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eli miguel
Quem tem a candeia acesa
Vamos cantar as janeiras Quem tem a candeia acesa
Vamos cantar as janeiras Rabanadas pão e vinho novo
Por esses quintais adentro vamos Matava a fome à pobreza
Às raparigas solteiras
esta noite
vai redimir todas as noites
em que quis remendar a minha vida
e o resultado foi
Inês Lourenço
METAL FUNDENTE
Vem soleníssima,
Vem, vagamente,
Soleníssima e cheia
Vem, levemente,
De uma oculta vontade de soluçar,
Vem sozinha, solene, com as mãos caídas
Talvez porque a alma é grande e a vida pequena,
Ao teu lado, vem
E todos os gestos não saem do nosso corpo,
E traz os montes longínquos para o pé das árvores próximas,
E só alcançamos onde o nosso braço chega,
Funde num campo teu todos os campos que vejo,
E só vemos até onde chega o nosso olhar.
Faz da montanha um bloco só do teu corpo,
Apaga-lhe todas as diferenças que de longe vejo,
Vem, dolorosa,
Todas as estradas que a sobem,
Mater-Dolorosa das Angústias dos Tímidos,
Todas as várias árvores que a fazem verde-escuro ao longe,
Turris-Eburnea das Tristezas dos Desprezados.
Todas as casas brancas e com fumo entre as árvores,
Mão fresca sobre a testa em febre dos Humildes.
E deixa só uma luz e outra luz e mais outra,
Vem, cuidadosa,
Sabor de água sobre os lábios secos dos Cansados. Vem, maternal,
Vem, lá do fundo Pé ante pé enfermeira antiquíssima, que te sentaste
Do horizonte lívido, À cabeceira dos deuses das fés já perdidas,
Vem e arranca-me E que viste nascer Jeová e Júpiter,
Do solo de angústia e de inutilidade E sorriste porque tudo te é falso e inútil.
Onde vicejo.
Apanha-me do meu solo, malmequer esquecido, Vem, Noite silenciosa e extática,
Folha a folha lê em mim não sei que sina Vem envolver na noite manto branco
E desfolha-me para teu agrado, O meu coração...
Para teu agrado silencioso e fresco. Serenamente como uma brisa na tarde leve,
[…] Tranquilamente com um gesto materno afagando.
Com as estrelas luzindo nas tuas mãos
Vem sobre os mares, E a lua máscara misteriosa sobre a tua face.
Sobre os mares maiores, Todos os sons soam de outra maneira
Sobre os mares sem horizontes precisos, Quando tu vens.
Vem e passa a mão pelo dorso da fera, Quando tu entras baixam todas as vozes,
E acalma-o misteriosamente, Ninguém te vê entrar.
Ó domadora hipnótica das coisas que se agitam muito! Ninguém sabe quando entraste,
Senão de repente, vendo que tudo se recolhe,
Que tudo perde as arestas e as cores,
E que no alto céu ainda claramente azul
Já crescente nítido, ou círculo branco, ou mera luz nova que vem,
coágulo
de sangue
e maravilha.
Arrumada a fala
na boca, a nudez
no corpo, a surpresa
nos olhos, o mármore
nos ossos, a chuva
nos gestos, o ácido
nos dentes, a fome
no sexo, a fúria
no estômago, o vento
nas palavras
Ricardo Reis
Grand aussi mon coeur, comme l'Afrique mon grand coeur. Rester Femme africaine, mais gagner l'autre.
Habitée d'un grand coeur, mais ne pouvoir aimer... Créer, non seulement procréer.
Aimer toute la terre, aimer tous ses fils. Assumer son destin dans le destin du monde
LA SPERANZA
Per l’amor dei poeti, porte
Aperte de la morte
(sul torrente notturno) Su l’infinito !
Per l’amor dei poeti
Per l’amor dei poeti Principessa il mio sogno vanito
Principessa dei sogni segreti Nei gorghi de la Sorte
Nell’ali dei vivi pensieri ripeti ripeti
Principessa i tuoi canti:
O tu chiomata di muti canti Dino Campana, Canti orfici
Pallido amor degli erranti
Soffoca gli inestinti pianti
A ESPERANÇA
Da trégua agli amori segreti
Chi le taciturne porte
Guarda che la Notte Pelo amor dos poetas
Chinan l’ore : col sogno vanito Nas asas dos vivos pensamentos repete repete
depois
fica atento ao correio
do secular laboratório nocturno enviar-te-ei
devidamente autografado
o retrato da solidão que te pertenceu
Al Berto, Vigílias
Murchando e caindo
derrama a água retida
a flor da camélia
Tanto de amor se disse que não sei Como dizer este Elsenor sem rei
Como dizer que amor é outra coisa Se tanto disse menos o dizer
Que nem só o teu corpo me fez rei Esta paixão que sabe o que não sei
Nem tua alma só me deu a rosa Em Elsenor de ser e de não ser
Tanto se disse menos o dizer Senão que amor ainda é outra coisa
Esta paixão que é de todo o ser Como entre o corpo e a morte o anjo e a rosa
E ao fim do ser ainda há outra coisa Como dizer do sexo a alma e a rosa
Mais do que corpo e alma e ser não ser Se amor é mais que ter e mais que ser
Como entre vida e morte e sexo e rosa Um morrer ou nascer ou outra coisa
Um morrer e um nascer. Como dizer Entre a vida e a morte e um não dizer
Este reino em que sou o servo e o rei Senão que disse tanto e ainda não sei
Como dizer se tanto e ainda não sei Como dizer de amor se servo ou rei
Se disse tanto menos o dizer
Esta paixão da alma que não sei
Se é o sexo ou seu anjo ou só o ser
Entre a vida e a morte o breve rei
Deste reino que fica à beira-rosa
Do teu corpo onde amor é outra coisa
Edward Hopper
AMORES EU TENHO
Atirávamos pedras
à água para o silêncio vir à tona.
O mundo, que os sentidos tonificam,
surgia-nos então todo enterrado
na nossa própria carne, envolto
por vezes em ferozes transparências
que as pedras acirravam
sem outro intuito além do de extraírem
às águas o silêncio que as unia.
Arco-íris no céu.
Está sorrindo o menino
Que há pouco chorou.
Andamos na vida
de ficção em ficção
Sofremos
Amamos
sofremos
Depois sabemos
que era ilusão
Às vezes esquecemos
outras não
Só tu
Mãe
foste sempre verdade
Agora mais do que nunca
Vontade de chorar
com o coração ferido
num gume de açucenas.
Vontade de beber
sem crimes e sem erros.
Artigo III
Mina Anguelova
Talvez nos campos imensos, onde o lírio floresce
Nuno Júdice
Agora que as palavras secaram
Preciso habituar-me
a substituir-te Era mais difícil perder-te
e verídica.
Posso passar sem as imagens
à canção que tu cantas e que mais ninguém ouve isso não seja ser feliz.
Límpida e pura,
Teolinda Gersão
Símbolos? Estou farto de símbolos...
Mas dizem-me que tudo é símbolo.
Todos me dizem nada.
Quais símbolos? Sonhos. –
Que o sol seja um símbolo, está bem... Bem, vá, que tudo isso seja símbolo...
Que a lua seja um símbolo, está bem... Mas que símbolo é, não o sol, não a lua, não a terra,
Mas neste poente precoce e azulando-se
Que a terra seja um símbolo, está bem...
O sol entre farrapos finos de nuvens,
Mas quem repara no sol senão quando a chuva cessa, Enquanto a lua é já vista, mística, no outro lado,
E ele rompe as nuvens e aponta para trás das costas E o que fica da luz do dia
Doura a cabeça da costureira que pára vagamente à
Para o azul do céu?
esquina
Mas quem repara na lua senão para achar Onde demorava outrora com o namorado que a
Bela a luz que ela espalha, e não bem ela? deixou?
Mas quem repara na terra, que é o que pisa? Símbolos? Não quero símbolos...
Queria – pobre figura de miséria e desamparo! –
Chama terra aos campos, às árvores, aos montes. Que o namorado voltasse para o costureira.
Por uma diminuição instintiva,
Porque o mar também é terra...
Álvaro de Campos, Poemas
Todo aquele que abre um livro entra numa nuvem
ou para beber a água de um espelho
ou para se embriagar como um pássaro ingénuo
A sôfrega retina
vai-se tornando felina e inflada
e os seus liames tremem entre o júbilo e a agonia
Um livro é redondo como uma serpente enrolada
e formado de fragmentos onde lateja o sangue de um pulso O livro ora é de veludo ora de bronze
que já não é de um autor que nunca o foi e os seus traços abrem janelas ou terraços
e que será sempre o ritmo do que está a nascer sobre o corpo latente como um arbusto entre pedras
irrigando o nada e os terraços sobre os abismos Se a palavra vibra como um meteoro ou desliza como uma anémona
Nunca o livro se completa embora o redondo o circunde ou não é mais do que uma estrela de areia
e o mova para o seu interior sem nunca o envolver a sua proa sulca o incessante intervalo
Jamais a nuvem se dissipa mesmo quando a claridade ofusca entre o ardor de incompletos liames
Como se fosse preciso adormecer nela como sobre os ombros do mundo e a estátua aérea que se eleva à sua frente
para acompanhar o seu fluxo ingenuamente novo e continuamente se forma e se deforma
com os delicados diademas de fogo e espuma por não ser nada e ser o alvo puro
de um movimento ingénuo sonâmbulo e incerto
José Afonso
Páscoa – na Beira
la vie n'a d'importance
que par une fleur qui danse sur le temps.
Gilbert Bécaud
em dia de Camões
Constantino Cavafis
Vêm de um céu
Pinheiros
à volta. Às vezes
cai no chão
uma pinha
e o silêncio aplaude.
Rabindranath Tagore
Désordre de pétales blancs
Marie Mélisou
… e as férias chegaram!
as férias continuam onde
Mina Anguelova
SÚPLICA FINAL
[...] Gozemos intensamente a companhia dos nossos amigos, até porque quantas vezes os deixámos para partir em longas viagens,
quantas vezes estivemos sem os ver embora morando na mesma terra [...]
Termino com um texto que todos conhecem mas que, julgo, lembra como nenhum que a amizade é memória e futuro, lágrimas e riso,
serenidade e sobressalto, presença e saudade. É um texto d'O Principezinho, de A. de Saint-Exupéry. Diz o principezinho:
[…]
Foi assim que o principezinho prendeu a si a raposa. E quando chegou a hora da despedida:
- Ai! – exclamou a raposa – Ai que me vou pôr a chorar…
- A culpa é tua – disse o principezinho. – Eu bem não queria que te acontecesse mal nenhum, mas tu quiseste que eu te prendesse a mim…
- Pois quis – disse a raposa.
- Mas agora vais-te pôr a chorar! – disse o principezinho.
- Pois vou – disse a raposa.
- Então não ganhaste nada com isso!
- Ai isso é que ganhei! – disse a raposa. – Por causa da cor do trigo…
eli miguel