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A madeira no vinho

Como o uso do carvalho influencia nos aromas e sabores dos


fermentados

Por Marcel Miwa

Especula-se que os primeiros recipientes de madeira foram desenvolvidos por volta


do ano 200 a.C., substituindo a antiga e limitada ânfora. Mas, se foi inicialmente
tratado apenas como recipiente impermeável adequado ao transporte e
conservação de bebidas, os barris de carvalho hoje são verdadeiros instrumentos
enológicos.

Barris confeccionados com castanheira, mogno, acácia, raulí e pinheiro já foram


utilizados ao longo da história de acordo com a disponibilidade regional. No
entanto, o poder de aportar aromas agradáveis e taninos, microoxigenar, estabilizar
e decantar os sólidos no vinho fizeram do carvalho o recurso mais desejado quando
se trata de afinar as características do nobre fermentado.

Aparentemente, o carvalho se mostra como recurso obrigatório na produção de


vinhos, mas, ao colocarmos na mesma equação, sua escassez, o alto preço e sua
marcante influência aromática, facilmente se chega à conclusão que seu uso é
limitado a vinhos que o mereçam e consigam tirar proveito de suas propriedades
aperfeiçoando personalidade e caráter.
Características gerais do carvalho

Das mais de 250 espécies de carvalho, apenas três se mostram mais adequadas à
produção de barricas. Uma americana e duas europeias. O carvalho americano
possui o nome científico de Quercus alba, enquanto os carvalhos europeus são
chamados de Quercus petraea (antes tido como Quercus sessiliflora) e Quercus
robur (no passado, o Quercus pedunculata). Além de França e Estados Unidos,
outros países como Portugal, Rússia, Hungria, Eslovênia e Canadá são conhecidos
pela qualidade e viabilidade de extração de suas madeiras.

A árvore do carvalho, assim como a da videira, reage de formas distintas em função


do terroir em que é plantada. Em solos mais férteis ou com muita luminosidade, as
árvores crescem de forma acelerada, possuindo um tronco mais poroso (anéis mais
largos), além de desenvolverem muitas ramas na parte mais inferior do tronco
principal, indícios de baixa qualidade.

Uma poda gradual nas florestas é feita de forma que apenas cerca de 100 dos
inicialmente 50 mil carvalhos plantados por hectare chegam ao final do ciclo. O
corte definitivo das principais árvores é realizado no outono ou inverno, pois, nestas
épocas, a seiva está concentrada nas raízes.

Um termo recorrente quando se fala de carvalho é o grão: se é fechado ou aberto.


Para melhor compreender esse conceito, é mais fácil imaginar a madeira como uma
série de tubos sobrepostos, cada tubo formando uma camada. A cada ciclo, forma-
se um novo tubo de dentro para fora do tronco, sendo que estes são "colados" por
uma substância chamada tilose. Ao se cortar transversalmente o tronco do
carvalho, é possível notar uma série de anéis.

Pois bem, o tamanho (espessura) médio dos anéis corresponde ao grão. Quanto
maior o anel, podemos deduzir que a madeira é mais porosa e provavelmente a
árvore foi cultivada em uma área muito fértil e com clima mais quente. Ao
contrário, quando os anéis são pequenos (grão fechado), menos porosa será a
madeira e provavelmente originada de uma região mais fria, que propiciou um lento
e consistente crescimento.

Carvalho americano

O carvalho americano, Quercus alba, possui granulação mais grossa, com árvores
chegando ao ponto de corte já aos 60 anos, quase a metade do tempo que os
europeus. Em um primeiro momento, isso indicaria que esta madeira é mais porosa
que seus parentes europeus. Na realidade, isso é compensado por outro fator: o
carvalho americano é rico em tiloses, que o torna mais duro e pouco permeável.

Por esta razão, a madeira desta espécie pode ser cortada com serra e em várias
direções. Ao se fazer cortes transversais às fibras, mais células são rompidas, e isso
libera mais compostos aromáticos. Ainda, essa característica do carvalho americano
permite que o rendimento do tronco em aduelas (tábuas) para barricas seja maior,
em torno de 40% - enquanto nos carvalhos europeus esse rendimento gira em
torno de 20% -, o que também se reflete no preço das barricas.
O carvalho americano é conhecido por liberar aromas mais intensos que o francês,
e normalmente associados ao coco, baunilha e lácteos, além de taninos um pouco
mais agressivos.

Carvalhos europeus

A França é o país que serve como referência quando se fala de carvalho europeu.
Suas florestas são as mais frondosas e bem planejadas, com ótima qualidade
média. Os grãos dos carvalhos franceses são mais fechados que os americanos,
porém, o menor teor de tiloses obriga o merrandier (profissional responsável pelo
corte do tronco em aduelas) a fazer os cortes dos troncos com cunhas de aço,
quase manualmente.

O corte deve ser feito no sentido das fibras, para que as aduelas sejam
impermeáveis. Com um eventual uso da serra, cortes não paralelos às fibras
fatalmente ocorreriam, ocasionando uma excessiva porosidade, podendo provocar
até vazamentos nas barricas. Genericamente, o
carvalho francês é conhecido pela maior elegância e
complexidade de aromas, com aporte de taninos
mais finos.

Quase metade da superfície florestal de carvalho na


França é de domínio público. Existe um órgão
público (Office National de Fôretes) que gerencia a
quantidade e os lotes que poderão ser cortados a
cada temporada, bem como as vendas que são
realizadas através de leilões.

DOC de carvalhos?

Até pouco tempo atrás, os nomes dos bosques


franceses serviam como referência das
características esperadas de cada barrica. Tronçais,
Allier, Vosges, Nièvre, Sarthe, Juppiles são alguns dos ilustres nomes que traduzem
a qualidade esperada e também o preço. Atualmente, as tonnelleries (tanoarias) se
esforçam para difundir a idéia de que os nomes das florestas apenas indiquem
genericamente o que se pode esperar em relação à qualidade da madeira.

Hoje se fala muito mais sobre a granulação da madeira do que sua procedência. E,
por isso, há uma verdadeira expedição pelas florestas em busca das melhores
árvores de carvalho. Os protagonistas agora são as tonnelleries. Como não existem
regulamentações nem denominações de origem, elas acabam contratando
empresas privadas para inspecionar toda a cadeia de produção da barrica,
concedendo certificados rastreáveis das madeiras.

É coerente, portanto, que prefiram focar no grão ao invés da origem. Como o custo
desta certificação recai sobre as tonnelleries, nada mais justo que sejam
reconhecidos como o elo mais importante da cadeia, como possuidores dos troncos
com os melhores grãos. Sem esquecer que, dessa forma, também se evita uma
especulação financeira exagerada por madeiras de alguns bosques.

Reforçando este posicionamento, Alban Petiteaux, diretor de vendas da tonnellerie


Seguin-Moreau, comentou recentemente: "Há mais diferença entre duas árvores
localizadas a 10 pés de distância uma da outra, que entre duas em florestas
distintas com 100 milhas as separando."

Secagem - natural ou induzida

O carvalho, assim como alguns grandes vinhos, deve passar por um


amadurecimento antes de se tornar apto à montagem das barricas. Uma vez que o
merrandier conclui seu trabalho, as aduelas devem passar por um processo de
secagem. A madeira recém-cortada possui, em média, 55% de umidade. Este valor
deve ser reduzido a 15%.

O processo de secagem pode ser natural ou induzido. Na secagem natural, as


aduelas devem ficar de 18 a 36 meses a céu aberto, sujeitas a todas intempéries
climáticas. Como se pode imaginar, o lugar escolhido deve possuir ar limpo e
nenhum risco de contaminação química. Estudos da Universidade de Bordeaux
indicaram que, na secagem natural, diminuem- se os níveis de fenóis e taninos, e
aumentam-se os níveis de compostos aromáticos, especificamente lactonas,
vanilinas e eugenóis.

Já a secagem artificial ou induzida, embora reduza significativamente o tempo de


secagem da madeira, aporta taninos mais agressivos e adstringentes e aromas de
madeira verde ao vinho.

Antes, nomes de bosques franceses serviam de referência de qualidade para o


carvalho
Tosta

A tosta é um processo que inicialmente foi concebido para se conseguir envergar as


aduelas. Atualmente, além desse aspecto funcional de montagem, a tosta da
barrica é uma fase muito importante para se analisar o impacto que terá no vinho.
O processo costuma ser dividido em três fases: chauffage (aquecimento ), cintrage
(molde e colocação das cintas) e bousinage (tosta aromática).

As tostas podem ser o produto da combustão de diferentes recursos: aparas de


carvalho, gás natural e vapor são os principais. O que se busca é uma queima por
igual em toda a superfície da barrica e de forma padronizada em cada lote. Nas
mais modernas tonnelleries, esse é um processo totalmente controlado e
tecnológico.

Argumenta-se que as características de cada aduela, a estação do ano e condições


de umidade são fatores que deveriam ser considerados no momento da tosta. No
caso da Seguin Moreau, foi desenvolvido, junto com o Dr. Pascal Chatonnet, um
nariz eletrônico, que controla o ponto da tosta medindo os aromas liberados,
alcançando o padrão desejado.

De forma genérica, a literatura enológica descreve três pontos de tosta:


Tosta leve: a superfície da madeira atinge temperatura entre 120oC e 180oC.
Normalmente bastam cinco minutos para alcançar esta etapa. A madeira aportará
mais taninos e aromas de baunilha e coco (ainda mais presentes no carvalho
americano).

Tosta média: após 10 minutos de tosta a superfície chega a 200oC. Neste estágio,
os taninos estão menos agressivos e os aromas de baunilha e café estarão mais
presentes. Tosta intensa: a partir de 15 minutos a superfície interna da barrica
chegará a 225oC. Diminui-se o aroma de baunilha e tornam-se mais presentes os
de chocolate, defumado e especiarias.

Formatos comuns de barricas

Existem muitos formatos de barris de carvalho, alguns clássicos como o botti


italiano - enorme barril (normalmente de carvalho esloveno), que chega a 6 mil
litros de capacidade -, tradicional para os Barolos; o Gönci húngaro - de 136 litros
-, utilizado nos Tokajis Aszú; o demimuid, de 600 litros - comum em Châteauneuf-
du-Pape -; Bourgogne, de 228 litros e aduelas mais grossas; e Bordeaux, com
capacidade de 225 litros e o formato mais popular mundo afora.
Impacto no vinho

Via de regra, quanto mais nova a barrica, maior será o


impacto do carvalho no vinho. Uma barrica nova diz-se, de
"primeiro uso". A partir daí, a cada vez que se reutiliza,
chama-se de "segundo uso", "terceiro uso" etc. Na prática,
no terceiro uso, o impacto aromático do carvalho é mínimo,
servindo mais como um recipiente com microporosidade.

Em alguns casos, faz-se uso de 200% de carvalho novo.


Isso quer dizer que o vinho passa um ano em uma barrica
nova e, em seguida, é trasfegado para outra barrica nova,
para passar mais um ano.

As barricas, especialmente as novas, costumam perder de 3


a 5% do líquido em seu interior ao ano, o que significa até
11 litros de perda ao ano em uma barrica bordalesa (225
Cada camada significa um litros). Periodicamente, esse espaço deve ser completado
ciclo com o mesmo vinho, para que se evite a formação de uma
"bolha" de ar dentro da barrica.

Taninos

Como foi comentado na edição anterior (em matéria sobre taninos), o carvalho é
rico em taninos elágicos. Embora as pesquisas ainda não sejam conclusivas quanto
à possibilidade de distinção organoléptica entre taninos do vinho e do carvalho,
funcionalmente, os taninos elágicos desempenham uma importante função. Por
serem mais sensíveis à oxidação que os polifenóis do vinho, eventuais moléculas de
oxigênio serão primeiramente ligadas aos taninos do carvalho que aos da bebida,
preservando sua integridade.

Micro-oxigenação

Outra função já citada das barricas de carvalho é a capacidade de permitir uma


micro-oxigenação no vinho. Com isso, reduz-se a possibilidade de desenvolver
aromas de redução, provoca-se uma leve polimerização dos taninos, o que os torna
menos agressivos e com menos arestas, deixando uma textura mais macia.
Colaboram também com a estabilidade na coloração através da formação de
taninos pigmentados (reação dos taninos com antocianinas na presença de
oxigênio).
Aromas

Quanto aos aromas, podemos dividilos em aromas naturais do carvalho e aromas


advindos da tosta.

Nos aromas naturais do carvalho, destacam- se as lactonas, vanilina e eugenol. As


lactonas estão fortemente presentes no carvalho americano e manifestam aromas
terrosos, de coco e herbáceo. A secagem diminui o seu impacto, enquanto a tosta
aumenta sua percepção. A vanilina corresponde ao aroma de baunilha. A secagem
e as tostas leve e média aumentam sua presença, enquanto a tosta intensa e a
fermentação em barrica a diminuem. O eugenol é o responsável pelo aroma de
especiarias, notadamente o cravo. A secagem e a tosta incrementam sua presença.

Dentre os aromas desenvolvidos na tosta, destacam-se o guaiacol (aroma


defumado e pimenta preta) e o furfural (aroma de caramelo e amêndoas, além do
sabor umami). Outros fenóis voláteis, aldeídos e terpenos também são formados e
contribuem para a complexidade e nuances dos aromas da tosta.

Lascas de carvalho

O assunto (o papel da madeira no vinho) pode se tornar infindável. Ainda mais com
o polêmico uso de lascas de carvalho, ou simplesmente "chips". Esta é a solução
mais barata para se conseguir os aromas do carvalho nos vinhos. Podese utilizar
lascas, serragem ou tábuas de carvalho que, mergulhadas na bebida, transmitem
algum aroma característico da madeira.

Embora possam dar maior complexidade a vinhos simples, os aromas dos "chips"
de carvalho não costumam apresentar boa integração ao conjunto, além do difícil
controle dos taninos. Alguns enólogos pregam que, quanto antes ocorra sua
participação, melhor será a integração desses aromas.

Talvez fosse relevante a devida informação do uso desta prática por parte do
produtor. O consumidor talvez não hesite em comprar um vinho simples que traga
algum toque de carvalho, mas também talvez não gostaria de investir um valor
maior em uma garrafa que mostrasse a madeira de forma desmedida, não
integrada, encobrindo a tipicidade da variedade da uva ou do terroir.

[adega]

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