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IV ~ Janeiro ~ Agosto ~ 2006

eli miguel
Quem tem a candeia acesa
Vamos cantar as janeiras Quem tem a candeia acesa
Vamos cantar as janeiras Rabanadas pão e vinho novo
Por esses quintais adentro vamos Matava a fome à pobreza
Às raparigas solteiras

Já nos cansa esta lonjura


Vamos cantar orvalhadas Já nos cansa esta lonjura
Vamos cantar orvalhadas Só se lembra dos caminhos velhos
Por esses quintais adentro vamos Quem anda à noite à ventura
Às raparigas casadas
Letra e música: José Afonso
Vira o vento e muda a sorte
Vira o vento e muda a sorte
Por aqueles olivais perdidos
Foi-se embora o vento norte

Muita neve cai na serra


Muita neve cai na serra
Só se lembra dos caminhos velhos
Quem tem saudades da terra
á nem as aves cantam pela maré cheia da tarde.
À flor da areia
só o silêncio arde.

Carlos de Oliveira, Trabalho Poético


TODAS AS NOITES

esta noite
vai redimir todas as noites
em que quis remendar a minha vida
e o resultado foi

todas as noites próximo de zero


quero remendar a minha vida
e a onda resultante é uma fortaleza esta noite
ritmo frenético onde um solista será o sótão arrumado
tem seu tempo de brilho
esperou dez anos para que dessem por ele)
e vontade
é, tenho a certeza, a noite da reconciliação
de fundir reciclar remendar
a noite em que encontro o bálsamo
para continuar e extrair

esta noite a raiz do que magoa


com um astro próximo
e aspirar os cantos da memória
brilhante e ameaçador
e endireitar livros tombados
qual gás de explosão terrorista
sobre as personagens inventadas
é nesta noite que as verdades por fim descansam
exaustas sobre as mentiras
inteiras de uma vida

carlos peres feio

carlos peres feio


THE COMING OF WISDOM WITH TIME COM O TEMPO A SABEDORIA

Embora muitas sejam as folhas, a raiz é só uma;


Though leaves are many, the root is one; Ao longo dos enganadores dias da mocidade,
Through all the lying days of my youth Oscilaram ao sol minhas folhas, minhas flores;
I swayed my leaves and flowers in the sun; Agora posso murchar no coração da verdade.
Now I may wither into the truth.

W.B.Yeats, Uma Antologia W.B.Yeats.Trad.: José Agostinho Baptista


ESTENDAIS

Mas são os estendais, à janela


agitados pelo vento nas abertas da chuva
que nos trazem a urgência e a constância
dos corpos, nas mangas pendentes
de camisas, camisolas ou na roupa

interior, última margem dos íntimos rios,


onde os poliesteres aboliram os felpos, os linhos
as cambraias. Só a cor branca dos lençóis teima
lá no alto, a abrir velas ao desejo do sol

Inês Lourenço
METAL FUNDENTE

Mas como poderia


Gostava de explicar-te e de poder eu amar-te e achar-te já de mais
eu próprio compreender sentir estando tu tão perto ainda
por que momentos houve em que perder-te a onda
era metal fundente como o que disse um poeta da ausência contornar-me
entre nós e as palavras existir
O céu em certos dias produzia
Eu seria as palavras tu os corpos o efeito dum espelho em que voltávamos
fundentes de nós dois, pela separação inversos
futura liquefeitos ao verão que tu julgaras
Era de cada vez como se a vida então igual à vida e era apenas
também fundisse e o seu metal escorresse a infância perdida sobre o mar
sobre a pele da perda talvez isso
explicasse como o chumbo
da ilusão derrete e nos liberta Gastão Cruz, in Poemas de Gastão Cruz
até desse momento em que tememos ditos por Luís Miguel Cintra
nada mais ter
Imagem da web
insólito
DE AMOR

Considera o amor como um retoque num quadro antigo,


que subitamente o vem iluminar:
vimo-nos muitas vezes antes de seres no meu olhar
aquela luz em um país perdido
que tu quiseste em vão esconder, negar.

O quadro manteve o mesmo fulgor:


a reverberação no silêncio da perda,
o desamor.

Quem avivou o brilho das tintas, quem corrigiu o baço


sinal da morte? Falámos de uma dor
num fundo esbatido. Falámos do grito mudo do teu corpo.
Falámos de amor.

Luís Filipe Castro Mendes, Modos de Música


CÃO

Cão passageiro, cão estrito,


cão rasteiro cor de luva amarela,
apara-lápis, fraldiqueiro,
cão liquefeito, cão estafado,
cão-soneto de ão-ão martelado,
cão de gravata pendente,
cão moído de pancada
cão de orelhas engomadas,
e condoído do dono,
de remexido rabo ausente,
cão: esfera do sono,
cão ululante, cão coruscante,
cão de pura invenção, cão pré-fabricado,
cão magro, tétrico, maldito,
cão-espelho, cão-cinzeiro, cão-botija,
a desfazer-se num ganido,
cão de olhos que afligem,
a refazer-se num latido
cão-problema...
cão disparado: cão aqui,
cão além, e sempre cão.
Sai depressa, ó cão, deste poema!
Cão marrado, preso a um fio de cheiro,
cão a esburgar o osso
essencial do dia a dia,
Alexandre O'Neill, Poesias Completas
cão estouvado de alegria,
cão formal da poesia,
VERSOS QUASE TRISTES na pujança da frescura
por medo de envelhecer...
Mas não passei além da curva...
Trago no sangue o mistério O meu alento
daquele resto de estrada já dobrou o joelho desistiu.
que não andei... E eu sei tão bem que há Glória que me
chama
E era talvez ali e que tudo que digo aqui, ou faço,
que eu ia ser feliz: é só arremedar, adivinhar,
o que, pra lá da curva que não passo,
ali havia de fazer ou de dizer!
que viriam as Fadas pra contar-me E eu sei tão bem
os contos lindos das Princesas que sem tomar nas mãos a Glória apetecida
e de Palácios me não contento!...
e de Florestas
que ficaram por contar; - Por que é que tu és só pressentimento,
ali que havia de abrir-se minha vida?
o tal jardim
com flores que nunca morrem Sebastião da Gama, Serra-Mãe
ou, se morrem, há-de ser
Na distância imprecisa e vagamente perturbadora,
Na distância subitamente impossível de percorrer.
Vem, Noite antiquíssima e idêntica.
Noite Rainha nascida destronada,
Nossa Senhora
Noite igual por dentro ao silêncio, Noite
Das coisas impossíveis que procuramos em vão,
Com as estrelas lantejoulas rápidas
[…]
No teu vestido franjado de Infinito.

Vem soleníssima,
Vem, vagamente,
Soleníssima e cheia
Vem, levemente,
De uma oculta vontade de soluçar,
Vem sozinha, solene, com as mãos caídas
Talvez porque a alma é grande e a vida pequena,
Ao teu lado, vem
E todos os gestos não saem do nosso corpo,
E traz os montes longínquos para o pé das árvores próximas,
E só alcançamos onde o nosso braço chega,
Funde num campo teu todos os campos que vejo,
E só vemos até onde chega o nosso olhar.
Faz da montanha um bloco só do teu corpo,
Apaga-lhe todas as diferenças que de longe vejo,
Vem, dolorosa,
Todas as estradas que a sobem,
Mater-Dolorosa das Angústias dos Tímidos,
Todas as várias árvores que a fazem verde-escuro ao longe,
Turris-Eburnea das Tristezas dos Desprezados.
Todas as casas brancas e com fumo entre as árvores,
Mão fresca sobre a testa em febre dos Humildes.
E deixa só uma luz e outra luz e mais outra,
Vem, cuidadosa,
Sabor de água sobre os lábios secos dos Cansados. Vem, maternal,
Vem, lá do fundo Pé ante pé enfermeira antiquíssima, que te sentaste
Do horizonte lívido, À cabeceira dos deuses das fés já perdidas,
Vem e arranca-me E que viste nascer Jeová e Júpiter,
Do solo de angústia e de inutilidade E sorriste porque tudo te é falso e inútil.
Onde vicejo.
Apanha-me do meu solo, malmequer esquecido, Vem, Noite silenciosa e extática,
Folha a folha lê em mim não sei que sina Vem envolver na noite manto branco
E desfolha-me para teu agrado, O meu coração...
Para teu agrado silencioso e fresco. Serenamente como uma brisa na tarde leve,
[…] Tranquilamente com um gesto materno afagando.
Com as estrelas luzindo nas tuas mãos
Vem sobre os mares, E a lua máscara misteriosa sobre a tua face.
Sobre os mares maiores, Todos os sons soam de outra maneira
Sobre os mares sem horizontes precisos, Quando tu vens.
Vem e passa a mão pelo dorso da fera, Quando tu entras baixam todas as vozes,
E acalma-o misteriosamente, Ninguém te vê entrar.
Ó domadora hipnótica das coisas que se agitam muito! Ninguém sabe quando entraste,
Senão de repente, vendo que tudo se recolhe,
Que tudo perde as arestas e as cores,
E que no alto céu ainda claramente azul
Já crescente nítido, ou círculo branco, ou mera luz nova que vem,

A lua começa a ser real.

Álvaro de Campos, Poemas


Buganvília :

coágulo
de sangue
e maravilha.

Albano Martins, Inconcretos Domínios


COMPARTIMENTOS

Arrumada a fala
na boca, a nudez
no corpo, a surpresa
nos olhos, o mármore
nos ossos, a chuva
nos gestos, o ácido
nos dentes, a fome
no sexo, a fúria
no estômago, o vento
nas palavras

Joaquim Pessoa, Peixe Náufrago


Quando, Lídia, vier o nosso Outono

Quando, Lídia, vier o nosso Outono


Com o Inverno que há nele, reservemos
Um pensamento, não para a futura
Primavera, que é de outrem,
Nem para o estio, de quem somos mortos,
Senão para o que fica do que passa –
O amarelo actual que as folhas vivem
E as torna diferentes.

Ricardo Reis

Vincent Van Gogh


Não creias, Lídia que nenhum estio

Mais tarde será tarde e já é tarde.


O tempo apaga tudo menos esse
Não creias, Lídia que nenhum estio
Longo indelével rasto
Por nós perdido possa regressar
Que o não vivido deixa.
Oferecendo a flor
Que adiámos colher.
Não creias na demora em que te medes.
Jamais se detém Kronos cujo passo
Cada dia te é dado uma só vez
Vai sempre mais à frente
E no redondo círculo da noite
Do que o teu próprio passo.
Não existe piedade
Para aquele que hesita.

Sophia de Mello Breyner Andresen, Antologia


Gaetano Previati
Na formosura, prepara o banho, Lídia

Nua e rosada imerge na carícia


Na formosura, prepara o banho, Lídia.
Emoliente da água perfumada,
Os anos murcham e só no corpo sentes
E as folhas lassas dos membros espreguiça
Quente e fagueira a passagem da vida.
Como uma humanizada flor aquática.

Não digas, céptica, que a carne é vã e passa


Não te esqueças, porém de no amavio
Desfeita em sombra, o negro rio. O Orco
Da água verter um brando óleo de malvas
Perséfone raptou rendido à graça.
Que te aveluda as coxas e mais brilho
Talvez no além precises do teu corpo.
Te dá ao polimento das espáduas.

Estima-o; e à beleza mais demora


E saindo do banho como a deusa
Darão os fados na vida passageira.
Sai, das macias ondas, nacarada,
Tépida a água, rescenda a musgo e a rosa.
Ergue-te para o amor, estátua de seda
De Paros seja o mármore da banheira.
Toda coberta com pérolas de água.
Por fim veste a camisa picante;
Com pó de ouro empoa o teu cabelo.
E vai para a alcova onde o teu amante
Te espera radioso e fiel como um espelho.

Natália Correia, O Sol nas Noites e o Luar nos Dias II

Sir Edward Coley Burne-Jones


Quis ver o rosto do nada

Quis ver o rosto do nada


quando olhei
para ver quem me seguia
ou seguiria
enquanto não olhasse
a sombra indecifrada
desta não sei se selva
ou estrada
ou talvez praia
ou destino perdido no caminho.

Helder Macedo, Viagem de Inverno


TREZE VERSOS

E finalmente pronunciaste a palavra


não como quem se ajoelha,
mas como quem escapa da prisão
e vê o sagrado dossel das bétulas
através do arco-íris do pranto involuntário.
E à tua volta cantou o silêncio
e um sol muito puro clareou a escuridão
e o mundo por um instante transformou-se
e estranhamente mudou o sabor do vinho.
E até eu, que fora destinada
da palavra divina a ser a assassina,
calei-me, quase com devoção,
para poder prolongar esse instante abençoado.

Anna Akhmátova, Poesia: 1912-1964


Trad.:Lauro Machado Coelho
Mon coeur est ardent, comme brûlant, mon soleil

Et femme africaine, lutter.


Encore lutter, pour s'élever plutôt.
Lutter pour effacer l'empreinte de la botte qui écrase.
Seigneur!... lutter
Contre les interdits, préjugés, leur poids.
Lutter encore, toujours, contre soi, contre tout.

Mon coeur est ardent, comme brûlant, mon soleil. Et pourtant!...

Grand aussi mon coeur, comme l'Afrique mon grand coeur. Rester Femme africaine, mais gagner l'autre.

Habitée d'un grand coeur, mais ne pouvoir aimer... Créer, non seulement procréer.

Aimer toute la terre, aimer tous ses fils. Assumer son destin dans le destin du monde

Etre femme, mais ne pouvoir créer;


Créer, non seulement procréer.
Ndèye Coumba Mbengue Diakhaté, Filles du Soleil
Moussa Gueye
..................................

LA SPERANZA
Per l’amor dei poeti, porte
Aperte de la morte
(sul torrente notturno) Su l’infinito !
Per l’amor dei poeti
Per l’amor dei poeti Principessa il mio sogno vanito
Principessa dei sogni segreti Nei gorghi de la Sorte
Nell’ali dei vivi pensieri ripeti ripeti
Principessa i tuoi canti:
O tu chiomata di muti canti Dino Campana, Canti orfici
Pallido amor degli erranti
Soffoca gli inestinti pianti
A ESPERANÇA
Da trégua agli amori segreti
Chi le taciturne porte
Guarda che la Notte Pelo amor dos poetas

Ha aperte sull’infinito ? Princesa dos sonhos secretos

Chinan l’ore : col sogno vanito Nas asas dos vivos pensamentos repete repete

China la pallida Sorte ........ Princesa os teus cantos:


Ó tu frondosa de mudos cantos
Pálido amor dos errantes
Sufoca os inextintos prantos
Dá trégua aos amores secretos:
Quem as taciturnas portas
Olha que a Noite
Abre ao infinito?
Declinam as horas: com o sonho esvaído
Declina a pálida Sorte
..................................

Pelo amor dos poetas, portas


Abertas da morte
Sobre o infinito!
Pelo amor dos poetas
Princesa o meu sonho esvaído
Nos vórtices da Sorte!

Dino Campana, in Mesa de Amigos


Versão de Pedro da Silveira
SI MIS MANOS PUDIERAN DESHOJAR
Yo pronuncio tu nombre,
En esta noche oscura,
Y tu nombre me suena
Más lejano que nunca.
Más lejano que todas las estrellas
Y más doliente que la mansa lluvia.

Yo pronuncio tu nombre ¿Te querré como entonces


En las noches oscuras Alguna vez? ¿Qué culpa
Cuando vienen los astros Tiene mi corazón?
A beber en la luna Si la niebla se esfuma
Y duermen los ramajes ¿Qué otra pasión me espera?
De las frondas ocultas. ¿Será tranquila y pura?
Y yo me siento hueco ¡¡Si mis dedos pudieran
De pasión y de música. Deshojar a la luna!!
Loco reloj que canta
Muertas horas antiguas.
Federico Garcia Lorca, Libro de Poemas
Mina Anguelova
NUVENS Humano é mortal até tomar consciência
Traz o universo inteiro em si mesmo
Um jaguar salta encantado, força absurda
As nuvens, que nuvens são essas Yanoá? Quem sabe vem de um planeta remoto
A pele se desintegra e os olhos caem, Não sentia rumores, pulsação do ar
tudo retorna a ser selvagem, pássaro Renovam-se generosas as folhas.
antigas imagens, distúrbios de cristais
Pesadelo de noite, luzes que cegam
olhar assustado, fincado em areia. Márcia Theóphilo, Il fiume, l'uccello, le nuvole
Milhões de braços invisíveis se acendem. Trad.: Márcia Theóphilo
Rosto transformado, seu ser primitivo
E Yací estava em um dos lados do rio
em um bosque onde as plantas vinham das águas
o navio chega e nos leva com ele
as folhas se multiplicam generosas
estou dentro ou fora das águas, não sinto.
Uma carta rola com palavras escritas
Tua imagem retorna prateada
Operação devastadora dos sonhos
Ainda passaria por várias mutações
A nossa casa Num país de ilusão que nunca vi…
E que eu moro – tão bom! – dentro de ti
E tu, ó meu Amor, dentro de mim…

Florbela Espanca, Charneca em Flor

A nossa casa, Amor, a nossa casa!


Onde está ela, Amor, que não a vejo?
Na minha doida fantasia em brasa
Constrói-a, num instante, o meu desejo!

Onde está ela, Amor, a nossa casa,


O bem que neste mundo mais invejo?
O brando ninho aonde o nosso beijo
Será mais puro e doce que uma asa?

Sonho… que eu e tu, dois pobrezinhos,


Andamos de mãos dadas, nos caminhos
Duma terra de rosas, num jardim,
ENCOMENDA POSTAL

destino-te a tarefa de me sepultares


no segredo mineral da noite
com um lápis e uma máquina fotográfica

depois
fica atento ao correio
do secular laboratório nocturno enviar-te-ei
devidamente autografado
o retrato da solidão que te pertenceu

e numa encomenda à parte receberás


a revelação desta arte
onde a vida cinzelou o precário corpo
na luz afiada de um vestígio de tinta

Al Berto, Vigílias
Murchando e caindo
derrama a água retida
a flor da camélia

Basho. Trad.: P. Vieira


Sextina

Tanto de amor se disse que não sei Como dizer este Elsenor sem rei
Como dizer que amor é outra coisa Se tanto disse menos o dizer
Que nem só o teu corpo me fez rei Esta paixão que sabe o que não sei
Nem tua alma só me deu a rosa Em Elsenor de ser e de não ser
Tanto se disse menos o dizer Senão que amor ainda é outra coisa
Esta paixão que é de todo o ser Como entre o corpo e a morte o anjo e a rosa

E ao fim do ser ainda há outra coisa Como dizer do sexo a alma e a rosa
Mais do que corpo e alma e ser não ser Se amor é mais que ter e mais que ser
Como entre vida e morte e sexo e rosa Um morrer ou nascer ou outra coisa
Um morrer e um nascer. Como dizer Entre a vida e a morte e um não dizer
Este reino em que sou o servo e o rei Senão que disse tanto e ainda não sei
Como dizer se tanto e ainda não sei Como dizer de amor se servo ou rei
Se disse tanto menos o dizer
Esta paixão da alma que não sei
Se é o sexo ou seu anjo ou só o ser
Entre a vida e a morte o breve rei
Deste reino que fica à beira-rosa
Do teu corpo onde amor é outra coisa

Como dizer de amor ser e não ser


Se amor mais do que amor é outra coisa
Mais do que ser e ter mais que dizer
Um morrer e nascer entre anjo e rosa
Ou entre o corpo e a alma o servo e o rei
Como dizer se tanto e ainda não sei

Manuel Alegre, Obra Poética


DA FERIDA

Regresso, depois da litania,


à contemplação sem voz.
A memória da música é
amarga, quando estou só.
Os quartetos de Beethoven
arrancam-me uma parte
do corpo em substância.
Ferida, terei de ir ainda
à cidade dia a dia.

Fiama Hasse Pais Brandão, As Fábulas


QUERIA QUE ME ACOMPANHASSES

Queria que me acompanhasses


vida fora
como uma vela
que me descobrisse o mundo
mas situo-me no lado incerto
onde bate o vento
e só te posso ensinar
nomes de árvores
cujo fruto se colhe numa próxima estação
por onde os comboios estendem
silvos aflitos.

Ana Paula Inácio, Poetas sem qualidades

Edward Hopper
AMORES EU TENHO

Tardei, minha mãe, na fria fonte;


Volviam a água cervos do monte.
Responde, filha, formosa filha: Amores eu tenho!
porque tardaste na fonte fria
Amores eu tenho! - Que escondes,filha, por teu amigo?
cervos do monte não volvem o rio.
Amores eu tenho!
Filha, formosa filha, responde:
porque tardaste na fria fonte Por teu amado, filha, que escondes?
Amores eu tenho! o mar não volvem cervos do monte.
Amores eu tenho!
- Tardei, minha mãe, na fonte fria,
Cervos do monte a água volviam.
Amores eu tenho! Natália Correia, in A Defesa do Poeta
Zé Manel - na Galeria Lino António - E.S.A. António Arroio
Quem me suspende da dor

Quem me suspende da dor


no ar vazio
envolvido
de ternura
e de amor
a tanta altura do mar?

Fernando Monteiro, Mar Branco


Transforma-se o amador na cousa amada

Está no pensamento como ideia;


[E] o vivo e puro amor de que sou feito,
Como a matéria simples busca a forma.

Transforma-se o amador na cousa amada,


Por virtude do muito imaginar;
Luís de Camões, Rimas
Não tenho logo mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.

Se nela está a minha alma transformada,


Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
Pois consigo tal alma está liada.

Mas esta linda e pura semideia,


Que, como o acidente em seu sujeito,
Assim com a alma minha se conforma,
Sem outro intuito

Atirávamos pedras
à água para o silêncio vir à tona.
O mundo, que os sentidos tonificam,
surgia-nos então todo enterrado
na nossa própria carne, envolto
por vezes em ferozes transparências
que as pedras acirravam
sem outro intuito além do de extraírem
às águas o silêncio que as unia.

Luís Miguel Nava, Vulcão


Houvesse um sinal a conduzir-nos

Houvesse um sinal a conduzir-nos

E unicamente ao movimento de crescer nos guiasse. Termos das árvores

A incomparável paciência de procurar o alto

A verde bondade de permanecer


E orientar os pássaros

Daniel Faria, Poesia


REQUIEM COM PAISAGEM
Abro a cama do horizonte. Deito para o lado dos anos, os últimos da adolescência, com a sensação
os lençóis para onde correram os barcos de um fim que a vida vai adiando. Por que não te segui na
do sonho. Os braços caem-me para o outro lado descida para o abismo dos quartos? Ou ainda,
da cama, como se fosse o outro lado da terra. «Pensei por que evitei o teu olhar nessa porta que demoravas
em ti, que me esperavas, que o teu corpo nu brilhava a fechar, antes que o ar da rua me puxasse,
nos sulcos desses barcos antigos.» Mas impedindo-me de dizer que te amava, ou apenas que a
o que ficou nessa cama foram as manchas cinzentas noite estava fria – e que numa noite fria o amor é
da madrugada, pesadas como reposteiros de fogo, uma solução possível? Mas é sempre assim: o tempo acaba
frias com a ausência das aves marinhas; e por corrigir cada um dos nossos gestos passados, como
nenhuns lábios me responderam. Queria ouvir-te falar se quisesse obrigar-nos a uma segunda vida; e quem se demora
sobre a brancura do travesseiro, os cabelos ainda a pensar neles, descobre que nenhum exercício pode trazer
tapados por um cobertor de ventos. Olhei um corpo aos braços que o evitaram, nem arrancar um sorriso
as paredes vazias, os lugares de onde tiraram os quadros aos lábios que se limitam à despedida. Então, os barcos
com as marcas do pó na parede, um espaço vazio dobram o último cabo; e um canto de marinheiros sobrepõe-se
de imagens. «Quem se compadece dos corpos que o tempo ao ruído dos temporais, rasgando as velas da noite. O teu
[devorou, rosto brilha no incêndio da manhã; os teus passos
perguntas-me, dos olhos ainda ofuscados com a primeira luz, distinguem-se sobre o ranger das madeiras: e és tu,
[das envolta no estranho sudário das mulheres amadas, que
mãos que procuram um caminho na indecisão do amor – abres a porta do porão, onde um cheiro a sal limpa os sentidos
[presas de uma sujidade de nostalgias e dúvidas. «Deita-te comigo,
aos pregos que ninguém arrancou, furadas dizes-me; partilha o lençol corrupto da meia-noite; conta-me
pela luz negra da ferrugem, como os estigmas secos por onde andaste, nestes séculos, anos, instantes
do sexo?» Posso fazer um inventário dessas submersos pela cinza dos vulcões que o amor apagou?» Deixas-
perguntas, somá-las na memória, como datas esquecidas [-me
que se descobrem, de súbito, nas páginas de uma velha esse instante; e vejo-o desaparecer-me por entre os dedos,
agenda; e só os nomes que elas encobrem me levantam chama fátua com que me chamas, ainda…
dúvidas – como se cada um deles me ferisse, rostos que
regressam a uma galeria fechada pela solidão Nuno Júdice, Poemas em Voz Alta
Arco-íris

Arco-íris no céu.
Está sorrindo o menino
Que há pouco chorou.

Helena Kolody, Paisagem Interior


INFÂNCIA
que traz água, frio, o fim da noite-
a espessa nitidez da madrugada.
Sabias de cor todas
as ciladas,
as grades com que te pregavam António Mega Ferreira, O Tempo que Nos Cabe
o destino,
a mão na boca,
a língua soletrada,
o sangue, a sua cor,
a cor meridional do riso.

Era um tempo feliz, mas


não sabias. Tu não sabias
da vida
a insólita metade, o trecho
indecifrável dos dias após
dias, as linhas da mão
que pousou nas tuas,
o vento norte,

São João de Areias - 'o meu Mondego'


Eros e Psique

Conta a lenda que dormia


Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria Mas cada um cumpre o Destino –
De além do muro da estrada. Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Ele tinha que, tentado, Pelo processo divino
Vencer o mal e o bem, Que faz existir a estrada.
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado E, se bem que seja obscuro
Por o que à Princesa vem. Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
A Princesa Adormecida, E, vencendo estrada e muro,
Se espera, dormindo espera. Chega onde em sono ela mora.
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida, E, inda tonto do que houvera,
Verde, uma grinalda de hera. À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
Longe o Infante, esforçado, E vê que ele mesmo era
Sem saber que intuito tem, A Princesa que dormia.
Rompe o caminho fadado.
Ele dela é ignorado.
Ela para ele é ninguém. Fernando Pessoa
UM CARNAVAL

Vem ao baile oh tens de vir


E perder-te nos espelhos
Vem ao baile vem ao baile Há outros muito mais velhos
Pelo braço ou pelo nariz Que ainda sabem sorrir
Vem ao baile vem ao baile
E vais ver como te ris Vem ao baile da loucura
Vem desfazer-te do corpo
Deixa a tristeza roer E quando caíres de borco
As unhas de desespero A tua alma é mais pura
Deixa a verdade e o erro
Deixa tudo vem beber Vem ao baile vem ao baile
Pelo chão ou pelo ar
Vem ao baile das palavras Vem ao baile baile baile
Que se beijam desenlaçam E vais ver o que é bailar.
Palavras que ficam passam
Como a chuva nas vidraças
Alexandre O’Neill, Poesias Completas
POR OFERTAR

Trazia um livro velho.


Histórias esperadas p'lo
inverno
à beira da Beira Alta.

Era um dia ao anoitecer.

João Miguel Fernandes Jorge, Pelo Fim da Tarde


Andamos na vida

Andamos na vida
de ficção em ficção

Sofremos
Amamos
sofremos
Depois sabemos
que era ilusão

Às vezes esquecemos
outras não

Só tu
Mãe
foste sempre verdade
Agora mais do que nunca

Teresa Rita Lopes, Cicatriz


Um pássaro de luz brinca nos teus olhos

Um pássaro de luz brinca nos teus olhos


Adormecidos sobre a relva
Enquanto para além do crivo da folhagem
Pequenos sons arranham o silêncio.

Egipto Gonçalves, O Amor Desagua em Delta


Vontade de imitar
CAPRICHO
a boémia do luar
aos trambolhões nos cerros.

Carlos de Oliveira, Trabalho Poético


Um pássaro de outono
no jardim;
uma ave para desfolhar,
como se faz às rosas,
pena a pena;
ou qualquer coisa assim.

Vontade de chorar
com o coração ferido
num gume de açucenas.

Vontade de beber
sem crimes e sem erros.
Artigo III

Fica decretado que, a partir deste instante,


haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança.

Thiago de Mello, Os Estatutos do Homem

Mina Anguelova
Talvez nos campos imensos, onde o lírio floresce

Nuno Júdice
Agora que as palavras secaram

Agora que as palavras secaram


e se fez noite
entre nós dois, No mais é o recalcitrar dos dias,
agora que ambos sabemos perseguindo-nos, impiedosos,
da irreversabilidade com relógios,
do tempo perdido, pessoas,
resta-nos este poema de amor e solidão. paredes demasiado cinzentas,
todas as coisas inevitavelmente
lógicas.

Que a nossa nem sequer foi uma história


diferente.
A originalidade estava toda na pólvora
dos obuses, no circunstanciado
afivelar
dos sorrisos à nossa volta
e no arcaísmo da viela onde fazíamos amor.

Eduardo Pitta, Marcas de Água


AS CASAS

Há sempre um deus fantástico nas casas


Em que eu vivo, e em volta dos meus passos
Eu sinto os grandes anjos cujas asas
Contêm todo o vento dos espaços.

Sophia de Mello Breyner Andresen, Obra Poética


Lá no craveiro que eu tinha,
Onde uma cepa cansada
Mal dava cravos sem vida,
Nasceu essa acaciazinha
Que depois foi transplantada
E cresceu, dom do meu Deus!,
[...]

José Régio, Toada de Portalegre


Perde-se com a idade um não sei quê

Perde-se com a idade um não sei quê


que era talvez sombra e sabor e até tristeza
e assim temos outra paz de inclinação
em clareiras limpas tocadas de algum eco
melancólico e lúcido E quase sem ilusão CORAÇÃO SEM IMAGENS
entregamo-nos ao âmbito de uma paz
que é a medida do mundo quando nada
se nos oferece senão o habitar
aquelas horas de um universo que
é no silêncio glória obscura e transparente
Assim nos inebriamos também da madurez
procurando a inocente incandescência
do tempo quando ilumina as clareiras
e é como se nada ainda fosse passado
na onda lenta que ascende sobre o peito
e que desperta um vago núcleo que inicia

António Ramos Rosa, O Livro da Ignorância


CORAÇÃO SEM IMAGENS

ao António Ramos Rosa

Deito fora as imagens.


Sem ti, para que me servem Serei feliz sem as imagens.

as imagens? As imagens não dão


felicidade a ninguém.

Preciso habituar-me
a substituir-te Era mais difícil perder-te

pelo vento, e, no entanto, perdi-te.

que está em qualquer parte


e cuja direcção Era mais difícil inventar-te,

é igualmente passageira e eu te inventei.

e verídica.
Posso passar sem as imagens

Preciso habituar-me ao eco dos teus passos assim como posso

numa casa deserta, passar sem ti.

ao trémulo vigor de todos os teus gestos


invisíveis, E hei-de ser feliz ainda que

à canção que tu cantas e que mais ninguém ouve isso não seja ser feliz.

a não ser eu.


Raul de Carvalho, Obras de Raul de Carvalho
DESPEDIDA

Uma harpa envelhece.


Nada se ouve ao longo dos canais e os remadores O teu rosto é a relva mutilada dos passos em que me
sonham junto às estátuas de treva. entristeço, a absoluta condenação.
A tua sombra está atrás da minha sombra e dança. Chove quando penso que um dia as tuas rosas floriam
Tocas-me de tão longe, sobre a falésia, e não sei se no centro desta cidade.
foi amor. Não quis, à volta dos lábios, a profanação do jasmim,
Certo rumor de cálices, uma súplica ao dealbar das as tuas folhas de outubro.
ruínas, Ocultarei, na agonia das casas, uma pena que esvoaça,
tudo se perdeu no solitário campo dos céus. a nudez de quem sangra à vista das catedrais.
Uma estrela caía. O meu peito abriga as tuas sementes, e morre.
Esse fogo consumido queima ainda a lembrança do Esta música é quase o vento.
sul, a sua extrema dor anoitecida.
Não vens jamais. José Agostinho Baptista, Paixão e Cinzas
Meto-me para dentro, e fecho a janela.

Meto-me para dentro, e fecho a janela.


Trazem o candeeiro e dão as boas-noites,
E a minha voz contente dá as boas-noites.
Oxalá a minha vida seja sempre isto:
O dia cheio de sol, ou suave de chuva,
Ou tempestuoso como se acabasse o mundo,
A tarde suave e os ranchos que passam
Fitados com interesse da janela,
O último olhar amigo dado ao sossego das árvores,
E depois, fechada a janela, o candeeiro aceso,
Sem ler nada, nem pensar em nada, nem dormir,
Sentir a vida correr por mim como um rio por seu leito,
E lá fora um grande silêncio como um deus que dorme.

Alberto Caeiro, O Guardador de Rebanhos


CANÇÃO

Hoje venho dizer-te que nevou


no rosto familiar que te esperava.
Não é nada, meu amor, foi um pássaro,
a casca do tempo que caiu,
uma lágrima, um barco, uma palavra.

Foi apenas mais um dia que passou


entre arcos e arcos de solidão;
a curva dos teus olhos que se fechou,
Klaus Oppermann
uma gota de orvalho, uma só gota,
secretamente morta na tua mão.

Eugénio de Andrade, As Palavras Interditas


Chove. Há silêncio, ...

Chove. Há silêncio, porque a mesma chuva


Não faz ruído senão com sossego.
Chove. O céu dorme. Quando a alma é viúva
Do que não sabe, o sentimento é cego.
Chove. Meu ser (quem sou) renego...

Tão calma é a chuva que se solta no ar


(Nem parece de nuvens) que parece
Que não é chuva, mas um sussurrar
Que de si mesmo, ao sussurrar, se esquece.
Chove. Nada apetece...

Não paira vento, não há céu que eu sinta.


Chove longínqua e indistintamente,
Como uma coisa certa que nos minta,
Como um grande desejo que nos mente.
Chove. Nada em mim sente...

Fernando Pessoa, Cancioneiro


As flores

Era preciso agradecer às flores

Terem guardado em si,

Límpida e pura,

Aquela promessa antiga

Duma manhã futura.

Sophia de Mello Breyner Andresen, No Tempo Dividido


Brise marine

A carne é triste, sim, e eu li todos os livros.


La chair est triste, hélas ! et j'ai lu tous les livres. Fugir! Fugir! Sinto que os pássaros são livres,
Fuir ! là-bas fuir! Je sens que des oiseaux sont ivres Ébrios de se entregar à espuma e aos céus imensos.
D'être parmi l'écume inconnue et les cieux ! Nada, nem os jardins dentro do olhar suspensos,
Rien, ni les vieux jardins reflétés par les yeux Impede o coração de submergir no mar
Ne retiendra ce coeur qui dans la mer se trempe Ó noites! nem a luz deserta a iluminar
Ô nuits ! ni la clarté déserte de ma lampe Este papel vazio com seu branco anseio,
Sur le vide papier que la blancheur défend Nem a jovem mulher que preme o filho ao seio.
Et ni la jeune femme allaitant son enfant. Eu partirei! Vapor a balouçar nas vagas,
Je partirai ! Steamer balançant ta mâture, Ergue a âncora em prol das mais estranhas plagas!
Lève l'ancre pour une exotique nature !
Um tédio, desolado por cruéis silêncios,
Un Ennui, désolé par les cruels espoirs, Ainda crê no derradeiro adeus dos lenços!
Croit encore à l'adieu suprême des mouchoirs ! E é possível que os mastros, entre as ondas más,
Et, peut-être, les mâts, invitant les orages, Rompam-se ao vento sobre os náufragos, sem mas-
Sont-ils de ceux qu'un vent penche sur les naufrages Tros, sem mastros, sem ilhas férteis, a vogar...
Perdus, sans mâts, sans mâts, ni fertiles îlots ... Mas, ó meu peito, ouve a canção que vem do mar!
Mais, ô mon coeur, entends le chant des matelots !

Mallarmé.Trad.: Augusto de Campos, Decio Pignatari e


Haroldo de Campos
Stéphane Mallarmé, Poèmes
esta es una silla
sólo una silla
esta es una silla en ella
se sentó mi padre
mis hermanos
todos
mis mejores amigos
ahora
está sola
sin nadie
una silla

Reinaldo Pérez Só, Para morirnos de otro sueño

esta é uma cadeira


só uma cadeira
nela
sentou-se meu pai
meus irmãos
todos
os meus melhores amigos
agora
está sozinha
sem ninguém
uma cadeira

Reinaldo Pérez Só - Trad.: José Bento


a loucura de partir correndo, pelo sonho dentro

Teolinda Gersão
Símbolos? Estou farto de símbolos...
Mas dizem-me que tudo é símbolo.
Todos me dizem nada.
Quais símbolos? Sonhos. –
Que o sol seja um símbolo, está bem... Bem, vá, que tudo isso seja símbolo...
Que a lua seja um símbolo, está bem... Mas que símbolo é, não o sol, não a lua, não a terra,
Mas neste poente precoce e azulando-se
Que a terra seja um símbolo, está bem...
O sol entre farrapos finos de nuvens,
Mas quem repara no sol senão quando a chuva cessa, Enquanto a lua é já vista, mística, no outro lado,
E ele rompe as nuvens e aponta para trás das costas E o que fica da luz do dia
Doura a cabeça da costureira que pára vagamente à
Para o azul do céu?
esquina
Mas quem repara na lua senão para achar Onde demorava outrora com o namorado que a
Bela a luz que ela espalha, e não bem ela? deixou?
Mas quem repara na terra, que é o que pisa? Símbolos? Não quero símbolos...
Queria – pobre figura de miséria e desamparo! –
Chama terra aos campos, às árvores, aos montes. Que o namorado voltasse para o costureira.
Por uma diminuição instintiva,
Porque o mar também é terra...
Álvaro de Campos, Poemas
Todo aquele que abre um livro entra numa nuvem
ou para beber a água de um espelho
ou para se embriagar como um pássaro ingénuo
A sôfrega retina
vai-se tornando felina e inflada
e os seus liames tremem entre o júbilo e a agonia
Um livro é redondo como uma serpente enrolada
e formado de fragmentos onde lateja o sangue de um pulso O livro ora é de veludo ora de bronze
que já não é de um autor que nunca o foi e os seus traços abrem janelas ou terraços
e que será sempre o ritmo do que está a nascer sobre o corpo latente como um arbusto entre pedras
irrigando o nada e os terraços sobre os abismos Se a palavra vibra como um meteoro ou desliza como uma anémona
Nunca o livro se completa embora o redondo o circunde ou não é mais do que uma estrela de areia
e o mova para o seu interior sem nunca o envolver a sua proa sulca o incessante intervalo
Jamais a nuvem se dissipa mesmo quando a claridade ofusca entre o ardor de incompletos liames
Como se fosse preciso adormecer nela como sobre os ombros do mundo e a estátua aérea que se eleva à sua frente
para acompanhar o seu fluxo ingenuamente novo e continuamente se forma e se deforma
com os delicados diademas de fogo e espuma por não ser nada e ser o alvo puro
de um movimento ingénuo sonâmbulo e incerto

António Ramos Rosa, O Poeta na Rua


Maio Maduro Maio

Maio maduro Maio Maio com meu amigo


quem te pintou quem dera já
quem te quebrou o encanto sempre no mês do trigo
nunca te amou se cantará
raiava o sol já no sul qu'importa a fúria do mar
e uma falua vinha que a voz não te esmoreça
lá de Istambul vamos lutar

sempre depois da sesta numa rua comprida


chamando as flores el rei-pastor
era o dia da festa vende o soro da vida
Maio de amores que mata a dor
anda ver, Maio nasceu
era o dia de cantar que a voz não te esmoreça
e uma falua andava a turba rompeu
ao longe a varar

José Afonso
Páscoa – na Beira
la vie n'a d'importance
que par une fleur qui danse sur le temps.

Gilbert Bécaud
em dia de Camões

Se destruíste a tua vida aqui, nesta pequena esquina,

destruíste-a no mundo inteiro.

Constantino Cavafis
Vêm de um céu

Vêm de um céu antigo, um céu


talvez de ficção. Vejo-as chegar,
vejo-as partir. São aves
de passagem, não lhes sei o nome.
Têm como eu pouca realidade.
Seguem a direcção do vento,
rumo a sul, chamadas
pela cal ardendo sobre o mar.
É difícil, a nostalgia;
naturalmente mais difícil quando
o tempo fere o nosso olhar
e o priva do que fora mais seu:
a nudez musical da luz primeira.
Mas de que falo eu, se não forem aves?

Eugénio de Andrade, O Sal da Língua


Senhora, partem tão tristes

Senhora, partem tão tristes


meus olhos por vós, meu bem,
que nunca tão tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.

Tão tristes, tão saudosos,


tão doentes da partida,
tão cansados, tão chorosos,
da morte mais desejosos
cem mil vezes que da vida.
Partem tão tristes, os tristes,
tão fora de esperar bem
que nunca tão tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.

João Roiz de Castelo-Branco, Cancioneiro Geral


2.

Pinheiros
à volta. Às vezes
cai no chão
uma pinha
e o silêncio aplaude.

Albano Martins, Castália e Outros Poemas


A terra, insultada, vinga-se dando-nos flores.

Rabindranath Tagore
Désordre de pétales blancs

si mon coeur tourne


chaque instant pensées dansent

Marie Mélisou
… e as férias chegaram!
as férias continuam onde

... as pedras (se) amam ...


... e os homens... não tanto, não tanto...
Fim de férias... o prazer da exposição!

Mina Anguelova
SÚPLICA FINAL

que não pensei que desejava e esqueço


Senhor: não peço mais que silêncio,
ao querer lembrá-las. E o silêncio
o silêncio das noites de planície como enovoadas águas,
dos sexos que se possuem sem uma palavra.
o silêncio dos montes quando a tarde acabou e as
E o do amor também, tão silencioso esse,
[pedras
que não sei quem amo.
se afiam na friagem que é azul-celeste,
Não peço mais. Afasta
o silêncio do sol encarquilhando as folhas,
de mim o estrondo: não o das cidades,
e o vento na areia depois de ter passado,
ou dos homens, das águas, do que estala
o silêncio das ondas ao longe espumejando tranquilas,
na memória ou penumbra das salas desertas.
o silêncio das mãos e o dos olhos,
Afasta de mim o estrondo com que a vida
e o das aves negras que pairam nas alturas
se acabará contigo, num rasgar de súbito
de um céu silencioso e límpido. Não peço
em que ficarei inerte e silencioso. O estrondo
mais que silêncio. O silêncio das ideias que deslizam
em que não ouvirei mais nada. O estrondo
no tecto escorregadio da memória silente.
em que não mexerei um dedo. O estrondo
E o silêncio dos sonhos coloridos, e o dos outros
em que serei desfeito. O estrondo
a preto e branco imagens desejadas
em que de olhos abertos
alguém mos abrirá.
Senhor: não peço mais do que o silêncio do mundo,
o silêncio dos astros, o silêncio das coisas
que outros homens fizeram, e o das coisas
que eu próprio fiz.
E o teu silêncio
de senhor que foi. Não peço mais.
Não é nada o que peço. Dá-me
o silêncio. Dá-me o que não fui:
silêncio (porque calei tanto):
o que não sou (pois que calo tanto):
o que hei-de ser (já que falar não adianta):
Silêncio.
Senhor: não peço mais.

Jorge de Sena, Peregrinatio ad Loca Infecta


AMIGOS,
"por causa da cor do trigo..."

Dizia Teixeira de Pascoaes em carta a Raul Brandão: "A amizade verdadeira é


o maior argumento a favor da existência de Deus". E talvez seja assim mesmo.
É no riso dos amigos que vivemos a infância. O riso dos segredos cúmplices,
das pequenas infracções que ninguém descobriu, da curiosidade partilhada em
alvoroço, do sopro sereno do vento nos cabelos.

É nos olhos dos amigos que recordamos a infância. Corridos os anos, a


esperança já um pouco gasta, esmorecida a alegria, é nos olhos deles que
encontramos por momentos a luz das manhãs de outrora, o entendimento que
nasce sem palavras, a emoção do riso solto sem a censura das conveniências ou
da idade, a magia das tardes em que se adivinhava a Primavera.
É no rosto dos amigos que lemos o nosso envelhecer. As rugas, os cabelos
brancos, o brilho embaciado do olhar, o ricto cada dia menos doce que nos
vinca os lábios, os gestos lentos de amargura foram crescendo connosco sem
que verdadeiramente déssemos por isso. É no rosto dos nossos amigos que
sentimos a que ponto o tempo nos devastou, como se de repente e pela vez
primeira nos olhássemos ao espelho.
E é então que nos encontramos inermes, perdidos, desencantadamente lúcidos ante a vida que se esgotou sem que quase nunca
saibamos porquê nem para quê. Mas também é no rosto envelhecido dos amigos que descobrimos a centelha de ternura que guardámo s
ainda quando os dias, de loucas aventuras sonhadas nas tardes chuvosas, se transformaram na própria chuva, miudinha e cinzenta,
desinteressante e fria de renúncias.
Sentimento controverso, a amizade. Porque os amigos nos enchem a vida com a sua presença, mas também nos fazem provar o gosto
acre da tristeza ou da saudade quando deles nos separamos, e nos deixam um insuportável vazio quando os perdemos. Dizia Séneca,
numaEpistula a Lucílio em que procurava bálsamos para a ferida aberta da lembrança dos amigos desaparecidos:
Procedamos (...) de modo a que a recordação dos desaparecidos seja para nós um momento de doçura. Ninguém rememora
voluntariamente uma coisa em que se não pode pensar sem aflição. [...]

[...] Gozemos intensamente a companhia dos nossos amigos, até porque quantas vezes os deixámos para partir em longas viagens,
quantas vezes estivemos sem os ver embora morando na mesma terra [...]
Termino com um texto que todos conhecem mas que, julgo, lembra como nenhum que a amizade é memória e futuro, lágrimas e riso,
serenidade e sobressalto, presença e saudade. É um texto d'O Principezinho, de A. de Saint-Exupéry. Diz o principezinho:

- Ando à procura de amigos. O que é que «estar preso» quer dizer?


- É uma coisa de que toda a gente se esqueceu – disse a raposa. – Quer dizer que se está ligado a alguém, que se criaram laços com
alguém.
- Laços?
- Sim, laços – disse a raposa. – Ora vê: por enquanto, para mim, tu não és senão um rapazinho perfeitamente igual a outros cem mil
rapazinhos. E eu não preciso de ti. E tu também não precisas de mim. Por enquanto, para ti, eu não sou senão uma raposa igual a outras cem
mil raposas. Mas, se tu me prenderes a ti, passamos a precisar um do outro. Passas a ser único no mundo para mim. E, para ti, eu também
passo a ser única no mundo…
[...] se tu me prenderes a ti, a minha vida fica cheia de Sol. Fico a conhecer uns passos diferentes de todos os outros passos. Os outros passos
fazem-me fugir para debaixo da terra. Os teus hão-de chamar-me para fora da toca, como uma música. E depois, olha! Estás a ver, ali adiante,
aqueles campos de trigo? Eu não como pão e, por isso, o trigo não me serve para nada. Os campos de trigo não me fazem lembrar nada. E é
uma triste coisa! Mas os teus cabelos são da cor do ouro. Então, quando eu estiver presa a ti, vai ser maravilhoso! Como o trigo é dourado, há-
de fazer-me lembrar de ti. E hei-de gostar do barulho do vento a bater no trigo…

[…]
Foi assim que o principezinho prendeu a si a raposa. E quando chegou a hora da despedida:
- Ai! – exclamou a raposa – Ai que me vou pôr a chorar…
- A culpa é tua – disse o principezinho. – Eu bem não queria que te acontecesse mal nenhum, mas tu quiseste que eu te prendesse a mim…
- Pois quis – disse a raposa.
- Mas agora vais-te pôr a chorar! – disse o principezinho.
- Pois vou – disse a raposa.
- Então não ganhaste nada com isso!
- Ai isso é que ganhei! – disse a raposa. – Por causa da cor do trigo…

Maria Cristina de Castro-Maia de Sousa Pimentel, in Clássica 21

Para todos, todinhos mesmo, o meu fraterno abraço.


IV ~ Janeiro ~ Agosto ~ 2006

eli miguel

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