.

No caso da Ângela, o processo de adaptação e o desenvolvimento da viagem foram

diferentes.

Ela decidiu abandonar o doutorado e voltar ao seu país muito antes do planejado

inicialmente. Embora essa opção possa ser totalmente válida, ao longo da entrevista

Ângela mostra sentimentos negativos frente a sua experiência e seu balanço não é

otimista. Nesse caso o Inocente pode se apresentar desde seu aspecto sombrio, por meio

da projeção dos problemas pessoais no entorno, e os sentimentos velados de culpa, que

se encontram tráz a decisão de deixar o doutorado “para ajudar à família”. Ela mesma

considera que essa é uma forma de deixar tudo sem se sentir fracassada.

Por outro lado, essa atitude também está relacionada com o aspecto sombrio do

Servidor, onde a pessoa auto-justifica suas decisões como um sacrifício por outros que

precisam de sua ajuda, enquanto atrai situações em que assume o papel de mártir o

vítima.

Nas dificuldades de relacionamento e nos conflitos interpessoais que acompanharam a

Ângela durante sua viagem, aparece o Amante desde seu aspecto sombrio, não sendo

possível o contato genuíno e desprevenido com as pessoas e o entorno.

Não entanto, é claro que também estão presentes aspectos luminosos, que permitiram a

Ângela, obter um crescimento e um aprendizado pessoal no tempo que permaneceu no

Brasil.

A necessidade de se enfrentar à experiência de morar sozinha e de se virar numa cidade

desconhecida e de ter que aprender outra língua para se comunicar, provavelmente

ajudaram a constelar o Órfão luminoso, para começar a desenvolver a independência

necessária.
55
Por outro lado, como vimos antes, o Buscador é um arquétipo fundamental na jornada

do herói. É ele quem ajuda a encontrar sentido nas novas situações e a procurar o

crescimento espiritual nas experiências vividas. A Ângela começou a fazer terapia

durante sua experiência no Rio e teve um processo pessoal que ela mesma classifica

como muito enriquecedor. O desejo de aprender sobre si- mesma e sobre a realidade, a

busca pelo sentido e o desejo de transformação, acompanharam a Ângela durante sua

jornada.

É interessante observar que Ângela tem muito presente o arquétipo do Destruidor, sem o

qual, não tivesse conseguido deixar o doutorado para voltar a seu país. Tanto na partida

como no retorno, o Destruidor ajudou a promover a viagem de ida e de regresso.

Finalmente, o Governante luminoso se faz presente na Ângela, possivelmente desde sua

claridade de querer trabalhar e não continuar sua vida de estudante. Para ela, essa é uma

claridade que tinha há muito tempo, e que não deveu deixar pela oportunidade de

estudar de novo. A lucidez de saber o caminho, embora às vezes se tomem desvios, é

fundamental na viagem do herói.

4. Conclusões

O processo de adaptação de imigrantes voluntários tem múltiplas variáveis a considerar.

Todo imigrante passa por um luto migratório de cujo desenvolvimento vai depender, em

grande medida, uma adaptação positiva no novo ambiente.

As etapas desse processo podem variar de pessoa a pessoa e se apresentar de jeitos

diferentes em cada caso. Isso acontece porque existem múltiplos fatores associados no

processo de adaptação, entre os que se encontram fatores internos e externos antes e

depois da viagem.

O estresse produzido pela situação do imigrante pode até chegar a gerar problemas

clínicos como acontece no caso da síndrome de Ulisses. O individuo em situação de

56
imigrante desenvolve mecanismos de defesa que ajudam a sua psique a lidar com a

ameaça do entorno desconhecido.

Alguns dos fatores associados a uma adaptação exitosa são a possibilidade de voltar ao

país de origem, a idade do imigrante, a estabilidade do projeto migratório e a

possibilidade de manter contacto com a rede social do país de origem.

Por tudo o anterior, a experiência do imigrante pode ser uma vivência altamente

enriquecedora do ponto de vista pessoal. A viagem do imigrante pode ser fundamental

no caminho empreendido no processo de individuação. Nesse sentido, pode se comparar

a viagem do imigrante com a viagem do herói.

Nessa jornada, são muitos os arquétipos que têm um papel importante, mas alguns deles

tem maior relação com as diferentes etapas da viagem do herói.

O presente estudo permitiu observar que, nos casos observados, o lado luminoso dos

arquétipos do Órfão, Buscador, Governante, Sábio, Destruidor e Governante, foram

fundamentais no processo de adaptação dos imigrantes entrevistados.

O aspecto sombrio do Inocente, o Servidor e o Amante, também apareceram

obstaculizando o processo.

Embora o estudo realizado não permita de jeito nenhum tirar generalizações dos

resultados obtidos, por se tratar de um estudo principalmente qualitativo e com uma

mostra reduzida, é interessante observar que é possível encontrar relações entre o

processo de adaptação dos imigrantes voluntários e os arquétipos constelados.

Tendo em vista o grande número de imigrantes numa cidade como Rio de Janeiro, a

maneira de sugestão, a presente monografia poderia ser uma base para futuros estudos

sobre o desenvolvimento da adaptação e sua relação com o processo de individuação.

A jornada do herói se constitui numa metáfora sobre o desenvolvimento espiritual da

jornada empreendida pelo imigrante. Aprofundar nessa relação, desde a perspectiva

57
junguiana, poderia dar luzes sobre programas de apoio aos imigrantes em situação de

risco psicológico.

A jornada é longa e difícil, mas tarde o cedo Ulisses retornará a Ítaca.

5. Bibliografia

• ACHOTEGUI, Joseba (2002). La depresión en los inmigrantes: una perspectiva


transcultural. En: Mayo ediciones.
• ACHOTEGUI, Joseba. (2004). Emigrar en situación extrema: el Síndrome del
inmigrante con estrés crónico y múltiple. Norte de Salud Mental, n.21, 2004.
• ACHOTEGUI, Joseba. (2008). Migración y crisis: el Síndrome del inmigrante
con estrés crónico y múltiple. Avances en Salud Mental Relacional, v.7, n.1,
mar. 2008. (www. migra-salut-mental.org)
• ANGEL, Jackeline., ANGEL, Ronald. Age at migration, social connections, and
wellbeing among elderly Hispanics. Journal of Aging and Health. Texas. v.4,
n.4. 1992
• ARNAL, María. La experiencia del inmigrante: vivencias y adaptación. Revista
Nómadas. Madrid. n.10. jul. 2004
• CAMPBELL, Joseph. El Héroe de las mil caras. México: Fondo de la Cultura
Económica. 1949
• FERNANDES, Isabela. O Herói: uma Jornada através dos Tempos. Em RPG
e Arte. Rio de Janeiro: Banco do Brasil. 1998
• GONZÁLES, Valentín. El duelo migratório. Revista Trabajo Social. Bogotá.
n.7. p. 77-99, oct. 2006.
• GRINBERG, Leon. , GRINBERG, Rebeca. Psicoanálisis de la migración y el
exilio. Madrid: Alianza editorial. 1994
• HOMERO. A Odisséia. Trad. E. Dias Palmeira e M. Alves Correia. Lisboa: Sá da
Costa.
• JUNG, Carl Gustav. Tipos Psicológicos. Obras Completas, Vol. VI. São Paulo:
Vozes.
• JUNG, Carl Gustav. O Eu e o Inconsciente. Obras Completas, Vol. VII-2.
Petrópolis: Vozes.
• JUNG, Carl Gustav. Energia Psíquica. Obras Completas, Vol. VIII-1. São
Paulo: Vozes.

58
• JUNG, Carl Gustav. Aion. Obras Completas, Vol. IX-2. São Paulo: Vozes.

• MAYA, Isidro. Tipos de redes de los inmigrantes y adaptación psicológica.


Revista Redes. Sevilla. v.1, n.4. ene 2002
• SHARP, Daryl. Lexicón Junguiano. Santiago de Chile: Cuatro Vientos. 1994

• STEIN, Murray. O Mapa da Alma. São Paulo: Cultrix. 1998

• TRIVONOVITCH, Gregory. Culture learning and culture teaching.


Cambridge: Withrop Publishers.1980
• VERNANT, Jean Pierre. O Universo, os Deuses, os Homens. Sao Paulo:
Companhia das Letras. 2000

Referências na web
• Martínez, M. Martínez A. (2006) Patología psiquiátrica en el inmigrante. Jornal
Anales del Sistema Sanitario de Navarra. Vol 29.Obtido de:
http://www.cfnavarra.es/salud/anales/textos/suple29_1.htm
• Pearson, C. Seivert, S. Leonard, M. Marr, H. (1990) Indice de Mitos Heróicos.
Obtido de: www.abbra.com.br/tipodelider.doc
• Scholten, A. (2007). Grupos de Apoyo: ¿Cómo Ayudan? Obtido de Emory
Healthcare: http://healthlibrary.epnet.com/GetContent.aspx?token=8482e079-
8512-47c2-960c-a403c77a5e4c&chunkiid=125604

6. Anexos

6.1 Formato da entrevista

Dados gerais
1. Idade
2. Sexo
3. Tempo no Rio
4. Escolaridade
5. Estado Civil
6. Profissão
7. Nacionalidade
Perguntas entrevista
1. Quais as razões para vir ao Rio?
2. Como era a vida antes da viagem?

59
• Características do grupo familiar
• Situação afetiva
• Saúde

3. O que foi o mais difícil de deixar?


4. Como foram os primeiros meses (desde o emocional)?
5. Por quanto tempo tinha planejado vir? Se cumpriu esse tempo?
6. Como foi o processo de adaptação?
– Idioma
– Vivenda
– Amigos
– Satisfação com o programa acadêmico
– Desempenho acadêmico
– Situação econômica
7. Tem tido algum problema de saúde?
8. Mantém o contato com sua família e amigos? De que maneira isso influí na vida
aqui?
9. Em algum momento pensou em voltar? Por que?
10. De que sente mais falta de seu país?
11. Quanto tempo lhe tomou se adaptar?
12. O que acha do Brasil? do Rio?
– Comida
– Cultura
– Geografia
– Pessoas
13. De onde são seus amigos?
14. Qual a aprendizagem que tem deixado a experiência até agora?

6.2 IMH – Indice de Mitos Heróicos

El “índice de mitos heroicos” (IMH) ha sido diseñado para ayudar a las personas a que
se comprendan mejor a sí mismas y a los demás, a identificarse con los diferentes
arquetipos activos de su vida. Cada persona recibe un valor numérico que indica su
nivel de identificación con los arquetipos descritos. Los doce arquetipos son valiosos y
cada uno tiene una importante contribución que hacer en nuestras vidas. Ninguno es
mejor o peor, por consiguiente, no hay respuestas correctas e incorrectas.

60
Instrucciones
Puntuar cada una de las 72 oraciones que componen el índice, según el grado en el cual
describan su propia personalidad, tomando como referencia la siguiente puntuación:

1= Casi nunca me describe


2= Rara vez me describe
3= A veces me describe
4= En general me describe
5= Casi siempre me describe

Es importante hacerlo tan rápido como sea posible, la primera reacción es


frecuentemente el mejor indicador.
Se ruega no omitir ninguno de los puntos, pues ello invalidaría los resultados. Si no se
está seguro, marcar el valor que más se acerque y proseguir.

Cuestionario

1) Recojo información sin emitir juicios.

2) Me desoriento con tantos cambios en mi vida.

3) Mi proceso de autocuración me permite sanar a otros.

4) He decepcionado a los demás.

5) Me siento seguro/a.

6) Dejo el miedo de lado y hago lo que debe hacerse.

7) Antepongo las necesidades de los demás a las mías.

8) Intento ser auténtico/a donde me encuentre.

9) Cuando la vida se vuelve monótona, me gusta hacer cambios


radicales.

10) Me satisface cuidar de los demás.

11) Los demás me encuentran divertido/a.

12) Me siento atractivo/a.

13) Creo que las personas en realidad no quieren herirse unas a otras.

14) De niño/a me descuidaron o engañaron.

15) Me siento más feliz cuando doy que cuando recibo.

16) Estoy de acuerdo con la frase: “Es mejor haber amado y perdido

61
que no haber amado nunca”.

17) Vivo la vida plenamente.

18) Mantengo un sentido de perspectiva intentando tener una visión de


largo plazo.

19) Me encuentro en pleno proceso de crear mi propia vida.

20) Creo que existen muchas maneras positivas de examinar la misma


cosa.

21) Ya no soy la persona que creí ser.

22) La vida es una angustia tras otra.

23) Lo espiritual me ayuda a explicar mi realidad.

24) Me resulta más fácil hacer cosas por los demás que por mí
mismo/a.

25) Me siento pleno en las relaciones.

26) Las personas me buscan para orientarse.

27) Temo a los que tienen autoridad.

28) No me tomo las reglas muy en serio.

29) Me gusta ayudar a las personas a vincularse con otras.

30) Me siento abandonado/a.

31) Tengo momentos de grandes logros, en los que siento que los he
conseguido sin esfuerzo.

32) Tengo cualidades de líder.

33) Estoy buscando maneras de mejorarme a mí mismo.

34) Puedo confiar en otros para cuidar de mí.

35) Prefiero estar al mando de las situaciones.

36) Intento buscar verdades detrás de las apariencias.

37) Mi vida exterior cambia cuando cambian mis pensamientos.

38) Desarrollo recursos, humanos o naturales.

62
39) Estoy dispuesto/a a correr riesgos personales para defender mis
creencias.

40) No estoy cómodo/a si dejo pasar una injusticia sin desafiarla.

41) Me esfuerzo por encontrar objetividad.

42) Mi presencia es a menudo un catalizador para el cambio.

43) Me divierto haciendo reír a la gente.

44) Utilizo la disciplina para alcanzar las metas.

45) Siento cariño por las personas en general.

46) Soy hábil para asignar tareas según las habilidades de cada
persona.

47) Me resulta esencial mantener mi independencia.

48) Creo que todo y todos en el mundo están interrelacionados.

49) El mundo es un lugar seguro.

50) Personas en las que he confiado me han abandonado.

51) Me siento intranquilo/a.

52) Me desprendo de las cosas que ya no me sirven.

53) Me gusta animar a las personas demasiado serias.

54) Un poco de confusión es bueno para el alma.

55) Haberme sacrificado por otros me ha hecho ser una mejor persona.

56) Soy tranquilo/a.

57) Acostumbro enfrentarme con personas ofensivas.

58) Me gusta transformar situaciones.

59) La disciplina es la clave del éxito en todos los aspectos de la vida.

60) No me cuesta inspirarme.

61) No estoy a la altura de las expectativas que tenía para mí mismo.

62) Presiento que en algún sitio me espera un mundo mejor.

63
63) Doy por sentado que las personas que conozco son dignas de
confianza.

64) Estoy intentando hacer realidad mis sueños.

65) Sé que mis necesidades serán resueltas.

66) Tengo ganas de romper algo.

67) Intento manejar situaciones teniendo en cuenta el bien general.

68) Me cuesta decir que no.

69) Tengo muchas buenas ideas, pero poco tiempo para realizarlas.

70) Estoy buscando mejorar mi vida.

71) Personas importantes en mi vida me han decepcionado.

72) Buscar algo es tan importante para mí como encontrarlo.

64

You might also like