Professional Documents
Culture Documents
CENTRO DE HUMANIDADES
CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
FORTALEZA – CEARÁ
2009
GUSTAVO FERNANDES MEIRELES
FORTALEZA – CEARÁ
2009
M514e Meireles, Gustavo Fernandes
Entre refugos precarizantes e refugos precarizados:
precarização e catação de materiais recicláveis em Fortaleza /
Gustavo Fernandes Meireles – Fortaleza, 2009.
161 f.
CDU – 331
GUSTAVO FERNANDES MEIRELES
Aprovado em ___/___/___
BANCA EXAMINADORA:
______________________________________________
Prof. Dr. João Bosco Feitosa dos Santos
______________________________________________
Prof. Dr. Geovani Jacó de Freitas
______________________________________________
Profa. Dra. Regina Heloisa Mattei de Oliveira Maciel
A todos aqueles que,
diante da situação de indignidade
a que foram socialmente relegados,
tiveram de buscar,
no produto do descaso e da opulência,
a miséria da sobrevivência.
AGRADECIMENTOS
Ao meu irmão Rodrigo Hésed, meu maior exemplo de vida e superação, por todos
os momentos, desde as brincadeiras infantis – de quem eu já buscava inspiração pela
inteligente criatividade –, as conversas (das filosóficas às mais triviais), e sobretudo ao
estímulo à leitura e à reflexão, sem os quais seria impossível o prazeroso desafio da escrita;
À minha irmã Regina Lúcia que, apesar da distância física, sempre se faz presente
em minha vida, através de suas orações e intenções;
Ao Prof. João Bosco Feitosa dos Santos – professor modelar, homem cuja
sabedoria não o afastou da simplicidade –, presente em toda minha trajetória acadêmica, pela
credibilidade em mim depositada e pelo rigor exigente temperado pela compreensão paciente;
Ao Evaldo Lima, que de mestre passou a grande amigo e companheiro, sem cujos
conselhos eu não teria ingressado nos corredores do Centro de Humanidades da UECE, pelas
sempre respeitosas colocações e pelo constante convite à reflexão;
Ao Charles Alberto, pela atenção no meu crescimento como pessoa em uma fase
nada fácil, pelas inesquecíveis conversas, pelas provocações enriquecedoras e inquietantes,
pela alegria sempre contagiante;
Aos irmãos que a vida foi apresentando, André Luis, Raoni Aragão, Leivison
Viana, Rodrigo Santos, Marlus Alves, pela presença constante em minha vida, na forma de
aprendizado, crescimento mútuo, e pelo compartilhamento de bons e maus momentos;
No lixo!!!
Tudo virará lixo!!!
Teu amor de lixo !!!
O futuro é lixo!!!
Onde está seu lixo???
Lixo!!!”
“Sobrevivendo de restos
Do que era resto
Fez-se o necessário.
A sombra das sobras
Da soberba do desperdício,
Fez-se vida do que era lixo
Fez-se o contrário”
(Tânia Urbano)
FOTO 04: Foto com vista partindo da área de pesagem para a entrada principal do 78
depósito
FOTO 05: “Escritório” de Zé Bezerra 79
FOTO 14: Área lateral para depósito de material separado por tipo 84
FOTO 16: Pátio após o portão principal de onde se vê o elevador e os prédios centrais 86
FOTO 17: Pátio principal. Container e tambores para depósito do material refugado ao 87
fundo
FOTO 18: Caminhão disponibilizado pelo Governo do Estado à associação 87
FOTO 22: Área de pesagem. Catador pesa material trazido por doação ao Projeto 89
Ecoelce
FOTO 23: Área atrás do prédio do escritório, onde há cobertas improvisadas e 89
depósito de bags
FOTO 24: Coberta adaptada para guarda de materiais coletados por catador 89
FOTO 25: Galpão coberto para depósito de materiais separados por tipo 91
FOTO 26: Galpão coberto para depósito de materiais separados por tipo 91
FOTO 27: Catadores separam material em área coberta localizada no pátio dos fundos 93
FOTO 31: Quartinho de despejo do condomínio aonde seu Teixeira coleta material 99
FOTO 32: Quartinho de despejo do condomínio aonde seu Teixeira coleta material 99
FOTO 33: Funcionário do condomínio traz o lixo coletado. À esquerda a carroça do 103
senhor que veio buscar o lixo orgânico
FOTO 34: Funcionário do condomínio despeja o lixo no quartinho de lixo 103
FOTO 36: Seu Teixeira separa o material, dentro do quartinho de lixo 104
FOTO 42: Parada para ajeitar material que caiu do carrinho 107
1. INTRODUÇÃO 13
REFERÊNCIAS 150
INTRODUÇÃO
principais mediadoras, sendo profundamente marcado pela voz daqueles trabalhadores; voz de
corpo, olhar, mãos. O círculo de olhares que se entrecruzavam durante os encontros e a
paulatina inclusão desses sujeitos no meu roteiro diário de visão, já representava um momento
diverso daquela ação observada nas paredes da galeria e permitiu-me adentrar numa temática
de considerável relevância, haja vista o notável crescimento abrupto dessa categoria de
trabalho, que tem como favorecedores o desemprego estrutural, o potencial reciclável dos
crescentes rejeitos urbanos e a existência de um rico mercado de reciclagem.
Os contatos iniciais me apontavam a busca por sobrevivência empreendida por
esses sujeitos, mas paralelamente indicavam a procura por dignidade, ainda que com trabalho
tão precário, vez que a desocupação parece ser um desvalor maior ainda que a precariedade
do ofício a que não se tem escolha, na busca de se manter “incluído”, mesmo que mediante
um trabalho com essa característica, já que a possibilidade de um emprego parece remota.
Considerando emprego como o trabalho inserido dentro de uma relação de troca e
recompensa financeira firmado por um contrato, essa modalidade de trabalho ultrapassa uma
mera relação técnica de produção, podendo ser vista como um “suporte privilegiado de
inscrição na estrutura social” (SANTOS, 2000, p. 49). Visto desta forma, o desemprego não
só significa a impossibilidade de sustentar a si e a outrem como é também construtor de uma
representação de que o não trabalhador, especialmente o desempregado, é considerado um
apêndice da sociedade, um vadio, um inútil. O emprego garante, portanto, um lugar social
privilegiado, e na sua impossibilidade os indivíduos buscam formas alternativas de
sobrevivência pelo trabalho que nem sempre lhes permitem viver com dignidade, mas apenas
existir.
De fato, com a crescente precarização do trabalho formal (emprego) em
conseqüência da substituição de trabalho vivo (força de trabalho), por trabalho morto (ciência
e técnica), as formas alternativas de subsistência se ampliam no estágio atual do capitalismo,
recriando novas modalidades de trabalho informal e de subemprego.
O grande contingente de refugados gerado por essa precarização, motivado pela
necessidade de sobrevivência, busca em qualquer forma de trabalho um meio para o seu
sustento. Um dos meios é a catação daquilo que a sociedade produz em larga escala e rejeita:
o lixo, o refugo da sociedade de consumo na era da descartabilidade.
O surgimento de indústrias de reciclagem, amparada na descoberta do lixo como
potencial gerador de lucros e, favorecido pelo crescente discurso ambientalista, tornou
possível o crescimento de uma categoria de trabalho informal, há poucos anos bastante
15
desejariam ser expostos. De toda forma, todas as fotografias foram também previamente
autorizadas e somam-se aos croquis dos locais que esboçam a estrutura geral dos locais
visitados. Ainda em relação aos registros fotográficos, o acompanhamento da jornada de
trabalho de seu Teixeira está também representado em imagens.
Dessa forma, o texto está dividido em cinco capítulos, iniciando-se com uma
análise acerca da importância que o trabalho tem na contemporaneidade como atividade que
garante não apenas o sustento material, mas ainda um lugar social. A importância socialmente
atribuída esbarra na dificuldade que torna quase impossível o acesso ao trabalho para boa
parte da população, fator crucial à inserção de indivíduos precarizados na precarizante
atividade de catação de materiais recicláveis.
No capítulo seguinte analiso outros fatores que concorrem com a dificuldade de
inserção no mundo do trabalho, tais como a existência de um rico mercado de reciclagem,
supedaneado pelo crescente discurso de proteção ao meio ambiente. A importância em
analisar esses aspectos residem no fato de os catadores serem agentes de grande relevância
para a cadeia de reciclagem, mas ocuparem tão-somente seu elo mais frágil, havendo a
possibilidade de maior controle do processo por parte de grandes empresas, excluindo ainda
mais o catador do processo.
No terceiro capítulo é discutida a catação de materiais recicláveis como atividade
laboral que se desenvolve em diversas partes do mundo, a organização desses trabalhadores
em diversos locais, as importâncias atribuídas ao catador, reconhecido por muitos autores
estudiosos do tema como agentes contribuintes da gestão de resíduos sólidos e atuantes como
importantes agentes ambientais. O capítulo se encerra com um delineamento do perfil dos
catadores em Fortaleza, tendo como base dados estatísticos do referido diagnóstico sócio-
econômico realizado pela Prefeitura de Fortaleza.
O quarto capítulo tem como foco a apresentação dos dados qualitativos
produzidos a partir da etnografia nos locais visitados, apresentando as condições de trabalho
tanto no depósito como na associação, além da apresentação das observações realizadas
durante o acompanhamento de um catador (da associação) durante sua jornada de catação.
Por fim, o quinto e derradeiro capítulo constitui o clímax da proposta de
discussão, apresentando-se análise das entrevistas em cotejo com dados do diagnóstico da
Prefeitura e verificando as motivações dos catadores para iniciarem-se nessa atividade laboral,
suas histórias de trabalho e a relação do trabalho de catação com a situação de precariedade
em que vivem. Busquei ainda analisar as representações acerca do significado do trabalho, as
20
Foi nos idos da década de 1930; tempos áureos do rádio brasileiro. A polêmica
começou quando o Poeta da Vila, Noel Rosa, resolveu contestar a apologia à malandragem de
Wilson Batista, que assim dizia em sua música “O que será de mim”: “Se eu precisar um dia /
De ir pro batente / Não sei o que será / Pois vivo na malandragem / E vida melhor não há...”.
Noel, embora malandro, chamou Wilson de “Rapaz folgado”: “Deixa de arrastar o teu
tamanco / Pois tamanco nunca foi sandália / Tira do pescoço o lenço branco / Bota sapato e
gravata / Joga fora esta navalha que te atrapalha”.
O quiprocó musical não parou por aí (ALBIN, 2004, pp. 134-136), mas o caso
encerra questões para muito além da cadência bonita do samba. Leva-nos a refletir acerca da
valorização apologética ao trabalho ante ao perigo da vadiagem.
O trabalho cuja razão encontrava-se nas relações de servidão deu lugar – não sem
as lutas dos sujeitos envolvidos no longo processo histórico – ao trabalho assalariado,
pretensamente livre, em que ao trabalhador é conferida a possibilidade de negociar
contratualmente sua mão-de-obra. Assim, a modernidade trouxe no bojo da revolução
industrial uma forma de subordinação racional (por óbvio que com suas inúmeras micro
formas) que se contrapunha à ordem anterior (WEBER, 2005, p. 29-32).
Tratava-se do desenvolvimento de técnicas de produção propriamente ditas, mas
também de técnicas gerenciais (idem, ibidem) que submetiam o corpo a uma docilidade-
utilidade baseada em processos disciplinares e controle do tempo que acompanhavam o
desenvolvimento capitalista. Assim, diversamente da subordinação servil, a disciplina do
trabalho moderno apontava a um domínio do corpo voltado à consecução de objetivos
pragmáticos: aprendizado escolar, formação militar, produção laboral (FOUCAULT, 1987, p.
117-119). Assim é que Foucault entende a disciplina como poder de fabricar corpos
submissos e exercitados, corpos “dóceis”:
22
Como se vê, não é à toa que os vários sentidos etimológicos do termo trabalho
relacionam-se à submissão, ao suplício, ao sofrimento, à tortura (ALBORNOZ, 2000). Santos
(2001) recorda que de há muito o trabalho já fora instituído como maldição condicionante da
sobrevivência humana, “para que o homem provasse a Deus o reconhecimento de sua culpa e
o seu arrependimento da transgressão original” (SANTOS, 2001, p. 43).
Trazendo a concepção para um plano mais mundano, Marx (1978) entende ser
este o elemento estruturante na relação dos homens entre si e a natureza, sendo esta capaz de
ser transformada por meio do trabalho. O trabalho, em si, é um movimento dialético e na
medida em que o homem atua sobre as coisas, atua também sobre si:
Daí que antes do enaltecimento do trabalho pelo Poeta da Vila, foi preciso que o
trabalho estivesse vinculado a uma forma de virtude, capaz de engrandecer o trabalhador e
mesmo conferir-lhe identidade. E é moderna a concepção de que o homem se faz a si mesmo
como ser humano através do trabalho.
Weber (2005) analisa o trabalho como um instrumento de ascese que terminou por
permitir o desenvolvimento de um modelo econômico fundado no trabalho racional, mas
mirando a salvação da alma. O autor observa que o capitalismo contemporâneo, nascido no
ascetismo religioso, caminhava a um ceticismo invocando o trabalho como uma vocação, sim,
mas não mística. Todavia, o legado do ascetismo continuou a identificar o trabalho como
23
que “os vadios deveriam ser, pois, reprimidos e obrigados ao trabalho” (SOUZA, 1982, p.
128).
Em oportuna digressão, para ressaltar a importância do trabalho na sociedade
moderna, é válido tomarmos pontualmente de empréstimo o método empreendido por
Durkheim (1999) quando objetiva verificar a solidariedade produzida pela divisão social do
trabalho em sua clássica obra. Apoiando-se em métodos objetivos – e com forte influência das
ciências naturais –, Durkheim pretende estudar as causas a partir dos seus efeitos, adotando o
Direito como termômetro das relações solidárias em uma dada sociedade. Assim, afirmando o
autor francês que os costumes relevantes são aqueles reproduzidos pelo Direito, termina por
lançar mão, ainda que não expressamente, da Teoria do Mínimo Ético – primeiramente
exposta pelo pensador inglês Jeremy Bentham e posteriormente aperfeiçoada pelo jusfilósofo
alemão Georg Jellinek e que consiste na idéia de que o Direito, em sua forma positiva,
representa um mínimo de preceitos morais necessários ao bem-estar da coletividade em um
determinado momento da história (REALE, 2002, p. 42). O Direito assume, dessa forma, a
função de um tubo de ensaio que permite observar um fenômeno dificilmente mensurável
dado seu caráter eminentemente moral.
Por esta lente metodológica, vemos a importância conferida ao trabalho e a
repulsa ao ócio ao observar que o combate ao ócio encontra prescrição expressa no
ordenamento jurídico brasileiro desde os tempos coloniais, como apresentado por Souza (op.
cit., 1982), mas tornou-se mais claro e preciso quando da tipificação prevista pelo vetor
normativo contido no artigo 295 do Código Criminal do Império, de 1830. Este dispositivo
descrevia o crime de vadiagem como aquele cometido nas hipóteses em que “não tomar
qualquer pessoa uma ocupação honesta e útil de que possa subsistir, depois de advertida pelo
juiz de paz, não tendo renda suficiente”.
Em severo descompasso com a história – como costuma estar o direito positivo
em face dos mutantes padrões sociais –, ainda hoje a vadiagem é considerada um ilícito, não
mais como um crime, mas como uma contravenção penal prevista no Decreto-Lei nº 3.688, de
1941, que pune a vadiagem e a mendicância por ociosidade.
Curioso observar que esse ávido combate ao ócio em terras tupiniquins parece ir à
contramão do nosso “espírito aventureiro” de que fala Sérgio Buarque de Holanda (1995). O
autor indica a cultura ibérica como responsável pela nossa colonização marcada por um
desleixo, muito mais do que por ser um empreendimento metódico e racional como ocorrera
na colonização levada ao cabo na América do Norte. Aqui, em contraponto ao tipo ideal do
trabalhador, destacava-se o tipo aventureiro (HOLANDA, 1995, p. 43), que ao invés de
25
marcar a colonização por um empreendimento racional, era norteado pela idéia de extrair
grandes benefícios sem muitos sacrifícios. Daí a interessante ponderação de Sérgio Buarque
quando comenta que a famigerada indolência indígena teria levado ao reconhecimento – ainda
que tão-somente ideal – dos gentios como dotados de características das classes nobres, quais
sejam a ociosidade, a imprevidência e a intemperança, motivo pelo qual o romantismo
nascente teria reservador “ao índio, virtudes convencionais de antigos fidalgos e cavaleiros,
ao passo que o negro devia contentar-se, no melhor dos casos, com a posição de vítima
submissa ou rebelde” (idem, p. 56).
Em que pesem as críticas ao viés simplista pelo qual se analisa a situação do
indígena, a reflexão permite depreender que o trabalho no Brasil não era, de início, um valor
tão relevante quanto se tornou após o processo de industrialização e adequação do País ao
modelo global contemporâneo.
Mas a heterogênea categoria de vadios constituía-se verdadeiramente na
caracterização do trabalhador nacional, na medida em que os trabalhadores livres eram
nivelados aos mendigos, vagabundos e que não encontravam forma de inserção estável na
divisão do trabalho (PRADO JR., 2006), haja vista a larga utilização de mão-de-obra escrava,
o que reforçava a concepção de que eram considerados inaptos ao trabalho regular.
Santos (2001) observa que esse trabalhador livre, considerado como fruto da
vadiagem, é que teria originado o trabalhador assalariado. O trabalhador estaria, portanto,
marcado pela mácula do ócio em uma sociedade que valoriza o trabalho como forma básica
de inserção em seu meio.
Acrescente-se como fator que contribui para a importância do trabalho o fato de
ser através dele que, além de garantir a sobrevivência, possibilita-se adentrar as portas do
consumo. Do contrário, ficar-se-ia mesmo à margem daquela que Baudrillard (1995) cunhou
como sociedade de consumo, onde mais do que coisas, compra-se, sobretudo signos como
acessórios postiços para formação da personalidade mediada pela pecúnia (ou pelo crédito
infinitamente renovado) e alimentados pela produção incessante de novidade.
Nesta senda, a briga em versos musicais de Noel Rosa e Wilson Batista tem como
pano de fundo todo esse arcabouço que leva a uma valorização do trabalho como valor capital
na sociedade contemporânea.
26
A sociedade parecia repousar em certezas com as quais não se pode mais contar.
Assim, se uma boa formação assegurava uma boa ocupação, o atual momento aponta para um
questionamento estrutural ao modelo de empregabilidade engendrado ao longo do século XX.
Ressalve-se que não cremos ser o caso de chegar ao paroxismo de bradar o fim dos empregos,
tal como faz Rifkin (1995), mas de fato, a idéia de pleno emprego que mobilizava o mundo
entre os anos 1950 e 1970 (HOBBSBAWN apud SANTOS, 2001) parece não mais reverberar
hodiernamente com tanta força, ao contrário, faz mais eco a concepção contrária. Nesse
sentido, a luta contra a produção de refugos humanos é muito mais desafiadora que a luta
1
Santos (2001, p. 50) chama a atenção ao fato de que a noção de desemprego como alguém que foi privado
involuntária e temporariamente do trabalho surge após a Revolução Industrial e diferiam dos pobres
permanentes, sendo, assim, considerados pobres válidos.
27
contra o desemprego (ou em prol do emprego), vez que parece ser um caminho análogo a uma
ponte que rui após tenebrosa travessia. Bauman, comparando o desafio de cada um desses
momentos, entende que no estágio da modernidade a que ele chama líquida2, o retorno é por
demais dificultado:
2
Para Bauman (2001), há duas modernidades, uma sólida e outra, atual, líquida. A primeira seria justamente a
que tem início com as transformações clássicas e o advento de um conjunto estável de valores e modos de vida
cultural e político. Na modernidade líquida, tudo é volátil, as relações humanas não são mais tangíveis e a vida
em conjunto, familiar, de casais, de grupos de amigos, de afinidades políticas e assim por diante, perde
consistência e estabilidade. Apesar da interessante reflexão, ela já está de algum modo presente em Marx
quando, segundo Marshall Berman (2006), aponta para a ação do éter das revoluções modernas que desmancha
tudo que é sólido.
28
As previsões para 2009 não são nada animadoras. Em meio à crise econômica
cujo germe fora bem preteritamente implantado, a Organização Internacional do Trabalho
(OIT, 2009) apresenta perspectivas nada otimistas em relação à taxa de desemprego. Segundo
a organização, a crise econômica mundial poderá produzir um aumento considerável no
número de pessoas que aumentarão as filas de desempregados, trabalhadores pobres e
trabalhadores com empregos vulneráveis. O relatório Tendências Mundiais do Emprego, de
2009, aponta que o desemprego no mundo poderá aumentar em 2009 em relação a 2007 entre
18 e 30 milhões de trabalhadores e até além de 50 milhões caso a situação de crise continue se
aprofundando.No documento, a OIT vislumbra que, caso se produza este último cenário,
cerca de 200 milhões de trabalhadores, em especial nas economias em desenvolvimento,
poderia passar a integrar as filas da pobreza extrema.
No olho do furacão, as conseqüências na taxa de desemprego são já bastante
sensíveis. Pesquisa apresentada pela agência Reuters aponta para continuidade de crescimento
da já alta taxa de desemprego nos Estados Unidos, atualmente em 8,1%, para 9,6%. Há que se
ressaltar que a taxa atual já é a maior nos últimos 25 anos. Em termos absolutos, isso significa
13 milhões de pessoas sem emprego nas fronteiras do império (COSTA, 2009). Esse número
levou a um abrupto aumento em novos pedidos de seguro-desemprego. A média em quatro
semanas de solicitações do benefício subiu em 6,75 mil e chegou a 650 mil, o nível mais alto
desde outubro de 1982. O número de pessoas que, na semana que terminou em 28 de
fevereiro, recebiam o benefício pago pelos estados aumentou em 193 mil, ascendendo ao
número sem precedentes de 5,32 milhões (ÚLTIMO SEGUNDO, 2009).
A previsão da OIT se confirma no Brasil a partir de dados apresentados pelo
IBGE concernentes ao avanço do subemprego, cuja causa atribuída pelo instituto de pesquisa
é o aprofundamento da crise econômica e seus desdobramentos na periferia do epicentro.
relação ao ano de 2008. Somente no mês de janeiro de 2009, 658 mil empregados demitidos
sem justa causa (condição para solicitação do benefício) requisitaram inclusão no programa
do seguro-desemprego. Segundo dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados
(CAGED), desde novembro de 2008 o mercado de trabalho formal dispensou 797,5 mil
empregados (PATU e SOFIA, 2009).
É esse o cenário terrificante sobre o qual refletiu Forrester (1997). A autora
ressaltou, já no início dos anos 1990, os reflexos subjetivos provocados pela crise no mundo
do trabalho que não mais se restringe a um único setor ou a categorias profissionais
específicas. O mais assustador é chegar à conclusão que o desemprego hodiernamente se
caracteriza pela desnecessidade da mão de obra refugada ao sistema, o que, segundo a autora,
termina por neutralizar as tentativas de organização dos trabalhadores. Assim, as promessas
do restabelecimento dos antigos níveis de emprego e a melhoria dos níveis de renda nunca se
situaram tanto, e tão-somente, no campo das intenções quanto hoje. A pior constatação desse
horror econômico é a de que o avanço tecnológico tem produzido uma barbárie sem
precedentes, em que
hoje, pela primeira vez, o trabalho humano tem sido sistematicamente eliminado do
processo de produção. Em menos de um século, o trabalho de massa a economia de
mercado será provavelmente paulatinamente cancelado em quase todas as nações
industrializadas do mundo. Uma nova geração de sofisticadas tecnologias de
informação e comunicação tem sido introduzida em uma ampla gama de atividades
de trabalho (...) (RIFKIN, 1995, p. 3. Tradução livre).
Não obstante a respeitável reflexão de Rifkin, creio que o trabalho não está
caminhando ao seu ocaso, mas, de fato, tomando novos contornos tão diversos daqueles em
que se envolvia, que a perplexidade leva ao paroxismo da perspectiva do fim do trabalho.
Também esse é o posicionamento de Vasopollo (2005), para quem as certezas oferecidas pelo
modelo fordista são agora desafiadas pela flexibilização que leva a um profundo grau de
precarização da força de trabalho (VASOPOLLO, 2005, p. 17).
Todo esse contexto parece justificar a introdução (ou aceitação) de novas (ou nem
tanto) formas de trabalho precário como solução pra o desemprego. Tais alterações estruturais
são acompanhadas de mudanças no plano da comunicação e na proteção jurídica aos direitos
sociais dos trabalhadores, cada vez mais fragilizados. Esse quadro gera verdadeiro mal-estar
em uma sociedade que valoriza a produção e o trabalho, mas cujo elemento básico, o trabalho,
vem se tornando cada vez mais escasso. Nesse ínterim, a flexibilização, ao mesmo tempo em
que precariza o trabalho, reveste-se como solução plausível para a crise do trabalho – em
parte provocada pelo próprio processo de flexibilização. Dessa forma, justificam-se a
liberdade, por parte da empresa, para despedir parte de seus empregados quando a produção e
vendas diminuem; alterar o horário de trabalho sem aviso prévio; terceirizar diversos
serviços3. Por isso Vasopollo afirma que “a flexibilização, definitivamente, não é solução para
aumentar os índices de ocupação. Ao contrário, é uma imposição à força de trabalho para que
sejam aceitos salários reais mais baixos e em piores condições” (idem, p. 28).
3
Em nome da maleabilidade das empresas, até a forma de controlar seus funcionários é alterada, passando da
disciplina foucaultiana (FOUCAULT, 1987) – exercício pontual do poder, aplicado pela vigilância fixa – ao
controle deleuziano (DELEUZE, 1990) – formas ultra-rápidas de controle ao ar livre, que substituem as antigas
disciplinas que operavam na duração de um sistema fechado. A fábrica é substituída pela empresa, o controle
contínuo substitui o exame. Evidente que estas mudanças restam subjacentes dentro de um macro contexto de
aceleração do tempo e diminuição dos espaços naaquilo que alguns autores chamaram pós-modernidade. O
33
A justificativa de aumento da ocupação – não importa ela qual seja e como seja
executada – leva ao paroxismo da flexibilização, fomentando trabalhos atípicos e precários.
Todo um léxico é construído com o intuito de ofuscar as contradições produzidas pela
flexibilização e precarização. Assim, o empreendedorismo é ventilado como possibilidade de
liberdade econômica e social, no entanto, torna-se, na prática verdadeiro mito do fazer
sozinho que termina por se converter em trabalho subordinado, com reduzida proteção
jurídica e sem garantias fundamentais.
Daí é que constatamos a incongruência na manutenção da vigência de uma norma
que o tempo retirou a eficácia, qual seja aquela que citamos da punição pelo ócio. Ora, se a
maldição atual é inversa àquela disposta nos textos sagrados, ou seja, é a busca – mormente
infrutífera – por trabalho que atormenta aqueles que estão à margem dos números da
empregabilidade, qual ratio legis pode ainda remanescer em um comando normativo que pune
um estado diante do qual a própria sociedade (razão do Direito) se vê impotente? A maior
punição é o pavor do próprio desemprego; estar à margem do sistema alimentado pela
produtividade do trabalho é já uma prisão. Não é outra a constatação de Santos (2001) quando
reflete acerca das repercussões subjetivas do desemprego: medo, desgaste, vergonha,
frustração, incerteza, humilhação, culpa, inutilidade.
Diante desse quadro de incertezas, consolida-se uma tipologia de trabalho
aparentemente nova, mas cuja perversidade estende-se preteritamente no fio da história. O
atual espanto em sua constatação se deve mais ao fato desse tipo de trabalho – precário –, vir
com tamanha ênfase à tona após o desenvolvimento de uma sociedade que chegou a
proclamar o pleno emprego, alimentada pelos arroubos de modernidade que se vangloriavam
de ser capaz de contornar o caos “e preencher de uma vez por todas a irritante lacuna entre o
‘é’e o ‘dever ser’” (BAUMAN, 2005, p. 48).
Não, o pleno emprego não vingou e as perspectivas paupáveis de seu
acontecimento restaram estancadas em meados dos anos de 1975 (SANTOS, 2001, p. 63). A
situação esboçada pelos números da Organização Internacional do Trabalho (OIT, 2009) tem
levado a justificar o trabalho a qualquer custo, ainda que o custo para o trabalhador seja maior
do que este sujeito é capaz de suportar. Após anos de lutas e paulatinas conquistas, a
desocupação forçada, que não oferece perspectivas nem sequer como engrossamento dos
exércitos de reserva, oferece saídas cada vez mais precárias, na contramão das garantias
asseguradas ao longo da história. Diante da possibilidade de ser refugado do universo do
mundo do trabalho não fica alheio a estas mudanças a nível global, pelo contrário, é um dos elementos essenciais
para compreendê-lo.
34
trabalho, preferível que seja refugado do universo dos direitos do trabalhador. Assim é que
muitos indivíduos se vêem sem escolha entre não ter trabalho (o que significa não ter um
meio de subsistência) e exercer um trabalho precário. Nesses casos, como o dos catadores, a
necessidade de sobreviver, por óbvio, fala mais alto do que o leque de benefícios que um
trabalho formal poderia oferecer.
Não é diversa a constatação a que chegamos quando da observação das falas de
alguns catadores entrevistados:
Tudo eu procurei trabalho, botava as conhecidas pra arrumar, mas não arrumou aí
foi o jeito ficar aqui mesmo. (catadora, 44 anos)
Trabalho hoje em dia, emprego é muito difícil. Emprego só tá sendo pra quem tem
bom estudo, que antigamente todo mundo, todo mundo trabalhava sem precisar de
estudo. Hoje, todo mundo se forma, a maioria do povo tudo é formado e não tem um
emprego. A maioria o que, a maioria é tudo desempregado, não tem emprego. Se
quem é formado, o emprego tá difícil e quem não tem o segundo grau, o primeiro
grau, pronto. […] Quer dizer, aquele povo que não tem o primeiro grau vai morrer
tudo de fome, porque não vai ter trabalho. E quem tem, quem já terminou os
estudos, fez curso, fez curso, anda atrás de emprego e não tem. Devia encontrar,
porque não sabe, não já fez todo o curso? Não tem meu filho, porque tá difícil.
(catadora, 35 anos)
Vim pra catação porque não tinha outra coisa. Emprego hoje em dia não tem mais.
Aí a catação foi a saída que eu encontrei pra continuar vivendo, né. (catador, 23).
4
Art. 2º da Consolidação das Leis do Trabalho: “Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva,
que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço”.
5
Vasopollo pontua que “a liberalização das várias formas de trabalho flexibilizado, precarizado, de trabalho
temporário, empreitado, não tem o apoio de qualquer amortecedor social, quer dizer, uma garantia de renda, não
apenas para os desempregados, mas também para todos aqueles trabalhadores precarizados que sofrem
37
forma a permitir supressão dos benefícios sociais conquistados pelos trabalhadores brasileiros
ao longo de décadas. Em muitos casos, os trabalhadores desempenham, como saída,
atividades por conta própria, sendo patrões e empregados de si mesmo. Muitas vezes, como
no caso dos catadores, a atividade constitui-se como última opção de sobrevivência. Nesse
sentido, Cacciamali afirma que “a lógica de sua atuação no mercado prende-se à
sobrevivência, à obtenção de um montante de renda que lhes permita sua reprodução e de sua
família, não tendo como meta explícita a acumulação ou a obtenção de uma rentabilidade de
mercado” (CACCIAMALI, 2000, p. 166).
O desemprego formal “exacerba uma situação de total desamparo social para os
trabalhadores que passam para a informalidade” (LEROY, 2002, p. 131). Segundo Leroy,
freqüentes e longos períodos de interrupção da prestação de serviços, em uma época em que as várias formas de
trabalho intermitente e precário já estão convertidas em típicas.” (VASOPOLLO, 2005, p. 99)
38
trabalho de catação permite defrontar-se com uma atividade laboral que violenta o olhar do
arguto observador pela absurdidade da subsistência a partir do que já foi refugado pela
sociedade. É submeter-se à precarização estando já no limite máximo de precariedade.
É sobre essa categoria e seus sujeitos que nos debruçaremos a partir de então,
levando primeiramente em consideração outros fatores relevantes a sua origem, tais como a
alta produção de refugos materiais, a crescente preocupação ambiental e a existência de um
forte mercado de reciclagem, para em seguida lançar reflexões acerca das repercussões da
precarizante atividade de catação nos sujeitos que a exercem.
39
forte indústria de reciclagem – que se vale dos discursos ambientais para implementar e
incrementar suas atividades.
Embora as entrevistas e as etnografias por mim empreendidas junto a catadores de
materiais recicláveis não apontem a preocupação ambiental ou a sustentabilidade como
motivação para iniciar atividades de catação, trata-se de importante elemento ora favorável,
ora desfavorável ao trabalho do catador, porquanto há casos em que a assunção de atividades
sustentáveis subtraem objeto de trabalho daqueles trabalhadores precarizados.
De toda forma, essa atividade encontra-se envolta pelo discurso ambientalista,
seja como forma de dar suporte à atividade empresarial da indústria de reciclagem, seja para
minimizar simbolicamente a precarização vivenciada na atividade, como pude observar entre
os trabalhadores envolvidos em associações de catadores.
Nesse sentido, a catação de materiais recicláveis se inclui como o primeiro
momento de uma longa cadeia produtiva e pode-se dizer que surge como a possibilidade de
manutenção do sistema de vida global, como um meio de reencaminhar aquilo que fora
subtraído da natureza. É uma atividade que guarda consigo o potencial da renovação em busca
de uma homeosatsia artificial, vez que o homem interfere fortemente no sentido de romper a
tendência de auto-equilíbrio da própria biosfera. O escritor Ítalo Calvino já advertia no último
quarto do século passado à importância da reciclagem “para que ao menos parte do que
arrancamos dos tesouros do mundo não se perca para sempre, mas reencontre os caminhos da
recuperação e do aproveitamento; o eterno retorno do efêmero” (CALVINO, 2000, p. 99).
Na prática, a reciclagem é uma longa e complexa cadeia produtiva que envolve
todas as fases do processo de reaproveitamento daquilo que se tornaria lixo se não fosse
devidamente aproveitado. Vale lembrar que, embora as fases sejam normalmente realizadas
por diferentes sujeitos, já há projetos da iniciativa privada para dominar todo o processo de
reciclagem: coleta, seleção, processamento, retorno ao mercado. A implementação de projetos
como esses, poderia bloquear a brecha de sobrevivência que muitos indivíduos, sem outra
alternativa de renda, encontraram.
Em tempo, é importante salientar que a reciclagem encontra espaço diante da
constatação de que o lixo é um dos grandes problemas atuais e futuros, sobretudo levando-se
em consideração os elevados índices de consumo e descartabilidade dos produtos
consumidos. O lixo é qualquer objeto sem valor ou utilidade; aquilo que já não mais se deseja.
Portanto, subtraído de valor para quem o abandona. Conforme definição da American Public
Works Association (1975), “lixos são todos os resíduos sólidos e semi-sólidos, putrescíveis ou
não, excetuando as excreções humanas. Inclui desperdícios, despejos, cinzas, lixo de varrição
41
de ruas etc”. Interessante observar que essa concepção considera a produção de lixo a partir
de atividades antrópicas, porquanto em processos naturais não se considera a produção de lixo
no sentido que tratamos aqui.
A produção de lixo tal como se tem observado hodiernamente está intimamente
associada ao forte estímulo ao consumo e à brevidade dos ciclos cada vez mais efêmeros de
produção, consumo e desperdício. Baudrillard (1995), empreendendo profunda análise das
sociedades ocidentais contemporâneas (e por que não dizer, a sociedade globalizada),
apresenta o consumo como a moral do mundo contemporâneo, dada a importância conferida a
essa complexa dinâmica. Para o sociólogo francês, hoje em dia, cada vez mais, existe uma
evidência do consumo e da abundância, devido à multiplicação dos objetos, serviços e bens
materiais. Vive-se um mundo de relação com os objetos, vive-se o tempo dos objetos, isto é,
as pessoas existem e funcionam consoante o seu ritmo e em conformidade com a sua sucessão
permanente.
Com a abundância nas sociedades de consumo, podemos referir igualmente o
desperdício, que vem associado a este conceito. Todas as sociedades desperdiçam, gastam e
consomem sempre além do estrito necessário, pela simples razão de que é no consumo do
excedente e do supérfluo que tanto o individuo como a sociedade, se sentem não só a existir,
mas a viver. Dessa forma, Baudrillard leva-nos a reflexão de que o homem se humaniza pelo
desperdício do excesso e pela superação da simples utilidade (BAUDRILLARD, 1995, p. 39).
Na sociedade de consumo existem novas invenções, novos objetos, tudo para
incentivar o consumidor à compra de novas coisas, para existir constante renovação de
objetos. O consumo já está para além da necessidade. Para que a abundância se torne um
valor, é preciso que haja, não somente o bastante, mas demasiado:
A sociedade de consumo precisa dos seus objectos para existir e sente sobretudo
necessidade de os destruir. O “uso” dos objectos conduz apenas ao seu desgaste
lento. O valor criado reveste-se de uma maior intensidade no desperdício violento.
Por tal motivo, a destruição permanece como a alternativa fundamental da produção:
o consumo não passa de termo intermediário entre as duas. […] A destruição […] é
uma das funções preponderantes da sociedade pós-industrial. (BAUDRILLARD,
1995, p. 43)
produção e novo consumo. O autor referencia que ainda em 1978, Graville Sewell apontava a
dicotomia entre a obsolescência planejada e a produção de resíduos, afirmando que a
eliminação da primeira é a chave para a minimização na produção de lixo (LAYRARGUES,
2002, p. 181). Layrargues aprofunda sua crítica sustentando que a obsolescência planejada
está para além da materialidade dos objetos, há mesmo uma aproximação entre ela e a criação
de demandas artificiais, criando o que chama de obsolescência planejada simbólica, “que
induz a ilusão de que a vida útil do produto esgotou-se, mesmo que ele ainda esteja em
perfeitas condições de uso” (idem, p. 182). Aqui é possível aproximar as reflexões de
Layrargues com aquelas empreendidas por Baudrillard (1995), de que a criação de gadgets
(engenhocas – criação constante de dispositivos aparentemente novos e imprescindíveis)
impulsiona um consumo para além da necessidade.
Em que pese a nossa tendência cultural ao desperdício, a sociedade do consumo –
ou do hiperconsumo, como consigna Lipovetsky (2007) –, é o topos da produção de lixo que
se avoluma galopantemente como matéria morta na biosfera. A problemática tem recebido
destaque na imprensa, sobretudo nos últimos anos, quando os efeitos da produção exacerbada
de resíduos têm sido cada vez mais visíveis. A lotação dos lixões e aterros localizados em
áreas distantes das grandes cidades e a aproximação da ocupação urbana dessas áreas de
despejo desafina o coro dos contentes no que respeita a questão do que fazer com tanto
material desperdiçado.
Os dados mais recorrentes apresentados na rede mundial de computadores
(LIXO.COM.BR; RECICLAGEM.NET; PLANETA ORGÂNICO; ESPAÇO ECOLÓGICO
NO AR) indicam a taxa de produção de lixo entre os brasileiros como sendo de um quilo de
lixo por dia. Entre os norte-americanos essa taxa dobra, verificando-se a produção de uma
média de dois quilos diários de resíduos. Dados da Companhia Municipal de Limpeza Urbana
da cidade do Rio de Janeiro, apresentados no site da organização Rio Como Vamos, apontam
para um crescimento na produção de lixo domiciliar per capita de 8,9% entre os anos de 2003
e 2007. Os dados apresentados corroboram a afirmação de que as altas taxas de produção de
lixo tem relação direta com a maior capacidade de consumo: em bairros da zona sul, local
abastado da capital fluminense, a produção de lixo domiciliar chega a ser o dobro em relação
a outras áreas. O sítio virtual Espaço Ecológico no Ar também apresenta comparação entre os
produtores de lixo. Segundo os dados da Organização das Nações Unidas apresentados no
sítio, a taxa de produção de resíduos per capita entre os habitantes de países pobres é bem
inferior se comparada àqueles dos países ricos. Enquanto que os primeiros produzem uma
43
média de 0,27 kg a 0,6 kg por dia, os habitantes dos países ricos carreiam entre 0,82 kg a 2,7
kg diariamente.
Mas não é só no espaço urbano que o lixo tem-se amontoado como um
problema crescente. Sem dúvida esse é o mais visível, daí ganhar maior repercussão.
Contudo, até mesmo os oceanos têm formado grandes zonas de concentração de resíduos.
Recentemente descobriu-se que entre a o litoral do estado norte-americano da Califórnia e o
arquipélago havaiano há uma imensa área de lixo flutuante cuja área é estimada em um
milhão e trezentos mil quilômetros quadrados – maior do que a soma dos estados de São
Paulo, Goiás, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Em meio ao lixo, a natureza vai cedendo espaço
e mesmo praias praticamente desabitadas do Havaí vêm acumulando lixo que navega desde o
Japão, Coréia, China, Estados Unidos. Zonas de acúmulo de lixo flutuantes estariam sendo
formadas em outros quatro pontos do globo (PORTAL FANTÁSTICO, 2009).
Pode-se dizer que a preocupação ambiental é recente, tendo tomado maior vulto
na década de 1960. Assim, no final dos anos 1960 e início da década seguinte, o
ambientalismo surge com a constatação da brevidade das fontes de matérias-primas e de que o
ser humano é fator de degradação ambiental através de suas atividades culturais e, portanto,
deve ser ele a propor medidas que protejam o meio ambiente. As propostas esbarraram nos
planos de contínuo avanço econômico e alguns economistas se opuseram argumentando que o
ambientalismo arrefeceria o crescimento econômico.
Durante os anos 1980 foi desenvolvido o conceito de “desenvolvimento
sustentável”, que apareceu pela primeira vez na Estratégia de Conservação Mundial e ganhou
o mundo com o relatório da Comissão Mundial sobre Ambiente e Desenvolvimento (CMAD).
Segundo o relatório:
Isso não significa crescimento zero, mas dentro de limites “impostos pela
necessidade de se respeitar a integridade dos ciclos biogeoquímicos” (idem, ibidem). O ensaio
discute a possibilidade dos países ricos manterem seus altos padrões de consumo e
conseqüente produção de lixo diante de um sensível aumento de consumo das populações
periféricas. Em termos mais claros, Quintas (1992) aduz que a questão ambiental está no
cerne da relação sociedade-natureza, de forma que é o caráter dessa relação que deve ser
levado em consideração:
6
Conforme nota explicativa em seu próprio sítio virtual, o Compromisso Empresarial para Reciclagem
(CEMPRE) é uma associação sem fins lucrativos dedicada à promoção da reciclagem dentro do conceito de
gerenciamento integrado do lixo. Fundado em 1992, o CEMPRE é mantido por empresas privadas de diversos
setores.
46
orientações, mostra um catador puxando seu carrinho com um mundo dentro, fugindo de um
grande carro-monstro coletor de resíduos que tenta devorá-lo. Ao fundo, dois bonecos de
cartola com dinheiro na mão e a indicação: “Ecoelce”. A partir das entrevistas por mim
realizadas, é possível observar que não há consenso entre os catadores a respeito do projeto
Ecoelce. Muitos o vêem como benéfico, enquanto outros o percebem como um fator que
tende a dificultar o trabalho do catador.
Entre os catadores da Associação Reciclando, a posição ante o Projeto Ecoelce é
favorável, apesar de algumas ressalvas, pois, como diz Caio, 33 anos, um dos catadores
associados, “se esse galpão tá cheio é por causa das doações, por que material de rua mesmo
não dá pra manter”. O catador pondera que “para os catadores avulsos o Ecoelce não foi nada
bom, pois muitas pessoas que doavam os materiais a eles passaram a trocá-lo por bônus na
conta de energia”. Caio lembra que no início o projeto não envolvia catadores, mas que depois
começou a beneficiá-los. O jovem associado atribui a mudança à pressão feita pelos
catadores, através do Fórum Estadual do Lixo e Cidadania7 e da Rede Catadores:
De primeiro a Coelce não aparecia nas reuniões não. Ela começou a tentar negociar
com catador depois que houve uma pressão. Teve uma pressão em cima deles [...].
Até questão de planta, questão de adubo e o óleo [de cozinha refugado] eles já estão
trabalhando lá, coisa que era pra Prefeitura estar fazendo e não faz, né. (Entrevista
realizada em 10/12/08)
E continua dizendo que o Ecoelce contribui também para diminuir as saídas dos
catadores nas ruas, mantendo-os mais dentro do depósito, na triagem do material que chega
das trocas por bônus de energia:
Antes eles [catadores] ficavam na rua, agora já ficam aqui dentro. Aí já evita deles
estarem na rua porque eu acho que, por um lado, já é uma melhora, que é pouco,
mas é melhor que está na rua e tirar o mesmo tanto. E olha que com a queda do
material não tira né... É aquele velho detalhe que eu sempre digo, hoje em dia o
Poder Público não é pra dar cesta básica não, é a associação de catadores que eles
têm que apoiar. E eu discordo totalmente com a Prefeitura de dar cesta básica pra
catador porque só vai melhorar três dias a situação dele e aí? O cara não come só
três dias, ele come o ano todinho. (idem)
7
Em Fortaleza, o Fórum Estadual é promovido pela Cáritas do Brasil em parceria com a Pastoral do Povo da
Rua. Nele reúnem-se grupos de catadores e catadoras com o objetivo de discutir políticas pertinentes, fortalecer a
categoria, facilitar mobilizações e ensejar conscientização e educação ambiental aos catadores.
48
Das falas dos catadores é possível depreender uma postura favorável ao projeto
relativamente ao retorno conferido na prática à associação. Contudo, é interessante observar
que os trabalhadores, quando levam em consideração a atividade de catação como um todo,
sobretudo em relação àqueles que não estão ligados a cooperativas e associações – chamados
de catadores avulsos – fazem ressalvas, dizendo que o projeto reduziu o volume de coleta dos
materiais, haja vista que muitas casas deixaram de separar recicláveis para doarem aos
catadores em vista de destiná-los à troca por bônus na conta de energia. A fala de Marlene,
catadora da associação Reciclando, 44 anos, é bastante representativa da combinação de
preocupação com a categoria de catadores, mas a satisfação pelo fato de sentir-se diretamente
beneficiada pelo projeto Ecoelce:
O problema é que desde quando começou a Ecoelce, acabou tudo pra gente, pros
catadores porque todo mundo junta seus material porque essa rota aqui do canteiro
quase toda era minha, essa rota todinha. […] Mas foi bom. No começo eles diziam
que era ruim. No começo eu achava que era muito ruim. Porque dizia, pronto, agora
acabou-se. A gente vai viver de quê? E muita gente, os catadores mesmo que não é
da associação, eles tão juntando pouco material. […] No começo eu não concordava
de jeito nenhum, mas agora eu concordo. Concordo, porque eu fiquei aqui dentro
trabalhando né? Aí tem emprego pra mim, pra minha filha. […] Porque o material é
ela [Coelce] quem dá pela troca da energia. Aí todo mundo bota pra cá. A maioria
do material. (Entrevista realizada em 11/12/08)
tudo, aí dá pra ir pra frente. Agora com essa mudada de preço, né, que baixou.
(Entrevista realizada em 12/12/08)
É possível começar dizendo que o lixo não tem valor. Quando ele é descartado,
muitos consideram que não vale nada, mas a partir do momento em que é coletado,
transportado, armazenado, classificado, limpo, vendido e reciclado/reutilizado, ele se
51
transforma em mercadoria. Isto significa que seu valor inerente e seu valor inicial de
troca podem ser recuperados se o trabalho humano é incorporado. (BERTHIER,
2003, p. 196. Tradução livre)
de Vidro (Abividro), registra uma taxa de reciclagem de 45% em 2005, movimentado 3 mil
trabalhadores diretos e indiretos e operando numa margem de lucro de R$ 65 milhões.
Com esses índices, o Brasil aparece como um dos maiores recicladores de
materiais do mundo, na frente de grandes potências como Estados Unidos e Japão. Por
exemplo, o mercado brasileiro de sucata de latas de alumínio, em 2005, movimentou um total
de R$ 1,6 bilhão e gerou cerca de 55 mil empregos diretos. Nos EUA, o negócio envolve
3.500 postos de coleta e gira em torno de US$ 1.2 bilhão. Assim, o Brasil é o líder mundial de
reciclagem de alumínio. O Brasil também é o líder das Américas em reciclagem de
embalagens longa vida, com 23% de reaproveitamento, perdendo, no âmbito mundial, apenas
para a Alemanha e Espanha. No mercado de reciclagem de embalagens PET, o Brasil também
é líder. Consoante dados da Associação Brasileira das Indústrias do PET (ABIPET), em 2005,
o mercado brasileiro consumiu 374 mil toneladas de PET para embalagens e reciclou 174 mil
toneladas, mantendo o índice nacional de reciclagem de 2004, 47%.
Esses números e exemplos nos permitem avaliar quão pujante é o mercado da
reciclagem que, muitas vezes, passa despercebido como mercado menor, de mero
reaproveitamento do que não mais se quer. Em todas as pesquisas, há uma clara ascensão no
aumento do índice de reciclagem dos materiais com crescente movimentação de capitais, o
que denota uma valorização do lixo como fonte de lucros.
Trata-se de um processo produtivo que conta com o apoio dos fornecedores da
matéria-prima para esse rico mercado, os consumidores e produtores de resíduos. Reitere-se
que nesse processo o interesse econômico tem prioridade em detrimento do interesse
ambiental, daí que muitas vezes, conforme defende Layrargues (2002), a reciclagem
escamoteia seu cinismo.
O autor apresenta percuciente estudo para dar suporte à sua tese de que o discurso
ambientalista é dissimulado, porquanto pretende diminuir os danos ambientais alimentado por
interesses econômicos vultosos. Ademais, se a cultura eco-capitalista ambiciona ser
sustentável, impõe a mesma lógica de consumo insustentável levada a cabo nos países de
primeiro mundo e pelas elites terceiro-mundistas. Assim, o autor reflete sobre como a
educação ambiental tem sido processada nos diversos âmbitos da vida social, desde o
ambiente empresarial até o doméstico. Nesse contexto, a necessidade de separar o lixo e
“fazer a coleta seletiva” se impõe como regra de bom senso, mas em momento algum
tenciona-se questionar as razões para assombrosa produção de rejeitos, preferindo-se o
reducionismo no tratamento das conseqüências e terminando por passar ao largo de uma
reflexão crítica e abrangente das causas do problema, quais sejam “os valores culturais da
53
p. 191). Aqui voltamos a salientar que os interesses imediatamente em jogo são mais
econômicos do que ambientais e sociais. Todavia, não se pode por isso entender que a
reciclagem deva ser abandonada; deve sim ser valorizada, mas há outras alternativas viáveis e
inclusive anteriores ao momento de reciclagem (como a redução e o reaproveitamento),
mesmo porque o próprio processo produtivo da reciclagem produz grande volume daquilo que
propõe reduzir: lixo.
Apesar da existência de um mercado de reciclagem bastante desenvolvido no País
e que movimenta altas cifras, grande parte do volume de material processado nas indústrias é
colhido (casqueirado ou catado) por sujeitos que vêem nos primeiros elos da cadeia produtiva
de transformação de resíduos, uma alternativa, ainda que extremamente precária, à falta de
trabalho, imprescindível à satisfação das necessidades elementares. Voltemo-nos, pois, a esses
indivíduos que palmilham as grandes cidades em busca de material destinado a suprir dupla
sobrevivência – dele próprio, imediatamente, e do meio ambiente, de forma mediata.
8
A política dos 3 Rs foi estabelecida como meta determinada na Agenda 21, documento elaborado por 170
países que participaram do encontro ECO-92, no Rio de Janeiro, marco para o movimento ambientalista
mundial.
55
da atividade. E são também eles os sujeitos sobre os quais incidem os efeitos da precarização
do trabalho, em seus corpos e em suas mentes.
Dessa forma, esboçar o perfil dos catadores de materiais recicláveis é ponto
fundamental para uma melhor compreensão de questões de fundo como discutir os impactos
da precarização nesses sujeitos, quais as discriminações sofridas na sua rotina de trabalho,
como eles percebem a discriminação sofrida pelo exercício dessa atividade e que estratégias
são praticadas ante ao estigma. Nesse contexto, além do perfil, impende-se conhecer um
pouco do cotidiano desses trabalhadores, identificando suas motivações e a representação do
trabalho pelos catadores.
A catação de lixo é uma atividade a qual se busca em situação de extrema
necessidade. Não só as dificuldades mais diretas desse árduo trabalho o tornam a escolha
apenas quando da falta de outra opção; fatores outros incluídos em um plano de
representações sobre o significado desse trabalho também concorrem para revesti-lo de forte
estigma e reforçar sua escolha como fruto da falta de possibilidade de escolha. O que termina
por lhe subtrair o caráter de escolha.
Como vimos, a reciclagem é uma longa cadeia de procedimentos que vai da coleta
ao retorno da matéria-prima já reprocessada. O elo indubitavelmente mais vulnerável da
cadeia é composto pelos catadores de materiais recicláveis, que se multiplicam nas ruas das
metrópoles do mundo, catando o refugo da sociedade de consumo na era da descartabilidade.
Nem por isso esses indivíduos são menos importantes no resultado final dos vultosos números
apresentados pela indústria de reciclagem, assim como nos avanços da sustentabilidade
ambiental; eles e elas também compõem a classe desses alquimistas do lixo, mesmo que
ocupem a camada inferior da cadeia. Parafraseando Bauman (2005), são refugos humanos,
reféns da crise do desemprego estrutural.
A catação de materiais aproveitáveis entre aquilo que já não é considerado útil por
boa parte da sociedade – o lixo – não é recente, embora tenha recebido maior notoriedade nos
últimos anos pelo aumento abrupto no número de pessoas praticando a catação (ou
casqueiração). É certo que outro fator que tem dado maior visibilidade à catação é o fato de
hoje ser possível ver seus trabalhadores nas veias e artérias de inúmeras metrópoles e mesmo
cidades pequenas. Anteriormente, muitos catadores atuavam diretamente nos lixões,
coletando objetos e comida para consumo direto ou para troca e venda com sucateiros
próximos aos locais de despejo.
Interessante estudo datado de 1991, coordenado por Santos (SINE, 2001), enfoca
as condições de trabalho dos catadores de lixo do Jangurussu (em Fortaleza/CE), que apesar
57
da denominação de aterro, seria mais bem classificado como lixão, uma vez que não havia,
sobretudo à época da pesquisa, as instalações e práticas de manejo e compactação do material
como deve ocorrer em aterro sanitário. Ribeiro & Lima (2000) chamam a atenção às
características das formas de disposição do lixo ao diferenciá-las:
Lixões a céu aberto também conhecidos como vazadouros são locais onde ocorre a
simples descarga dos resíduos sem qualquer tipo de controle técnico. É a forma mais
prejudicial ao ser humano e ao meio ambiente, pois nestes locais geralmente se
estabelece um economia informal, resultante da catação dos materiais recicláveis e
ainda a criação de animais domésticos que posteriormente são consumidos.
[…]
Segundo a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), aterro controlado é
“Técnica de disposição de resíduos sólidos urbanos no solo, sem causar danos ou
riscos à saúde pública, e a sua segurança, minimizando os impactos ambientais,
método este que utiliza princípios de engenharia para confinar os resíduos sólidos,
cobrindo-os com uma camada de material inerte na conclusão de cada jornada de
trabalho”. (RIBEIRO & LIMA, 2000, p. 52-3)
O tomate / plantado pelo senhor Suzuki, / trocado por dinheiro com o supermercado,
/ trocado pelo dinheiro que dona Anete trocou por perfumes extraídos das flores, /
recusado para o molho do porco, / jogado no lixo / e recusado pelos porcos como
alimento / está agora disponível para os seres humanos da Ilha das Flores.
O que coloca os seres humanos da Ilha das Flores depois dos porcos na prioridade de
escolha de alimentos é o fato de não terem dinheiro nem dono. (FURTADO, 1989)
9
A temática da invisibilidade dos catadores é abordada no filme curta metragem Bilu e João (2005), de Kátia
Lund, que retrata o cotidiano de duas crianças que sobrevivem catando materiais recicláveis na cidade de São
Paulo.
59
Trata-se, é bem verdade de uma representação das diversas ilhas das flores
existentes no país, como o Jangurussu no Ceará, pois que a Ilha das Flores verdadeira,
localizada na cidade de Porto Alegre (RS), apresenta realidade bem diversa daquela exposta
na pertinente e atualíssima reflexão de Furtado (1989).
Outrossim, os relatos pessoais de Carolina Maria de Jesus, ainda na década de
1950, retratam momentos idos da busca de materiais a serem destinados a reaproveitamento.
A autora de “Quarto de despejo: diário de uma favelada” (JESUS, 2005) exercia atividades
como catadora e escreveu um diário sobre seu cotidiano, que inclusive virou enredo de
filme10. Em uma de suas anotações, Carolina diz: “Tudo quanto eu encontro no lixo eu cato
para vender” (idem, p. 9).
Ainda registrada em linguagem cinematográfica sob direção de Eduardo
Coutinho, o documentário Boca de Lixo (1992), apresenta o árduo cotidiano de catadores que
trabalham diretamente na rampa de despejo da Itaoca, em São Gonçalo, a 40 km da capital
fluminense. A lente registra o cenário do absurdo que confirma as palavras de Descartes
Gadelha acerca da disputa de espaço, material e alimento entre bichos-bichos e bichos-
homens.
Dessa forma, a catação de materiais destinados à inutilidade pode ser observada
em momentos pretéritos, não com a mesma freqüência e difusão de então, vez que diversos
fatores hodiernamente observados é que proporcionaram a multiplicação no número de
pessoas dependendo do lixo como meio de sustento.
Com o aumento do mercado de reciclagem e a instalação de indústrias de forma
geograficamente menos concentrada, difundiu-se também o negócio de atravessamento da
matéria-prima a essa indústria. Uma maior difusão no número de depósitos possibilitou (e
demandou) um maior número de pessoas trabalhando para manter cheios os pátios dos
sucateiros.
Em Fortaleza especificamente, informações obtidas diretamente com os
coordenadores do Fórum Estadual do Lixo e Cidadania local apontam para um abrupto
aumento no número de catadores nas ruas da capital cearense após a desativação do aterro do
Jangurussu, em 1998, quando foi substituído pelo Aterro Metropolitano Oeste, em Caucaia,
município conurbado com Fortaleza e localizado na Região Metropolitana de Fortaleza.
Muitos catadores freqüentadores do Fórum corroboram com a informação, afirmando que a
catação nas ruas ficou mais comum em meados da década de 1990, quando o aterro do
10
Em 2004, foi produzido o curta-metragem (intitulado “Carolina”) sobre a vida dessa empregada doméstica,
baseado em seu diário (JESUS, 2005) e em outras obras suas.
60
FOTO 01: Criança catadora de lixo FOTO 02: Criança catadora de lixo na indonésia
na Indonésia Fonte: PARKER, 2002, p. 2069.
Fonte: PARKER, 2002, p. 2069.
Ainda que a passos lentos – ou não tão rápidos quanto se espera que fosse, dadas
as condições de precariedade dos indivíduos que sobrevivem da catação –, os catadores de
materiais recicláveis têm alcançado, enquanto grupos particulares e enquanto movimento
nacional e globalmente articulado, importantes conquistas, sobretudo em termos de
visibilidade desse trabalho, o que é o primeiro passo para o reconhecimento da sua
importância para a sociedade.
11
O Fórum Nacional Lixo e Cidadania nasceu, em 1999, de uma iniciativa do UNICEF para abolir o trabalho de
crianças e adolescentes no lixo em todo o Brasil.
12
Programa da Organização das Nações Unidas encarregado de promover ações em favor das crianças e
adolescentes do mundo, no intuito de garantir-lhes direitos e vida digna.
13
A Cáritas Brasileira faz parte da Rede Caritas Internationalis, rede da Igreja Católica de atuação social
composta por 162 organizações presentes em 200 países e territórios, com sede em Roma. Organismo da CNBB
- Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, foi criada em 12 de novembro de 1956 e é reconhecida como de
utilidade pública federal.
14
Iniciada em 2002 pelo jovem, então seminarista, Júnior de Aquino, a organização é formada principalmente
por religiosos que dedicam parte de seu tempo aos cuidados com os moradores de rua e catadores de lixo
reciclável.
65
Segundo dados indicados por Abreu (2001, p. 33) de pesquisa realizada pelo
UNICEF, os catadores de materiais recicláveis são responsáveis pelo desvio de 10% a 20%
dos resíduos sólidos urbanos para o mercado da reciclagem, razão pela qual a autora os
denomina de agentes econômicos e ambientais, diversamente das nomeações usuais entre os
próprios trabalhadores, que se dizem catadores, carroceiros ou casqueiradores. Esse
percentual faz dos catadores os maiores contribuintes às indústrias de reciclagem, pois, não
obstante as dificuldades por eles enfrentadas e os baixos preços aplicados pelos
intermediários, são esses trabalhadores os responsáveis por 90% do material que abastece as
indústrias no Brasil (idem, p. 34), fazendo do país um dos maiores recicladores do mundo e
contribuindo para um mercado de alto giro financeiro, conforme vimos no capítulo anterior.
Mota (2005, p. 6) ressalta a importância da participação desses sujeitos na coleta
seletiva de lixo nas cidades tanto para a política de limpeza urbana como a de inclusão social
e proteção ambiental. Mendes & Sousa (2006) também apontam para a importância desse
trabalho para a “amenização do desperdício e redução da degradação ambiental que o lixo
provoca” (MENDES & SOUSA, 2006, p. 17). Medina salienta igualmente a importância da
catação para o gerenciamento de resíduos sólidos urbanos, com redução do desperdício e
proteção ambiental. O autor indica que os catadores indonesianos são responsáveis pela coleta
de um terço do lixo produzido, aumentando assim a vida útil dos aterros (MEDINA, 2005, p.
15).
Consoante os apontamentos de Berthier (2003), ao tempo que os vários campos
do conhecimento apresentam-se como capazes para solucionar o problema da excessiva
produção de rejeitos, pouco se tem feito no que pertine à produção e gerenciamento de lixo no
terceiro mundo. Nesse contexto, a reciclagem cria muitas fontes de trabalho para aqueles que
dependem do lixo. O autor ressalta que, queira ou não a sociedade reconhecer o fato, os
catadores, efetivamente, desempenham uma função na qual, muito embora seja
marginalizada, é relevantemente útil para o meio ambiente (BERTHIER, 2003, p. 208).
O trabalho dos catadores tem sido percebido, portanto como uma forma de dar
melhor destino a materiais recicláveis que seriam despejados nos já abarrotados lixões
urbanos (CALDERONI, 2003; RIBEIRO & LIMA, 2000; MACHADO et alli, 2006; MOTA,
2005).
Mas em meio a tais posicionamentos, não se pode deixar de refletir acerca da
precarização desse trabalho e das motivações subjetivas dos próprios catadores. Cumpre
questionar e perquirir o sentido dessa atividade para os sujeitos que sobrevivem a partir dela.
66
Daí ser importante ter a noção geral da catação de lixo como foi proposto neste capítulo, para
que a partir da literatura já existente acerca da temática, possamos nos debruçar com maior
clareza nos questionamentos motrizes da pesquisa, analisando-os a partir de fonte tríplice,
quais sejam o campo, a literatura e o diagnóstico publicado pela Prefeitura de Fortaleza.
Exemplos de opiniões opostas podem ser elencados a partir dos estudos de
Medeiros & Macêdo (2006), que, menos otimistas, lançam um instigante questionamento logo
no título de seu trabalho: “Catador de material reciclável: uma profissão para além da
sobrevivência?”! O texto é baseado em estudo realizado com catadores atuantes no município
de Goiânia (GO), apontando a reciclagem do lixo urbano como atividade emergente após
movimentos ambientalistas. Contudo, as autoras ressaltam que, apesar das vantagens
ambientais, o que sobressai é o aspecto econômico. Assim, para muitos trabalhadores, a
reciclagem constitui único meio de sobrevivência diante de um mercado de trabalho
essencialmente excludente. As autoras ressaltam a periculosidade da atividade e os riscos à
saúde a que são expostos os trabalhadores. Assim, se o trabalho de catação é meio de
inclusão, ou de busca de cidadania como fora exposto a partir de reflexões de outros autores,
para Medeiros & Macêdo
trata-se de uma inclusão perversa, pois como se pode verificar, com a lucratividade
assegurada pelos processos de reciclagem, estes estão sendo realizados por pessoas
de diferentes segmentos e até mesmo por organizações terceirizadas, o que conduz
paulatinamente para nova exclusão dos catadores (2006, p. 70)
referem-se a 906 catadores e catadoras com os quais foi aplicado questionário diretamente. O
diagnóstico do IMPARH foi realizado em mais de quarenta, dos 114, bairros da capital
cearense e os dados mostram que 71,7% da população de catadores está concentrada nas
regionais III, IV e VI. Vale ressaltar que a regional VI concentra o maior percentual de
habitantes da Capital e caracteriza-se por ser composta de bairros com parca infra-estrutura
sanitária e urbana, sendo a região que abriga o aterro do Jangurussu, hoje desativado, mas
ainda destino de 20% do lixo doméstico de Fortaleza, que passa pela usina de triagem,
funcionando em más condições.
A pesquisa estima que haja de seis a oito mil catadores e catadoras de materiais
recicláveis circulando por uma cidade que produz cerca de noventa mil toneladas de lixo por
mês e recicla apenas 4,9 mil toneladas das 15 mil toneladas potencialmente recicláveis, o que
mostra um baixíssimo aproveitamento do potencial de reutilização dessas matérias-primas que
se perdem por falta de adequadas políticas públicas de coleta seletiva e conscientização da
população acerca do problema. Importante inserir esses dados dentro de um contexto que
apresenta Fortaleza como uma metrópole de aproximadamente 2,4 milhões de habitantes e
sediadora de 66% dos estabelecimentos comerciais registrados no estado do Ceará, o que nos
remete à reflexão da relação entre consumo e produção de lixo.
Os milhares de indivíduos que circulam na imensa urbe em busca de materiais
recicláveis e sobrevivência são, na maioria das vezes, chefes de família que têm na atividade
sua principal ou única fonte de renda, sendo 75,6% de homens e 24,4% de mulheres. Dada a
exigência de força física, as mulheres são minoria entre os catadores, mas se destacam na
coordenação de grupos e organizações. A força de trabalho de crianças e velhos corresponde a
14% do total de catadores e o nível de escolaridade é muito baixo: 95% deles concluíram, no
máximo, o ensino fundamental e há um razoável percentual de analfabetos, 22,6%. Ainda
sobre a escolaridade dos catadores, o percentual dos que não estão estudando atualmente
(90,9%) é alarmante, uma vez que se trata de uma população jovem e com pouco tempo de
estudo. Desses 90,9%, 68% alegam a necessidade de trabalhar como motivo de terem parado
de estudar. Esse dado acerca da motivação já os alerta a refletir sobre os posicionamentos
expostos no tópico anterior, suscitando questionamento acerca do reconhecimento subjetivo
por parte do catador da importância ambiental do seu trabalho. É possível depreender a partir
desses dados que a motivação primeira relaciona-se mais à necessidade de sobrevivência
diante da dificuldade de inserção no mercado formal de trabalho.
Dos entrevistados, 74,4% têm filhos, sendo que 46,3% destes têm de um a dois
filhos. A maioria deles (38,1%) é natural de Fortaleza e 94% têm casa (a pesquisa não faz
69
distinção entre casa própria ou alugada). Deste percentual, 13,6% deles dormem alguns dias
na rua durante a semana, o que pode ser explicado pelas longas distâncias que os catadores
percorrem e a necessidade de se anteciparem ao horário da coleta do caminhão de lixo. Os
catadores procuram passar um pouco antes do caminhão de lixo, pois este já está disposto
para ser recolhido. Ainda sobre a jornada de trabalho, a pesquisa da Prefeitura de Fortaleza
(2006) indica que a grande maioria, 71,4% prefere catar sozinho.
É interessante observar que os dados apresentados estão em total conformidade
com as informações obtidas diretamente com os catadores entrevistados por mim, que se
posicionaram, pela preferência em sair à rua sozinho alegando, em todos os casos, a
imprevisibilidade do comportamento alheio e a possibilidade de ser imputado por uma ação
reprovável do companheiro.
É mais melhor, a gente andar só e Deus mesmo. Porque a gente sair só, a gente faz
as coisas mais melhor. Porque ninguém sabe hoje em dia do coração dos outros, de
ninguém. E eu trabalho certo, aí vem outro querendo me acompanhar, ele pode até
chegar num canto, encontrar uma coisa fácil e carregar. Aí o quê que se torna? Aí
ele bole só, tira as coisas do povo, qualquer coisa ele bole, aí quem vai levar a culpa
é eu, quem tá andando mais ele, ele anda mais eu né? Se eu disser assim: “olhe não
faça isso rapaz, não é coisa”. Tem quem dê fé não, quando dá fé, tem alguém que
faça, tem alguém que dê fé. (Marlene, catadora da Associação Reciclando, 44 anos,
entrevista realizada em 11/12/08)
Rapaz, em primeiro lugar eu faço com Deus, mas eu só ando só. Antigamente eu
andava com a minha esposa, mas hoje em dia ela toma de conta do nosso filho e fica
em casa, mas antigamente eu andava mais a minha esposa, eu e ela. (Antônio,
catador do depósito de Zé Bezerra, 38 anos, entrevista realizada em 19/11/08)
Eu prefiro só. Porque às vezes você sai com alguém, eu não digo com alguém aqui
da associação, mas às vezes você pega um carroceiro e sai e você não sabe qual é a
intenção daquele cara. Porque muitas vezes é como as pessoas dizem, tem catador
desonesto no meio dos catadores honestos. Às vezes o cara passa, chega ali aí vai
perguntar num negócio daquele se o cara ver a cadeira daquela e gostar de alguma
coisa ele não vai pedir não. Muitas vezes a intenção dele, ele pega, tira e joga dentro
do carro e... e muitas vezes uma viatura dessa pára e o cara não quer saber não, você
vai apanhar até não querer mais. Por isso que à vezes eu prefiro andar só. (Caio,
catador da Associação Reciclando, 33 anos, entrevista realizada em 10/12/08)
70
Rapaz, eu nunca gostei de andar de dois, porque muita gente pensa que todo
carroceiro é ladrão, o cabra que anda assim juntando essas coisas, mas num é não.
Aí eu sempre andava só, porque as vezes num meio de um tem um sem-vergonha no
meio, né? O cabra faz uma coisa, rouba a casa duma pessoa, aí eu vou levar a culpa,
não tô certo? Aí andava só. Pronto. Chegava, pegava minhas coisas e ia embora, na
hora que não achava nada, pegava a carroça e vinha embora, comigo num tem esse
negócio de besteira não. (Geraldo, catador da Associação Reciclando, 51 anos,
12/12/08)
Eu só trabalho só, eu e Deus. Porque companhia não dá certo não, aí mexe nas
coisas dos outros, aí às vezes vai e não agüenta o tombo. E o nêgo só, não. (...) Tem
muita gente que anda só, tem muita gente que anda acompanhado. A maioria que
anda acompanhado é porque já é o destino querendo fazer alguma coisa de errado.
(Roberto, catador do depósito de Zé Bezerra, 31 anos, 19/11/08)
Eu gosto de entrar e sair sozinho e Deus. Sozinho e Deus, porque... Mas muitas
vezes eu, como eu peguei muita freguesia boa, muita reciclagem mesmo, o pessoal
me conhecendo, aí eu comecei a arranjar um jovem pra me ajudar, um conhecido
meu, pra quando a gente repartir o dinheiro. Aí ele dá maior valor andar comigo, ele,
porque eu sou desenrolado, eu desenrolo mesmo! (Paulo, catador do depósito de Zé
Bezerra, 35 anos, entrevista realizada em 19/11/08)
15
O salário mínimo vigente ao tempo da pesquisa realizada pela Prefeitura Municipal de Fortaleza era R$
300,00.
71
Os riscos? É pegar uma doença. Comer coisa do lixo e se... comer coisas que às
vezes a fome obriga, né. Porque a mistura do comer é a fome, viu. Pode ser qualquer
comer, que a mistura é a fome. A fome... a mistura é a fome. Uma vez eu achei uma
panela de arroz, uma vasilha de arroz, aí eu levei lá pra favela, aí eu comecei assim a
72
coisar e começou a soltar um cheirinho, aí eu pensei que era ervilha, né, eu pensei
que era outras coisas, né, dentro do arroz. Aí eu estranhando, né, mas eu digo, eu
vou levar assim mesmo, porque tem um bocado de bruxo na favela que come é tudo
aí levei. Aí começaram a esquentar o arroz lá, aí eu provei, aí tinha um negócio véi
amargando, aí eu, rapaz, isso aqui não é o que eu estou pensando não (risos), aí era
cocô, não sei de... de gato, misturado com de cachorro, porque cachorro come ração
e caga assim diferente, né?! Aí tudo misturado, parecia um coquetel assim, o arroz,
macho (risos). A negada não pensou duas vezes não, a fome; encheram cada um um
prato, as mãos, ainda beberam e ainda vieram perguntar se tinha era mais. (Paulo,
catador do depósito de Zé Bezerra, 35 anos, 19/11/08)
Deus pode livrar nós de uma doença aqui, porque, realmente que Deus sabe, porque
um trabalho desse aqui, a gente tá trabalhando por que tem precisão. E Deus livra
nós de todas as doenças aqui. Se Deus não livrar, porque eu vejo quem trabalha lá
nos apartamentos, morre das piores doenças, morre do câncer. Rico morre do câncer.
Quem já viu rico andar com as mãos sujas? Se pegar na sua mão bem limpinha mas
quando ele sai ele lava com álcool. E quando rico morre, morreu de quê? Do
coração, morreu da pior doença. Né não? Nunca vi dizer que o rico morresse de
doença. Morreu do coração. Morreu largando os pedaços do câncer, mas a família:
“foi do coração”. Muitos deles ó, lá do hospital vai pro cemitério que não pode vim
mais pra casa. É mais fácil nós cair doente, morreu de que? Caiu doente e morreu do
coração. Mas é mais fácil um que nem nós, que vive na sujeira, morrer do coração
de que do câncer. Que nós não tem orgulho de pegar numa coisa suja, nós não tem
orgulho de você pegar na minha mão e você ir bem ali e lavar a sua mão com álcool,
porque você tá com nojo de nós, você tem? Se você tivesse esse orgulho todinho,
você não se sentava numa ruma de lixo dessa pra conversar com a gente. Sentou até
no chão, que nem ontem eu vi você sentado ali no chão. Você não pode morrer
duma doença grande, que você não tem esse orgulho. Tá certo?! (Marlene, catadora
da Associação Reciclando, 44 anos, entrevista realizada em 11/12/08)
73
Andei atrás de trabalho, andei muito atrás de trabalho noutros cantos, não encontrei,
aí foi uma tia minha chegou, ela já estava trabalhando, ela já tinha o carro dela e me
chamou pra mim andar mais ela. (Marlene, catadora, 44 anos)
Eu sonhava em ser alguém na vida, né. Em ser um bombeiro, um doutor... mas não
tive chance, fazer o quê né, irmão!? (Antônio, catador, 38 anos)
imperativa, porquanto o catador, sozinho, não tem como juntar grande quantidade de material
além de não ter apoio e deter pouco conhecimento dos aspectos logísticos da cadeia de
reciclagem (MEDEIROS & MACÊDO, 2007, p. 80). Os deposeiros, portanto, estabelecem os
preços e muitas vezes submetem o catador à sua dependência em troca do uso do carrinho,
considerado entre os catadores, um objeto conferidor de status e de difícil obtenção dado o
alto custo para o seu padrão de vida. Estabelece-se assim, uma relação paternalista que limita
a possibilidade de venda do catador para outros depósitos, submetendo-se aos preços e
condições impostos pelo deposeiro.
Esse aspecto pode ser observado mesmo em outros países, tal como mostra as
pesquisas de David Wilson et alli (2006, p. 800), que apontam para a existência de uma
hierarquia na rede de reciclagem que inicia no catador e se encerra na indústria. Hayami et alli
(2003, p. 17), por sua vez, apresentam essa relação como uma dinâmica de concorrência, em
que muitas vezes, a depender da rentabilidade proporcionada por um catador, o deposeiro
oferece melhores condições a fim de atrair o trabalhador, o que confere certo poder de
barganha aos catadores. Todavia, esse poder de barganha é balizado pelo espaço que ocupa o
deposeiro e pela necessidade que o catador tem de vender seu material a ele, sobremaneira
quando depende dele para utilizar sua principal ferramenta de trabalho, o carrinho, e quando a
indústria exige uma série de pré-processamentos que exigem uma melhor organização e maior
volume de material. Assim é que Medina (2005, p. 20) considera como oligopsônio o controle
de mercado exercido pelos deposeiros, vez que são poucos compradores para muitos
vendedores (o inverso da relação de oligopólio). O autor chega a dar o exemplo de ganhos do
deposeiro acima de 300% em cima dos materiais comprados dos catadores.
Daí que todos esses autores que diagnosticam o referido problema (MEDEIROS
& MACÊDO, 2006; WILSON, 2006; MEDINA, 2005) propõem o associativismo como
alternativa à dependência ante o deposeiro. Como vimos, o Movimento Nacional dos
Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR) tem como pauta reivindicatória básica a luta
pelo “controle dos catadores sobre da cadeia produtiva de materiais recicláveis”, o que vai de
encontro com a realidade atual, em que os deposeiros figuram, no mais das vezes, como
principais atravessadores diretos dos materiais recolhidos pelos catadores. Segundo a
pesquisa, não há a consciência por parte da maioria dos catadores de que organizados em
categorias (associações ou cooperativas) teriam mais força e representatividade.
Indagados sobre quais são as perspectivas pessoais de futuro, apenas 4,5%
disseram não ter nenhuma, 6,7% crêem que continuarão catando materiais recicláveis, 11,1%
dizem que pretendem estudar para poderem ter mais opções de trabalho, 16, 8% pretende
75
O primeiro local visitado foi o depósito de seu Zé Bezerra, com quem estabeleci
prévio contato por telefone. Desde o princípio o deposeiro colocou-se à disposição, não
apresentando resistência à minha intenção de fazer a observação in loco. Já no caminho do
Centro da cidade ao Tancredo Neves, a transição da paisagem urbana exposta na tela da janela
do ônibus me chamou a atenção: a intensa movimentação de carros, os prédios elevados, ia
dando lugar a uma paisagem mais cor-de-tijolo e de mais fácil visualização do céu, dada a
inexistência de prédios altos no bairro.
16
No Brasil, as sociedades cooperativas são juridicamente regidas pela Lei nº 5.764, de 1971.
78
FOTO 03: Entrada do terreno do depósito de Zé FOTO 04: Foto com vista partindo da área de
Bezerra. pesagem para a entrada principal do depósito.
Fonte: Foto do autor, 2008. Fonte: Foto do autor, 2008.
79
FOTO 05: “Escritório” de Zé Bezerra. FOTO 06: Catador bebendo água na área de
Fonte: Foto do autor, 2008. pesagem.
Fonte: Foto do autor, 2008.
Todo o espaço do depósito era possível de ser visualizado de qualquer ponto, uma
vez que não há construções no meio do terreno, havendo apenas grades improvisadas para
separar os materiais por tipo e a área de depósito do material daquela onde ficam estacionados
os carrinhos. No centro do terreno dois caminhões bem velhos ficavam estacionados em
80
direção ao segundo portão, que dá para a mesma rua do portão por onde entram os catadores e
por onde eu entrei e ao lado do qual o deposeiro estacionava seu carro, uma caminhonete S10
com aparência bastante desgastada.
No fundo do depósito há duas construções retangulares de tijolos aparentes. Uma
servia de depósito para papelões e derivados e a outra consistia numa pequena casa onde o
deposeiro disse estar morando temporariamente, após sua mulher o ter abandonado e porque o
homem que ficava lá, cuidando do depósito tinha medo de ficar a noite, não obstante a altura
do muro e a existência de cerca elétrica instalada por todo o seu perímetro. Aqui é possível
observamos o valor que tem sido atribuído, cada vez mais, ao lixo, que, como bem anotam
Meirelles & Gomes (2008, p. 9), “passou a ser tratado como uma commodity”. Apesar da
preocupação com a proteção do depósito, quando perguntado se já tinha havido roubo de
material o catador disse que não, que era tranqüilo e que ele não ficava com medo de ficar só
lá a noite porque estava sempre “de cima” com sua “máquina” (arma de fogo) que guardava
em sua casa.
O carro sendo dele, o cara só pode vender aqui. Agora quando o carro é próprio da
pessoa mesmo a pessoa vende aonde quer. […] Eu só vendo fora se o preço tiver
melhor. Ele mesmo sabe! Às vezes eu vendo aqui no vizinho. Ele pega, aí é maior
onda. Aí ele diz: “é quando você quiser vale [dinheiro emprestado a ser descontado
81
no apurado da catação], não sei o quê, e tal, aí não tem”. (Roberto, entrevista
realizada em 19/11/08)
Só vendo pra ele, porque o carrinho é dele, não pode vender pra outro depósito não.
[…] Porque a gente chega aqui aí deixa o documento, né, pra pegar o carro. Se não
deixar o documento, tem que ter alguém que trabalhe dentro do depósito que fique
responsável por nós, aí nós pega o carro, aí ele dá o carro pra trabalhar, só que o
material que nós arrumar tem que vender a ele, porque o carro é dele. Não pode
vender noutro canto, se quiser vender noutro canto tem que pegar o carro do outro
depósito pra vender lá. Os depósitos não aceitam. (Antônio, entrevista realizada em
19/11/08).
O carrinho sendo da reciclagem o cara vende aqui. Pode vender noutro canto mas
não é bom não, porque atrasa a pessoa. […]No sentido de que você está trabalhando
pra ele aqui [referindo-se a Zé Bezerra], eu tô trabalhando pra ele, pego um carro
desse, ele gasta muito, tá entendendo? Aí se eu for daqui pra Aldeota pegar um
material bom, como papel branco, ferro de construção, alumínio, essas coisas, aí se
eu vier lá da Aldeota, lá da Antônio Sales, donde eu estou falando, tem vários
depósitos de lá pra cá. Aí se eu passar por lá e deixar minha mercadoria, já me
atrasa. Tá entendendo?, o atraso nesse sentido que eu tô dizendo é a traição. Tô
traindo a pátria. Aí Deus não vai mais me dar oportunidade. (Paulo, entrevista em
19/11/08)
Zé Bezerra, sempre vestido de forma muito simples e com roupas velhas, tal como
os catadores, reiterava que ali eles trabalhavam com o refugo da sociedade e que ali havia dois
tipos de lixos, o lixo lixo e o lixo humano, que eram os catadores. De toda sorte, o carrinho
utilizado pelos catadores é de propriedade do deposeiro, que afirmou variarem entre R$
100,00 e R$ 150,00, o que fez apontando-me um carrinho novo, precariamente pintado com o
nome do depósito e, em seguida, comparando-o com outro, já bastante usado e de menor
tamanho. Interessante que durante as entrevistas, feitas no dia seguinte, os catadores
entrevistados disseram que o carrinho vale mais, variando de R$ 200,00 a R$ 350,00.
O deposeiro entrou no ramo por intermédio de seu pai, que já tinha depósito há 26
anos, e inclusive cuida do depósito “filial”, localizado a cinco quadras daquele, no bairro
Jardim das Oliveiras. Apesar de ter trabalhado como caminhoneiro e com apicultura, Bezerra
falou que o negócio vale à pena e que chega a movimentar R$ 1.000,00 diariamente. Quando
falava do seu trabalho, o deposeiro sempre ressaltava a importância social do depósito,
dizendo que todos os catadores ali tinham ficha corrida.
82
Todos aqui já foram presos e muitos são procurados. É por isso que eu não faço
ficha de ninguém aqui. Um dia chegou a Prefeitura com negócio de querer fazer
cadastramento dos catadores e eu disse que não ia fazer esse negócio não. Rapaz,
negócio de governo é tudo esculhambação, pra quê que eles querem fazer
cadastramento? Que jeito vão dar? Esse pessoal precisa é trabalhar mesmo e a gente
aqui faz mais que esses programas sociais aí que falam que no final das contas só
serve pra roubar, desviar dinheiro. […] Ora, se a gente que faz o trabalho aqui que
eles não fazem, agora vão querer cobrar de mim. Rapaz, aqui a gente é igual aquele
cara, que tirava dos ricos pra dar pros pobres, como é o nome... Robin Hood, né?
Pois é ele mesmo! Porque governo mesmo não faz nada não, só roubar, se eles
roubam de lá porque que eu não vou ser malandro de cá?! (Zé Bezerra, 18/11/08)
FOTO 09: Construções no fundo do terreno para FOTO 10: Casa do deposeiro nos fundos do
depósito de material já separado. terreno.
Fonte: Foto do autor, 2008. Fonte: Foto do autor, 2008.
A dinâmica do depósito tem início bem cedo pela manhã; por volta das cinco
horas os primeiros catadores já tomam seus carrinhos e “desabavam no meio do mundo”. A
partir dali, o depósito começava a receber os catadores que chegam de jornadas noturnas e
vinham deixar o material coletado. Os catadores chegam, estacionam seus carrinhos, bebem
água e após “pararem para respirar”, separam o material – se já não viesse separado,
geralmente em sacos de ráfia ou em fardos amarrados por barbantes – e colocam sobre a
superfície da balança. Zé Bezerra faz a pesagem e anota o valor do material no caderno. Cacá
e Paulo, dois catadores que trabalham internamente no depósito – separando os materiais
enchendo os caminhões, dentre outros serviços gerais – auxiliam a pesagem. O deposeiro,
sempre atento, me garantiu que nunca perdeu na pesagem, inclusive, um catador que estava
próximo disse, em tom de brincadeira, que é mais fácil o contrário, eles saírem perdendo para
a balança de Bezerra, que não tem qualquer marca de aferição de regulagem. Ao final do
processo, o deposeiro soma o valor devido ao catador e paga-lhe em espécie, ou então
83
desconta dos vales anteriormente concedidos. A venda de materiais não é realizada apenas por
catadores, mas também por pessoas da comunidade que vendem materiais acumulados
domesticamente, como latinhas, garrafas e recipientes. Dessa forma, observei quando uma
garota de aproximadamente doze anos chegou em sua bicicleta com alguns sacos com
material reciclável, pelo que conseguiu R$ 2,20. Noutra oportunidade, uma senhora trouxe
algumas panelas velhas e latinhas, e, apesar de reclamar do baixo preço, aceitou a permuta.
Enquanto as conversas no “escritório” de Zé Bezerra iam sendo revezadas
conforme entravam e saiam os catadores, Cacá e Paulo separavam e limpavam o depósito,
colocando os materiais de mesmo tipo próximos ou em compartimentos improvisados, ou
mesmo jogando-os dentro dos caminhões. Quanto ao carregamento dos caminhões, observei
em uma das visitas que fiz ao depósito que o caminhão que se encontrava estacionado dentro
do depósito, semi carregado de papelão, tinha um aguador de grama em cima do monte de
material molhando o material, perguntei ao deposeiro o motivo. Rindo, Zé Bezerra me disse
que era “pra não pegar fogo, porque sempre vai alguém fumando lá em cima, aí pode o
material pegar fogo”. Logicamente a minha pergunta era mais pra constatação do que eu já
supunha ser o motivo para o encharcamento do material: aumentar-lhe o peso. Essa
confirmação me veio quando percebi o deposeiro falando pra Cacá que recolocasse o aguador
mais pra trás, para molhar o resto do papelão para que o peso ficasse uniforme.
FOTO 11: Um dos caminhões do depósito. FOTO 12: Catador levando material para o
Fonte: Foto do autor, 2008. caminhão.
Fonte: Foto do autor, 2008.
A dinâmica do depósito também conta com alguns compradores de materiais, seja
em pequena ou mesmo em grande quantidade, como donos de indústrias de reciclagem, que
vêm negociar com o deposeiro algum material específico. Assim, observei um senhor que foi
ao depósito em busca de uma janela, e de fato a encontrou, do tipo semelhante à que queria, e,
apesar de reclamar do preço estipulado por Zé Bezerra, levou o objeto. Além dessas visitas
“destoantes”, a compra de dinheiro trocado abastecia o deposeiro de moedas, necessárias para
o pagamento em espécie dos catadores e de forma precisa. Assim, para que o deposeiro
84
contasse sempre com moedas em quantidade razoável, Zé Bezerra compra moedas em troca
de “dinheiro graúdo”. Em uma das visitas pude observar quando chegou um senhor
perguntando se Bezerra queria cinqüenta reais de moeda naquele dia. O deposeiro disse que
sim, e passou-lhe uma cédula no referido valor, mas abriu o saco de moedas trazido pelo
senhor e contou, uma a uma, as moedas, sendo assistido atentamente pelo trocador.
Interessante observar que em momento algum o depósito pára. A dinamicidade
preenche cada momento do dia, naquele espaço. Enquanto Bezerra pesava, Paulo e Cacá
organizavam o material e catadores chegavam já pegando as bacias para separar o seu
material, ao tempo que outros já tinham pesado e encontravam-se bebendo água ou café,
descansando.
FOTO 13: Área central do depósito. FOTO 14: Área lateral para depósito de material
Fonte: Foto do autor, 2008. separado por tipo.
Fonte: Foto do autor, 2008.
RUA
17
O desenho é apenas um esboço de planta baixa do depósito visitado, não guardando precisas proporções com
as medidas reais.
86
FOTO 15: Fachada da associação. FOTO 16: Pátio após o portão principal de onde se
Fonte: Foto do autor, 2008. vê o elevador e os prédios centrais.
Fonte: Foto do autor, 2008.
de refrigerante, que vêm em grande quantidade por doação do Beach Park18, além de outros
doadores. Carol, funcionária responsável pela administração e recebimento do material doado
em função do projeto Ecoelce, disse-me que quando se está na época de bons preços de
material, chega-se a conseguir mais de mil reais quando o contêiner está completamente
cheio. Na época de final de ano, contudo, quando o ferro está custando quinze centavos o
quilo, obtém-se com o material do contêiner cheio, 550 reais.
O terreno conta com dois prédios centrais, paralelos entre si e com os muros
laterais. No prédio da direita de quem entra localiza-se o escritório, que dá acesso a um
banheiro interno, e uma sala de administração. No escritório, de ambiente limpo, com boa
iluminação, piso revestido, há uma mesa sobre a qual sempre há muitos papéis, agendas e o
aparelho para registro do material doado ao Projeto Ecoelce, em troca de bônus de energia. O
telefone fica em mesinha apropriada e atrás da mesa onde Carol fica a maior parte do tempo
vêem-se dois grandes armários de ferro, onde são guardados documentos, fichas cadastrais
dos catadores, registros de reuniões, contratos, enfim, é o principal arquivo da Associação
“enquanto não chega o computador”, diz Carol. Próximo à porta, encontra-se uma balança
analógica, sem uso devido à balança digital em uso, esta localizada no pátio. Ao lado do
armário há vassouras e alguns materiais como placas de computadores; no outro lado, um
extintor de incêndio. Em uma das paredes, de forma bastante visível, há um quadro branco
onde estão anotados nomes de grandes doações ou compras de material a serem realizadas,
separadas em uma tabela, por dia da semana. A tabela permite a organização das saídas do
caminhão para coletas ou compra de material de outras associações de catadores que superem
uma tonelada. Ao lado da secretaria, no pátio, em frente ao prédio da direita, há um elevador
industrial para ajudar no despejo do material dentro do caminhão.
FOTO 17: Pátio principal. Container e tambores FOTO 18: Caminhão disponibilizado pelo Governo
para depósito do material refugado ao fundo. do Estado à associação.
Fonte: Foto do autor, 2008. Fonte: Foto do autor, 2008.
18
Complexo turístico cuja atração principal é o grande parque aquático, localizado na pra de Porto das Dunas,
Região Metropolitana de Fortaleza.
88
FOTO 19: Cozinha. Vê-se a geladeira, FOTO 20: Cozinha. Vê-se o fogão e a pia.
liquidificador e louça. Fonte: Foto do autor, 2008.
Fonte: Foto do autor, 2008.
FOTO 21: Material acumulado no corredor entre os FOTO 22: Área de pesagem. Catador pesa material
prédios. trazido por doação ao Projeto Ecoelce.
Fonte: Foto do autor, 2008. Fonte: Foto do autor, 2008.
FOTO 23: Área atrás do prédio do escritório, onde FOTO 24: Coberta adaptada para guarda de
há cobertas improvisadas e depósito de bags. materiais coletados por catador.
Fonte: Foto do autor, 2008. Fonte: Foto do autor, 2008.
90
19
O desenho é apenas um esboço de planta baixa do depósito da associação visitada, não guardando precisas
proporções com as medidas reais.
91
FOTO 25: Galpão coberto para depósito de FOTO 26: Galpão coberto para depósito de
materiais separados por tipo. materiais separados por tipo.
Fonte: Foto do autor, 2008. Fonte: Foto do autor, 2008.
porque aqui a gente tem mais liberdade, né, pra fazer as coisas. Porque casa de
família você sabe como é, né, é mandando é reclamando, não tem horário pra
almoço, não tem hora pra fazer nada. Aqui é muito melhor! (relato de 09/12/08)
reciclagem não é ruim não, é bom! Só que não tem é apoio do Poder Público. É
diferente de você ver o caso de Belo Horizonte20, desses outros cantos que o Poder
Público apoia mesmo... O Poder Público é osso! E eu acho como o cara disse lá, lá
em Belo Horizonte, infelizmente esses caras são parceiros, a gente não tem que ficar
omisso a nenhum órgão. Então quem carrega dentro das associações, dentro dessas
coisas são os catadores, não é órgão nem parceiro nenhum não. Apenas o parceiro
deve apoiar. (relato de 09/12/08)
20
Na cidade de Belo Horizonte/MG, há já um avançado processo de organização da categoria, que teve início no
princípio da década de 1990, com uma parceiria de catadores com a Pastoral da Rua naquela cidade, que deram
origem à Associação dos Catadores de Papel, Papelão e Materiais Recicláveis (ASMARE). Hoje em dia, a
ASMARE tem 250 associados, sendo considerada um modelo de associativismo de catadores, desenvolvendo
um trabalho de parceria junto a empresas, escolas, condomínios, órgãos públicos, entre outros, para a coleta de
recicláveis. A organização da produção é acompanhada pelo processo de resgate da auto-estima e da cidadania
dos catadores. A existência de uma longa história de organização e luta da categoria de catadores, fizeram de
Belo Horizonte um pólo de discussão de questões relacionadas ao gerenciamento de resíduos sólidos.
93
estender até às 18, 18:30 horas. À noite, quando a associação é fechada, um vigia assume a
responsabilidade. Novamente se observa o valor do material, o que enseja a contratação de
um vigilante, além de, obviamente, proteger outros bens ali existentes como geladeira, fogão,
balanças etc.
FOTO 27: Catadores separam material em área FOTO 28: Crédito de bônus de energia para
coberta localizada no pátio dos fundos. doadora do Projeto Ecoelce.
Fonte: Foto do autor, 2008. Fonte: Foto do autor, 2008.
FOTO 29: Escritório da Associação Reciclando. FOTO 30: Banheiro localizado dentro do escritório.
Fonte: Foto do autor, 2008. Fonte: Foto do autor, 2008.
de palestras e discussões e que para qualquer coisa tem de haver a decisão de todos. Todavia,
acerca da participação da Associação no Fórum Estadual do Lixo e Cidadania, Caio diz:
De primeiro a gente ia, mas agora a gente tá meio afastado. Eu não quis mais contato
com o pessoal do Fórum, sabe. Eu vejo aquilo ali muito monótono. Ou é uma
realidade de a gente partir pra cima do Poder Público ou então não dá, a gente marca
uma reunião e não aparece ninguém, é a coisa mais rara do mundo é aparecer. (relato
em 09/12/08)
É roubo na balança (risos), que ele [Zé Bezerra] endoida comigo. Eu digo “ei macho
deixa eu ver em baixo da bicha”. Pode prestar atenção quando ele pesa ali aquele
pesinho só falta subir ali, ele sempre sai ganhando. (entrevista realizada em
19/11/08)
A associação é melhor porque pra nós mesmos ela não rouba na balança, a balança
de lá rouba demais. […] Eu não sei o que eles botam, eles botam a balança pra o
peso não ser certo. […] E tudo lá é mais barato de que aqui. Tudo. (entrevista
realizada em 11/12/08)
96
Os pontos em comum estão mesmo no aspecto precário da catação, que até parece
menos desumanizado na associação, mas é exercido por aqueles mesmos homens e mulheres,
que buscam no lixo – assim considerado por muitos, mas não por eles – sua sobrevivência.
Tanto na associação como no depósito, todos são analfabetos ou semi-analfabetos.
Em relação ao cuidado com o meio ambiente, de acordo com os resultados da
pesquisa da Prefeitura Municipal de Fortaleza (2006), não percebo associação do trabalho dos
catadores com o meio ambiente, ou seja, enquanto as empresas incrementam sua imagem com
o discurso eco-eficiente, poucos catadores, mormente aqueles organizados associativamente,
justificam seu trabalho como uma atividade em prol da proteção do meio ambiente. Poder-se-
ia dizer ainda que não haja – ou se há, é muito incipiente – uma conscientização ambiental por
parte dos catadores. As observações nos depósitos confirmaram a análise dos dados da
pesquisa. No depósito, os catadores não fazem relação de seu trabalho com uma finalidade
como a proteção ambiental; algo que parece distante, diante da necessidade premente de
sobrevivência. Pensando com os tipos de ação social weberianos, o trabalho seria puramente
racional com relação a fins.
Já no caso da cooperativa a catação seria um trabalho realizado racionalmente
com relação a valores que balizariam a consecução dos fins puramente econômicos (WEBER,
1999, p.15-6). Esses valores são apresentados aos catadores quando da participação nas
instâncias de discussão, nos debates, nas oportunidades de falar e ser ouvido, quando eles
podem significar o seu trabalho para além da sobrevivência material, o que termina por
configurar um amplo processo formativo. Todos esses mecanismos passam a atuar como
mecanismos subjetivos de manipulação do estigma socialmente construído sobre a figura do
catador (GOFFMAN, 1982). Assim, Caio, que afirma que não se preocupava com questões
relativas ao meio ambiente e indica como momento de mudança de pensamento à sua ida a
Belo Horizonte (viagem à qual sempre se refere positivamente), explicita sua preocupação,
atribuindo um valor ao seu trabalho nesse sentido:
Eu acho que é o lado assim, eu tô sendo útil ao meio ambiente. Porque às vezes só o
que você vê na televisão é o destroço, é as coisas acontecendo aí às vezes as pessoas
dizem desse jeito assim... as pessoas só pensando no interesse financeiro e não
pensando no interesse do meio ambiente, tá entendendo. […] Eu vejo por esse lado,
não é pra mim mostrar pra político, pra mim mostrar pra ninguém não, porque eu
tenho que mostrar pra mim mesmo, eu sei que eu estou sendo útil ao meio ambiente.
(entrevista realizada em 10/12/08)
97
Rapaz, ele tá assim crente, mas não é crente ainda, ainda não foi passado no fogo,
ainda tá fácil para as tentações. Tu sai com um cara desse, macho, aí ele cai em
tentação, aí nem lembra que é crente21. Porque tem crente assim que ainda tá se
convencendo que é crente, ainda é só fachada. Pro cara dizer que é crente mesmo
tem que ser igual o ouro, passar pelo fogo mesmo. Ele ainda tá muito cru, tipo ouro
cheio de barro; ainda tem que passar pela lapidação, pelo fogo mesmo. Só aí pode
dizer que mudou mesmo. (relato em 18/11/09)
21
Zé Bezerra me havia dito que Antônio já tinha tido várias passagens pela polícia, mas que agora era crente e
estava mudando seu comportamento.
99
material de seu interesse. Alguns metros adiante, o catador parou novamente o carrinho na
calçada de um condomínio com cujo porteiro foi falar. O porteiro trouxe-lhe um molho de
chaves e seu Teixeira abriu o local onde fica armazenado o lixo do condomínio de seis blocos,
com 187 apartamentos. O catador abriu o portão do quartinho de lixo, externo ao condomínio,
e, após estacionar o carrinho, tirou gentilmente o banco quebrado que estava no carrinho e me
ofereceu. Então informou que aguardaríamos até mais ou menos 8:00 horas para que o
funcionário do condomínio trouxesse o lixo recolhido nos apartamentos. Nesse momento, seu
Teixeira arrumou o local de despejo do lixo e sentou-se para aguardar a chegada do material.
Enquanto o tráfego adensava com o caminhar dos ponteiros, seu Teixeira cumprimentava
alguns moradores que passavam para fazer caminhada matinal ou ir para seus afazeres diários.
FOTO 31: Quartinho de despejo do condomínio FOTO 32: Quartinho de despejo do condomínio
onde seu Teixeira coleta material. onde seu Teixeira coleta material.
Fonte: Foto do autor, 2008. Fonte: Foto do autor, 2008.
O tempo de espera também ofereceu bons momentos para conversa com o catador
de 83 anos, há oito como catador de materiais recicláveis. Ele disse que no início, a catação
não lhe dava bom retorno, mas “até dois anos atrás a gente pegava e fazia 80, 90, até 100 reais
a gente fazia. Mas agora... é 20, 30, é 40... muito difícil pegar uma semana com quarenta. É
porque é gente com carro, é gente puxando, é todo mundo, muita gente”. Disse-me que
naquela área é dia de passar o caminhão de lixo, daí ir nos dias da coleta pegar os materiais.
Interessante observar que como a imprevisibilidade é componente sempre
presente no seu percurso, o catador lança mão de estratégias para minimizar a alea negativa.
Uma dessas estratégias, e talvez a principal é o estabelecimento de percurso conforme a rota
do caminhão de coleta do lixo urbano. Esse aspecto no trabalho de catação foi também notado
pelo diagnóstico da Prefeitura Municipal de Fortaleza (2006, p. 57). Nesse sentido, vários dos
catadores entrevistados fazem menção a essa estratégia quando indagados sobre a escolha do
percurso. Roberto e Antônio, catadores do depósito de Zé Bezerra, dizem que os melhores
dias são os da coleta de lixo, que ocorre alternadamente durante a semana:
100
Os melhores dias são esses porque é o dia da coleta, do lixo. Os piores dias dos
carroceiros chamam-se terça, quinta e sábado. Não tem nada. Antigamente, terça,
quinta e sábado era a coleta do Iguatemi, só que agora eles mudaram para os dias os
mesmos daqui. (Roberto, entrevista realizada em 19/11/08)
Nós passa onde a gente sabe que é o dia de lixo, como hoje, hoje é dia do carro do
lixo passar, né. Aí o pessoal bota o lixo pra fora e nós abre. Abre o saco e tira uma
garrafa, tira uma coisa, tira um frasco, aí vamos achando. (Antônio, entrevista
realizada em 19/11/08)
22
Medina (2005) observa essa diferença na composição do lixo em nível de países ricos e periféricos. Nestes
países o lixo contém um percentual de matéria orgânica até três vezes maior do que aquele produzido nos países
ricos, o que o autor atribui ao fato de as residências nos países industrializados “consumirem mais comida
processada, em lata, engarrafados e em recipientes plásticos. Assim, resíduos em cidades de países
desenvolvidos contem mais materiais recicláveis” (MEDINA, 2005, p. 4, tradução própria). Analogicamente, é o
que os próprios catadores observam e o que lhes move a deslocar-se por longas distâncias para buscarem esse
material no Centro e na Aldeota.
101
tomar café, ainda vão conversar lá dentro, eu não, eu chego, pego meu carrinho e saio”. Disse
que retorna de nove para dez horas, “aí, chegar lá eu, se eu tiver muito enfadado, eu estaciono
o carro, deixo lá, e vou pra casa”.
Antes de iniciar na catação, seu Teixeira passou 24 anos de sua vida como faz-
tudo: “fazia tudo, só não fazia roubar! Eu era zelador, tirava coco, trocava dinheiro, pagava
conta, fazia de tudo!”. A história do trabalho na vida do catador é longa, o lúcido senhor foi
apresentado à “maldição do gênesis” já aos 13 anos de idade, quando começou a trabalhar em
construção civil. “Aí de lá pra cá venho enrolando, pegando sempre um ou outro trabalho”.
Seu Teixeira disse ainda que nunca teve trabalho fixo e que também nunca estudou:”meu
estudo toda vida foi esse” – disse fazendo menção ao trabalho. A baixa escolaridade, ou
mesmo a sua total ausência, é uma característica homogênea entre os catadores, conforme
indicam os dados da pesquisa, já apontados no capítulo anterior e em consonância com
diversos outros estudos (MEDEIROS & MACÊDO, 2007; MEDINA, 2005; VELLOSO,
2005).
Seu Teixeira disse que começou na atividade devagarzinho, a cerca de oito anos.
Juntava uma coisa, juntava outra e ia vender no depósito. Indagado onde era melhor de se
trabalhar, se na associação ou no depósito, o catador foi enfático ao responder que era na
associação, porque
lá não falta dinheiro, ninguém rouba na balança. Porque esses deposeiro são tudo
ladrão. Uma vez eu fui vender duas carradas no depósito e apurei só 40 reais, aonde
no depósito, no nosso depósito aí, era coisa pra apurar 100 ou 120. Lá no depósito
tem um negócio debaixo da balança que eles botam pra poder roubar (entrevista
realizada em 08/12/08).
Acerca das dificuldades do trabalho da catação, Teixeira diz que não tem muito
mais dificuldade do que outros trabalhos: “O trabalho é um só. A gente sai nesse meio de
mundo e pega um papel aqui, pega uma lata, pega um vidro, e pronto”. Para o catador, as
desvantagens são poucas: “se todo trabalho fosse de só de vantagem, aí todo mundo ia querer.
Tem as vantagens e tem as desvantagens. A desvantagem é porque é difícil da gente ajuntar
essas coisas, né. Mas é isso mesmo, é da vida, tem dia bom e dia ruim”. Em relação a como a
população percebe o trabalho do catador, seu Teixeira diz que “tem muitos que reconhecem,
já tem muitos que não reconhecem. Os que não reconhecem a gente deixa pra lá, né”. Nesse
momento passava uma jovem senhora de quem seu Teixeira fez observação, “taí, essa menina
103
sempre me ajuda, me dá material, lá embaixo. Conheço ela desde pequena. Bom dia!”. Sobre
a atividade da catação, o trabalhador diz que “isso é um serviço que a gente faz porque a gente
tem que levar aquilo ali como um trabalho digno”. A fala de seu Teixeira nos remete aos laços
de solidariedade que também são criados com moradores, donos de estabelecimentos e
concorrem com o preconceito sofrido e recorrente nas narrações dos profissionais da catação.
No ensejo, o catador disse que também pega materiais em condomínio no bairro Luciano
Cavalcante, onde o pessoal abre o portão do lixo para que ele colete o material.
Após uma hora de espera, o funcionário do condomínio trouxe o lixo, em um
carrinho típico de catador (feito de carcaça de galadeira) e o despejou no quartinho. Então o
senhor que veio colher o lixo orgânico para lavagem de porcos, juntamente com seu Teixeira,
entraram no recinto e iniciaram a atividade de separação do que lhes interessava. À medida
que colhiam o material de interesse, ambos iam também separando o material que restaria no
local de despejo, jogando o refugo do refugo nos tambores dispostos no quartinho.
Interessante notar que o pequeno monte de lixo que se formou após o despejo do material
trazido pelo zelador logo reduzia de tamanho e o trabalho realizado por seu Teixeira e o
criador de porcos termina por poupar o zelador de realizar, por si mesmo, o despejo do
material nos tambores de lixo, haja vista que catador e o criador iam já realizando essa
atividade – como que numa contribuição análoga à protocooperação –, comprometendo-se a
deixar o local limpo (na medida do possível para um quarto de lixo) após a separação e coleta
do material desejado.
FOTO 33: Funcionário do condomínio traz o lixo FOTO 34: Funcionário do condomínio despeja o
coletado. À esquerda a carroça do senhor que veio lixo no quartinho de lixo.
buscar o lixo orgânico. Fonte: Foto do autor, 2008.
Fonte: Foto do autor, 2008.
entre seus pés e que, quando cheia, ajudava no despejo do material selecionado no carrinho,
estacionado a aproximadamente dois metros do portão do quarto de lixo. Essa dinâmica lhe
poupa tempo e entra em um ciclo que consiste em tatear os sacos fechados, abri-los, se há a
possibilidade de haver material de interesse, jogar o material sem interesse (refugo do refugo)
nos tambores, separar o material reciclável e, após acumular quantidade razoável, jogá-lo no
carrinho. Nessa dinâmica, há, entre os dois trabalhadores no fétido recinto, uma contribuição
mútua: quando seu Teixeira encontra algo de interesse do criador de porcos, como resto de
comida, verdura etc., entrega-lhe, recebendo daquele, materiais recicláveis. O trabalho era
realizado em silêncio; os olhares eras os instrumentos da conversa entre os dois, mais do que
as palavras.
FOTO 35: Teixeira e seu colega separam o FOTO 36: Seu Teixeira separa o material, dentro
material. do quartinho de lixo.
Fonte: Foto do autor, 2008. Fonte: Foto do autor, 2008.
vencidos (com data de validade de três meses antes). Seu Teixeira tomou a caixa e a colocou
dentro do carrinho, junto aos materiais colhidos no lixo.
Mais duas carradas de material foram trazidas pelo zelador e quando já estava
bastante esvaziado o espaço onde fora despejado o material trazido pelo zelador, seu Teixeira
ia colocando os papelões nas laterais para aumentar o tamanho do carrinho, permitindo que
coubesse maior volume. Ele falou que geralmente faz isso quando acontece de conseguir
coletar boa quantidade de material, o que ocorreu nesse dia em razão de não haver sido
recolhido dois dias antes, motivo pelo qual hoje o volume de materiais coletados superou o de
praxe. Após uma hora e meia de coleta, os trabalhos iam se encerrando com a limpeza do
local, deixando-o melhor do que como o encontraram. Para isso, os catadores utilizaram
vassouras do próprio condomínio. “É assim, a gente pega limpo, tem que deixar limpo!”.
No caminho de volta, o primeiro desafio era a travessia do viaduto sobre a BR-
116, efetuada na contra-mão. Já de início o octogenário mostrou que a cadência dos seus
passos, embora curtos, era rápida e firme. Antes propriamente de iniciar a subida, Seu
Teixeira faz uma pequena pausa para “descansar as canelas”. Após uma pequena subida, mais
uma parada: “a pessoa pensa que é mole é!?”, disse-me o catador ao parar seu carrinho já
sobre o viaduto. Os carros, ônibus e caminhões passavam bem próximos a nós. Após a
descida, momento em que o catador atribui como mais difícil para levar o carrinho, pois exige
força para freá-lo, seu Teixeira se despediu, dizendo que dali ele ia só, porque eu não
agüentaria. Após insistir um pouco, convenci o catador, que me permitiu acompanhá-lo, mas
admoestou que o percurso é cansativo. Na oportunidade, perguntei ao catador porque no
início da manhã ele me pediu que eu fosse encontrá-lo mais à frente. Então ele disse que foi
fazer suas necessidades fisiológicas, e queria aproveitar o pouco movimento nas primeiras
horas do dia. A estratégia do catador suscita reflexão sobre como apesar de estarem no meio
da cidade, à vista de todos, há um véu de privacidade em seu cotidiano que os catadores
tentam preservar.
Na volta, o fluxo de carros já não era como na ida, antes das seis horas da manhã;
agora os motores já rugiam com maior intensidade. Seu Teixeira, olhar firme para frente, os
passos curtos, mais rápidos, disse que o segredo é não parar e manter o passo em ritmo
constante. Nas conversas do caminho, o catador dizia da importância da reciclagem, pelo
reaproveitamento dos materiais que iriam para o aterro. As referências do catador remetem à
compreensão do seu trabalho como sendo importante para a proteção ambiental, ainda que ele
não consiga estabelecer uma relação tão esclarecida das razões pelas quais aquele trabalho
protege o meio ambiente, a não ser pelo fato de diminuir o lixo da cidade.
106
FOTO 37: Seu Teixeira inicia o caminho de volta. FOTO 38: Os carros passam muito perto do
Fonte: Foto do autor, 2008. catador.
Fonte: Foto do autor, 2008.
O trajeto era feito pela pista lateral às faixas de rolamento centrais da BR-116,
desta vez na mesma direção do fluxo de veículos. Os carros passam muito próximos, fazendo
o carrinho balançar, e muitos automóveis têm que desviar do catador. Quando perguntado
sobre a distância entre o depósito da Associação e o condomínio onde estávamos, Seu
Teixeira deu a entender não ter muita noção, pois afirmou que o percurso tinha 24 km, mas
verifiquei posteriormente que não passava de 3,5 km. Também quando lhe perguntei sobre o
peso máximo que ele já levou em seu carrinho, o catador afirmou que foi o total de 25 quilos,
quando na verdade era muitas vezes superior.
FOTO 39: Pausa para descanso sobre o viaduto. FOTO 40: Travessia sobre o viaduto com o
Fonte: Foto do autor, 2008. carrinho cheio.
Fonte: Foto do autor, 2008.
no mesmo sentido do fluxo de veículos: “eu pego aqui e vou me embora, não faço nem conta
dos carros”. Disse-me que nunca foi acidentado por automóveis.
Durante o trajeto, uma caixa com materiais caiu do carrinho, então o catador
estacionou o seu carrinho para pegar o material e colocá-lo novamente no transporte,
amarrando-o com as cordas e elástico já colocados na saída do condomínio, e acrescentando
nova corda que tirou de sua bolsa, amarrada ao carrinho, onde leva ferramentas e uma faca,
tipo peixeira, “porque a gente encontra gente boa, mas também encontra muita gente ruim”.
Aqui é possível perceber que o trabalho não envolve só a coleta, ou seja, encher o carrinho,
mas trazê-lo, pois o trajeto apresenta seus obstáculos como vários catadores narram a respeito
de quebra do carrinho. O perigo do trânsito é também recorrente nas falas dos catadores:
O que é mais dificuldade que eu achei foi a gente atravessar essas BRs, atravessar no
trânsito eu achava muito difícil pra mim, tinha muito medo. (Marlene, entrevista
realizada em 11/12/08)
O risco, o perigo, né? É um carro; um carro bater na gente como já ouve. Porque a
gente se arrisca muito também, a gente anda muito na contra-mão, muito afoito. Aí é
um perigo, às vezes final-de-semana, é perigoso, o povo bebe pra andar nos carros,
como já ouve dois acidente já comigo, mas graças a Deus, comigo mesmo nada
sofreu não, só com o carro né. […] Quem fica no prego sempre é a gente. […] Tive
que pagar. Senão eu não tenho o carro de volta pra trabalhar de novo. (Roberto,
entrevista realizada em 19/11/08)
FOTO 41: Catador segue pela BR-116. FOTO 42: Parada para ajeitar material que caiu do
Fonte: Foto do autor, 2008. carrinho.
Fonte: Foto do autor, 2008.
108
Mais uma parada para descanso, que duraria cinco minutos; o carrinho ficou
estacionado ao meio fio enquanto eu e seu Teixeira descansávamos sentados sobre uma
grande pedra, feita banco, sob a sombra de uma árvore. Entre as conversas, o catador disse
que prefere sair sozinho a acompanhado, porque “ninguém sabe de ninguém; vai que eu saio
com alguém e aí vai querer mexer numa coisa ou outra, de repente pegar uma cadeira assim
numa calçada, em frente a uma casa... aí é melhor ir sozinho mesmo”. Como vimos, a
preferência não é só de seu Teixeira; a grande maioria dos catadores, segundo dados da
pesquisa da Prefeitura, preferem catar sozinhos, o que foi confirmado nas entrevistas, como já
explicitado.
Enquanto palmilhávamos mais uma boa distância, seu Teixeira permanecia a
maior parte do tempo em silêncio, entrecortado por eventuais cumprimentos a pessoas nas
calçadas de oficinas e estabelecimentos. Nova parada já a alguns quarteirões da avenida
Plácido Castelo, onde se localiza o galpão da Associação Reciclando. Caminhamos mais bom
pedaço e logo chegamos ao depósito da Associação Reciclando. Após estacionar seu carrinho
sob uma coberta improvisada, o catador foi beber água e conversar com os colegas – o que
parece um ritual de chegada após a jornada, observado tanto na associação como no depósito.
Só depois é que o catador iniciou a separação do material.
Ainda que esse não seja o foco do presente trabalho, não poderia deixar de fazer
referência à relação dos catadores com o uso de drogas. A princípio essa era uma questão que,
apesar de minhas pré-noções já estabelecerem uma relação, dado prévio conhecimento do fato
comum entre os trabalhadores do lixo, não pude deixar de abordar, pois as visitas ao depósito
me aproximaram do tema por diversos momentos e também as entrevistas, motivo pelo qual
incluí, embora fora do roteiro de entrevista semi-estruturado pré-estabelecido (em anexo),
uma pergunta sobre uso de droga, feita sempre de forma a não tornar invasiva a minha
indagação. Assim, no depósito, vários catadores, inclusive o próprio deposeiro, se referiram a
uso de droga por parte dos catadores, sobretudo o crack23. O deposeiro disse que todos eles
usavam a droga e que quando estavam sob o efeito da pedra estendiam a jornada e
23
O crack é refugo da produção da cocaína, misturada ao bicarbonato de sódio e água, chamada popularmente de
pedra, pedrita, brita, maldita, amaldiçoada, devastadora, diabólica. O efeito social do uso do crack é considerado
109
Tem muita gente que não usa, muitas sim, muitas não. Tem muita mãe de família,
que trabalha, pai de família. Nem todo mundo usa não. […] A principal é o crack né
parceiro, a maldição. […] Às vezes [risos]... no crack se você tiver mil reais hoje, de
noite você não tem mais um tostão. […] O efeito é rápido. Quanto mais você fuma,
mais você quer. […] Aí tem vezes que pra comprar o cara chega a pedir... eu, já tô
pedindo pelo amor de Deus, parceiro. Quando a pessoa se vicia numa desgraça dessa
aí, aí tá com a vida acabada. […] Lá no livro do Apocalipse tem dizendo, no final
das eras vem uma peste pra matar, roubar e destruir. E muita gente pensa que não
chegou ainda, e já chegou, já, é o crack: a maldição. Tanto ele faz matar, roubar e
destruir. Destrói família, destrói casal, destrói tudo. Tu ainda quer outra peste?!!
(Roberto, entrevista realizada em 19/11/08)
Têm muitos que é pai de família, não usa não. Mas a maioria usa. Tem muitos que a
gente vê no meio da rua que é carroceiro, é só pra droga. […] É porque já é viciado,
e já é o quê? É aquela ansiedade de você usar mais. Você não vence o cansaço, não
tem nada pra vencer o cansaço, só Jesus, agora o seguinte é esse, é a ansiedade, que
você não tem de onde tirar aí enquanto você não arrumar você não sossega, que eu já
fui um e eu sei. (Antônio, entrevista realizada em 19/11/08)
o mais devastador das drogas comumente utilizadas no Brasil. A respeito do tema, está para ser lançado o filme
“Selva de Pedra: Fortaleza noiada”, que trata da problemática do crack na cidade de Fortaleza.
110
O uso é muito é pra esquecer problema, mas é onde aumenta mais! Esquecer de
mulher, esquecer de filho, mas é onde mais, termina mais, como é que se diz, a
depressão, tentar esquecer de problema, de responsabilidade, de abandono de mulher
que abandona, aí é onde se arromba mais, afunda mais, fica mais pior a cada dia, ao
invés de quando ganhar um trocado ir deixar a uma pessoa que precisa, a uma tia,
um irmão, uma irmã, ou uma sobrinha, um sobrinho, ou então os filhos, aí não, vai
usar pra esquecer, aí depois que gasta o dinheiro aí fica mais depressivo daquele
preço, consegue às vezes nem ir trabalhar; aí reclama porque não dá produção, aí
ganha pouco, aí é que se aprofunda mais. (Paulo, entrevista realizada em 19/11/08)
Qual o motivo deles usar? Eu acho que é porque eles ficam viciados né, eles ficam
viciados naquelas drogas, aí eles usam, porque ficam viciados, se viciaram já, aí não
pode ficar sem ela. […]A droga mais comum que eles usam é a pedra! (Marlene,
catadora da Associação Recicando, entrevista realizada em 11/12/08)
Na associação, durante minhas visitas não percebi referência a uso de droga, mas
dois catadores afirmaram que já consumiram droga, mas hoje não mais. O tema é amplo e
possibilita muita discussão, podendo ser mesmo objeto de estudo específico de pesquisa sobre
relação entre o trabalho de catação e o uso de droga.
Meus pais são de criação, me criaram. Minha mãe me deu na maternidade, me deu, e
aí meu pai não é daqueles que a gente pede e pode me dar não. Aí eu, pra ganhar
minhas coisas comecei a me virar no mundo, de pequeno mesmo. […] O meu
primeiro trabalho? Primeiro eu fiz um curso, de serigrafia. […] Eu tinha na faixa
duns dez anos, nessa faixa. Aí depois do curso fiz outra profissão que foi nove anos,
que foi pelar frango, no Pio XII. Pelei frango, trabalhei em supermercado,
empacotamento, entregador, trabalhei de servente, de jardineiro. Trabalho pra mim
tudo eu desenrolo. Passei nove anos assim, aí entrei na vida do crime, aí nessa vida
aí, parceiro, é só desgraceira, tem nada de futuro não. Porque não tem nada não,
parceiro, a gente se ilude. (Roberto, 31 anos, entrevista em 19/11/08)
Rapaz, quando eu era menino, trabalhava de fazer tijolo. Bater tijolo. Lá no Aquiraz,
por causa da família né... Obrigação mesmo. Tinha que trabalhar para ajudar a
família. (Antônio, 38 anos, entrevista em 19/11/08)
Meu primeiro trabalho foi num restaurante, fixo mesmo. Com catorze anos, na
época. Mas antes... desde pequeno, com oito anos, eu já trabalhava na horta, que
meu pai tinha uma plantaçãozinha, ali no São João do Tauape, no Pio XII. Aí eu
sempre cuidava das verduras, cultivava mesmo... tirava cheiro verde, essas coisas, aí
114
botava uma bacia na cabeça aí vinha lá do São João do Tauape pra cá pro Tancredo
Neves, de pé, vendendo, nas casas de porta em porta. […] Depois do restaurante eu
comecei a trabalhar de descarregador de caminhão. Na empresa de transportadora de
sabão, Gessy Lever, na BR-116. Sabão OMO. Eu trabalhei mais tempo lá. Lá eu
trabalhei na faixa duns oito a dez anos, só levando caixa na cabeça. (Paulo, 35 anos,
entrevista em 19/11/08)
Meu primeiro trabalho na minha vida foi quebrar olho de carnaubeira no interior pra
fazer ticum, fazer barbante. […] Eu tinha uns oito anos, quando minha mãe me
ensinou a fazer isso. […] A gente ia por que minha mãe botava nós pra trabalhar.
[…] Depois fui trabalhar de roçado. […] Nesse tempo eu já tinha meus doze anos
quando meu pai botou eu no cabo da enxada mesmo pra trabalhar. […] Depois desse
do roçado, é quando eu cresci e comecei a trabalhar em casa de família. Casa de
família eu trabalhei com 25 anos. Trabalhava em casa de família direto, depois saí
de casa de família e fui trabalhar em marmitaria, aí comecei a trabalhar de
reciclagem. Quando comecei nesse trabalho. (Marlene, 44 anos, entrevista em
11/12/08)
Rapaz, meu primeiro trabalho que eu conheci na minha vida foi garimpar […]
Meninote, uns 13 anos, de menino pequeno, comecei garoto véi. […] Nunca estudei
não. Eu era menino pequeno e o pessoal tudo trabalhava nessas coisas, aí não estudei
não. Grandão já eu passei mais três anos no norte Goiás, no garimpo. 20, 30 e
poucos anos já, trabalhei 20 e tantos anos. Até eu vim embora pra cá. Mas entre um
trabalho e outro o cabra acaba fazendo tudo, lutando com bicho, gado, tirar capim,
limpando roçado, essas coisas. […] Depois eu fui trabalhar por minha conta, por
conta própria. Trabalhava assim nas casas de gente mais ou menos, sabe?! Casas de
115
família na Seis bocas, por ali, limpando o quintal das casas, fazendo coisa. […]
Depois eu me separei da mulher aí saí e fui pra BR descarregar caminhão, pegando
peso na cabeça. Descarregando caminhão de sabão, sabonete, manteiga, essas coisas
assim. Era pesado demais. Aí foi o tempo que eu fiz a ficha aqui [na Associação
Reciclando]. (Geraldo, 51 anos, entrevista em 12/12/08)
PRECARIEDADE Æ CATAÇÃO
PRECARIEDADE – PRECARIZAÇÃO Æ PRECARIEDADE
CATAÇÃO PRECARIEDADE
(PRECARIZAÇÃO)
Por vezes esse ciclo pode apresentar-se plano, mantendo-se o catador nas mesmas
condições materiais que antes. Pode ainda configurar um ciclo em espiral, descendente, se
116
Sonhava em ser alguém na vida, né. Em ser um bombeiro, um doutor... mas não tive
chance, fazer o quê né, irmão!? Porque eu não tive chance, morava no interior. Aí
naquele tempo os estudos era mais difícil, e aí eu vim de família humilde mesmo,
né, aí não tive condições não. Não tinha tempo de estudar, era trabalhar pra ajudar a
família. Aí perdi o tempo da minha vida, mais novo, trabalhando. (Antônio)
Quando eu era criança eu dizia que eu queria ser uma advogada. Mas eu não estudei.
No interior não existia colégio, meu filho. […] Eu desejava ser advogada, e não fui
advogada. Fui uma catadora! (Marlene)
Eu nunca tive vocação assim pra pensar em ser alguma coisa, sabe. Eu tô
entendendo o que você disse aí, mas eu não tenho estudo né, o cabra tem que ser
aquilo que Deus deu a sorte dele. Eu não tenho estudo; hoje em dia se o cara não tem
estudo ele tá ferrado. Até pro cara apanhar lixo tem que ter estudo, até pra trabalho
de zelador, hoje em dia, se o cara não souber ler, for botar uma carta no correio, até
pra colocar uma carta no correio tem que assinar o nome, sabe disso, né? Vai chegar
um tempo aí um tempo aí que se o cara que não souber ler vai pra roça. O tempo tá
difícil e tem muita gente que sabe ler mas não quer abraçar o pesado, não é isso aí?
Eu conheço gente que tem o primeiro grau de estudo e vivia na BR descarregando
caminhão. (Geraldo)
117
Não, nesse sentido eu nunca me levei pra pensar não. Porque, assim eu não pensei
nesse sentido não porque a vida da gente era mais o quê? Era ajudar o pai, porque
ele nunca soltou dinheiro na nossa mão não, mas ele foi um ótimo pai pra gente. […]
Mas assim, futuro de pensar alguma coisa e correr atrás assim pra estudar, pra ser
médico, pra ser algo assim na vida, eu nunca levei por esse lado não. Eu sempre
trabalhei pra tentar ajudar o pai, lá em casa, a mãe, mas assim não. (Caio, 33 anos,
entrevista em 10/12/08)
Aí parceiro, passei cinco anos na cadeia, saí, aí oportunidade de emprego: não tem!
Ninguém dá! Aí foi o tempo que saí da cadeia e foi o tempo que o Zé Bezerra
[deposeiro] abriu aqui o depósito. Aí cheguei aqui, o Zé Bezerra me deu
oportunidade de um carro, aí levei lá pra casa e fiquei. Foi assim, depois da cadeia
foi a oportunidade que teve pra mim. (Roberto)
O meu sogro trabalhava de reciclagem. Aí eu conheci a minha esposa e ela não tinha
emprego. Aí ela disse, “não, já que nós vamos viver juntos, pra gente não morrer de
fome nem fazer besteira, tu vai ter que trabalhar”. Aí eu “não, mas eu tenho
vergonha de trabalhar nisso aí”. Mas é o jeito! No começo logo eu tinha vergonha,
mas foi o jeito eu trabalhar porque não tinha outro, né. (Antônio)
Já, na época eu já tinha um filho e às vezes as pessoas passavam na cara que a mãe
assumiu meus filhos, que graças a Deus, até hoje ela não assume não, quem assume
sou eu, então foi por esse lado também. […] Aí eu peguei e fui pro centro
comunitário. Foi na época que eu tava sem fazer nada, lá no Dias Macedo, aí os
meninos lá me disseram, “Caio, porque tu não quer trabalhar com reciclagem?” […]
Eu tentei encontrar um trabalho. Eu tentei, um colega meu me deu o endereço de
uma firma, negócio de congelador, já quase fora daqui de Fortaleza, aí o cara me deu
os dados do negócio lá aí eu peguei e fui bater lá, só que não deu certo. (Caio)
118
Vim ser catadora por que se acabou-se lá na marmitaria que eu trabalhava. Acabou-
se. A mulher deu um calote em todo mundo lá, até onde ela comprava. Ela comprava
e botava tudo em uma conta e num queria pagar, aí pronto. Aí andei atrás de
trabalho, andei muito atrás de trabalho noutros cantos, não encontrei, aí foi uma tia
minha chegou, ela já estava trabalhando, ela já tinha o carro dela e me chamou pra
mim andar mais ela. [...] Procurei na Cidade dos Funcionários, no Jardim (das
Oliveiras), Aerolândia, Dias Macedo. Tudo eu procurei trabalho, botava as
conhecidas pra arrumar, mas não arrumou aí foi o jeito ficar aqui mesmo. (Marlene)
Para alguns, como Paulo, a atividade de catação foi entrando na vida aos poucos,
surgindo em momentos de necessidade imediata, mas não havia continuidade no trabalho.
Aqui é possível depreender outro fator importante, ressaltado por muitos catadores como
vantagem do trabalho de catação, o imediatismo na resolução do problema, uma vez que o
pagamento se dá logo na entrega do material ao depósito. Isso reforça o caráter de trabalho
motivado por extrema necessidade; o trabalhador não pode esperar até o fim do mês, não se
trata de uma projeção em longo prazo. A solução pretendida deve ser para o agora.
é uma pessoa que gosta do trabalho, dá valor ao trabalho. Eu acho, eu acho que é
assim. Eu adoro o meu trabalho. […] Porque da onde eu, da onde eu pago o meu
aluguel, é da onde eu me visto, é da onde eu dou de comer a minha filha, visto ela,
faço tudo. Mesmo que nem pobre, mas é da onde eu pego a minha alimentação, é
daqui. Sai o meu dinheiro daqui.
Antônio, por sua vez, aponta para a catação como uma atividade que se reveste e
se justifica pela necessidade de sobrevivência:
É um meio de vida, né. Porque às vezes não tem emprego, a pessoa às vezes é até
discriminada porque já foi vagabundo, já foi ladrão, aí não tem uma chance na
sociedade, aí se obriga a se arranjar no que arruma. Não tem eu gostar desse trabalho
não! É como eu acabei de dizer várias vezes, tem que aceitar o que você arrumou.
Não tem outro você tem que ficar naquele, enquanto não aparece um melhor.
Como toda atividade laboral, a catação tem para seus trabalhadores, vantagens e
desvantagens. Dentre as vantagens mais citadas pelos catadores, encontra-se o fato de não
haver patrão, de ser uma atividade que confere certa liberdade no trabalho no que tange à
jornada, a horário de pausa para descanso ou diversão, rota, etc. Assim, Geraldo, buscando
uma definição para o significado do trabalho de catação, ressalta a flexibilidade dessa
atividade como um aspecto positivo do trabalho. Antônio também aponta para a inexistência
de patrão, o que denota certa autonomia do trabalhador:
Catador é um emprego né. É sinal de que o cara não tá parado, né. Tá trabalhando
por conta própria. Por conta dele. Ele traz aquele material pra ele. Não é empregado
de ninguém. Não tá sendo mandado por ninguém. Porque ficar desempregado,
parado é muito ruim! O cara chega no fim da semana tá liso sem nada, pedindo as
coisas pros outros! (Geraldo)
A vantagem é que você pode andar menos e chegar no trabalho a hora que quiser e
não tem patrão pra reclamar. Tem patrão que “ah, você chegou tarde, perdeu o
emprego”, e aqui não, a hora que você chegar você pega o seu carro e sai. (Antônio)
A vantagem é que a pessoa, primeiro que recebe o dinheiro na hora, né, assim como
pesa, né, primeira. E a segunda que a gente conhece muitas pessoas diferentes, cada
dia a gente conhece umas pessoas diferentes.
Não obstante seja apontada pelos catadores como uma vantagem, há que se
ponderar em relação à flexibilidade atribuída ao trabalho pela inexistência de patrão. Como
comentei no dois capítulos anteriores, a propriedade do carrinho – sua principal ferramenta de
trabalho – confere ao deposeiro um poder de submeter o catador a uma subordinação que
assegura ao deposeiro o aporte de materiais por um preço bem abaixo do que ele revende para
atravessadores maiores ou para a indústria. Laços de solidariedade também podem ser
desenvolvidos em relação aos deposeiros, mas como vimos no capítulo anterior, muitas vezes
servem para prender ainda mais o catador ao deposeiro, sendo aquele cada vez mais tributário
de favores prestados pelos donos de depósito. Ora, o patrão é aquele que “controla”, monitora
e remunera a força de trabalho. Evidentemente que se não existe vínculo ou qualquer tipo de
contrato, tem-se a falsa noção de que não há patrão nessa atividade, porém, prefiro pensar que
o deposeiro atua como um patrão, haja vista a relação de dependência que se estabelece entre
o catador e o dono do depósito. Assim é que Paulo, quando perguntado sobre o procedimento
após a jornada de catação, responde que após a pesagem é hora de somar e ver quanto está
devendo, exatamente pela existência de adiantamentos que ficam a obrigar os catadores em
relação ao deposeiro:
Depois que a gente chega e separa tudo [material coletado], aí pesa tudo e soma, né,
aí vai ver quanto é que a gente tá devendo... Porque a gente pega vale. Vale pra
merendar, aí pega de dois, três reais; aí vai acumulando, de repente tá devendo dez,
doze, aí ele vai descontando a metade.
Além do que o apurado depende muito da sorte e é tão variável que através das
falas dos catadores, percebi que nem mesmo eles sabem quanto ganham ao certo, uma vez que
a obtenção do dinheiro por jornada de trabalho o abstrai de uma idéia de ganho mensal. Nesse
sentido, as falas relativas ao apurado mensal são tão díspares que a conclusão mais segura que
posso tirar dessas respostas é de que a flexibilidade do trabalho repercute também na
flexibilidade do ganho, extremamente variável e que se constitui como fator negativo aos
122
trabalhadores, que vivem na constante incerteza de quanto conseguiram obter, o que dificulta
qualquer planejamento de gastos ou regularidade de ganho. Desse modo, Geraldo, mesmo
enunciando a flexibilidade como uma autonomia, aponta para o seu decorrente aspecto
negativo: “Mas é assim, se trabalhar ganha, se não trabalhar também não ganha, né. Isso é
uma desvantagem porque o cara trabalhar tendo aquele ganho certo é melhor”. A flexibilidade
resultante do caráter autônomo do trabalho é também objeto de reflexão de Sousa & Mendes
(2006). Para as autoras, “essa flexibilidade tem um efeito perverso – a auto-imposição de
longas e extenuantes cargas de trabalho, num esforço dos trabalhadores para aumentarem a
renda auferida” (SOUSA & MENDES, 2006, p. 33).
Apesar de não poder precisar o valor, as observações obtidas diretamente nas
visitas aos locais de trabalho dos catadores, assim como pelos dados do diagnóstico da
Prefeitura de Fortaleza (2006), permitem aduzir que o apurado médio mensal não chega ao
salário mínimo oficial aplicado no País. Outro fator que interfere na previsibilidade do ganho
é a constante variação nos preços dos materiais, que ultimamente têm baixado sem retorno aos
patamares anteriores. Como apontado no capítulo 5 pelos próprios catadores, isso se deve ao
fato de haver muito material à disposição do mercado comprador. Ademais, há que se
considerar a sazonal diminuição dos preços no período de quadra chuvosa. Há quem relacione
ainda a queda nos preços com a atual crise econômica mundial, como afirma Humberto
Júnior, diretor da Agência Reguladora de Fortaleza (ARFOR): “no Brasil inteiro há uma
recessão do material reciclado e a crise alterou bastante os preços, pois diminuíram as vendas
e o dólar disparou” (MAIA, 2009). A afirmação é consonante a de José Cardoso,
representante do MNCR no nordeste: “O mercado está retraído. Ninguém compra, ninguém
vende. Quando vende, é por um preço bem abaixo do valor de mercado” (FREIRE, 2009). A
conseqüência da queda nos preços recai diretamente no já parco apurado dos catadores.
Além da flexibilidade, alguns catadores chamaram a atenção para o aspecto
ambiental de seu trabalho como sendo uma vantagem. Há que se anotar que essas opiniões
foram dadas pelos catadores da associação, porquanto no contato que tive com os catadores
do depósito, não percebi, conforme já referenciado, estabelecimento de relação entre seu
trabalho e esse aspecto. Nesse sentido, Caio e Marlene relacionam como vantagens do
trabalho de catação, o fato de ser uma atividade importante para a limpeza da cidade, assim
como ter relevância para as gerações futuras:
123
As vantagens é que eu acho que hoje eu estou sendo útil pra geração que vai vir mais
tarde aí, que eu hoje eu tô sabendo que o que eu tô fazendo tá servindo pra mim, mas
vai servir pro futuramente do país. As vantagens eu acho que são essas. (Caio)
A vantagem que eu acho é nós limpar a cidade, porque a cidade tá sendo mais
limpada pelos catadores de que pela prefeita. É. Porque aonde os catadores passam
que vê um copo, vê tudo no mundo, que nem você tá vendo nós limpando aqui,
quando nós terminar de tirar esse material aqui, realmente esse canto aqui vai ficar
limpo. Por quê? Por causa de nós. Mas mandasse esse material aqui fosse pra
prefeita mandar limpar, quer dizer, aqui nós tira em dois dias, três dias, mas se fosse
mandar a prefeita mandar limpar isso aqui, ia passar quantos meses? [diz referindo-
se ao local onde estávamos, onde estava separado o plástico] Ia passar um bocado de
mês. Como eu limpasse numa rua na outra já tava entupida de lixo. Aí nós tira o
material e fica o lixo. Aí é que ela manda limpar aquele lixozinho que a gente já tem
tirado a metade. É isso aí. (Marlene)
Rapaz, o cabra sai aí sem dinheiro, aí vem com fome, às vezes tem dinheiro pra
lanchar por aí, às vezes não tem, chega aqui como? Lascado. Às vezes também tem
gente que dá comida à gente. Mas é ruim. Numas partes não é bom não. O nêgo tem
que ter coragem, né. […] O cabra às vezes sai fraco, né. Dá tontice no nêgo, às vezes
sobe ladeira carregado de coisa aí, sujeito até dar um negócio no cabra, o cabra vem
fraco, com fome, né. (Geraldo)
Rapaz, a desvantagem da catação é porque tem dia que não tem né. Às vezes o cabra
anda, anda e não acha nada, aí vem embora sem nada. A outra é que o cabra anda
muito e é muito cansativo. (Geraldo)
atribuído ao trabalho, o que repercute entre os catadores como uma forma de obtenção de
dignidade por estarem desempenhando algum labor, ainda que precário.
Eu tô, graças a Deus, tá bom. Eu gosto. Eu não tenho nada contra isso daqui não.
(Roberto)
Hoje eu amo o que eu faço, eu amo o trabalho da reciclagem. Não tem apoio do
Poder Público, mas eu amo o que eu faço. (Paulo)
Do meu trabalho o que eu quero dizer, é que agora eu tô achando o meu trabalho
ótimo trabalho. Mesmo na sujeira, ficando com as unhas pretas [diz mostrando as
unhas], mas tá bom demais. É da onde a gente ta se movimentando e ganhando o
dinheirinho da gente né? (Marlene)
Porém, há quem divirja dos contentes e admita exercer uma atividade da qual não
gosta, submetendo-se porque não há outra opção. No caso de minha abordagem, os únicos que
se expressaram dessa forma foram Paulo e Antônio, ambos catadores do depósito de Zé
Bezerra:
Se eu gosto desse trabalho? A gente não pode tá reclamando, não, mas gostar, nós
não gostamos muito não. Muita gente não anda limpo nem nada, nem tem essas
coisas todas, né. (Paulo)
Com certeza! Tipo trabalhar numa marmitaria. Muitas coisas boas não, trabalhar do
que a gente gosta, né. […] Eu gosto de tudo. Trabalhar em construção civil, essas
coisas. (Paulo)
Eu queria praticar era o meu curso. Serigrafia... eu queria praticar ele. (Roberto)
Mecânica de carro. Mas eu tentava fazer as duas coisas. Porque é o velho ditado, eu
amo a reciclagem, eu nunca deixaria... (Caio)
Ah, eu gostaria, né. […] A chance que Deus me desse, um emprego mais digno, né,
que todos nós sonha. (Antônio)
Eu espero que meus filhos não caiam nessa sorte de quando ficar na minha idade,
um trabalho desse. Eu espero que eles tenham um bom futuro na vida, um bom
emprego. Porque isso aqui, num dá pra gente ir pra frente não, dá só pra quebrar o
galho, pra frente dá não. Pra eles fazerem cursos, pra eles estudarem, pra poder,
daqui pra frente, eles não sofrerem. Eles não serem humilhados, porque vai ter um
tempo aí, pra pessoa comer um bocado, tem que ter o primeiro grau, se num ter
todos os estudos não vai comer. É o que eu to vendo né. (Marlene)
Eu não tenho nem sonho, parceiro! Sem nem como é o dia de amanhã. Pelo caminho
que a gente vai... Mas eu peço muito a Deus que apareça uma oportunidade, daqui
pra lá, uma... Ele ajude e mostre o caminho. E pros meus que quero um futuro bom,
como muitas vezes eu dizia a eles, estude e seja gente. Não vá fazer igual seu pai,
igual um bobo, puxando uma carroça, no meio do mundo. Seu pai tá fazendo isso
127
aqui hoje em dia porque nunca quis estudo, nunca quis estudar. […] Estude, seja
gente, não se misture com más amizades, porque o que eu espero de vocês é não
puxar o caminho que o seu pai puxou não. (Roberto)
Meu futuro é como eu acabei de dizer, é só Deus, né. […] Mas eu queria arrumar um
emprego melhor, que eu sei que Deus vai me abençoar, né, que com o sofrimento
você vence, né. Arrumar um emprego melhor e tratar de dar o que a minha família
merece, né, e que eu não tô dando agora no momento. (Francisco)
O futuro o que eu espero é que as pessoas respeitem mais os catadores e que o Poder
Público olhe mais com atenção os catadores, é esse o futuro que eu espero. E da
minha família eu espero que eles me respeitem mais como catador, é só isso. (Caio)
Meu filho, é muito, muito difícil, é muito difícil. Trabalho hoje em dia, emprego é
muito difícil. Emprego só tá sendo pra quem tem bom estudo, que antigamente todo
mundo, todo mundo trabalhava sem precisar de estudo. Hoje, todo mundo se forma,
a maioria do povo tudo é formado e não tem um emprego. (Marlene)
Eu acho que a falta de curso até dentro da própria associação de catadores. (Caio)
128
Ajudas. Ajuda, estudo e primeiro eu tenho que sair da droga, pra mim ter o meu
serviço. (Roberto)
Durante o contato com os catadores, uma questão por eles bastante ressaltada é
relacionada com a forma como esses trabalhadores são percebidos pela sociedade, a quem
atribuem um forte preconceito sofrido. De antemão, é interessante observar que esse
preconceito é representado diferentemente entre catadores associados e avulsos, o que leva a
inferir que as diferenças de organização apontadas no capítulo anterior entre os dois tipos de
locais têm conseqüências na forma como são percebidos, ou pelo menos na forma como
representam essa suposta percepção da sociedade.
Considerando a importância alhures abordada acerca da importância do trabalho
na construção da identidade social do indivíduo, muitas atribuições de cunho pessoal são
feitas em associação ao trabalho por ele desenvolvido. É notória a diferenciação valorativa
129
atribuída a diversos trabalhos e profissões, sendo uns revestidos por uma aura de nobreza e
superioridade em detrimento a outros.
O trabalho dos catadores de materiais recicláveis não passa ao largo de uma
valoração social relacionada ao elemento nuclear da atividade, o lixo. Aquilo que é produto
do descarte, destinado à inutilidade, associado à sujeira, aos expurgos da sociedade de
consumo. Daí a força das colocações do artista plástico Descartes Gadelha (conforme citado
no capítulo 4) quando descreve o trabalho do catador de lixo e lança em suas telas a dinâmica
de mimetismo do refugo precarizado em meio ao refugo precarizante. Não há dúvida de que
outros elementos simbólicos, como a tração humana para puxar os pesados carrinhos por
léguas a fio – que faz lembrar a tração animal –, as roupas velhas, as mãos sujas, a pele
marcada pela pobreza de quem precisou recorrer ao lixo para sobreviver ajudam a compor um
quadro sobre o trabalho de catação que repercute diretamente na representação dos seus
trabalhadores. No documentário produzido pelo MNCR – “Essa gente vai longe...” (2005) –,
vários são os relatos concernentes ao preconceito sofrido pelos profissionais da catação, que
apontam para uma relação subjetiva do catador com o próprio lixo coletado. As falas são
harmônicas àquelas dos catadores por mim entrevistados, que indicam que trata-se de um
ofício bastante estigmatizado.
Esse povo mais velho dizia que ia chegar um tempo que o ser humano ia puxar
carroça que nem animal, que nem burro. Olha aí, é só o que a gente vê os cabras
puxando essas carrocinhas, no meio do mundo! (Geraldo, 51 anos, catador da
Associação Reciclando)
Tem muita humilhação... O cara vem, quando chega num saco, quando quer desatar
o nó, oh não bula aí não, não bula aí, que aí não tem nada, vão caçar noutro canto,
vão caçar outro emprego. Eu vejo. Eu vejo e ouço. Eu passo nas ruas e vejo o povo
ser humilhado. […] Aí diz que é cata lixo. É, quando a gente passa: “vai catar lixo
no diabo. Esse diabo só serve pra rasgar meus sacos!” e lá se vai. (Marlene)
130
Tem gente que passa pela gente “bora, burro, puxa a carroça!”. Desse jeito, né,
dentro dum carrozão, importado. Eu digo, olha, eu queria que ele sentisse se fosse
ele aqui, no meu lugar. Aí não, passa, chama o nêgo de burro. Não sabe, né, o que a
gente tem dentro de casa pra dar de comer, a dificuldade da vida. É desse jeito, mas
eu não esquento, não. Deus sabe o que faz. Eu digo, Deus sabe o que ele tá dizendo
aí, lá na frente Deus mostra. (Roberto)
A gente é muito confundido assim, porque tem muitos carroceiros que chega aqui no
depósito, aí pega um carro pra trabalhar. Só que ele não vai trabalhar, ele pega um
carro às vezes pra furtar, pra pegar uma coisa de alguém, pra arrancar um portão, pra
fazer uma coisa, aí devido a isso nós somos... como é que se diz... os outros têm
preconceito, porque dizem, não todo mundo, mas tem muita gente que diz que todos
os carroceiros são ladrões. Devido a uns os outros pagam, né. Muita gente já chegou
e dizia pra mim “rapaz, não gosto dos carroceiros não porque a maioria dos
carroceiros são ladrão”. Aí eu chegava e ia explicar, não todos, né, mas por uns os
outros pagam. (Antônio)
Às vezes o cara dá uma chave duma lixeira, como eu já vi, aí, quando dá fé, o cara
leva chave, leva portão, leva tudo, leva um tambor. Aí quem vai pagar? Quem vai
pagar é o cara da portaria, que é o responsável. Aí o que é que acontece? O cara
paga e não dá mais a chave pra seu ninguém! É o ditado mais certo: por um, todos
pagam. Aí suja o lado da gente que quer trabalhar. […] Muitos condenam. Muitos
condenam a gente. Muitos olham e diz, “olha, isso é um ladrão, a maioria desses
carroceiros é tudo sujo na Justiça. Tudo é ladrão”. (Roberto)
131
Eu acho que uma coisa ruim é a discriminação das próprias pessoas acharem que os
catadores são ladrões, o que não é. Eu acho que a falta de oportunidade, perante até
esses órgãos, a falta de oportunidade para os catadores, porque hoje em dia, você vê,
os catadores não têm um curso, catador não tem outra oportunidade na vida a não ser
essa. (Caio)
Os policiais também, eles não ajudam muito não. Eles dão é mãozada, às vezes, mas
eu nem esquento não. Porque é como eu digo pra você, eu entrava nas casas das
pessoas de bem, aí compensava a ignorância deles lá atrás. […] Mas o preconceito
não abaixa a cabeça da gente não, levanta é mais! (Paulo)
Tem catador que faz assim, só rasgar. Eu tô cansada de ver. Aí eu tenho é medo de
passar naquela rua porque tem muita gente boa e tem muita gente ruim né? Aí o cara
passa, rasga o saco, sai daquela rua bem ligeiro pra pegar outro e vê eu passando
bem devagarzinho, aí o cara pensa que foi eu. (Marlene)
132
A gente também sofre muito preconceito porque tem muitos carroceiro que passam
rasgando os sacos, fazendo baderna, mas tem muitos carroceiros que é honesto, que
tem aquele percurso dele, que anda só naqueles cantos que o pessoal já conhecem,
que ele não pode rasgar o saco, não pode... é... avacalhar, porque noutra vez quando
esse cara passar o pessoal vai dizer, não, não olhe meu lixo não, porque você
bagunçou tudo. Aí tem que saber ser honesto, aí por isso que a gente não pode.
(Antônio)
Paulo admite que quando sai às ruas rasga o saco. Em sua fala o catador inclusive
narra um episódio em que, segundo conta, estava tirando o material da forma adequada e foi
vítima de preconceito por ter sido atribuído a ele o fato de o saco de lixo de um morador ter
ficado aberto.
Eu rasgo logo é o saco! Eu não tenho paciência de abrir, não! Eu rasgo logo é o
saco, porque no dia que eu tava abrindo, na porta dum policial, abrindo tudo
tranqüilo, tirando as garrafinhas, duas garrafas, deixei o carro como daqui até a
esquina, aí não sabia que era da frente dum policial aí tirei duas garrafinhas assim,
olha, abrindo o saco [com um saco na mão, mostra como teria feito, retirando
cuidadosamente as garrafas do saco], aí só porque eu deixei o saco aberto aí o
policial veio e plantou-lhe a mãozada nos meus peitos, aí quando eu dei as costas,
plantou-lhe outra mãozada, dizendo que ia dar um tiro na minha boca e eu
mandando ele dar e ele não deu. Aí eu baixei a cabeça e fui, né, tocar o barco pra
frente. (Paulo)
O catador ele é um cara que... muitas vezes as pessoas chamam ele de rasgador de
saco, mas não é não. Porque hoje em dia, a gente culpa até o poder público por esse
lado também, porque assim, não tem orientação de você dizer desse jeito assim, para
as pessoas, de você colocar o seu lixo separado, porque aí o carroceiro passa e aí tá
aqui esses dois saquinhos de lixo aqui [diz exemplificando com dois sacos que
tomou à mão], esse aqui é reciclável e esse aqui não é. Aí o cara pega e joga aqui,
dentro do carrinho dele, o reciclado. E o lixo que não é reciclado ele não vai rasgar o
133
saco, vai deixar lá. Mas o que acontece? Muitas vezes as pessoas colocam
misturado. Aí será que o cara é culpado?! O catador não é culpado, às vezes são a
pessoas mesmo que não têm educação ambiental, de pegar e separar o seu lixo. Aí as
pessoas dizem, catador é culpado! É não! São as pessoas que não têm essa educação,
que não têm essa disciplina e o Poder Público não divulga isso. Isso não é passado
na televisão! (Caio)
Outros chamam a gente, diz que o trabalho é honesto, o trabalho é muito bom pra
gente. Têm muitos deles que acham que os trabalhos da gente é um trabalho
honesto, eles acham que a gente trabalha num trabalho desse, muita gente num tem
coragem de trabalhar, mas muito dizem que é a pessoa só trabalha num trabalho
desse porque a pessoa tem precisão. É isso. (Marlene)
Tem gente muito boa, cara! É por isso que eu disse que no meio dos ruins a gente
tira os bons, e pelos ruins a gente passa. Compensa, compensa. A gente não adianta
explodir, não, nem ficar... Tem que ser de acordo, né. […] Rapaz, tem muita gente
que admira, sabe. Param nos carros, dão dinheiro, dão lanche à gente, dão roupa, dão
cesta básica. Porque a gente além de catar na rua, a gente, qualquer coisinha que eles
pedirem pra gente fazer a gente faz. (Paulo)
A gente passa, no meio da rua, tem gente que às vezes Deus toca no coração delas,
aí ela chama, e junta umas coisinha em casa e dá a nós. […] Tem muita gente que
chama a gente e dá também... as oficinas, aí nós vamos sobrevivendo, dá pra ir. […]
Tem casa que às vezes já guarda pra nós. (Antônio)
Tem muita gente de coração bom, parceiro. Tem canto de às vezes a gente passar e o
povo dá as coisas. Como já vim de lá pra cá, peso, pesado mesmo, sozinho, puxando
o carro e às vezes parar um carro e esticar a mão, dá dez reais, vinte reais, dá uma
alimentação. Também tem muita gente boa. (Roberto)
Eu fazia sempre esse caminho porque era o mesmo caminho porque era o que dava,
né! E o que as pessoas, todo dia eu passava, me conheciam. Ficava conhecido. Opa!
E parava num restaurante, e parava pra merendar e opa, e todo mundo, opa, opa,
opa, olha tenho isso pra você, opa... aí já sabia, porque quando tinha um material pra
tirar também, pra rebolar, aí eu parava, fazia um frete, uma coisa, aí ficava
conhecido. Aí “passa aqui tal dia, passa aqui amanhã ou depois que eu tenho pra
você”, aí separavam, aí eu sempre passava no mesmo dia, nunca mudava a rota.
Porque se mudasse a rota perde a freguesia, aí você não mudando, você fica
conhecido. (Paulo)
discutir acerca do seu próprio trabalho, como os associados, salientam a relevância da catação
para além da satisfação de suas necessidades pessoais:
Os governantes têm que dar mais força num trabalho desse pra gente. É o que a
gente mais precisa. Por quê? Se não fosse esse trabalhozinho aqui, esse trabalho de
reciclagem, como era que tava a cidade? Porque tem carro pra pegar os lixos e você
anda aí no meio do mundo aí nesses cantos, desses terrenos, esses terrenozinhos
baldio é tudo cheio de lixo. Quer dizer, se não fosse um trabalho desse de reciclagem
como era que tava a cidade? Carro não ia dar de conta! Carro de carregar lixo não
dava de conta não! Porque não dava mesmo. (Marlene)
Por esse viés, o trabalho de catador ganha uma relevância sócio-ambiental que não
condiz com a precariedade do ofício e com a forma como seu trabalho é socialmente
percebido. Daí que muitos autores (MAGERA, 2004; LAYRARGUES, 2002; MEDEIROS &
MACÊDO, 2007) assumem uma posição mais crítica, questionando essa forma de inclusão
rota que confere um status de importância ao trabalhador do lixo. Dessa forma, trata-se de
uma inclusão perversa em que a atividade de catação é politicamente correta somente no que
interessa sê-lo. Para Magera (2004),
Nesta senda, Medeiros & Macêdo (2007) convidam a refletir sobre a qualidade da
inclusão que está sendo proporcionada a esses sujeitos que entraram no mercado de trabalho
por vias oblíquas, ou seja, através de uma atividade laboral que, conforme vimos, não lhes
assegura direitos sociais básicos e, com isso, segurança no trabalho. Por isso, as autoras
afirmam que “o catador de materiais recicláveis é incluído ao ter um trabalho, mas excluído
pelo tipo de trabalho que realiza” (MEDEIROS & MACÊDO, 2007, 82).
Na prática, a maneira acrítica de ver o problema termina por servir como forma de
manter precárias as condições de trabalho do catador, sem questionar a omissão do Poder
136
Porém, as estratégias que observo como mais sólidas, porquanto não limitadas à
esfera individual do catador, mas de cunho mais coletivo, são aquelas proporcionadas pela
organização de grupos de trabalhadores da catação em formas associativas. Nesse contexto,
devemos retomar as diferenças observadas entre o trabalho de catação realizado em modelo
associativo e aquele desempenhado avulsamente. Como vimos no capítulo anterior,
conquanto o labor em ambos os locais seja exercido em condições precárias, os catadores
associados gozam de melhores condições em relação ao ambiente de trabalho. Essas melhores
condições são de cunho material, evidenciadas pelo melhor asseio na associação, pela
existência de instalações sanitárias (inexistentes no depósito visitado), eletrodomésticos em
bom estado que os permitem preparar refeições, locais para descanso, sala de reuniões etc.
Contudo, não se limitam a serem apenas de natureza material, havendo também uma série de
diferenças que terminam por propiciar uma melhoria nas condições de trabalho na associação,
tais como a participação em instâncias de discussão sobre os problemas ligados à atividade –
além de amplas temáticas ligadas a pauta de atuação de diversos movimentos sociais –,
formação de lideranças, conscientização política, maior autonomia no que tange ao processo
produtivo do trabalho, laços grupais mais sólidos, de forma que os catadores representam a
atividade não como um processo somente individual, mas inserido no contexto social de que
fazem parte, maior conscientização a respeito do trabalho que realiza, que ganha contornos de
motivações para além daquelas imediatas que o fizeram inserirem-se na atividade.
Muitos autores têm sugerido o trabalho de catação realizada de forma associativa
como forma de maximizar os ganhos, minimizando o caráter precarizante do ofício. Medina
(2007) sustenta que a formação de cooperativas e associações de catadores promove melhor
padrão de vida aos catadores por possibilitar maior autonomia do trabalho. Além dos ganhos
materiais, o autor ressalta que os trabalhadores cooperados também apresentam auto-estima
mais elevada quando comparados com os colegas avulsos (idem, p. 21). Também Medeiros &
Macêdo afirmam que a organização em cooperativas “possibilita uma condição de trabalho
mais favorável, com estrutura física mais adequada e oportunidades de ganho maiores, tanto
na perspectiva material como social” (MEDEIROS & MACÊDO, 2007, p. 90).
Na mesma trilha, Meirelles & Gomes entendem que a formação da cooperativa é
um primeiro passo para o enfrentamento do preconceito em decorrência da atividade laboral
“socialmente repudiada”. Para os autores, “a organização coletiva dos catadores apresenta-se
como uma das poucas alternativas viáveis de resistência para esses atores tão explorados na
cadeia econômica do lixo” (MEIRELLES & GOMES, 2008, p. 16), pois a melhoria de
138
Eu acho bom trabalhar é aqui, na associação. […] É porque aqui, aqui já é da gente.
Aqui é uma coisa que a gente somos associados, e nos outros cantos não é. […] Eu
não acho nada de melhor nos outros depósitos. (Marlene, catadora da Associação
Reciclando)
A vantagem é porque você é mais bem visto. Você é mais respeitado. Porque o
governo não vê tanto como esse lado precário, entendeu? Como a sociedade vê,
critica um pouco. Porque como existe a crítica perante a sociedade, perante os
catadores... (Caio, catador da Associação Reciclando)
Rapaz, pelo que eu já ouvi falar eu acho que a cooperativa é melhor, parceiro. […]
Porque... com certeza uma associação de catadores e tal tem uma farda, é tudo
organizado, é... como é que se diz, um cracházinho, talvez no final do mês tem isso e
aquilo. Acho que é melhor. […] E aqui é osso porque a gente trabalha pra caramba.
139
Taí, trabalho a quatro anos, parceiro, então quer dizer que se eu chegar hoje aqui,
entregar esse carro a ele [deposeiro], eu saio com uma mão na frente e a outra atrás
sem direito a p... nenhuma. (Roberto, catador do deposto de Zé Berzerra)
Antônio, catador do depósito de Zé Bezerra, ressalta aquilo que julga ser uma
vantagem no trabalho associado que se relaciona justamente àquela restrita possibilidade de
planejamento dos ganhos, o que confere maior insegurança ao seu trabalho:
Trabalhar em cooperativa deve ser melhor, porque você ganha o seu dinheiro digno
já sem se preocupar, né, que, não hoje eu vou ganhar tanto, eu vou fazer tanto. Não,
já sabia o total que você ia ganhar pra pagar suas dívidas, suas coisas.
Em associação é bom, porque aparece alguma coisa pra gente, aparece alguma
coleta, doação de material pra associação. É mais melhor! Muito! Esses depósitos
véi por aí nem pagar a pessoa que preste não paga. […] Tem nêgo enrolão que
enrola, né. E falta dinheiro. Aqui a menina paga a gente direitinho. Nunca deve a
ninguém, paga em dia. Trabalha direitinho a Rosineide [presidente da associação].
Pra ser um mulher, né... Um dia desses eu fui acidentado, sabe, tava descarregando
esse caminhão aí e caiu uma porta de vidro e pegou cem pontos aqui na perna [diz
apontando para a perna direita]. Não tem a marca porque eles estão passando um
negócio que o cara não vê nem a marca. Foi sangue muito aí. Passei dez dias, foi,
dez dias com a perna ponteada, aí ela pagou minha quinzena, tudinho, pagou tudo.
No depósito aí paga se quiser né, se quiser dar alguma coisa.
materialmente na vida dos agentes. Retomando as reflexões iniciais desse capítulo, temos que
o trabalho é mais que uma forma de satisfação das necessidades materiais, sendo ainda
responsável pela inscrição do sujeito como alguém que tem um lugar social. Mas conferir ao
sujeito um lugar social estigmatizado é marcá-lo do estigma atribuído ao seu trabalho. Assim
é que a associação do trabalho a valores como a defesa do meio ambiente, crescentemente em
voga na contemporaneidade, como vimos no segundo capítulo, permite ao menos mitigar o
estigma. Pensando com Erving Goffman (1982), mais do que autonomia limitada à barganha
de preço, a organização dos catadores em cooperativas e associações, além da interlocução de
experiências através de movimentos organizados em nível local, nacional e global, permite
aos catadores uma autonomia da representação que a sociedade tem construído sobre o seu
trabalho. É pois, uma forma de manipulação de um identidade coletiva simbolicamente
deteriorada, vez que o objeto do estigma não resta passivo diante da representação
estigmatizante que se faz sobre ele, sendo também sujeito do processo de ressignificação de
sua identidade para si e para outrem.
Por outro viés, podemos ainda dizer que conferir um sentido ao trabalho para além
do contido nas motivações primeiras dos indivíduos – que, sem encontrar outra forma de
inserir-se no mundo do trabalho, precisaram penetrá-lo pelas portas dos fundos, por meio de
um trabalho precário e precarizante –, dá ensejo a um relevante processo de ressignificação do
trabalho que atua minimizando os efeitos desgastantes do trabalho. Assim, o trabalho passa a
ser incrementado com um novo sentido (WEBER, 1999, p. 16) que culmina em um maior
reconhecimento social do trabalho. Para Dejours (apud COSTA & MENDES, 2006), o
reconhecimento do indivíduo e de seu trabalho em âmbito social é relevante para ensejar um
processo de mediação entre o sofrimento do trabalho em prazer pelo desempenho do ofício.
Ademais, esse reconhecimento é fundamental para a conquista da identidade social.
Nesse contexto analítico, pode-se mesmo evocar Durkheim (2004) quando trata,
em seu estudo sobre a divisão do trabalho social, acerca da anomia; o pensador francês,
criticando o formato industrial típico da Europa do século XIX, entende que quando os
operários não têm conhecimento da importância de seu trabalho, terminam por apenas repeti-
lo, sem procurar compreendê-lo. Todavia, se o indivíduo desempenha sua função sem perder
de vista o efeito da sua atividade para o trabalho coletivo “ele sente servir a algo”, deixando
de ser apenas “uma máquina que repete movimentos cuja direção não percebe, mas sabe que
tendem a algum lugar, a uma finalidade que ele concebe mais ou menos distintamente”
(DURKHEIM, 1999, p. 390). É, como vimos, o caso de Caio, que passa a inserir suas
perspectivas dentro de um contexto mais amplo que sua esfera pessoal, desejando melhoria na
141
qualidade de trabalho a toda a categoria, e não apenas pra si. Na mesma toada, o auto-
reconhecimento da importância do trabalho em um contexto global, de proteção do meio
ambiente, por parte de Caio, Marlene e seu Teixeira, ainda que não consigam estabelecer
precisamente a relação entre um fator e outro.
Nesse mesmo sentido, catadores de materiais recicláveis narram, no documentário
“Essa gente vai longe...” (2005), a importância da inserção em movimentos organizados dessa
categoria de trabalho como forma de reconhecimento da própria situação e da importância do
seu trabalho como primeiro passo para a percepção da importância de melhorias não somente
em nível individual, mas coletivo.
Hoje eu me vejo como cidadão, e antes eu me via até como o próprio lixo. Não tinha
perspectiva... Antes do movimento [MNCR] eu não tinha essa perspectiva de luta,
de brigar pelos nossos direitos, e hoje eu me vejo como cidadão. (relato de um
catador no documentário “Essa gente vai longe...”)
Antes de está organizado a gente tem o costume de se ver como qualquer coisa
menos um ser humano. Depois de organizado a gente resgata um pouco disso, a
gente resgata a importância de ser trabalhador, perde essa vergonha, perde esse
medo e se sente fortalecido por ser autônomo, por poder trabalhar de uma maneira
digna, decente. (relato de uma catadora no documentário “Essa gente vai longe...”)
SIMBÓLICOS:
• Participação em instâncias de discussão
sobre a atividade;
• Inserção em grupos organizados
MATERIAIS:
• Reflexão sobre a própria situação
• Melhor infra-estutura;
• Melhor compreensão do trabalho
• Vínculo ao Projeto Ecoelce; inserido em uma complexa cadeia;
• Doações de pareceiros; • Ressignificação da atividade
• Apoio do Poder Público; (importância para o meio ambiente e
• Menor incerteza de ganho; gestão de resíduos);
• Maior barganhga de preço; • Maior autonomia;
• Redução das saídas às ruas • Reconhecimento da identidade de
trabalhador;
• Interesse em lutar para melhoria de
condições da sua situação de vida e
trabalho
A inserção desses elementos faz com que se reconheça o trabalho e a luta por
melhores condições não como uma causa individual, mas coletiva, e a ajuda mútua, bem
como a freqüência em instâncias de debate permitem que o catador reflita sobre o seu próprio
trabalho. Se o trabalho é fundamental na construção social dos indivíduos, trata-se, em última
análise, de um importante processo de reconhecimento de si. Sobre o reconhecimento do
processo de luta por melhoria nas condições de trabalho, Caio, catador da Associação
Reciclando, diferencia o contexto em que estão inseridos os catadores da associação em
comparação aos colegas avulsos:
Aqui você sabe que você está lutando numa causa que não é só pra você. Tem o lado
dos companheiros dentro da associação, tem o lado de você estar na convivência e
no dia-a-dia com todo mundo, tem o companheirismo de todo mundo estar batendo
papo, de estar jogando, estar conhecendo a realidade de cada um. […] Eu acho que
143
no depósito não tem isso não, porque no depósito você sai com a carroça, você se
manda. O dono do depósito só está interessado em lucro pra ele. (Caio)
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS:
ABREU, Maria de Fátima. Do lixo à cidadania: estratégias para a Ação. Brasília: Caixa, 2001.
ALBIN, Ricardo Cravo. O livro de ouro da MPB: a história de nossa música popular de sua
origem até hoje. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.
AMERICAN PUBLIC WORKS ASSOCIATION. Institute for solid wastes. In: Solid waste
collection practice. 4 ed. Chicago: Illinois, 1975.
ARENDT, Hannah. A condição humana. 7 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.
ASMARE – Associação dos Catadores de Papel, Papelão e Materiais Recicláveis. Sítio virtual
da associação localizada em Belo Horizonte – MG. Disponível em: <
http://www.asmare.org.br >. Acesso em 31/03/09.
BERMAN, Marsall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São
Paulo: Companhia das Letras, 2006
BERTHIER, H. Castillo. Garbage, work and society. In: Resources, Conservation and
recycling. v. 39, p. 193-210, 2003.
BOCA DE LIXO. Diretor: Eduardo Coutinho. Produção: Eduardo Coutinho. São Paulo:
CECIP – Centro de Criação de Imagem Popular, 1992. 1 DVD (49 min), son. color.
BONNER, Chris. Waste pickers without frontiers. South African Labour Bulletin. vol. 32, n.
4, out/nov 2008. Disponível em: < http://www.wiego.org/papers/5334%20SALB%20Waste
%20Pickers.pdf >. Acesso em 22/02/09.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 9 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.
CALVINO, Ítalo. La poubelle agréée. In: O caminho de San Giovanni. São Paulo: Companhia
das Letras, 2000.
CAROLINA. Direção: JefersonDe. Intérprete: Zezé Mota. São Paulo, 2003. 35 mm (14 min),
son., color.
CEMPRE, Compromisso Empresarial Para a Reciclagem. Sítio virtual com informações sobre
reciclagem, empresas eco-eficientes, cotação do lixo. São Paulo. Disponível em: <
http://www.cempre.org.br > Acesso em: 14/03/09.
COSTA, Pedro Nicolaci da. Desemprego deve beirar 10% nos EUA com piora de cenário. O
Globo, Rio de Janeiro, 11 mar. 2009. Disponível em: <
http://oglobo.globo.com/economia/mat/2009/03/11/desemprego-nos-eua-deve-beirar-10-com-
piora-de-cenario-754782189.asp >. Acesso em 12/03/09.
CRIANÇAS INVISÍVEIS. Direção: Mehdi Charef, Kátia Lund, John Woo, Emir Kusturica,
Spike Lee, Jordan Scott, Ridley Scott e Stefano Veneruso. Produção: Maria Grazia Cucinotta,
Chiara Tilesi e Stefano Veneruso. São Paulo: Paris Filmes, 2005. 1 DVD (116 min), son,
color.
DELEUZE, Gilles. Post-scriptum sur les sociétés de controle. In: Pourparlers. Paris : Minuit,
1990. pp. 240-247.
DUPAS, Gilberto. A lógica da economia global e a exclusão social. In: Estudos Avançados, v.
12, p. 121-159, 1998.
DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. 8 ed. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1977.
_________________. A divisão do trabalho social. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
ESPAÇO ECOLÓGICO NO AR. Portal virtual sobre meio ambiente. Disponível em: <
http://www.espacoecologiconoar.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=938
3&Itemid=59 >. Acesso em 16/02/09.
153
ESSA GENTE VAI LONGE... Direção: Argemiro Almeida. Produção: Carla Resende Lima;
Davi Amorim; Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR). São
Paulo, Novo Olhar Multimídia – Rede Rua de Conunicação, 2005. (20 min), son., color.
Disponível em: < http://www.mncr.org.br/box_3/audio-e-video/video/sevenvideo_view/?
vdid=BtUp9ZSQ7lg&idobj=mncr-essa-gente-vai-longe >. Acesso em 17/03/09.
FÓRUM NACIONAL LIXO E CIDADANIA. Sítio oficial do fórum. Disponível em: <
http://www.lixoecidadania.org.br >. Acesso em: 17/09/08.
FOUCAULT, Michael. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 11 ed. Rio de Janeiro: Vozes,
1987.
FRANKLIN, R.N., PINTO, E.C.M.M., LUCAS, J.T., LINNÉ, M., PEIXOTO, R., SAUER,
M.T.N., SILVA, C.H., NADER, P.J.H. Trabalho precoce e riscos à saúde. Adolescência
Latinoamericana, 2, (2), 2001, pp. 80-89.
FREIRE, Lusiana. Crise financeira global afeta catadores em Fortaleza. O Povo, Fortaleza.
Negócios. 04 fev. 2009.
GIL, Ana Helena Correa de Freitas; GIL FILHO, Sylvio Fausto. Geografia do cotidiano: uma
leitura da sociologia sócio-interacionista de Erving Goffman. Ateliê Geográfico. Goiânia:
UFG – IESA. vol. 2, n. 4. agosto de 2008. pp. 102-118.
GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4.ª ed.
Rio de Janeiro, Zahar, 1982.
HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo: Companhia das Letras,
1995.
ILHA DAS FLORES. Direção: Jorge Furtado. Intérprete: Ciça Reckziegel. Porto Alegre:
Casa de Cinema de Porto Alegre, 1989. 1 DVD (13 min), 35 mm., son., color.
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática,
2005.
LIXÃO se forma no meio do Oceano Pacífico. Portal Fantástico, Rio de Janeiro, 15 mar.
2009. Disponível em: < http://fantastico.globo.com/Jornalismo/FANT/0,,MUL1003242-
15605,00-O+PLANETA+ESTA+AMEACADO+PELA+POLUICAO.html >. Acesso em:
17/03/09.
MAIA, Janine. Crise econômica afeta as vendas dos catadores. Diário do Nordeste, Fortaleza.
Cidade. 22 jan. 2009.
MARX, Karl. Para a crítica da economia política. in: Os Pensadores. São Paulo: Abril
Cultural, 1978.
MAUÁ: O imperador e o rei. Direção: Sérgio Resende. Produção: Joaquim Vaz de Carvalho.
Intérpretes: Paulo Betti; Malu Mader; Othon Bastos; Antônio Pitanga; Michael Byrne. São
Paulo: Columbia Tristar do Brasil, 1999. 1 DVD (132 min), son., color.
MEDINA, Martin. Waste Picker Cooperatives in Developing Countries. Paper prepared for
WIEGO/Cornell/SEWA Conference on Membership-Based Organizations of the Poor,
Ahmedabad. India, 2005. Disponível em: <
http://wiego.org/ahmedabad/papers/final/Medina_MBOP.doc >. Acesso em 21/03/09.
MEIRELLES, Delton Ricardo Soares; GOMES, Luiz Cláudio Moreira. A busca da cidadania:
A Cooperativa de Catadores de Materiais Recicláveis do Aterro Metropolitano de Jardim
Gramacho, em Duque de Caxias – RJ. 2008. Disponível na Internet em: <
www.abep.nepo.unicamp.br/encontro2008/docsPDF/ABEP2008_1139.pdf >. Acesso em
28/12/08.
MNCR – Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis. Sítio virtual oficial do
movimento. Disponível em: < http://www.movimentodoscatadores.org.br >. Acesso em:
17/03/09.
MOTA, Adriana Valle. Do lixo à cidadania. In: Democracia Viva. Rio de Janeiro, n. 27, jun-
jul, 2005.
NASCIMENTO, Elimar. Hipóteses sobre a nova exclusão social: dos excluídos necessários
aos excluídos desnecessários. ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS. 18, Caxambu: nov. 1994.
OIT: Desemprego no mundo registrou recorde histórico em 2006. UOL Notícias. São Paulo.
24 jan. 2007. Disponível em: < http://noticias.uol.com.br/economia/ultnot/2007/01/24/
ult1767u84851.jhtm >. Acesso em 04/03/09.
PARKER, David L. Street children and child labour around the world. The Lancet. Vol. 360,
dez 21/28, 2002. pp. 2067-71.
PATU, Gustavo; SOFIA, Julianna. Gasto com seguro-desemprego é recorde. Folha de São
Paulo, São Paulo. Dinheiro. 15 mar. 2009.
PEDIDOS de seguro-desemprego sobem em 9 mil nos EUA. Último Segundo, São Paulo, 12
mar. 2009. Disponível em: < http://ultimosegundo.ig.com.br/economia/2009/03/12/
pedidos+de+seguro+desemprego+sobem+em+9+mil+nos+eua+4720934.html >. Acesso em:
12/03/09.
PLANETA ORGÂNICO. Portal virtual com informações sobre lixo, orgânicos, mercado e
serviços. Disponível em: < http://www.planetaorganico.com.br >. Acesso em 15/02/09.
157
PORTO, Marcelo Firpo de Souza et alli. Lixo, trabalho e saúde: um estudo de caso com
catadores em um aterro metropolitano no Rio de Janeiro, Brasil. Cadernos de Saúde Pública,
Rio de Janeiro, 20(6): 1503-1514, nov-dez, 2004.
PRADO JR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo. 23 ed. São Paulo: Brasiliense, 2006.
QUINTAS, José da Silva. A questão ambiental: um pouco de história não faz mal a ninguém.
Digitado. Brasília: Ministério do Meio Ambiente, dos Recursos Hídricos e da Amazônia
Legal – MMA. 1992.
REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito. 27 ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
RECICLAGEM.NET. Portal virtual sobre reciclagem e meio ambiente. Disponível em: <
http://www.compam.com.br >. Acesso em 15/02/09.
RIBEIRO, Túlio Franco; LIMA, Samuel do Carmo. Coleta seletiva de lixo domiciliar: estudo
de casos. Caminhos de Geografia 1(2) 50-69, dez, 2000.
RIFKIN, Jeremy. The end of work: the decline of the global labor force and the dawn of the
post-market era. Nova Iorque: Putnam Book, 1995.
ROCHA, Pedro; GALVÃO, Lúcia Helena. Descartes Gadelha: o menino que ainda brinca na
rua. O Povo, Fortaleza. Páginas Azuis. 23 jun. 2008.
158
SANTOS, João Bosco Feitosa dos. O avesso da maldição do gênesis: a saga de quem não tem
trabalho. São Paulo: Annablume; Fortaleza Secretaria da Cultura e Desporto do Governo
Estadual do Ceará, 2000.
SANTOS, Tereza Luiza Ferreira dos. Coletores de lixo: a ambigüidade do trabalho na rua.
São Paulo: FUNDACENTRO, 1999.
SOARES, Camille. Boas ações geram lucros. O Povo, Fortaleza. Economia, p. 31, 13, jan,
2008.
SOARES, Pedro. Crise empurra 88 mil para o subemprego. Folha de São Paulo, São Paulo.
Dinheiro, 08 mar. 2009.
SOUSA, Cleide Maria; MENDES Ana Magnólia. Viver do lixo ou no lixo? A relação entre
saúde e trabalho na ocupação de catadores de material reciclável cooperativos no Distrito
Federal – estudo exploratório. Revista Psicologia: organizações e trabalho. Universidade
Federal de Santa Catarina. vol. 6, n. 2, jul-dez, 2006.
TELLES, Vera da Silva. Mutações do trabalho e experiência urbana. In: Tempo Social.
Revista de Sociologia da USP. São Paulo, v. 18, n. 1, p. 173-195, 2006.
VOSKO, Leah F.; ZUKEWICH, Nancy; CRANFORD, Cynthia. Le travail précaire: une
nouvelle typologie de l’emploi. Toronto, Perspective, vol. 4, n. 10. outubro, 2003. pp. 17-28.
WILSON, David; VELIS, Costa; CHEESEMAN, Chris. Role of informal sector recycling in
waste management in developing countries. Habitat International, n. 30, Vancouver, 2006.
pp. 797-808.
160
ANEXO
2) Quantos anos você tinha quando começou a trabalhar pela primeira vez?
8) Como foi o seu ingresso na atividade de catação? Aonde iniciou o trabalho? Aonde
trabalha atualmente?
9) Como é o seu dia de trabalho? (duração da jornada; que horas começa e termina;
quantas vezes por semana)
10) Quanto você apura com a catação (por dia, semana ou mês)?
11) Você tem algum outro tipo de ganho? (Alguém da família ou programa do governo...).
PARA COOPERADOS: Você gosta de trabalhar como cooperado? Por quê? Vantagens e
desvantagens em ser cooperado.
14) Como você sente que a população percebe o catador e seu trabalho? Você já sofreu
preconceito? Tem alguma história a esse respeito?
22) O que você espera do seu futuro? (do ponto de vista individual e familiar)