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Que será das minhas lembranças, tantos anos passados, tanta vida escorrida, tanto mar entre nós?
Onde ficou a menina feinha, encolhida no alto daquele castelo tão grande?
Onde as casas brancas a luzir sob o sol e as pedras a escaldarem os pés descalços?
Onde o verde poisio, pintado de flores amarelas e vermelhas e brancas e roxas e cor-de-rosa e azuis e
alaranjadas e...
Onde o grande rio embaixo das tábuas da ponte e o medo de cair por entre elas?
Onde o cheiro dos pinheiros e o veludo do musgo sob os pés?
Onde as laranjeiras e os figos pingo-de-mel e a roseira-de-alexandria e o chiado da nora na tarde quente de
julho?
Onde os cardos azuis, o tojo a espetar a pele e o perfume das giestas?
Onde o grande silvado carregado de amoras e os arranhões para as apanhar?
Onde o medo de andar sozinha, o silêncio dos eucaliptos e a tarde a acabar e a casa que nunca chega?

Onde a dor de vir embora, a faixa de água cada vez mais larga, o choro solto, o porto cada vez mais longe?
Onde fiquei eu por esses caminhos, o que de então ainda existe em mim?
 

O brado retumbante

Imaginem uma menina minúscula, magríssima, com uma saia escolar que chega quase aos tornozelos, na
cabeça um laço de fita enorme, como uma hélice.
Chega?
Imaginem que ela fala português de Portugal, com todos os esses e erres a que tem direito e um vocabulário
que suas colegas do primeiro ano só vão descobrir quinze anos mais tarde.
Acabou?
Imaginem agora que ela sobe a uma cadeira, diante da escola toda, e canta orgulhosamente... o Hino
Nacional Brasileiro.

Sua vivacidade era uma vantagem: entendia tudo, aprendia fácil, recebia elogios. Mas era também um peso:
via com uma lucidez dolorosa sua pobreza, seus sapatos acalcanhados, seus vestidos fora de moda, a
humildade do pai, a alegria camponesa da mãe, grande e clara demais para o quarto-e-cozinha apertado e
escuro em que viviam.
(1.8.91)

Era um quintal, não um cortiço, que cortiço era aquele corredor estreito e escuro onde morava a Dona
Idalina. O quarto de um lado, a cozinha de outro, tinha-se de andar à vista de todos com a roupa de dentro,
no desalinho do sono recente, ou falar alto de um cômodo para o outro, a mostrar aos de fora a intimidade
mais funda. Na linguagem dos pobres de São Paulo, morar num quintal era atingir uma dignidade que os
dos cortiços ainda não tinham: quarto e cozinha juntos, alinhados em volta de um páteo ensolarado. Era a
moradia dos muito pobres, mas ela podia dizer sem ter vergonha que vivia lá.

Havia a Dona Rosa Batateira, muito magra, com seu agudo falar de Trás-os-Montes, a gritar com
os filhos por nada, a chorar de saudade da mãe que ficara na terra, a cantar alto às vezes, acompanhando a
música do rádio. Era muito asseada, mais do que as outras, os lençóis sempre alvos no varal suspenso por
taquaras, as panelas areadas com esmero, o cabelo a cheirar a sabão de coco, a blusa branca passadinha.
9-7-92
Era uma boa pessoa, a Dona Maria.
3

Em Portugal, sentar-se à mesa para comer é uma alegria. Por mais simples que seja, a comida é sempre
saborosa, feita com cuidado e servida com carinho.
 

Há mais de mil anos Portugal é um país de lavradores e navegantes. Por isso, sua cozinha tem sabor de
campo e de mar. Couves, batatas, ervilhas, favas, cenouras, pimentos, nabos, nabiças, tremoços, grão-de-
bico, azeitonas, castanhas, amêndoas; laranjas, pêssegos, figos, ameixas, uvas, pêras, maçãs; lingüiça,
chouriço, paio, presunto, pernil, leitão.
Bacalhau, sardinha, amêijoas, sável, lulas, polvos, enguias, carapaus.
E ovos, muitos ovos. Os doces portugueses são milagres feitos de claras, gemas, açúcar e as sábias mãos das
mulheres das cidades, vilas e aldeias de Portugal.
(9-9-91)

A experiência de emigrar é uma das mais intensas que alguém pode ter. A faixa de mar que me separa de
onde eu vim não é só uma realidade de espaço. É também uma ruptura no tempo, uma fenda na vida: ontem
fica do lado de lá e é irreparavelmente memória pura. Não há referencial físico para ele. Ontem só existe em
minha mente.
outubro/91

5
O rio
O rio Tietê ainda era limpo. Não muito limpo, é verdade, de vez em quando apareciam latas,
caixotes, animais mortos. E ninguém via as pedras do fundo, como se dizia dos límpidos regatos do interior.
Mas o rio era limpo, sim. As pessoas já tinham saudade, porque o tinham conhecido cheio de barcos de
regatas, de lavadeiras e até de nadadores. Quando eu o vi ainda havia alguns remadores ao domingo, mas a
nadar ninguém mais se animava. E as tábuas de lavar roupa eram muito poucas, meio enterradas no barro
cinzento da margem, parece que as donas as tinham abandonado porque não valiam o esforço, estavam
muito velhas. Agora era na lagoa, escura e limpinha, que as mulheres iam duas ou três vezes por semana.
Ajoelhadas sobre as tábuas, como se fossem genuflexórios, passavam o dia a esfregar, enxaguar, quarar,
torcer, estender e tagarelar.
Por cima do rio passava uma ponte de madeira sobre tambores. Atada às margens por cabos de aço,
dava uma estranha impressão de barco amarrado. Balançava com os passos dos que atravessavam e movia-
se um pouco com o vento. Eu tinha medo de que os cabos se quebrassem. Isso aconteceu algumas vezes, mas
nunca pelo peso das pessoas. Era o rio que partia os cabos e nos levava a ponte. Tínhamos então de
atravessar num barco da prefeitura, também preso à margem por um cabo, que um barqueiro conduzia para
lá e para cá com um único remo. (Vai ver não era um remo, mas uma enorme vara, ou o que era, que não
me lembro? É impossível dar ordens à memória, ela é que sabe o que me quer dizer.)
 

No meio, a ponte era mais elevada. Subia-se uma escada, via-se o rio mais de cima, andavam-se
alguns passos, descia-se outra escada. Diz que o vão da parte mais alta era para passarem os barcos. Eu acho
que era para deixar o rio mais bonito.
 

6
A avó

Nunca a tinha conhecido sadia. Já era doente quando ela nascera, vivia sentada na cama. Seus ais ecoavam
na casa, enchiam-na de uma dor vaga, que todos se esforçavam por ignorar. Era tão velhinha, tudo a
incomodava. O travesseiro alto demais, os pés frios, a manta pesada, a sede, a dor do lado. Andava a meses,
dizia-se: desde que adoecera, ficava um mês ou dois na casa de cada filho, burocrática maneira de lhe dar o
afeto e os cuidados de que precisava.
Muitas vezes, quem atendia aos chamados era a neta. Ia buscar água, levava o prato depois da refeição,
ajeitava-lhe a cabeça para não lhe doer o pescoço. O quarto da avozinha era uma consolação. Fresco e
cheirando a lençóis lavados e ao álcool dos curativos, era para lá que ela ia quando se cansava de correr ou
brincar embaixo das árvores. A avó contava-lhe histórias, ensinava-a a rezar, ouvia-lhe a conversa de
menina. Quando aprendeu a ler, sentava-se na beira da cama alta de ferro azul, a cartilha no colo, os pés a
balançarem no ar, e recitava as lições do dia. A avó não sabia ler, ficava contente de a ver tão esperta e
tagarela.
Naquele dia não tinha nada nas mãos. Foi até o quarto devagar, encolhida, já era tempo, não podia esperar
mais. Ela estava recostada, os olhos fechados, mas não dormia.
-- Avozinha...
Abriu os olhos, estendeu-lhe a mão, estava quentinha.
-- Avozinha, vou para o Brasil.
Os dedos macios apertaram um pouco a mão pequenina.
-- Já lá tenho tanta gente... Está lá o José, está a Celeste...
-- Vou-lhe escrever... Conto-lhe como é...
-- Nunca mais te vejo.
O coração apertado, o choro a correr pela cara. Nunca mais, nunca mais...
Nunca mais, enquanto vivesse, se lembraria da avó com os olhos enxutos.

7
Céu e mar, céu e mar, céu e mar. O barulho das ondas no casco. Azul, azul, azul. Espuma. Enjôo, vômito,
vertigem. Negrume, silêncio. Estrelas. Luzes no mar. Brilho vermelho na água. Claridade. Azul, Azul, azul.
Langor, preguiça, espera. Céu e mar, céu e mar, céu e mar. (18.12.91)

8
 

O mar

No alto da duna, de repente, a imensidão verde-clara. O coração na boca, os olhos cheios de água, uma dor
funda, uma alegria que não cabe no corpo e faz brilhar a areia e queimar a pele. Eram brancas assim as
dunas, e imensas assim, e belas assim. E brilhava assim o mar, mas sua luz era azul. E doía assim a beleza
azul e branca.

Sua aldeia ficava atrás das dunas. Era perto do mar, mas o mar não se via. Era um som. Tinha nascido com
ela, acompanhava-a a cada momento. Era um reboar surdo, que vinha de longe, do mesmo lado em que o
céu ficava vermelho ao sol-posto e onde brilhavam os relâmpagos. "São calmarias", diziam os mais velhos.
Era de lá também que vinham todas as tardes as varinas, com as canastras à cabeça, vender sardinha. Era
isso o mar. Clarões, sardinhas, palavras desconhecidas e aquele troar constante.
Às vezes o mar parece que ficava mais perto. O pai ia para lá e voltava mais cansado do que sempre.
Contava coisas de redes muito cheias, que os bois que as puxavam não tinham podido com elas sozinhos. E
trazia grandes peixes, que a mãe preparava para a ceia. A caldeirada espalhava pela casa um cheiro bom de
azeite e alho, e as rodelas de tomate enfeitavam de encarnado a terrina branca.
E havia ainda as histórias tão lindas dos marinheiros que se perdiam no mar e iam dar a ilhas distantes. O
que eram ilhas distantes, o que seria perder-se no mar? O que era afinal o mar?
Um dia, tinha cinco anos, levaram-na até ele. Era longe, andou muito tempo, os pezinhos a enterrarem-se
na areia branca. E então lá estava o som. Ia e vinha e era azul. E brilhava. Com medo, agarrada à madrinha,
sentiu-lhe o frio e a força. Molhou-se toda, encheu-se de sal, caiu uma vez, e outra, deixou-se ficar sentada a
salvo das ondas até a pele arder. E encheu os olhos de seu azul, sentiu-lhe o cheiro de salsugem, mergulhou
os pés na areia grossa, cheia de conchas desfeitas e de pedriscos branquinhos.
Nunca mais deixou de amá-lo. Viu-o depois muito diferente, durante a longa travessia que a trouxe de sua
terra. E outro ainda, muitos anos passados, já não era azul, nem era tão frio, e as ondas não reboavam tanto.
Mas era o mesmo para ela. Uma luz, uma alegria, uma dor funda, o coração na boca. O mar.
(7.2.92 e 10.2.92)

A aldeia
Por que é que uma aldeia se chama assim? Por que é que não é vila, ou cidade, ou povoado, ou bairro? Uma
aldeia tem casas. E quintais. E ruas tortas, por onde andam pessoas, animais e bicicletas. E automóveis, por
que não? Às vezes passa um ou outro. Ou passava, há muito tempo, porque hoje deve ser um grande
vaivém, já que afinal também as aldeias progridem, ou vocês pensam que não?
 

Mas vamos aos poucos. Casas, quintais e ruas, também as cidades têm, e os bairros, as vilas, os povoados e
todos os lugares que os homens fizeram para levar a vida junto com os outros, que ninguém pode viver
sozinho. O que é que faz de uma aldeia o que ela é? As cidades são muito grandes, têm muitas casas e lojas
e repartições e igrejas e fábricas e escolas e muitos carros e ônibus que soltam grandes nuvens de fumaça, e
tantas coisas mais para todas as pessoas se sentirem importantes porque vivem nelas. Uma aldeia não faz
ninguém importante. Só se vive nela.
Dizem os geógrafos, que ganham a vida a pensar sobre o espaço de perto e de longe, que as pessoas das
cidades trabalham por lá mesmo e quando vão ao campo é para sentir um cheiro que dizem ter o mato e
comer umas frutas que na cidade também há, mas embrulhadas. A pensar assim, as aldeias são lugares onde
as pessoas não trabalham. Elas andam um pouco e vão trabalhar nos seus quintais, que têm o cheiro de que
os da cidade gostam e umas frutas que são muito boas mas dão um trabalho imenso a cultivar.
Eu acho que os geógrafos devem ter toda a razão do mundo. Eles lá estudam tantos anos, ficam todos a
pensar muito sobre essas coisas e certamente é com eles que está a verdade. Mas eu tenho às vezes vontade
de não concordar. Há muitos anos vivi numa aldeia. Tinha casas, quintais, ruas tortas e mais algumas
poucas coisas que faziam dela o que ela era. Tinha uma praça onde fui atropelada por uma bicicleta
vermelha, uma capela onde íamos todos falar com Deus e uma azenha muito velha, sobre um riozinho
barulhento, com uma ponte que dava muito medo.
Os que estudam devem ter razão mesmo, há de haver motivos fundamentais para uma aldeia não ser uma
cidade nem mesmo uma vila ou um povoado. Não que eu queira polemizar com esses senhores, afinal são
eles que pensam todo o tempo. Mas eu acho que uma aldeia não é uma aldeia por nenhum desses motivos
importantes, que os sábios descobriram à custa de tanto pensar. As aldeias têm esse nome porque aldeia é
uma linda palavra de origem árabe, que os portugueses adotaram porque gostam de lugares para viver,
embora tenham de sair deles tantas vezes, e porque são encantados com palavras bonitas. Como um amigo
meu que nunca comeu filhoses, mas acha que com um nome assim tão lindo só podem ser muito boas.
(11.2.92 e 12.2.91)
Nos primeiros tempos, lembrava-se muito de sua aldeia. À noite, já para dormir, o rumor dos caminhões que
passavam na Dutra embalavam-na como o mar de sua terra. Parecia-lhe mesmo o mar aquele ruído que
vinha e ia embora, longínquo e constante. Abria os olhos sobressaltada e uma tristeza branda lhe tomava o
peito. Não era o mar e ela estava muito longe da ensolarada aldeia entre dunas onde passara seus primeiros
sete anos. No Brasil não havia aldeias? Onde estavam os campos e as casas brancas com grandes quintais e
os trigais dourados cheios de papoulas?

10
O pai
Uma noite, de seu quarto já às escuras, ouviu o choro da mãe. O pai falava baixo, com longas
pausas. Argumentava com os soluços da mulher, pareceu-lhe que chorava ele também.
 

O pai era um homem bonito, de olhos azuis muito claros, que a mãe tinha roubado a todas as
outras moças da aldeia e disso se gabava com sua cara luminosa. Tinha mãos grandes e nodosas, a pele
grossa do cabo da enxada e da mão do arado. Mas não era rude, longe disso. Tinha uma voz grave e muito
sonora e seu toque era suave quando a trazia pela mão.
Gostava de música. Aos sábados, ficava muitas horas na barbearia, a ouvir o único rádio
da aldeia. E nas longas noites de inverno, quando a mãe e as outras mulheres bordavam tapetes ou
tricotavam as malhas quentinhas para o frio de fevereiro, ele lia para todos o jornal da semana. (19.2.92)
Ela ouvia maravilhada. Que mágica seria essa, que transformava em palavras aqueles sinais
encarreirados no papel? Certamente era uma coisa difícil demais, nunca sua mentezinha chegaria a tal
proeza. Algumas palavras repetiam-se sempre e seu significado nunca a alcançava. O que era "Estados
Unidos", quem eram aquelas pessoas de nomes arrevezados, que diziam coisas tão importantes que todos
deviam saber que as tinham dito? Alguém entenderia aquilo tudo? Só o paizinho, com certeza.
O pai tinha um canivete. Era pequeno, afiado, de cabo de chifre meio amarelo, com umas marcas
escuras. Com o canivete ele cortava-lhe as laranjas antes que ela aprendesse tal arte e também fazia pífanos
com pedaços de cana, mesas, cadeiras e alguidares de brinquedo, que ela exibia orgulhosa às outras
meninas.
Aquela noite, quando ouviu a mãe chorar, adivinhou. Ele ia embora, como já tinha ido o primo
João, o André Esteves, o Jacinto da Ti Antónia e o Basílio do pinhal de cima. Agora era a vez dele. Chegaria
breve o dia em que sua casa se encheria de gente e todos mandariam muitas lembranças aos que estavam
onde ele ia e consolariam a mãe e prometeriam amparo e diriam tudo se há de arranjar, se Deus quiser, que
a vida é assim mesmo, nem tudo pode ser sempre como gostaríamos. Era a vez de a mãe chorar todos os
dias e de esperar o carteiro todas as semanas e de trabalhar muito sozinha para que não lhe faltasse alimento
e aos irmãos pequeninos. E era a sua vez de sentir saudade, de lhe faltar a mão calosa e a voz grave que
tantas vezes a acordava e os braços que a erguiam para subir ao carro de boi e os olhos claros que ela
procurava sempre que alguém lhe fazia mal.
Depois daquela noite, o pai foi muitas vezes à cidade, ficava todo o dia, voltava de madrugada.
Andava a dar as voltas, dizia-se. E chegavam umas cartas do Brasil (tão longe seria!) em envelopes com
listas verdes e amarelas, e havia grande alvoroço quando vinha o carteiro. O pai nunca mais foi o mesmo.
Olhava longamente para ela, às vezes os olhos azuis enchiam-se de água e ele virava-se depressa a limpar a
cara com as costas da mão.
Ela aprendia a bordar. Alguns riscos num resto de pano, pontos incertos, correntinhas, pontos de
haste. Um dia, os luminosos olhos do pai pousaram sobre o bordado e brilharam um pouco mais.
-- Queres lembrar-te de mim quando eu me for?
-- Quero que o paizinho não se vá...
Ele pegou o pano onde ela fazia uma bainha torta, tirou um lápis da gaveta e riscou, trêmulo, com
esforço para fazer letras grandes.
 

-- Cobre estas letras com teu bordado, rica filha. Quando o tiveres acabado, voltaremos a nos
encontrar.
Depois que ele se foi, enchendo a madrugada de soluços, ela pediu à mãe linha e agulha e começou
a bordar em vermelho aqueles sinais das mãos do pai. Não sabia o que diziam, nem fez muito por saber.
Bastava-lhe apressar o tempo, cobrir sem demora o intervalo que a separava dele.
Um ano depois, quando se juntaram outra vez, ela mostrou-lhe o guardanapo, passado a ferro e
engomado pela mãe. Os pontinhos vermelhos cobriam com capricho de bordadeira aprendiz a frase singela:
LEMBRANÇA DO PAIZINHO.

O passeio
No primeiro domingo depois da chegada, o pai levou-a ao parque. A mãe fez um farnel e lá foram
todos, de bonde, até a cidade. Ela nunca tinha visto nada assim. Tantas ruas, tantas casas tão altas, tanta
gente. Olhou-se prosa, no vestidinho estampado, tão lindo, que a mãe fizera antes de embarcarem. As
meninas brasileiras tinham todas vestidos de organdi (assim lhe parecia), muito finos e engomados, mas não
tão alegres como o seu. Era branco, com muitas flores, como ela gostava: rosas vermelhas, miosótis azuis,
malmequeres amarelos e umas outras de que não sabia o nome, as folhas muito verdinhas, umas claras,
outras mais escuras. Ainda se lembrava de quando a mãe tinha comprado o tecido e o colocara dobrado
sobre a máquina de costura. Não conseguia tirar os olhos dele. Tão lindo! Foi muitas vezes olhá-lo, já tinha
até vergonha de que a vissem e a achassem tola.
O bonde passou pela ponte sobre o Tietê. Aquele rio comprido, mas tão estreito (assim lhe parecia,
ela que só conhecia a larga foz do rio de sua terra) era belo, mesmo assim. A ponte muito alta, a fita
prateada embaixo, o bonde a correr muito, barulhento, às vezes deslizava, outras tremia um pouco, por que
seria?
Seguiram tempo imenso pela longa avenida, cheia de letreiros. Ela já sabia ler, não se lembram?
Casa Gomes, Relojoaria Suíssa, Pastifício Ara... Arac... Aracy! Rua Rubino de Oliveira, Rua Bresser, Largo
da Concórdia, Rua Vasco da Gama, Parque Dom Pedro.
O pai ajudou-a a descer do estribo quando chegaram. O parque era imenso (assim lhe parecia),
cheio de árvores, a relva muito verde picava-lhe os tornozelos. Mas que bonito era! Salgueiros enormes
dobravam-se sobre a água do rio...
-- ...Tamanduateí, chama-se ele. Dizem que foram os índios que assim o chamaram, há muito
tempo.
No Brasil havia coisas com estranhos nomes, começava ela a descobrir. E coisas estranhas também,
que nunca havia visto antes, por mais que tivesse visto tantas coisas, como lhe parecia.
Como aquelas árvores, muitas, que havia no parque. Nunca vira nada igual. Ela conhecia muitas
flores. Às vezes parecia-lhe que tinha nascido no meio delas. Havia-as de todas as cores, muito mais nos
jardins que no seu vestido. E de todos os tamanhos, dos girassóis às gipsofilas. Árvores, também já tinha
visto muitas. Laranjeiras, macieiras, pereiras, ameixeiras, todas tinham flores: cor-de-rosa, brancas,
 

esverdeadazinhas. Havia umas que cobriam as árvores todas, como as das amendoeiras. Eram pequeninas,
as flores da amendoeira. Mas tantas eram, abertas ao mesmo tempo, que não se via mais nada.
Aí estava a diferença. As grandes flores tinham-nas as ervas, ou os arbustos. Abóboras ou lírios,
ficavam todas ao rés do chão. Os girassóis eram maiores, mas deles ela não gostava muito. Mas aquelas,
não. Eram grandes, rosadas e lindas, lindas, meu Deus! E nasciam em imensas árvores, isso nunca tinha
visto. Que excesso era esse, árvores tão altas, com flores tão grandes e belas como poucas?
Belas como nenhuma, concluiria mais tarde. Eram como lírios, mas muito mais bonitos e maiores e
em número tal como nunca vira. Como é que se fazia um ramalhete daquelas flores? Não se fazia, percebeu
logo. Elas cobriam as árvores, mas não podiam ser apanhadas, tão altas estavam. Havia muitas na relva,
mas sésseis, para apanhá-las era preciso segurar as pétalas. Que flores eram aquelas, afinal?
A tarde toda correu pelo parque atrás delas. Apanhou muitas, que olhava, cheirava e atirava
novamente ao chão, era lá que ficavam bem. Não eram para ramalhetes, não serviam para a casa, nem para
dar a ninguém serviam. Eram só para ver, pensou então. E pensou pelos anos a fora, sempre que viu uma
paineira.
Eram só para ver, as flores de paineira. E para achar belas, e para alegrar a alma, e para lembrar a
toalha estendida sob os salgueiros: pão, carne, ovos, laranjas, pão-de-ló, guaraná. O primeiro passeio que
fez depois que chegou ao Brasil.
______________________________________________
(era assim que se dizia, e não centro, como hoje; afinal, essas coisas de centro e periferia só muitos anos
depois sairiam dos livros para a rua, das discussões de professores quase sempre maçantes para o falar de
todas as pessoas).
O bonde era daqueles abertos, com o cobrador a andar no estribo, de que todos os que têm idade para isso se
lembram ainda hoje. Aquele mesmo, com um anúncio do Rum Creosotado de que todos também se
lembram, quando querem falar dos bons tempos em que a propaganda eram reclames e dizer que era melhor
então do que agora.
 

Passou dez dias no navio, entre o céu e o mar. Pela vida toda se lembraria do cheiro: madeira
envernizada, comida, salsugem, desinfetante. Cheiro de navio, pensaria muitas vezes, sem saber muito bem
o que era ou se todos sentiam assim.
Seus passinhos miúdos cortaram muitas vezes o corredor da terceira classe, cheio de portas
fechadas, em busca do convés. Lá ficava longas horas, a ver o azul sem fim que se juntava ao céu no
horizonte tão longe. O navio fazia um rastro de espuma branca e revolta, parecia-lhe que o mar resistia à
força do barco, como se o quisesse manter parado. Deitada às vezes na espreguiçadeira listada, outras a
correr por entre os demais passageiros, que a viam com olhos bons, alegres com sua alegria de menina.
Conheceu muita gente no navio. Havia uma mocinha em seu camarote, estava sempre doente,
enjoava com o balanço do mar. A mãe tratava dela, pois estava sozinha. Sozinha, não, que o pai também ia,
mas na outra ala, dos camarotes dos homens. Tinha-lhes pedido que a ajudassem, tão fraquinha, durante a
noite, quando ele não podia estar com ela. Tinha uns quinze anos e parecia sempre triste. Mal falava, logo
lhe vinham as náuseas. Contou-lhe que ia ao encontro da mãe que já estava no Brasil. Em sua terra deixara
a avó, que era muito boa e alegre. Um dia, quem sabe, talvez se encontrassem de novo.
 

O quintal
O navio
As coisas que aqui dizem
O negro
A espanhola, suas brilhantes panelas e a doença de que morreu
Os xailes negros
Ir ao correio e fugir dos Chulinos
Uma enorme mala e o Rio de Janeiro
O brado retumbante

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