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Rebeca

alguns não pecam por nada!

Marco Buzetto
Copyright © Marco Buzetto 2013
Rebeca - Alguns não pecam por nada!

Capa Marco Buzetto


Foto da capa Rebeca von Weisheit
Foto do autor Danilo de Paula
Produção Gráfica Karlinhus Mozzambani

Catalogação na fonte elaborada pela Bibliotecária


Karina Gimenes Fernandes CRB-8/7418

Buzetto, Marco.
B917r Rebeca : alguns não pecam por nada / Marco Buzetto. – São Paulo :
Copacabana Books, 2013.
234 p.
ISBN 978-8-5639120-1-5
1. Literatura brasileira. 2. Romance brasileiro. 3. Filosofia. I. Título.

CDD B869.3

Todos os direitos reservados ao autor


Impresso no Brasil

Nesta obra, em alguns casos, o autor optou por não se utilizar das normas padrões
da língua portuguesa.

COPACABANA BOOKS
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Facebook: Marco Buzetto - E-mail: marcobuzetto@hotmail.com.br
Marco Buzetto

Rebeca
alguns não pecam por nada!

1ª edição

São Paulo

2013
Em memória de Vida e Cristal,
minhas maiores paixões.

Ao Amor. A Solidão.

A todos. A todas. A ninguém.


Introdução

“Eu sou Rebeca von Weisheit! Com esta afirmação, compreendo mi-
nha própria escolha, a escolha que faço por mim e sobre mim. Eu sou Rebeca
von Weisheit. Uma mulher de transparência pesada, cansativa, transgressiva
e extravagante. Não tenho problema em ir para a cama com mil homens ou
mil mulheres, estejam eles sujos ou limpos, sejam eles intelectuais russos ou
franceses, ou, quem sabe, ignorantes, do tipo caipira que se nega a aprender.
Gosto de muito whiskey, sexo e filosofia densa. Gosto de fazer do ser huma-
no um cardápio com sugestões e possibilidades infinitas. No entanto, o que
procuro em todos os corpos que se deitam comigo, sejam eles belos ou feios,
são as respostas para as questões mais irritantes: existência, motivos, porquês,
para quê, qual é a função de cada um?, o que é felicidade e como as pessoas a
conquistam?, de que as pessoas necessitam para viver com plenitude?, e, por
que não, qual é a razão de ainda estarem vivos?
Eu sou Rebeca von Weisheit, e quero que meu útero seja explorado até
7
sua profundeza para que nasça como luz em forma de criança a filosofia do ser
humano moderno. Quero que jatos de esperma e orgasmos femininos escorram
por meus lábios vaginais a fora, lubrificando a sabedoria e o conhecimento.
Não sou uma mulher que não sabe o que é ou parece ser certo ou er-
rado. Não sou uma mulher sem princípios, sem escrúpulos, sem moralidade.
Não sou uma prostituta, uma vagabunda, uma vadia; muito menos uma poetisa
evocadora do apocalipse. Não sou uma ignorante ou uma pessoa confusa, pois
sei bem o que procuro. Sei bem o que sou e para onde vou. Sei o que sinto e
sobre o que reflito. Sei exatamente o que faço e o que cada um dos indivíduos
pensa. Eu enxergo nas profundezas do cotidiano de cada corpo; a cada dose.
Eu faço. Eu ajo. Eu pergunto. Eu respondo. Eu sei. Eu sou. Eu sou Rebeca von
Weisheit”!

Rebeca é uma mulher/garota, uma mestra em questionar o que há de


errado ou certo com a vida das pessoas. Neste livro, Rebeca bebe whiskey,
usa bem as palavras e gosta de filosofar a respeito dos conceitos e sacramentos
Marco Buzetto |
ditados pelas sociedades. Aqui, a filosofia e a crítica social pesada remetem o
leitor a uma realidade surrada, presente. O real aqui é duro, e vem rápido com
extrema violência socar o rosto de quem quer que seja, sem distinção de sexo
ou engajamento.
Rebeca procura respostas para suas frustrações, e liga cada uma delas
a todos a sua volta. Rebeca diz que “ninguém peca por nada”, todos possuem
motivos para fazer o que fazem, mesmo que pareça a mais angelical das ino-
cências. Porém, ela mesma reconhece seu próprio pecado: a dúvida. Prefere
sacrificar a si mesma sangrando por toda a cama com a verdade do que viver os
anos com a dúvida castigando seu pensamento com uma marreta divina.

Nietzsche, Schopenhauer, Heidegger, Goethe, Dostoievski, ou qualquer


um dos clássicos pensadores e escritores da antiguidade podem ser lidos nas
palavras de Rebeca... E muitos deles morderiam a si mesmos em suas próprias
bocas caso lessem sobre a vida de Rebeca von Weisheit.
Sem frescuras, com seu próprio pudor, sem medo de agir quando neces-
8 sário abrindo suas pernas e ingerindo cada vez mais whiskey, sangue, saliva
e suor, Rebeca trata de incentivar sua própria ação filosófica, e sacrifica seu
templo à procura incansável de respostas e, ainda mais necessárias, as pergun-
tas corretas.

| Rebeca
Deixe eu me apresentar

Meu nome é Rebeca, como você bem sabe. Sou uma garota qualquer,
quem sabe, que durante nossa jornada aqui juntos se torna mulher, e retorna a
juventude.
Minha vida não é lá grande coisa. Nenhuma novidade. Nada pra se or-
gulhar. Nenhuma boa notícia. Nenhum entusiasmo. Minha vida é praticamente
uma hipnose, um transe – repleto de transas –; uma hipnose que você perceberá
não somente em minha vida, mas também me minhas palavras.
Minhas confissões são reais, fatos que aconteceram em alguns momen-
tos distintos. Porém, na maioria das vezes, estes fatos me acompanham por
vários dias, algumas semanas. São fatos que colaboraram para meu desprezo
pessoal. São fatos que colaboraram para o engrandecimento alheio, enquanto
eu definhava.
Minhas palavras são repletas de peso e acidez, carregadas de blasfê-
mias e pecados. Sou um livro arrependido, talvez. Talvez carregado também
9
de inocência. Uma inocência que finge a si mesma. Inocente como uma garota
buscando seus maiores prazeres e mentindo para os pais.
Por muito tempo tive vergonha sobre o que me tornei. Ainda em minha
infância, minhas lágrimas despencavam discretas pelo meu rosto, pois eu não
conseguia acreditar em nada do que chegava aos meus ouvidos.

Sim. Tem razão. Se você ouviu dizerem que minha vida é cheia de sexo
e álcool, acredite. Sou viciada em todos os males. Porém, talvez o maior, a
dúvida. Meu maior vício é questionar. É não acreditar que a felicidade está nas
pequenas coisas; acreditar que não está na porta ao lado, logo ali. No entanto,
poucas lágrimas e soluços de choro você encontrará em minhas confissões.
Posso dizer que, em muitas vezes, talvez na maioria das vezes, você
sentirá nojo de mim, possivelmente um pouco de pena. Mas a repulsa tomará
conta de seus sentimentos. Não apenas por eu me deitar com todos, mulher ou
homem. Você sentira repulsa em me conhecer, justamente por eu me tornar sua
melhor e pior amiga. Por eu socar a verdade em sua cara. Verdades que muitas
Marco Buzetto |
vezes não são questionadas, por medo. Pelo simples fato de você sentir medo
de conhecer a si mesmo.
Eu estou aqui, e vim para contestar a sua vida. Estou aqui, e vim para
provar que você não conhece a si mesmo. Estou aqui para lhe mostrar que o
conheço melhor e mais profundamente do que ninguém um dia conheceu.
Quero te mostrar que o caos que vive dentro de mim tornará sua vida
um mar de positividade. Quero te mostrar que eu luto todas as minhas maiores
batalhas sozinha, e sempre as venço.

Confesso que sou uma história baseada em fatos reais. Confesso que
minha pessoa não é lá as melhores. Pois sou aquele tipo de mulher que sua mãe
diria para não andar junto. Porém, quem é sua mãe para fazer julgamentos, não
é mesmo?
Você lerá sobre minha vida, e irá evoluir junto comigo de tal maneira
que acabará renovado, totalmente transformado. Ao chegar à última página
sobre minha vida, sobre mim, sua experiência evolucional estará num ponto
10 alto, restando apenas alguns detalhes para se tornar completo em sim mesmo;
uma pessoa transformada, melhor do que era quando começou a me conhecer.
Quanto menos você estiver em contato comigo, mais vontade terá de
me conhecer e saber mais sobre mim. Quanto maior a distância de minha pes-
soa, mais saudade e vontade de voltar correndo para meus braços você sentirá.
No entanto, sou apenas uma garota/mulher, como todas as outras; como
todo ser humano. Sou uma pessoa comum, igual a você, igual ao seu vizinho,
igual a sua mãe, seus irmãos, seus colegas de trabalho. A única diferença é que
minha boca não está fechada, tampouco minha consciência, minha vontade.
Olhe atrás de você.
Quero conhecer mais sobre você. Quero saber todos os detalhes de sua
vida. E conseguirei. Pois, à medida em que você conhecer mais sobre mim,
mais eu estarei próxima de você. Quero saber tudo sobre você. Começando
pelo seu nome. Homem ou mulher? Qual é seu nome? Todos possuem um
nome. O meu é Sabedoria.

Rebeca

| Rebeca
Livro I Parte I
Em todos os lugares todas as pessoas um dia ouviram falar em Rebe-
ca. Quem não ouvira? Uma garota linda, com seus vinte e poucos anos, de
cabelos fantasticamente negros como a noite mais escura, boa altura, mais ou
menos um metro e oitenta, por aí... Rebeca é simplesmente uma garota linda.
Simplesmente assim. Um verdadeiro poço de luxúria adolescente; um poço de
luxúria... Vívida. Afável. Envolta em névoa de complexidade e atração quase
impossíveis de se negar.
Não, ela não é uma prostituta! Isso seria clichê demais. Porém, Rebeca
gostava de viver sua própria lei: gostava de se divertir. Uma jovem como qual-
quer outra, liberal por vocação ou enrustida por obrigação. Não mantinha nada
em segredo, mas também sem dizer uma palavra sobre si fora de hora, ou longe
de sua melhor amiga, Anna, simpaticíssima, de descendência italiana... Talvez
nada de especial. As duas se adoravam, só isso.
11
― Por que você vive fazendo isso, Rebeca? – questionava sua melhor
amiga. Por que faz estas coisas sabendo que irá se amargurar no dia seguinte?
― Bom, Anna, se fosse apenas no dia seguinte, então tudo estaria tran-
quilo para mim. A angústia seria muito menor assim.
― Você parece um elevador, isso sim. Sobe, desce... Mais desce do que
sobe. – continuava sua amiga Anna, rindo de tudo enquanto secava um copo de
vodka sem gelo e com limão.
― Conheci uma pessoa ontem, sabe. Inteligente, legal comigo, muito
bonito. Uma ótima pessoa. – expeliu de sua boca a jovem Rebeca.
― É? Uma pessoa? Simples assim? – indagava sua amiga. Conte-me a
respeito. Sei que vai fazer isso mesmo...
Sim, é verdade. Rebeca havia conhecido uma boa pessoa na noite ante-
rior. Um homem bondoso, inteligente, como ela mesma havia afirmado. Bonito,
até mesmo elegante, jovem, porém um pouco mais velho que ela. Conheceu-o
no caminho de volta para casa, na saída de um barzinho beira de estrada... Ela
logo pensou: “esse parece estar fora de sua realidade”. E realmente estava, pois
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aquele era um local onde os deprimidos, os babacas, as pessoas que não possu-
íam coragem de encarar suas realidades de vida frequentavam.
― Você parece estar um pouco longe de casa, forasteiro. – brincou ela.
Acho que não vai encontrar o que quer por aqui.
― E o que eu quero? – indagou ele. Conheço você?
― Acredito que não. Mas... Rebeca. Rebeca é meu nome. – disse ela
prontamente.
― E você, por acaso, sabe o que estou procurando? – continuou ele. Por
acaso é algum tipo de vidente, uma investigadora por hobby, ou coisa assim?
― Não! – disse ela enquanto passava os olhos dos pés à cabeça do
parceiro de diálogo. Não sou uma espécie de vidente, ou qualquer merda desse
tipo. Mas sei adivinhar que você não me disse seu nome, forasteiro...
Estas apresentações não são necessárias para visualizarmos a cena.
Pois, violentamente, Rebeca e o “forasteiro” encontravam-se se entrelaçando
em uma cama de solteiro entre quatro paredes rubras. A noite estava apenas
começando para os dois, apesar dos ponteiros de um velho relógio sob a cabe-
12 ceira da cama apontar muito mais de três horas; uma madrugada sexualmente
viciada para ela, coisa a que está acostumada, de fato.
Enquanto o ato se consumava, o forasteiro pensava ter encontrado o
sexo daquela noite, marcando mais um ponto em seu nojento caderno de refei-
ções pós-meia-noite. Ela, Rebeca, preocupava-se com muito mais em sua men-
te. Estava mais interessada em saber quando aquele filme macabro iria acabar;
pois, mais parecia uma trilogia interminável e bizarra. No entanto, saciou-se
ferozmente, de maneira plena e aceitável.

― Mas e então? – perguntou Anna à sua amiga. Sentiu tudo o que cos-
tuma sentir nestes momentos “mágicos”? Ou será que dessa vez foi diferente
de todos os outros dias e noites?
― Nada disso. Nunca é diferente Anna. Nunca! – respondeu Rebeca.
Sabe, no fim das coisas, sempre, sempre quando os primeiros raios de sol ba-
tem em meu rosto como um soco dado por deus, ou sempre que eu acordo e
saio de fininho para não acordar ninguém, sempre nesses momentos me sinto a
pior pessoa do mundo. O que será que está errado? Mesmo nos momentos mais

| Rebeca
apaixonados, quando transo e durmo com uma pessoa em um relacionamento
completamente estável e duradouro, me sinto exatamente igual. Sinto-me pesa-
damente culpada. É uma sensação péssima, como se tudo não pudesse ter acon-
tecido; mas que em um ato de esperança cedi a mim mesma. E acabo dizendo
em meus próprios ouvidos: “Rebeca... O que está acontecendo? Merda”! Mas
não encontro à maldita resposta, mesmo enquanto sorriu como uma louca entre
um orgasmo e outro. Não consigo esconder minha tristeza.
Esta era toda a verdade que a jovem Rebeca podia e sabia dizer sobre
si. Não consegue sentir-se bem consigo mesma. E o pior, nem ao menos sabia
o motivo por essa distância abismal entre ela e a felicidade. No entanto, sua
felicidade não se resumia apenas nesta palavrinha vendida em propaganda de
cosméticos, farmácias ou rede de fastfoods. Rebeca sentia-se frustrada em rela-
ção ao mundo. E por mais que se divertisse de todas as formas possíveis, nunca
parecia encontrar um ponto no qual pudesse se focar. Não. Rebeca não era uma
vagabunda, ou uma desequilibrada, ou alguém equilibrada demais. Mas sentia-
-se incompleta, em todos os sentidos. Sua vida se resumia em falsa diversão e
dura realidade. Uma realidade que socava sua cara como um boxeador violento 13
e inescrupuloso.
― Isso parece muito duro de aguentar. – disse Anna, olhando sua amiga
nos olhos, tão fundo como se mergulhasse neles.
― Parece que sim. – respondeu. Mas acho que aguento mais um pouco.
Porque não? Esse lugar parece ter me dado tudo o que possuía. Acredito que
posso encontrar algo que sacie minha sede de não sei o que.
Rebeca por mais que conhecesse as verdades por detrás dos fatos e ilu-
sões das pessoas, não conseguia ao menos fazer de conta que podia ser como
todos. Por debaixo das células, dos cromossomos ou de milhares de mililitros
cúbicos de plasma sanguíneo não havia sentido algum para as reações irracio-
nais do ser humano... Tanta tecnologia e evolução da máquina humana para
nada: para enchermos nossa cabeça de porquês. Este talvez seja um problema
real de pessoas que investem em sua inteligência: uma recompensa injusta e
dolorosa, que afoga brutalmente nossa inocência. Uma verdadeira e crescente
entropia individual.
Normalmente as pessoas acreditam possuir a felicidade em todos os

Marco Buzetto |
momentos de sua vida, como se esse fenômeno – sim, isso mesmo, um fenô-
meno – fizesse parte integral de suas vidas, vindo em um kit encomendado logo
no nascimento. Porém, quando um acidente muito grande, o chamado “tombo”
emocional acontece, logo a realidade bate em nossa porta, como aquele já co-
nhecido “soco na cara”. E devemos torcer para que esse “soco” nos deixe uma
marca eterna, pois podemos chamá-lo de aprendizagem. E exatamente isso é o
que acontece com Rebeca: suas cicatrizes estão cada vez maiores; mas, mesmo
assim não consegue enxergar uma cura. Uma pessoa rodeada de falsos amigos,
mas que por vezes estes fazem bem seu papel; com dinheiro suficiente para
manter suas ambições, que na realidade não são tão grandes assim; corpo de
dar inveja em muita mulher, e tirar suspiros de todos os homens, até mesmo o
mais fiel e correto dos homens. Rebeca é praticamente um diabo... Um súcubo;
mesmo em sua inocência de anjo.
― O que você pretende fazer agora Beca? – perguntou sua amiga, cha-
mando-a carinhosamente pelo diminutivo.
― Na verdade, minha amiga filósofa, podemos encher nossas caras em
14 um bar qualquer. O que acha? Já passam das vinte e duas horas, e nós estamos
aqui conversando sobre minha merda de realidade. Você sabe muito bem que
a verdadeira filosofia se faz no bar. – respondeu ela, lembrando a formação
acadêmica de sua companheira.
No bar, a velha história se repetia: um copo alto com limão, três pedras
de gelo e completo de vodka até o topo para Anna, e um copo largo de whiskey
para a jovem Beca. O dono do lugar as conhecia bem, pois eram clientes assí-
duas daquela espelunca. Para completar o cardápio, uma porção de castanhas...
As quais nenhuma das duas tinha coragem de comer, mas que sempre estava lá,
servida por aquele barman asqueroso.
― Lembra-se quando espionamos aquela psicóloga maluca do seu pai
que você detestava... Aquela que tentou seduzir ele? – lembrou Beca dando
altas risadas algumas dezenas de minutos após terem chegado ao local.
― Ele nunca soube o que eu fiz. – respondeu ela. Se ele soubesse, puta
que pariu... Não sei o que seria capaz de me fazer.
― Ah Anna, pára com isso. Teu pai te ama mais do que tudo nesse mun-
do. – dizia sua amiga. Acho que ele não levantaria a voz nem se você tivesse

| Rebeca
matado aquela vagabunda.
― Rá.. Rá.. Matado? Eu?... Rá... Não, eu não. Pois é... Mais uma vo-
dka, por favor, com limão.. Matado... Rá. Só você mesma Beca... Matado...
― Anna, veja só aquele cara... Ali no canto, com a garota loira.
― O que tem, Beca? Qual é o problema? – indagou sua amiga. Você o
conhece por um acaso?
― Não por acaso. Grande cara. – respondeu. Namoramos uns dois
anos. Você estava fora do país nessa época, por isso não o conhece.
― Pelo jeito vocês não se entenderam muito bem, então.
― Putz, passamos dois anos juntos, e você acha que não nos entende-
mos? Imagino se tivéssemos nos entendido melhor... Dez anos, talvez? Que
horror!
― O que aconteceu? – continuou Anna sobre o namoro “relâmpago”.
― Aconteceu tudo o que não deveria ter acontecido, isso sim. Ele me
traia com essa mesma loira que está com ele hoje. Coisa sem importância, só
sexo. – respondeu Beca, mostrando não se importar enquanto lembrava-se dos
fatos. 15
...
― O que está acontecendo entre a gente? – perguntava Rebeca ao na-
morado. Estou fazendo algo que você não gosta?
― Do que está falando Rebeca?
― De você. É de você que estou falando. – respondeu a namorada do
passado. Quero saber o que está acontecendo, pois parece que não nos impor-
tamos mais um com o outro.
― Como assim “não nos importamos mais”? – perguntou. Acabamos
de transar, e você pareceu ter gostado muito. Você chama isso de “não se im-
portar” agora?
― Só estou perguntando. – disse ela, com o rosto deitado sobre o peito
do rapaz. Foi apenas uma droga de pergunta. Me desculpe.
― Estamos a dois anos juntos, Rebeca; tudo bem que terminei com
você um ano atrás e em pouco tempo retomamos o relacionamento, mas você
sabe o que sinto por você.
― Sim! Sei muito bem o que sente. – respondeu a garota de olhar triste,

Marco Buzetto |
porém disfarçado. Sei muito bem. E é exatamente por isso que me sinto assim.
A garota então simplesmente vestiu-se com o que mais parecia um uni-
forme, pois quase nunca mudava o tom das roupas, sempre tons escuros, selan-
do um beijo molhado no rapaz e dando-lhe as costas em um tchau sincero, tão
sincero que fazia com que seus lábios tremessem ressecados. Fechou a porta
da frente... E o barulho do escapamento se distanciava a cada marcha trocada,
desaparecendo por completo em alguns segundos.

― Bom, foi mais ou menos deste jeito. – continuava Beca, contando o


que havia acontecido com o casal do passado.
― Mas porque você não falou sobre a loira, a traição, as mentiras dele...
– indagou Anna, já com outro copo de vodka em mãos.
― Isso não mudaria nada Anna. – respondeu Beca. Sabe, eu já não
tinha esperança alguma nele, e, para ser sincera, sempre que ele mentia para
mim com aquele sorriso hipócrita nos lábios eu me sentia um dia a mais em li-
berdade, ou talvez mais próxima dela. Então, preferi não prolongar minha dor.
16 ― Tenho uma grande admiração por você minha amiga. – dizia Anna,
parecendo estar um pouco alta por causa das vodkas, ou será por causa do li-
mão? Por mais que as pessoas te façam triste, você sempre dá um jeito de sair
da situação ilesa... Mesmo abraçando a tristeza e não soltando dela.
― Bom, não entendi muito bem, mas vou tomar isso como uma coisa
boa. – riu Beca, virando secamente dois dedos bem generosos de whiskey go-
ela abaixo.

Havia um lugar no qual Rebeca conseguia se sentir um pouco menos


triste, e este lugar era palco de muitas de suas transas e tristezas. Este quarto
havia conhecido várias pessoas, homens e também algumas mulheres. Transar
com mulheres... Isso era uma rotina falha, que acontecia algumas vezes, mas
era uma das coisas que o volume máximo de álcool fazia acontecer na vida das
pessoas. Coisa de sábado à noite... Nada de mais. Muita música, muito álcool,
um pouco de drogas – bom, ninguém está mais nem aí para nada, então... Che-
ga de falsa moralidade – e o show atravessava a madrugada como uma agulha
atravesa a pele de um viciado em heroína. Mas Rebeca mantinha sua cabeça

| Rebeca
longe de certas coisas, às quais julgava altamente perigosas, viciosas; como o
amor, por exemplo. Ela tentava manter-se o mais longe possível desse entorpe-
cente pesado, de alto risco.
― Sabe Anna, acho que seu pai estava mesmo certo. – continuava Beca
com sua amiga ainda no bar. Esse lugar dá nos nervos, essa cidade. Sinto como
se alguém pegasse meu coração e o usasse para limpar a privada de um banhei-
ro público. Alguns pensam que sou uma prostituta, e outros, bom... Eu tenho
certeza que os outros pensam a mesma coisa.
― Mas você não é. Não é uma prostituta. – amenizava, Anna. Você não
é uma prostituta, minha amiga. E você sabe disso, droga!
― Tem razão. Se eu fosse, tenho certeza que teria grana para tomarmos
mais um pouco de álcool. Além do mais, não dou importância para o que as
pessoas pensam ao meu respeito. Metade da cidade não gosta de mim, e a
outra metade sou eu que não gosto. Não sou uma prostituta por ter transado
com vários homens, e algumas mulheres também – mas isso não vem ao caso
agora. Quero dizer: uma mulher em um relacionamento estável então pode
ser considerada uma prostituta por fazer todo o tipo de sexo com seu marido, 17
transando com ele por todos os lados de maneira vergonhosa para ela, fazendo
coisas bizarras, denegrindo sua imagem, só porque é uma mulher casada - por
um contrato? E eu, solteira, sou uma vagabunda por considerar o sexo parte de
minha vida ativa nesse sentido? Não saio por aí transando em um carro velho,
debaixo da sombra da porra de uma árvore. Nem ao menos em praças duran-
te a madrugada... Ou aproveitando para dar uma rapidinha porque meus pais
saíram de casa rumo ao mercado da esquina. E também há esse monte muito
alto de mulher que se diz religiosa, e que por trás dos panos faz tudo o que os
homens pedem, tudo o que elas secretamente querem, todos os tipos de sacana-
gem; fazem tudo o tempo todo em qualquer lugar nojento. São as verdadeiras
prostitutas, as religiosas: prostitutas de deus.
― É mesmo por isso que gosto de sair com você Beca, minha querida
amiga. Ainda mais nos bares dessa merda de ninho maligno. Realmente a filo-
sofia se faz no bar. – dizia Anna enquanto abraçava sua companheira. Mesmo
que digam por aí que você tem um caso até com os padres e freiras...
― O quê? – indagou ela dando gargalhadas. Um, um caso? Quer dizer

Marco Buzetto |
que estão dizendo que transo com esses bostas de padres? Puta que pariu, esses
fofoqueiros estão ficando criativos.

Dias depois da bebedeira colossal, lá estava Rebeca em um banco que-


brado de praça. Ele parou diante de seus olhos, bem a sua frente, sentou-se
como quem tivera voltado de algum lugar saído ha pouco tempo, cruzou os
dedos de uma mão com a outra suspirando fundo...
― Pare com isso. Você já está me irritando. – disse Rebeca.
― Eu estava com saudades dessa tua arrogância. – respondeu o rapaz.
Pensei que não fosse me reconhecer.
― Não faz tanto tempo assim. Ou é você quem já não se lembra mais
de mim?
― Você está esperando alguém? – indagou ele, como quem estivesse
preocupado em ser surpreendido.
― Deixa de ser palhaço, mas que saco. E daí se eu estivesse esperando
alguém? E daí se eu estiver aqui sentada, sozinha, por anos... Fiz isso prati-
18 cante minha vida toda, não é mesmo? Esse foi meu erro: esperar por alguém.
― Você faz parecer uma coisa tão horrível.
― Não sei o que passou pela sua cabeça, mas quando alguém me diz
que tudo vai ficar bem e no outro dia desaparece, eu logo imagino uma coisa
bem ruim. Não dou uma festa para comemorar. – disse ela arrogantemente.
Falando nisso, você poderia me dizer por que resolveu se sentar aqui comigo?
― Cheguei hoje de manhã, e desde então estou andando por aí, lem-
brando os velhos tempos. Vi você, e é claro que fiquei com medo de vir até
aqui... Mas mesmo assim senti saudade. – respondeu o tal velho amigo.
― Presunção! Assim deveria ser seu nome. – continuou Rebeca com
suas palavras pesadas. Falando em chegar, você vai embora quando?
― Você pode tirar esses óculos escuros enquanto conversamos? – per-
guntou ele.
― E você, pode tomar conta da sua própria vida? – perguntou. Ah, e
quando for embora, por favor, não se esqueça de não me avisar de novo.
― Agora você se importa em saber ou não se vou partir.
― Não me importo com você. Só me importo em sentar-me aqui nova-

| Rebeca
mente e não ter você para me encher o saco ou tomar meu tempo. – respondeu
Rebeca, levantando-se do banco de cimento e partindo para sua caminhada
solitária rumo a qualquer lugar ou lugar nenhum, como sempre.
Rebeca um dia tentou ser feliz ao lado de um homem. Era um grande
amigo, um grande amor: o verdadeiro amor, para dizer a verdade. Conheceu-o
em seu tempo de escola, estudaram na mesma sala durante anos, mas nos pri-
meiros tempos o “tal” tinha namorada. Começaram um lindo romance alguns
dias depois dele tornar-se novamente solteiro, saindo de um namoro conturba-
do. A mãe de Rebeca era totalmente contra o romance, pois era contra o este-
reotipo do então garoto. Infelizmente as pessoas se deixam julgar pela imagem
(ou seria uma coisa boa?); o que os obrigou a um namoro escondido por algum
tempo. Passados estes meses, uma “emboscada” feita flagrou o jovem casal em
um ato depravado, inapropriado e imoral, sexualmente ativo no meio da rua:
os dois estavam de mãos dadas. Isso. Isso mesmo. De mãos dadas... Por mais
absurdo que pareça, a mãe e o pai de Rebeca, nesse momento, viram um filme
pornô do mais baixo nível possível passando diante de seus olhos, pelo simples
fato das mãos dadas. Por alguns anos se estenderam, juntos; mas, nada que 19
valha realmente a pena, ou as lágrimas, ou o gozo... “Ah quantos orgasmos”.
Agora, lá estava ele novamente, o tal (um nome qualquer), voltado
àquele antro majestoso, podre, contrastante, vindo de algum lugar onde passara
seus últimos dias. E Rebeca, a jovem sedenta por si mesma, em um momento
revoltou-se ao vê-lo... Mas, na verdade, já não se importava mais com o lance;
sobre ele, sobre ela, sobre todos... Foda-se! Ela possuía consigo um frasco de
um perfume por ele usado em seu tempo de romance. Um perfume levemente
adocicado, mas de presença marcante e equilibrada. Esse frasco já estava vazio
há muito tempo, mas ela ainda o guardava. Não queria comprar outro, novo,
cheio; queria aquele mesmo, o frasco vazio, e por uma vez ou outra no ano
criava coragem o bastante para tomá-lo em suas mãos, olhar fixamente para
o vidro de textura e cor amarronzada de tampa laranjada... Retirava-a, sentia
o leve perfume, sentindo também o doce de todas as lembranças possíveis em
sua mente como se ainda estivessem acontecendo, como se os tempos fossem
realmente aqueles, como se ela e seu amado fossem se encontrar logo mais a
noite; e depois de todo esse ritual de flagelo e prazer mental, guardava-o nova-

Marco Buzetto |
mente, como há anos acontecia sem ninguém saber. Certa vez, sua amiga Anna
o encontrou, sem querer, e pergunto o motivo pelo qual Rebeca guardava um
frasco vazio de perfume masculino. E nesse exato momento ela rapidamente
socorreu-o das mãos de sua amiga, guardando-o em outro lugar, talvez mais
seguro, sem falar uma só palavra a respeito. Mas Anna imediatamente enten-
deu, capturou a resposta no vento. Sua amiga Rebeca era uma eterna apaixo-
nada pelo passado, e também por um tempo presente que não mais possuía ou
avistava diante de seus olhos. Depois de alguns minutos em silêncio, apenas
essa frase saiu pelos lábios de Rebeca: esse frasco não está vazio. Dentro dele
há um filme cheio de detalhes.
Naqueles momentos de lembrança, Rebeca conseguia até mesmo visu-
alizar seus momentos mais íntimos com o tal retornado. Via-se em sua cama
com ele, deitada daquela maneira: com uma das mãos estendida sobre sua bar-
rida e face colada em seu peito com uma curta e masculina pelagem castanha.
Via-se também usando uma das jaquetas do rapaz, sua preferida na época, de
cor verde escura, macia, quente, aconchegante... E quantas vezes a vestiu em
20 seu corpo nu, com os seios tocando a malha de algodão. No entanto, esses tem-
pos haviam voltado à sua mente. Tudo estava novamente em seu lugar, mesmo
que apenas nas lembranças de Rebeca sobre tempos felizes, mesmo tendo sido
instáveis. Em uma de suas contagens, em um único ano, romperam o namoro
durante vinte e sete vezes... Putz, e ao menos sabiam o motivo. Começavam
o dia juntos, caminhando pelas ruas, e voltavam para suas casas cada um em
uma calçada. Mas... Fazer o quê? A vida é assim, cheia de falsas realidades e
esperanças mortas sobre a felicidade.

Em um de seus melhores momentos, ao menos um que poderia ser con-


siderado melhor, Rebeca via-se como uma freira procurando a paz eterna junto
de suas irmãs de convento. Não era uma fantasia sexual, ela considerava essas
coisas inúteis e perigosas para um relacionamento, pois afastavam o casal de
sua realidade. Mas mesmo assim, a jovem garota possuía algumas idéias de
como seria sua vida, às vezes sob um manto sagrado e religioso, outras vezes
como uma simples dona de casa cuidando de seu marido bêbado e alguns filhos
analfabetos aos dez anos de idade. Ora, quem um dia não se imaginou em outra

| Rebeca
realidade, que não fosse a sua própria? E sempre nesses momentos de idéias
sobre si mesma, Rebeca contorcia toda sua face, fazendo expressões sinceras e
descontentes com o que passava em sua cabeça.
― Essa coisa de família realmente me assusta. – dizia ela a si mesma.
Será que prostituta divina seria uma vida melhor? Eu não me afastaria de deus,
tão pouco do bom e velho, e confuso, e deprimente sexo. Mas falando assim,
parece mesmo uma coisa ruim.
Rebeca sabia, é claro, que somos nós mesmos que decidimos ganhar
ou perder na vida; podemos escolher. Mas tudo não passa de um jogo sórdido,
impuro, traiçoeiro... Coisa que só um trapaceiro pode fazer bem, em sua total
naturalidade. Essa é a vida de Rebeca: um trem louco que não para em estação
alguma, mesmo sendo seu destino; esse trem passa batido por vários caminhos,
e só para quando o combustível acaba. Por vezes Rebeca decidia arriscar-se
deitada sobre os trilhos fumegantes dessa pesada e dolorosa locomotiva... Mas
na manhã seguinte seu corpo estava dolorido apenas pela pressão masculina.
Realmente não podia contar com o suicídio como solução final. Mas tentava...
E tentava. Um suicídio moral, mental, individualmente irrelevante. Ela não 21
pensava em tirar sua própria vida; não teria coragem o bastante para tal ato.
Mas também não podia mais aguentar esse mundo sujo. Seria melhor mudar-se
para junto de alguma tribo indígena da América do Sul, ou isolar-se por com-
pleto em uma montanha qualquer do mediterrâneo. Porém, aqui estava ela, em
uma tribo chamada desafio, por vezes conhecida como cidade pesadelo, onde
os indivíduos comportavam-se como civilizados... Mesmo sabendo que não
passam de chimpanzés evoluídos (apenas fisicamente, é claro).

Em uma de suas conversas de boteco, Rebeca e Anna conversavam so-


bre a vontade da segunda em lecionar, pois acreditava já estar preparada para
tanto. Rebeca, em sua negatividade corriqueira, brincava com Anna, dizendo
que o governo deveria dar treinamento militar aos professores, e uma arma
semi-automática, por conta de alguns casos (cada vez mais comuns) que costu-
ma-se ver nos noticiários sobre agressões de alunos para com os professores e
pais, e tantos outros adolescentes confusos promovendo chacinas em escolas.
A falta de interesse educacional dos jovens e sua agressividade não é

Marco Buzetto |
um problema isolado, não podem ser culpados apenas eles próprios. Existe
todo um contexto social que envolve o processo educacional dos alunos: es-
cola, família, sociedade, religião, influências internas e externas, retrocesso
do modelo de educação atual o qual castra o aluno, deixando-o nu de toda sua
capacidade de aprendizado e criatividade dentro e fora da sala de aula.
― E não sei até quando o sistema educacional irá aguentar antes de se
jogar de cabeça nos trilhos. – dizia Rebeca. O que fazem com as crianças e
jovens é uma verdadeira barbaridade. A escola de hoje ainda mata a criativida-
de, desencoraja as capacidades intelectuais e artístico-culturais dos indivíduos
e tiram todo seu ânimo de juventude. Os professores dizem ainda que estão
formando os alunos para o “mercado de trabalho”. Mas, que mercado de tra-
balho é esse? Qual será o mercado de trabalho, a sociedade, a vida real para
a qual esses modelos fajutas e ultrapassados atuais ainda insistem em estarem
formando as pessoas? Nem ao menos os próprios professores compreendem o
que estão fazendo. Não compreendem os reais problemas. Não compreendem
que eles próprios estão no centro desse problema. Quanto mais compreenderão
22 como resolvê-lo.
Claro, o assunto não ficou rodeado apenas de teorias para melhoria da
qualidade de vida do ser humano. Também se falou muito de muita bobagem,
ainda mais com goles e goles goela abaixo. Um dia desss, boom!, combustão
espontânea. E bem vida uma nova crise social.
― Bom Beca, tenho que ir. Meu pai quer encontrar com uns amigos da
academia militar e eu vou junto. Ainda me trata como uma criancinha, sua fi-
lhinha. Só espero que esses palhaços não pensem que sou a entrada do cardápio
masculino. Sabe como é...
― Boa sorte! – disse Beca brincando. Espero que você não pense que
eles são uma presa em seu cardápio de insanidades. Deixa que essa é por minha
conta, minha amiga. Nos vemos por aí...
Rebeca resolveu ficar um pouco mais em um daqueles bares que as
jovens costumavam fazer suas turnês, talvez para o último, ou penúltimo ou
antepenúltimo copo de whiskey, que, dependendo da noite, era do tipo cowboy.
Uma verdadeira rainha das mil noites.
― Posso?

| Rebeca
― Bom, teoricamente este é um país livre. Você pode se sentar onde
quiser desde que não me aborreça. – respondeu Rebeca.
― Qual é seu nome, gracinha?
― Meu nome é nãoteinteressovisky. O que acha? – respondeu ela seca-
mente. Você não tem mais o que fazer? Vai ler um livro ou fazer palavras-cru-
zadas... Vai tocar uma no banheiro, se quiser, desde que não me encha o saco.
― Você é muito arrogante, sabia? Porque está me tratando assim? Eu só
quero conversar, e quem sabe pagar um drink.
Assim a garota respirou fundo, pediu outro copo de destilado de malte
para o barman, e disse que o “cavalheiro” ao lado iria pagar aquela. O barman
delicadamente fez seu trabalho, colocando três dedos de whiskey em um copo
sem gelo, e retirou-se.
― Não... A garrafa fica. – disse a garota. Não disse que essa é por conta
do cavalheiro aqui?
― Você não acha que está passando dos limites? – indagou o rapaz,
sorrindo e tentando se aproximar.
― E você, não acha que deve tomar conta da sua vida? Você disse que 23
iria pagar um drink... Bom, eu já estava bebendo um. Além disso, você estava
pagando algumas rodadas aos seus amigos ali atrás. Uma garrafinha ou outra
não vai fazer diferença no cartão de crédito do seu pai. – respondeu ela, en-
quanto completava o copo e olhava ironicamente o rapaz. Além do mais, eu
não transaria com você sóbria.
― E quem disse que quero transar com você? – indagou ele.
― Você esperou, covardemente, eu ficar sozinha para criar coragem de
vir até aqui, e com certeza deve ter feito algum tipo de aposta com seus amigos
playboys ali. – dizia ela. Deve ter pensado que sou uma garota fácil, por estar
sentada aqui no balcão bebendo algumas... Ou todas possíveis. Mas faço isso
há anos, e não me comovo com o fato de um agroboy como você pensar que
pode me levar para a cama quando quiser.
Rebeca chamava-o de agroboy por conta deu estilo de vestir. Era mes-
mo um filho de fazendeiro, do tipo riquinho que esbanja a grana do pai. Então,
a garota dava essa terminologia para este tipo de pessoa... Não mais um play-
boy: um agroboy.

Marco Buzetto |
Já em outro cenário, lá estava a jovem Rebeca cavalgando o corpo do
tal rapaz sequer apresentado. Ela não precisa saber seu nome, já que em poucas
horas nunca mais trocaria uma só palavra com ele. É claro que a garrafa de
whiskey havia secado até a última gota; aliás, uma no bar e outra na cama da-
quele motel fedorento em beira de pista, enquanto Rebeca sufocava com suas
mãos aquele rapaz.
― O que... O... O que você está, rufh... o que está fazendo garota? –
perguntava ele assustado, tentando livrar sua garganta das mãos da garota. Está
louca? Me solta!
― Você não está gostando? – indagou ela ironicamente... Só quero dei-
xar algo para você não se esquecer de mim... Não só um falso orgasmo com-
prado com whiskey.
A garota Rebeca saiu daquele maldito quarto de motel, já vestida, e ru-
mou para casa sozinha. Mas dizer que nunca mais gostaria de ver aquele rapaz
novamente seria exagero, pois, ela não se importava o mínimo sequer com tudo
aquilo. E ele realmente mereceu o que teve, uma marca que o chocou, levan-
24 do a questionar seus pensamentos a respeito daquela “transa fácil”. E quanto
a Rebeca? Bom, ela sabia que seu fim seria o mesmo de todos os outros, ou
ainda pior sobre esse: aquele velho olhar vazio, mórbido, que questionava a si
mesma. O que havia de errado com ela então, se sabia bem o que aconteceria?
Onde estava o problema, se é que havia algum para julgarmos sua moral, ou
sua sanidade, ou a falta das duas coisas? Rebeca fazia o que queria, o que desse
vontade... Mas, claro, nada que arriscasse sua vida, pois conhecia bem seus
limites. Esta era uma das coisas admiráveis nessa garota: conhecia bem seus
limites, até onde podia e queria chegar. O que falta em muita mulher em seus
tempos, e precocemente em um bando de meninas cheirando a leite e urina em
suas calcinhas.

― Como este lugar é mesquinho. Que droga. – dizia Rebeca a si mes-


ma. Mas o problema é que não consigo me afastar daqui. O que me prende a
essa cidade de merda? Droga! Acho que nunca vou parar de reclamar. Recla-
mar sozinha, aliás. Cada vez mais sozinha.
― Sabe Beca, eu sei muito bem do que você está falando. – completava

| Rebeca
sua amiga Anna. Meu pai vive reclamando desse lugar, assim como você. Mas
ele resolveu entender que o problema não estava nos locais, e sim nele próprio.
As coisas por aqui são mesmo uma bosta, mas temos que dar um jeito de ver
tudo de uma maneira diferente.
― Anna, seu pai é maluco, isso sim. Ele sabe que esse lugar não vale
nada, e eu tenho certeza que ele não desistiu de falar a respeito disso. Apenas
não há nenhuma novidade para ele o fazer; nada que o motive a continuar
tentando por na cabeça das pessoas que elas devem mudar seu comportamento
medíocre, superficial, para que possam mudar suas próprias realidades de ma-
neira proveitosa. – disse Beca. Mas quem sou eu para falar essas coisas, não é
mesmo? Uma ninfomaníaca... Amiga da filósofa assassina.
― Olha Beca, que as pessoas daqui não valem nada, disso você tem ra-
zão. E que esse lugar também não vale um peido, bom, provavelmente também
esteja certa. Agora, dizer que você é uma ninfomaníaca, daí eu já acho exagero.
– dizia Anna, sorrindo. É claro que você não é só uma simples ninfomaníaca.
Você é ninfomaníaca, independente de qualquer outra coisa.
― O que você pensa a respeito daqui, desse interior metido à metrópo- 25
le, Anna? – indagou sua amiga. Você que já viveu em tantos lugares, conheceu
tantos povos e costumes, outros corpos e camas; o que você pensa a respeito
dessa merda, dessa fossa?
― Bom, eu não sei o que pensar. Eu nunca poderia comparar o “aqui”
com todos os pontos do mundo. Seria uma puta covardia. É claro que o maior
lixo daquele lado é o paraíso se comparado com aqui. – respondeu Anna. Po-
rém, prefiro manter a opinião do meu pai, e também a sua. Você sabe muito
bem o que penso sobre esse nosso lugar. Esse lugar está perdido, condenado.
Acho que é a água, ou o ar, ou qualquer coisa. Um símbolo de atraso, isso sim.
― Adorei! – exclamou Rebeca. Vamos beber a isso. Hei senhor bar-
man, você já sabe o que fazer. Mas por favor, nada daquela sujeira que você
chama de castanha. Obrigado.
Isso mesmo jovem Rebeca. Vivendo, amando; é simplesmente uma mu-
lher. Uma mulher feita que não deve nada à ninguém, nem ao menos uma ex-
plicação sobre seus prazeres. É isso mesmo, este lugar não vale absolutamente
nada para ninguém. Na verdade, tudo vale nada para ninguém. O problema é

Marco Buzetto |
que a coragem para afirmar isso estava em poucos. Uma puta falsa devoção.
Pois, é claro que todos os locais, todos os lugares possuem seus defeitos. Mas
é que aqui, como diz você, Rebeca, na cidade pesadelo, a coisa é escandalosa,
escancarada como as pernas de uma prostituta barata. Uma sujeira social que
não deixa nenhum olhar se focar em outra coisa. Um fedor humano insuportá-
vel que impede qualquer um de respirar fundo meio à multidão, pois tamanha
era a impostura das pessoas.
Aqui, ali, por toda parte neste meu interior metido à metrópole, havia
espaço suficiente para que todos vivessem suas realidades, formando apenas
uma. No entanto, os pobres gostam de viver pensando e acreditando ser exa-
tamente o que o governo prega que são: pessoas em ascensão social. Para co-
meçar, diria Rebeca, “ascensão é o caralho”! Pobre não tem ascensão alguma.
Tudo não passa de uma ilusão sem tamanho, sem cabimento. Mas o problema
não era essa ilusão: é o pobre acreditar que ele não faz parte disso, que ele pode
se tornar um milionário da noite para o dia, simplesmente por que comprou
um carro novo, ou uma casa, ou uma porra de uma bicicleta... E se esquece
26 que parcelou tudo em um zilhão de vezes, que até seus filhos, se bobear, irão
trabalhar para pagar estas contas. Por outro lado, os ricos... Bom, deixa pra lá.
É melhor assim. Esse assunto já encheu o saco, não é?...
Rebeca transmitia seu lado filosófico a todo tempo – que, na realidade,
podemos dizer que é uma das matérias que matam nossa inocência (ignorân-
cia) aos murros e pontapés, sem dó nem piedade. Mas ela mesma dizia que
esse “dom” estava dentro dela, e que todas as pessoas o possuíam. No entanto,
algumas (a maioria) simplesmente apenas faziam questão de não se valer disso
– por conta daquele velho contexto social: a falsa devoção. Mentindo para si
mesmo até acreditar que o que dizem é a mais pura verdade.
Em determinado período da vida, Rebeca sentia-se absolutamente iso-
lada, como em uma praia deserta talvez, na qual possuía tudo o que necessitava
a sua volta, porém, com o detalhe de não haver nenhum tipo de entretenimento.
Mesmo com sua amiga Anna ao lado na maior parte do tempo, ela preferia
permanecer inerte, na escuridão... Mesmo que esse fosse um fato um tanto con-
traditório e intrigante. Pois assim poderia pensar, marteladamente nos revezes
de sua vida. E sua válvula de escape, sempre que possível, era o sexo.

| Rebeca
Conheceu então uma pessoa que satisfazia suas necessidades naquele
momento; resumindo mais uma noite de sua vida em mais um momento con-
flitante em si.

O questionador
― E você se acha especial fazendo isso?
― Especial? Penso que devo ser tudo, menos especial. Mas nunca parei
um minuto para pensar a respeito, digo, profundamente.
― Então pense.
― Agora? Você quer que eu pare para pensar em minha vida justo ago-
ra? Quero dizer, nesse exato momento? – indagava Rebeca.
― E porque não? O que mais temos para fazer? – perguntava o rapaz.
Já fizemos tudo o que tínhamos para fazer essa noite. O que mais você quer? Já
bebemos, transamos, bebemos e transamos mais.
― É mesmo. A noite já está terminando e nós estamos aqui ainda, sem
saber mais o que fazer.
27
― Então...?
― Eu não sei por que faço isso, tá legal? Não sei. E também nunca
pensei que isso pudesse ou não ser errado. O conceito de certo e errado está
muito distante da realidade. Não posso dizer que sim ou que não com tamanha
certeza.
― Mas você se deita comigo há anos, e sempre acontece à mesma coisa
no final, depois de três ou quatro orgasmos e os lençóis encharcados. Sempre
existe alguma coisa te incomodando.
― Ora, vamos... Pare com isso. – dizia Rebeca. Como se você estivesse
mesmo preocupado. Nós viemos para cá, bêbados, transamos e bebemos ainda
mais. Você não está contente com isso? Não é isso o que você precisa, o que
você quer? Transar a noite toda e me fazer gritar, mesmo que sem vontade; não
é o que você planejou para essa noite?
― Rebeca, eu não estou preocupado com isso... Bom, na verdade tran-
sar com você sempre foi muito bom, e é uma coisa que sei que você gosta, e
que também me satisfaz. Mas, às vezes, fico preocupado com você, sincera-
Marco Buzetto |
mente. – continuava o rapaz. Sempre que você se deita sobre mim, parece que
eu sinto sua tristeza, ou algum tipo de remorso que pesa encima do meu corpo.
Eu não sei o que fazer nessas horas... Pois já conversamos muito.
― Você não precisa fazer nada. – respondeu ela. Você e eu fazemos o
que escolhemos fazer, e o problema não está em você, se é que há problema
algum. Estamos aqui, agora... Não se preocupe com nada.
― É um pouco difícil, sabe.
― Que tal transar um pouco mais? Ainda não estou tão cansada assim...
A noite fora um pouco monótona para Rebeca, sexualmente falando.
Mas o fato é que aqueles poucos minutos de conversa, internamente, claro, fi-
zeram com que essa jovem garota infeliz volta-se por um minuto o pensamento
para si mesma. Mas não de maneira desatenta, pois, era a primeira vez que
alguém que não fosse sua amiga Anna questionava sobre ela daquela forma, de
maneira tão prestativa e preocupada. Porém, como dissera Rebeca: foi só mais
uma transa. Ainda mais com uma pessoa tão desconhecida como era aquele
tal “questionador”. Às vezes escapava da boca de Rebeca algo do tipo “menos
conversa e mais pressão”. Uau, isso rasga os ouvidos... estranhamente.
...

― Rebeca conte-me mais sobre suas aventuras. – pediu uma outra ga-
rota, conhecida em um daqueles bares imundos que mais pareciam um zooló-
gico, ou algo do tipo.
― Certo, lá vai. Certa vez eu estava com um amigo, amigo mesmo, e
saímos para comer umas pizzas. Encontramos no local uma pessoa conhecida
por ele, um amigo da época de escola, acompanhado pelo que poderia ser uma
namorada. Porém, bem mais velha que ele, uns dez anos no mínimo. Mas isso
eu fui saber alguns tempo depois, quando chegou sua filha com o namorado.
Eu fiquei de boca aberta, pois a mulher parecia ter no máximo uns vinte e
poucos anos... Mas quando a filha chegou, minha visão mudou completamen-
te, pois a menina estava com dezessete anos, completando dezoito algumas
semanas mais tarde.
― E o que aconteceu? Vocês fizeram uma puta orgia sexual? – pergun-
tou a garota, brincando.
― Bom, orgia sexual deve ser o que sua mãe faz com o cachorro quan-
do seu pai está num motel qualquer com um travesti. – respondeu Rebeca, sem
gostar da piada desafiadora daquela menina. A noite se passou maravilhosa-
mente, e no final, ainda na mesa, estávamos apenas em quatro pessoas: a mãe e
a filha, o namorado da filha e eu. Terminamos a comilança e a bebedeira, mas
a mulher, uma tal de Gi, queria ficar um pouco mais, e quem sabe tomar outro
drink. Tudo bem, ficamos mais um pouco por ali. Um drink a mais, outro, ou-
tro, risadas, piadas, brincadeiras com os pés e as pernas por debaixo da mesa...
Coisa de bêbado. Era o que eu pensava. A perna dessa tal Gi, que eu nunca
descobri o nome correto, começou roçar na minha perna sem parar, como se
possuísse vida própria. Eu ria, e fazia o mesmo. De repente ela estava passando
as duas pernas nas minhas, de cima para baixo, vai e vem, coisa e tal. Mas eu
percebi que uma daquelas pernas vinha de um caminho um pouco diferente...
Então era a do namorado da garota, pensei eu. Mas não! Era exatamente o
contrário: a garota; a tal de Nathália, a filha. Eu não acreditei na hora, claro.
Mas o olhar daquela menina de dezessete anos entregou totalmente o ouro, não
podia negar. Engoli seco, e matei a sede com uma virada firme numa dose de 29
gim sem gelo.
...
― Beca... É assim que todos te chamam? – indagou Gi.
― Pois é, a maioria. Mas prefiro deixar essa liberdade só para os mais
chegados, os mais íntimos, sabe.
― E o fato de nós duas estarmos nuas na minha cama não nos torna
ainda mais íntimas?
― Você pode ter razão... – dizia Beca, enquanto continuava beijando a
mãe da garota. No entanto, penso que existam coisas tão mais pessoais do que
um corpo penetrando outro, sabe, mesmo com os dedos e a língua. Apensar de
isso ser o ápice da intimidade.
― Não entendi. – respondeu Gi. O que você quer dizer, já que isso o
que estamos fazendo é o ápice da intimidade?
― Bom, quando duas pessoas transam, por exemplo, é um ato amoroso,
disso eu não tenho dúvida (claro, caso as pessoas em questão estejam interes-
sadas nesse sentimento uma pela outra). No entanto, acho que um beijo, ou

Marco Buzetto |
melhor, um abraço é muito mais íntimo. Não que as pessoas devam sair por aí
transando uma com as outras ou com todos descaradamente, sem o mínimo de
pudor ou respeito próprio. Mas acredito que um abraço transmita muito mais
sentimento do que uma noite de sexo, que é apenas um meio de descarregar-
mos as baterias, sabe... Não sei se está claro para você, se estou conseguindo
explicar o que penso.
― Sim, está sim. Estou entendendo perfeitamente. – respondeu sua
companheira momentânea de cama. Você está dizendo que o sexo serve para
isso mesmo: sexo e pronto, por mais que exista sentimento. Já, um abraço,
além do beijo, possui sentimento real, que não necessita de sexo para se mos-
trar ao outro.
― Exatamente! – exclamou Beca. Você entendeu melhor do que eu
consegui explicar.
― Às vezes penso assim também, mas normalmente esqueço, pois não
tenho com quem conversar a respeito. – dizia Gi, acariciando o corpo de sua
nova amiga íntima enquanto esta a beijava o pescoço e os lábios, todos os
30 lábios. Além do mais, você tem pensamentos bastante voltados para a intros-
pecção, não apenas ao cérebro como um pedaço esponjoso e nojento de carne.
Rebeca e Gi continuaram seu ato misturando filosofia e sexo em uma só
coisa. E aquela mistura funcionava muitíssimo bem, tanto no âmbito do instin-
to quanto no desenvolvimento do diálogo intelectual. A conversa durou a noite
toda; mas, é claro, não somente a conversa em seu contexto verbal, também o
corporal, artístico... Sabemos bem como é. E mais uma história pessoal de Re-
beca sobre uma nova experiência estava ali lançada, meio a um bando de gente
se embriagado, enchendo suas caras de um modo completamente impróprio e
imoral, se é que exista algum tipo de etiqueta para se poder tomar um porre.
Uma história repleta de conteúdo a ser aprendido. Porém, o que omitiu de seu
conto fora a nunca-esperada manhã seguinte; pois, normalmente Rebeca se
sentiria um lixo, por conta daquela velha história de sentir-se culpada, incom-
pleta e infeliz depois do sexo.
― Parece que dessa vez foi diferente, então, Beca. – dizia Gi, sua nova
experiência pessoal, física e intelectual.
― Parece mesmo diferente. Transamos, conversamos... Transamos

| Rebeca
enquanto conversávamos e conversamos enquanto transávamos, e eu não me
sinto como em qualquer outro caso agora que paramos. – respondeu Beca.
Sabe, creio que seja por causa da novidade... Essa experiência. Que, para dizer
a verdade, foi muito boa. Eu nunca havia tido uma experiência lésbica como
essa. Normalmente as outras garotas querem enfiar coisas em mim: pintos de
borracha, controle remoto do rádio... Mas com você foi diferente. Além de não
ter havido nada disso, me senti muito bem, bastante à vontade. Não digo pela
experiência sexual, pois já tive algumas, como já disse. Mas pela experiência
pessoal com você. Você é uma excelente pessoa, bastante centrada, inteligente,
respeitosa... Mas, como se eu estivesse beijando dinamite. Se é que você me
entende...
...
― Então foi assim? – perguntava uma das garotas no bar, querendo
saber o final da história sobre outra experiência sexual de Rebeca, que pudesse
lhes servir de estímulo, de exemplo.
― E vocês não acham que está bom? – questionou a dona das palavras.
Quando comecei falar sobre isso, só havia uma de vocês escutando, além de 31
Anna. Agora estão em duas, três... Quatro garotas a mais. Deve ter sido uma
boa história, então. Não acham? O que acha, Anna?
― Acho que já está bom por hoje. Essas garotas precisam ir para cama,
sozinhas, de preferência. – respondeu sua amiga, sorrindo. Além do mais, já
beberam e ouviram bastante sobre sexo. Foi experiência demais para uma noi-
te. Terão muito sobre o que conversar e fazer nas próximas semanas.
As novas “seguidoras” de Rebeca fizeram então o que Anna propôs, e
rumaram para fora do bar, deixando as duas amigas novamente na companhia
uma da outra apenas. Mais um copo de vodka para Anna, agora com maçã ao
invés de limão, o que seria uma extravagância pessoal ao momento, e um velho
whiskey para Beca.
― Beca eu posso estar enganada, mas lembro-me aquela história tinha
outro final. – disse Anna.
― Bom, eu não disse que só descobri o nome inteiro dela alguns meses
depois. Mas acho que isso não tem importância., não é? A moral da história é
uma só. Se é que uma história dessas tem moral, rá! E...

Marco Buzetto |
― Não estou falando disso, minha amiga. – continuou Anna. Porém,
mesmo assim, você não contou como descobriu o nome certo dessa tal de Gi.
...
― Você é muito boa de cama.
― Não sou boa apenas na cama. – respondeu Rebeca.
― Tenho certeza que não. Mas gostei muito do que fizemos hoje. Eu
nunca havia tido uma experiência como essa, para ser sincera.
― Como assim? Você... Digo, você não, nunca... Sabe... Nunca com
outra garota? Eu pensei que... Sabe... Você pareceu tão... Sabe...
― Pensou que eu fosse como a Giovana?
― Como quem? – indagou Rebeca, sentando-se à beirada da cama.
― Como a minha mãe, Beca. – respondeu Nathália com h. Só porque
ela faz este tipo de coisa, dormindo com quem aparece na frente, ou por trás,
ou com quem paga uma porra de uma dose de gim, quer dizer que também faço
o mesmo? Quer dizer que sou também uma mulher sem respeito?
― Não Nathália. Eu não disse nada desse tipo. – respondeu Rebeca. Eu
32 nunca falei nada assim sobre sua mãe, tampouco sobre você. Além do mais,
eu não fazia a menor idéia de que você sabia o que andou acontecendo entre
a gente. Mas não me arrependo. Muito menos de ter acontecido também com
você. Eu só pensei que você já tivesse tido esse tipo de experiência... Não que
todas as mulheres já tenham tido uma experiência lésbica. Mas isso não me
passou pela cabeça, pois você estava tão certa de querer transar comigo. Logo
notei, naquele dia em que nos conhecemos. Além do mais, Nathália com h, eu
nunca iria querer magoar você. Essa jamais foi minha intenção. Desculpe-me.
...
― Rá, rá, rá... Rá... Eu levei um puta susto. – continuou Rebeca en-
quanto gargalhava ao se lembrar de alguns dias depois do encontro com Gi.
Quando ela falou Giovana eu fiquei pensando “quem será essa vagabunda”?
Mas daí ela falou que era a mãe... Puta que pariu, que cena...
― Ainda bem que você não contou esse final para as meninas. Seria um
puta choque. A maioria delas tem a idade da Nathália hoje: pouco mais de vinte
anos. De duas, uma: ou elas te mandariam tomar naquele lugar onde o sol não
bate, ou logo flertariam com você. – completou Anna, também gargalhando.

| Rebeca
Bem, como se já não flertassem o suficiente.

Para Rebeca nada disso era motivo para se orgulhar. Ela tinha em mente
os erros que cometia em sua vida, e vários acertos também. Possuía nítida no-
ção do que fazia, mesmo às vezes sobre efeito do volume alcoólico das “águas
de malte”. Sabia bem que dormia com homens e algumas mulheres. E, por
mais que aquele velho sentimento pesado não tenha aparecido quando conhe-
ceu Giovana, isso não queria dizer que estaria livre de suas culpa e infelicidade
perseguidoras. Para ela, a melhor forma de não sentir qualquer tipo de pesar
era a pura e reconfortante solidão.
Dito isso, vamos para outra parte desta história infeliz...

33

Marco Buzetto |
Parte II
― Porque me sinto assim? – indagou Rebeca a um psicólogo. Porque
sinto esse sentimento de pesar em minha mente, ou em o que poderia ser meu
espírito?
― Os problemas com seu espírito eu não posso resolver, pois sou um
homem de ciência, não um guia religioso. – disse ele. No entanto, acredito que
você se sinta assim por conta das atitudes que toma sobre si mesma.
― Está dizendo que o que eu faço interfere diretamente em meus senti-
mentos sobre mim mesma?
― Teoricamente sim. – respondeu ele. Veja: se você não tiver controle
sobre si, em relação ao que faz e fala, e saber que isso tudo não está errado,
ou que você é culpada por alguma coisa, então tudo vai fazer você se sentir
dessa maneira, ruim. Você escolhe sentir-se assim ou não, pois, vez ou outra
você acredita estar errada, ou fazendo algo errado, e isso faz com que aquele
34 sentimento de culpa e infelicidade reapareça.
― E eu estou pagando você para me dizer isto? – indagou Rebeca. Isso
qualquer bêbado de sarjeta pode me dizer, antes que um cachorro lamba sua
boca. Além do mais, isso eu já sei faz tempo; e até prefiro às vezes acreditar
que estou mesmo errada em alguma coisa. Do contrário, que graça teria minha
vida? Preciso de novos questionamentos, novas verdades, novos pontos de vis-
ta, novos vícios.

Mais uma noite, não é mesmo Rebeca? Então é assim que sua vida se
auto-resume: sexo; não importa em qual ocasião, não se importando com quem
ou onde; ou sobre o quê. Como um trovão que soa nítido transpassando todo
o céu... Assim são seus gritos de prazer sob o corpo de um homem, ou gemi-
dos agudos deitada com outra mulher. Importa-se apenas com fato importante
para si mesma: o cenário. Sempre dizendo: está tudo bem, sempre está tudo na
mesma, tudo absolutamente normal nessa porra de lugar. A cidade de pessoas
imaginárias tornou-se palco de mais uma história “exemplar” para com seus
conterrâneos amaldiçoados, seus filhos do atraso e da falsa esperança. Donos
| Rebeca
da falsa devoção. Como se não bastasse um assassino degenerado, agora tam-
bém uma devota ao sexo, mesmo que não possamos chamá-la de prostituta;
pois realmente não o é. Rebeca é apenas uma garota que gosta de dar murros na
cara das pessoas e do sistema moral e hipócrita onde, de alguma maneira, vive.
Encontrando-se com um psicólogo, teoricamente um possuidor do con-
trole sobre si, Rebeca, apesar da gota de preocupação sobre si, fez-lo enxergar
que não passa de um simples mortal, uma pessoa qualquer que se resume em
instintos animais, e vontades bizarras em seu corpo sobre o próximo. E mesmo
que sua noite tivesse terminado daquela mesma e batida forma, lá estava outro
membro do clube de ensinamentos de Rebeca, um clube no qual só entravam
aqueles que realmente mereciam, alguns porcos do sistema, que gostavam de
vangloriar-se por serem eles mesmos, fantoches de si mesmos, mentirosos de
cara dura que apontam o dedo no nariz de todos e todas, e esquecem seu re-
flexo no espelho. E era isso o que Rebeca fazia: apontava-lhes o dedo; de
preferência, o médio.
― Você é só mais um saco de carne podre. – dizia ela ao psicólogo ain-
da despido. Não passa disso, e mente dizendo que não. Pensa ser um homem 35
de ciência... Que nostalgia. Tenho dó de gente como você. Sendo que, quando
menos espera, mostra sua verdadeira face de merda, de hipocrisia. Falando
nisso, você não é casado? Claro que é... Uma vida infeliz. Talvez ainda mais
que a minha. Como alguém como você tem coragem de se chamar de profis-
sional, querendo auxiliar as pessoas em suas dificuldades e problemas, quando
não consegue ao menos resolver seus próprios conflitos? Saco de carne podre...
Nesse caso, Rebeca pegou sua vítima em um ponto fatal para os ho-
mens: agarrou-o pelas bolas. Um ato que acontece muito com as pessoas. Po-
rém, poucos desses conseguem omitir o que realmente acontece. Casados, por
exemplo, mentem para seu arredor por pouco tempo, pois, suas amantes se
alertam, quando alguém não o faz, lembrando que se um homem, ou mulher,
trai seu parceiro, o que impede este de também ser traído com uma terceira
ou quarta pessoa? Daí para a revelação é apenas uma questão de tempo, ou de
cansaço. As pessoas saem por aí atirando seu amor, e acabam manchadas de
sangue em um documento de divórcio. Ninguém, para Rebeca, valia mais nada
ao seu redor... Não que a garota se sentisse o centro do universo. Ela realmente

Marco Buzetto |
via no rosto de cada um seus verdadeiros pecados. Pois, ninguém pecava por
acaso por detrás dos muros. A cama de pesadelos constantes, do sonhar acor-
dado, sempre fora palco de histórias pessoais que marcam uma década na boca
de seus moradores. Histórias ruins, e outras péssimas, que servem de exemplo,
mas que sempre aparece um copista para reproduzi-la.
E aqui está outro destes copistas, descrevendo um pouco mais da histó-
ria de uma garota qualquer. Sendo assim, vamos a um pouco mais disso. Um
copo de vodka, outro de whiskey, e está aí a receita necessária para uma nova
composição.
― E se você ousasse fazer algo diferente, minha amiga? – indagava a
bebedora de vodka. Por que você não muda sua técnica?
― Do que está falando, Anna?
― Estou dizendo que você deveria tentar mudar sua linha de raciocínio.
– continuou a amiga. Ou seja: porque você não tenta parar com suas aventuras,
e não se atém a uma única pessoa?
― E você quer que eu faça isso antes ou depois de assinar meu nome no
36 obituário? – brincou a bebedora de whiskey sem gelo. Você deve estar louca,
isso sim. Eu não vou fazer isso. Seria um verdadeiro suicídio. Existe tanta gen-
te nesse mundo que eu ainda não conheci... E nem estou falando sobre sexo.
Seria um puta egoísmo passar o resto dessa minha vida desgraçada com uma
pessoa só. Até mesmo egoísmo de minha parte querer que alguém permaneça
comigo por toda vida.
― Vou fingir que não ouvi isso. Pode ser? – brincou Anna. Além do
mais, que mal há em tentar? Você poderia muito bem conseguir qualquer pes-
soa que quisesse, onde quisesse. Você sabe muito bem.
― Esse lugar mesquinho não precisa de mais uma metida à conser-
vadora. Precisa de uma vigarista, isso sim. Uma brincalhona como eu. Uma
verdadeira trapaceira das mentes e sentimentos. As pessoas daqui só têm uma
coisa a mais que eu: têm mais é que se foderem. Eu acho que sou para essa
cidade fantasma o que estranhamente o número dezesseis é para mim: um per-
seguidor. O que você acha?
― Do quê? – perguntou Anna, com os olhos já avermelhados. Desculpe
Beca, eu estava distraída aqui com minha vodka. Isso aqui é mesmo bom...

| Rebeca
Ainda mais com maçã verde. Porque eu não pensei nisso antes? Maçã... Olha
que coisa. Maçã... rá... quem diria...
― É... Maçã. – respondeu Beca. E existem pessoas que preferem con-
versar com outras pessoas, enquanto há maçãs por aí precisando de um pouco
de atenção, precisando ser misturadas a vodka.
― Sabe Beca, às vezes penso que você está mesmo certa. Não que eu
viva pensando que você esteja ou deixa de estar errada. Não é isso. É que em
alguns momentos eu paro para pensar a respeito de tudo isso que acontece
com você, coisas que você busca. – dizia Anna, já um pouco alta. E realmente
acredito que você esteja certa. Você não deve satisfação de sua vida a ninguém,
toma conta do seu próprio nariz, depende apenas do seu trabalho, e se diverte
sempre que procura se divertir, sobre todos os pontos de vista possíveis. Às
vezes eu tenho inveja de você... Não! Às vezes não. Eu tenho inveja de você.
― Pois não tenha, minha amiga Anna. – respondeu Beca. Eu sou uma
pessoa muito difícil de lidar, seja como amiga ou uma pessoa dentro de um
relacionamento. Às vezes canso a mim mesma; você já dever ter percebido...
Para se ter uma idéia de como sou chata sobre tudo. Por que acha que só tenho 37
você como minha verdadeira companheira?
― Pensei que fosse porque eu vivo pagando a conta do bar... – brincou
Anna. Ah, mas é claro que eu sei disso. Mesmo assim, eu admiro você em
todas as circunstancias. Além de tudo, se é que nesse “tudo” tem algum pro-
blema, você é uma pessoa verdadeira, íntegra. Você não é como todos estes
sonhadores interioranos, por exemplo, sempre fingidos, falsos como aquelas
fruteiras de plástico. Você não fica de papo furado fingido tudo estar bem a sua
volta, fingindo que sua vida está ótima só para não ter o trabalho de cair na real
e mudar o que precisa ser mudado.

Aqui então está outra das histórias e experiências de vida de Rebeca,


a jovem do copo de whiskey. Podemos começar lembrando-nos que essa é
uma garota que gosta de novas aventuras conjugais, mas que também se pega
acariciando seu corpo em dias solitários. Não como uma pessoa frustrada, mas
como alguém que prefere momentos de pura privacidade, em termos gerais
da palavra, dos dedos, dos pelos pubianos que nos lembram que ela não é

Marco Buzetto |
mais uma criança, e de tantos detalhes que deliciariam qualquer espectador
procurando momentos de prazer em um tremendo voyeurismo. A receita era a
mesma de todos os tempos, e caso ainda não se tenha decorado, excelentíssimo
e atento leitor, aqui está: whiskey sem gelo, entre alguns pensamentos febris.
E nesses momentos de solidão passiva e ativa ao mesmo tempo, Rebeca gri-
tava “fogo!, fogo!... FOGO!”, como se seus gemidos fossem balas disparadas
de canhões: poww... Um orgasmo atrás do outro, e lá estava ela, Rebeca, ge-
mendo, chorando, sussurrando seus prazeres em voz alta dentro do quarto, em
uma casa alugada; pois há tempos não morava com seus pais. Poww!, poww...
Fogo!, Fogo! FOGO!... E mais alguns gritos e gemidos de orgasmos extasiados
e valorosas gotas daquele mel dos deuses por entre duas pernas: um verdadeiro
e possuidor striptease de uma alma juvenil e faminta. Rebeca fantasiava todos
os verdadeiros homens e mulheres com os quais havia tido certa relação íntima
de introspecção e prazeres... E também se lembrava nitidamente de algumas vi-
sões com sua nova lembrança, Giovana; mas, que ao invés de jorros de prazer
por conta do calor de sua língua ou dedos, esta fazia Rebeca gemer de fome por
38 seus diálogos acalorados pela vida e pela realidade. Rebeca sentiu-se possuída
pela inteligência naquele momento, com Giovana. Não era a língua propria-
mente dita daquela mulher que fazia Rebeca gemer de prazer, era sua filosofia
de vida que tirava lágrimas vaginais do interior de nossa jovem. Fogo! Fogo!...
FOGO!, pensava Rebeca iniciando mais alguns orgasmos, e virando outra e ou-
tra dose do velho e bom envelhecido dezoito anos dourado. Enquanto isso, as
pessoas lá fora conversavam com seu dinheiro, desesperadamente, alucinada-
mente... Sem ao menos saber o motivo pelo qual corriam tanto em busca disto,
daquilo, deste papel essencialmente mais valioso enquanto ainda era árvores.
Ah pequena Rebeca, pequena garota, você quebra as regras o tempo todo...
Pena que essa noite tenha sido apenas um mísero sonho discreto dentro de uma
mente embriagada. A única coisa real o bastante nesse momento fora apenas
o hálito de álcool por conta da noite anterior. Sendo assim, de banho tomado
e um novo rosto não marcado pelas dobras do travesseiro, bom-dia, Rebeca.
É bom ter você conosco mais uma vez. Esse lugar, esse planeta agradece sua
existência, garota: com murros na cara dessa sociedade imunda.

| Rebeca
― Rebeca, o que aconteceu com seus pais? – perguntava outra garota
que admirava seu comportamento.
― Mas que merda você quer saber sobre meus pais, garota? – questio-
nou ela. O fato de eu estar aqui já não é o bastante? Ninguém precisa saber de
onde eu vim ou por quais orifícios eu saí.
― É que você mora sozinha desde quando ouso falar seu nome. E achei
estranho o fato de nenhuma de suas histórias não se passar na casa dos teus
pais. É isso. Não que eu esteja me intrometendo... Mas em nenhum momento
ouvi coisa parecida, com referência a eles, ou a algum parente. Ou transas es-
condidas na madrugada, enquanto eles dormiam.
― O que você acha, Anna? – brincou Rebeca olhando sua amiga com
um sorriso nos lábios, como quem dissesse “já vi este filme, e sei como ter-
mina”.
― Bom, para ser sincera acho que não custa nada falar a respeito.
Aconteceram várias coisas das quais me lembro com muita alegria naquela
época. Além do mais, isso não vai prejudicar ninguém Beca... Você sabe. E
outra coisa: ninguém melhor que você para contar uma história assim. 39
― Traidora! – brincou sua amiga Beca.
...
― Mas que droga! Porque vocês não param de brigar um minuto? –
questionava Rebeca a todo tempo. Vocês estão casados há mais de vinte anos,
já deveriam ter se entendido... Merda!
― Sua mãe é insuportável. Essa que é a verdade. – dizia o ejaculador do
único espermatozóide fecundado. E tem mais, mocinha: a briga entre a gente
é por culpa sua, tá legal?!
― Vocês não se entendem e a culpa é minha por quê, posso saber? –
questionou Rebeca, filha do ejaculador.
― Quem mandou você trazer aquele rapaz aqui, Rebeca? Você não
pode fazer isso. – dizia sua mãe, naquele tom de julgamento e repressão que só
ela sabia. O que mais você anda fazendo por aí que seu pai e eu não sabemos?
Você pode até estar grávida e a gente não faz idéia... Irresponsável!
― Puta que pariu! – exclamou Rebeca. Você só abre a boca para falar
besteira. Não é à toa que o papai não te suporta mais. Eu vim com meu namora-

Marco Buzetto |
do para cá... Qual é o problema? Eu não trouxe um bando de macho para minha
cama, se é isso o que você está pensando que aconteceu.
― Eu não disse isso, Rebeca. – esclareceu sua mãe. Mas você não pode
ficar trazendo seu namorado aqui quando está sozinha. O que vão falar de
você?
― Falar de mim? De mim? É isso o que você está preocupada que acon-
teça. – continuava sua filha. E quanto a minha felicidade, minha privacidade
com a pessoa que escolhi? Os outros que morram se quiserem. E tem mais:
você e o pai brigam o tempo todo e não é só por minha causa. Eu vou continuar
trazendo meu namorado aqui o quanto eu quiser, a hora que for melhor para
nós dois. Se vocês pensam que estamos gravando um filme pornô em cada se-
gundo que ficamos sozinhos, então que pensem, e que se acostumem.
― Eu não vou aturar você falando assim comigo, Rebeca. – disse aque-
la mulher de estatura mediana, que gostava às vezes de pensar que havia uma
adolescente presa dentro de seu corpo. Se você quer ser tratada como uma
prostituta, então que seja; é o que você está merecendo mesmo. Mas eu não
40 dei educação para uma filha minha virar uma puta, não debaixo do meu teto.
Enquanto Rebeca contava parte dessa história passada entre ela e seus
pais às ouvintes de queixo caído, em cada palavra sua ela se lembrava de todos
os detalhes daqueles momentos de troca de carícias paternais. Mas o trem con-
tinuava rodando, e mais uma vez as discussões e palavras acaloradamente alu-
cinadas tomavam conta do recinto, daquela cozinha apertada no final do corre-
dor, com vista para a rua. Uma família qualquer, com sobrenome qualquer, sem
muita importância para qualquer um. Um casal normal, comum a toda gente,
coisa que estamos cansados de ver nos manuais e nas novelas: uma gravidez
não planejada, e bang!, lá estava a primeira filha, que um dia se tornaria nossa
bebedora de whiskey número um. Alguns anos mais tarde, bada bim!, nascera
sua irmã, que ficara com a casa somente para si depois que Rebeca fora embo-
ra. Pois, se aquele teto não era confiado a uma “prostituta”, então de que adian-
taria continuar por ali ouvindo todas aquelas brigas imundas e desnecessárias,
do tipo que ninguém sabe por qual motivo começaram quando tudo se termina.
Nessa época, Rebeca possuía seus vinte e um, talvez vinte e dois anos de idade.
Possuía também um namorado íntegro o bastante para meter-lhe na cabeça um

| Rebeca
famoso par de chifres, um atrás do outro, penetrando outras mulheres e dando-
-lhe o pênis para um oral ou dois na varanda enquanto seus pais assistiam TV
na sala. E em relação à velha água de malte, Rebeca aprendera beber por conta
de uma garrafa de whiskey barato encima da geladeira, coisa que seu pai queria
guardar para fazer pose (como se isso fosse grande coisa; como se possui-se
alguma moral para manter). O fato é que todas aquelas merdas que aconteciam
dentro de sua casa, com seus pais, faziam sua cabeça balançar tanto que a única
coisa que a brecava era uma bela bebedeira solitária. Sendo assim, agora: uma
prostituta alcoólatra. Isso sim era o que faltava para completar mais um roteiro
de vida criado na cidade dos sonhos e dos pesadelos reais da hipocrisia; coisas
que o maldito lugar estava cansado de ver brotar de seu ventre podre e imoral.

― Então você foi embora de casa com vinte e um anos de idade? –


surpreendia-se uma das ouvintes da história enquanto bebericavam já em outro
bar.
― Fui! Isso mesmo! Um pouco atrasada, não acham? – confirmou Re-
beca. Eu já não aguentava mais aquela situação desprezível... Tudo bem, é 41
claro que eu fiz algumas besteiras, principalmente ao deixar os ouvidos dos
vizinhos antenados em meus gritos de prazer; mas, isso não justifica uma vida
toda de incessantes discussões entre meu pai e mãe. Passei alguns dias na casa
de uma amiga, bebedora de vodka, e outros dias na casa daquele meu namo-
rado. Mas as coisas não ficaram muito boas também para nós dois, e a melhor
foi nos separarmos. Eu estava praticamente terminando meus estudos, e não
estava com cabeça para toda aquela merda que as pessoas fazem umas às ou-
tras e também à si mesmas.
― Mas a história não termina por aí Beca. – lembrou Anna.
― Tem razão. Tive que voltar para a casa de meus pais, a pedido deles...
Alguns meses depois de eu tê-los deixado. – continuou. Eu pensei: oras, que
se dane, isto não vai deixar de acontecer mais uma vez. E eu estava certa, mas
de maneira diferente. Alguma coisa iria acontecer, e eu tinha certeza disso. Foi
então que, acho que no segundo dia, por aí, que eu estava de volta, meus pais
anunciaram, em outra discussão, claro, que iriam se divorciar. Meu pai iria mo-
rar em uma cidade vizinha, minha irmã disse que iria junto. Minha mãe insistiu

Marco Buzetto |
para que eu ficasse por lá, junto dela, mesmo agora tendo outro namorado... Na
verdade um pretendente ao casamento... Como eu era inocente. Nojento!
Casamento! Isso mesmo! Rebeca passou a corda no pescoço e estava
tentando amarrá-la no galho mais alto da árvore da vida, ou, nesse caso, da
morte. Nenhuma das garotas ao seu redor naquela narrativa acreditaram no
que Rebeca disse. Casamento? Mas que merda é essa? A jovem Rebeca, arauto
da liberdade, inspiradora de sonhos e esperanças em si mesma um dia pensou
em se casar? “Putz...”, exclamavam as garotas ao seu redor, “as coisas deviam
estar mesmo de cabeças para baixo”. Sim! E realmente estavam. Rebeca iria se
casar com um qualquer. O cara era praticamente dono da casa agora: chegava
do trabalho na madrugada, tirava suas roupas sujas, deixava-as em qualquer
canto, e roncava seus pulmões na cama de Rebeca, depois de consumar um
pouco de sexo noturno, que, diga-se de passagem, uma coisa sem graça, sem
essência, um ato frio, quase que obrigatório por um agradecimento de qualquer
coisa... Sabe-se lá o que. Pois na maioria das sextas-feiras a cena era prati-
camente aquela: Rebeca sozinha em sua casa, pois a mãe havia aprendido a
42 sair para caçar homens, libertando aquela adolescente enrustida dentro de si,
enquanto o maldito passava parte de sua noite trabalhando, e outro pedaço,
bastante rápido e sorrateiro, trabalhando um pouco mais dentro de alguma va-
gabunda que lhe desse um sorriso no fim do expediente. Todos sabiam disso,
até Rebeca sabia, que preferia não sofrer pensando a respeito.
― A verdade é que parecia algum tipo de vodu, isso sim. – disse Anna,
tomando a frente da narrativa. Eu não consigo acreditar que tanta coisa ruim
poderia acontecer em tão pouco tempo.
― É a mais pura verdade. – confirmou Beca. Além do mais, estou de
volta já há bastante tempo, e entendo que aquela minha vontade de casar era
coisa de gente que havia sido frustrada, coisa de desesperado. Ainda bem que
fui salva pelo gongo...
― Pelo gongo mesmo! – continuou Anna a gargalhar, interferindo no-
vamente. Um “gongo” de uns dezoito centímetros direto de um réveillon em
Copacabana; um badalo musculoso, de carne viva. Viva!
Beca e Anna começaram incessantemente a rir, mas dessa vez não por
conta do volume de whiskey e vodka no sangue, mas sim por conta daquela
| Rebeca
história que marcou uma época, e que rendera várias lembranças. Alguns ho-
mens aqui, uma experiência homossexual acolá que havia colocado fim na
vontade alienada de Rebeca em se casar... Reprodução alienada de padrão so-
cial. Bom, na verdade não apenas uma experiência... Mas isso é coisa comum
também em qualquer realidade. Nessa cidade, um vagão de um trem louco
rumo a lugar nenhum, talvez ao fim da linha se der sorte; com a cabeça numa
parede de concreto. E seus moradores, “simpáticos” sonhadores de falsa devo-
ção adoravam histórias de vida que os remetessem à suas próprias frustrações.
Rebeca era um anjo incompreendido; não uma prostituta de pernas abertas.
As coisas aconteciam ao seu redor, e em grande parte afetando sua vida, e ela
simplesmente abraçava sua própria causa... Mesmo dando as costas a tudo.
― De lá pra cá eu prefiro passar minha vida viajando por uma pessoa a
outra, até encontrar alguém em quem eu possa acreditar por alguns minutos até
que no dia seguinte tudo não passe de uma mentiras mal contadas. – finalizou
Rebeca. Aqui no reino da alucinação, esse tipo de coisa é fundamental: uma
cidade infeliz, cheia de histórias que se tornam inéditas a cada vez que são
repetidas. Uma cidade mesquinha. 43

O Educador
― Eu sei o que você está fazendo. Está tentando ganhar algumas pala-
vras minhas para outra de suas lembranças.
― Bom, você não está totalmente errado sobre isso. Mas também não
está completamente certo. – dizia Rebeca enquanto conversava com o tal “edu-
cador” em um lugar qualquer. E se eu estiver mesmo querendo algo para mar-
car ainda mais minha vida?
― Você pode querer o que quiser. Apenas não quero que coloque meu
nome em uma das tuas experiências sexuais. – disse ele. Além do mais, esta-
mos aqui conversando, pois você parece ter sentido minha falta. Estou errado?
Pois tanto tempo se passou desde nossa última conversa.
― É verdade, você está errado. – respondeu ela. Já disse que não procu-
rei por você por conta de minha “falta” de uma companhia diária, ou por sau-
dade, ou por qualquer coisa que pense. Vim apenas, pois ouvi falar de você, e
Marco Buzetto |
que as coisas não estavam muito bem. E, apesar de eu não me importar, sempre
fui uma boa pessoa, que sabe escutar os problemas e talvez, com meu silêncio
e atenção, ajudar de alguma maneira.
― Estamos em outro tempo, Beca, outro lugar em nossas vidas, sepa-
radamente. – continuava o “educador”. Você já está formada e eu também. Já
passamos por boas coisas juntos, e acredito que muitas também separados. Se
você quer um pouco de minha companhia, sinto muito, pois tenho mais com
que me preocupar no momento...
― Deixa de ser convencido. Eu já disse que não estou aqui para isso.
Você é mesmo um idiota.
― Idiota eu? – indagou ele. Por querer uma vida tranquila ao lado de
uma só pessoa, enquanto você fica passando de mão em mão, como se fosse
uma nota sem valor de mercado. Sim, Rebeca, estou feliz agora... Não preciso
de você, como antes você também não precisou de mim.
― Tenho inveja de você! – exclamou ela.
― Pare de debochar, mandita verdadeira. – disse ele.
44 ― Não estou debochando. – respondeu Rebeca. Estou falando sério.
Tenho inveja de você. Eu não conseguiria, hoje em dia, sequer pensar em me
unir à outra pessoa dessa maneira tão íntima. Um casamento é coisa muito
séria, e que envolve muitas responsabilidades, além de um saco de paciência
de tamanho extragrande. Eu, por outro lado, faço exatamente o que você dis-
se: passo de mão em mão, sem nenhum valor. Mas não sei se procuro algum,
sinceramente. Não necessariamente um valor para os outros... Sei quais são
minhas qualidades. E o fato de eu fazer exatamente tudo da minha maneira é
algo de que posso ter orgulho.
― Não quero julgá-la ou contestá-la, mas, qual é seu valor, Rebeca?
Que legado, ou o que você vai deixar para o mundo? – perguntava o “educa-
dor”. O que você vale? Quanto você vale?
― Mas eu preciso valer alguma coisa? Isso é algum tipo de regra uni-
versal que eu tenho que manter como tradição e levar comigo para o túmulo? –
respondia ela. Por um acaso, então, caso eu não faça nada para me inserir nesse
sistema ridículo de sociedade, eu não valho nada? É isso o que essa sua mente
limitada pensa à respeito da vida de um ser humano? Você é que precisa ser

| Rebeca
reeducado, com toda pressa. Pois, se alguém não pode desfrutar da liberdade
que buscou e alcançou para si mesmo, de que valeria a vida, então? Não quero
passar meus dias trabalhando, mostrando para as mulheres qual é a última no-
vidade de uma moda que vai ficar esfregando em suas bundas e se manchando
de menstruação. Não quero perder meu tempo e meu valor me preocupando
com contas mensais e prestações de algo que ao menos me trazem algum estí-
mulo ou benefício real. Não sou diferente, vocês é que são todos iguais! Não
quero me sentir culpada por mentir para mim mesma o tempo todo, em uma
droga de clichê de vida que mais parece um falso rótulo de caixa de cereais.
Não quero fazer parte dessa corrida para lugar nenhum, na qual as únicas pa-
radas são utilizadas para me tornar ainda mais infeliz, em uma porra de falsa
realidade e falsas esperanças que podem ser compradas pelo telefone, ou em
caixinhas coloridas em uma farmácia.
Estas eram pesadas e, por vezes, sábias palavras saídas da boca de Re-
beca, claro, se pudermos enxergar dessa maneira, como ela mesma enxerga
por sua própria conta e risco. Sim, risco: risco de tornar-se exatamente como é,
pois é isso o que acontece quando se mata a ignorância e a inocência. O cha- 45
mado “educador” não havia conseguido fazê-la pensar à respeito de sua vida
de um ponto de vista descordenardo, pois ela mesma sabia que isso não era
possível, tendo completo controle da situação de si. Na verdade, o contribuinte
desse diálogo apresentado havia aprendido mais com Rebeca do que com suas
próprias moralidades extintas nelas mesmas. Palavras mortas desde o nasci-
mento. Essa é a realidade da moralidade. Um moralismo natimorto.
...

Aí estavam histórias reais que Rebeca fazia questão de nos demonstrar


a cada diálogo de curto período. Não era necessário um tempo muito longo
para tomarmos mais uma lição vinda daqueles lábios. A verdade é que Rebeca
fazia de cada história saída de sua boca uma lição de vida, de vida real, levan-
do-nos a pensar seriamente em nosso papel perante nós mesmos, não em rela-
ção ao planeta, aos animais, ou, como ela mesma dizia, “em relação à puta que
pariu que seja”. Devemos voltar-nos a nós mesmos, isso sim é o que pode nos
ajudar, nos “salvar” de alguma maneira a entendermos nossas próprias e reais

Marco Buzetto |
necessidades momentâneas e as de longo prazo. É isso o que devemos levar
conosco quando fechamos um livro e guardamo-lo em um lugar qualquer: uma
lição, uma noção de mudança... E Rebeca fazia esse papel muitíssimo bem. É
a verdadeira mestra da sabedoria, independente de sua filosofia. Pois, ninguém
precisa ser versado em qualquer arte para entender que “uma mudança bené-
fica em nossa vida é sempre bem-vinda”. Devemos, então, parar de enxergar
tudo à nossa volta como um problema. Pois quando fizermos isso, daí sim nós
encontraremos uma solução. Chega daquela coisa de sabedoria do além. O que
reina aqui é a sabedoria da realidade.

A falsa devota
― Porque você faz questão de não gostar de mim, Rebeca? – indagava
outra sonhadora da falsa realidade, mais conhecida como Falsa Devota. Por
qual razão suas palavras são tão amargas para falar à respeito de mim, e de
tantos outros iguais a mim?
46 ― Exatamente por conta disso: vocês são todos iguais. – respondeu a
garota. Gosto de atirar minhas armas contra vocês, pois são a escória social que
pretendo, de alguma maneira, inútil, póstuma talvez, modificar. Não quero ser
mártir, ou fazer seus corpos valerem à pena; quero apenas mostrar-lhes seus
próprios erros. Quem sabe assim esse lugar pare de viciar ainda mais pessoas
em seus costumes podres, tóxicos e letais.
― Mas você é também uma de nós: uma sonhadora pesadelesca. Ou es-
tou enganada? – continuava a Falsa Devota. Pois, nasceu de um ventre também
nascido aqui. Dos montes mais altos.
― Isso não faz de mim uma igual. – respondeu. Pois sou contrária a
essa vida exatamente por isso: enxerguei a realidade daqui, e todos os entor-
pecentes que esse lugar tentou me oferecer. Percebi os erros de todos e todas à
minha volta, e resolvi não cometê-los. Percebi a fala de cada indivíduo desse
lugar, e o quanto é meticulosamente treinada na arte da ignorância. Isso mes-
mo, treinados: pois parecem pensar muito antes de falar algo que não condiz
com a realidade, ou que não traz nenhum proveito ao diálogo; e muito menos

| Rebeca
um prazer momentâneo que instigue a continuarmos a conversa, por exemplo.
― Você é uma sonhadora, Rebeca. Uma mulher que acredita fazer a di-
ferença no mundo, ou em uma sociedade. Mas que, na verdade, vem da mesma
carne-moida que todos. – disse a Falsa Devota da cidade dos sonhos amargos.
― Isso mesmo. Sou também uma carne-moida, mastigada por todos. –
replicou. No entanto, não sou proveniente dos mesmos matadouros imundos e
impiedosos que vocês. Sou uma carne-moida de qualidade, se é que existi al-
guma assim. Ou minha diferença está exatamente em tentar ser diferente. Pois,
como eu já disse: não sou diferente; vocês é que são todos iguais.
― Então é justamente por isso que você não consegue se afastar daqui.
– continuou a Falsa Devota. Pois, procura superar ainda mais as pessoas a cada
momento. Mesmo que isso não seja nenhum pouco difícil. É por isso que se
aproximou tanto de mim, uma igual a todos os outros, e que acabou em minha
cama. É assim que você gosta de passar suas noites Rebeca: ensinando muito
de perto suas palavras pesadamente ácidas.
― Nada disso! – respondeu Rebeca prontamente. Como todo ser hu-
mano eu tenho minhas necessidades gerais e básicas. O que faço é escolher a 47
dedo uma pessoa que satisfaça estas minhas necessidades, uma pessoa sempre
acima da média.
― Me dê mais exemplos de sua aversão aos homens dos montes menos
altos falsamente devotos. – pediu a mulher com Rebeca em sua cama.
― Vocês mentem o tempo todo. – simplificou a garota. Mentem e me-
tem, acreditam no que dizem, acreditam em uma análise errada sobre si mes-
mos. Querem a todo custo pensar que o que fazem e dizem é correto, quando
no fundo sabem que estão mentindo, mesmo que todos a sua volta também
saibam que o que sai da boca dos sonhadores destes montes é pura mentira.
Vocês têm medo da realidade, medo de si mesmos, de enfrentar a si mesmos.
Vocês possuem esse medo, e por isso mentem o tempo todo; pois tem medo
o tempo todo. Eu sinceramente não consigo enxergar nada de bom em vocês,
por isso os chamo de falsos devotos: pois não possuem devoção alguma, a
não ser sobre a hipocrisia à ignorância, à falsa crença na realidade e em vocês
mesmos. Por isso são falsos devotos. Pois possuem falsas crenças. Ou talvez
a única coisa boa, no fundo de tudo sobre vocês, é o fato de saberem que são

Marco Buzetto |
assim: falsos devotos. Fico me perguntando como conseguem, sinceramente.
Como conseguem viver dessa maneira: mentindo o tempo todo em todas as cir-
cunstâncias. Se forem pegos em uma mentira, no mesmo milésimo de segundo
inventam outra, como um dom divino... Como conseguem? Ao invés de saírem
dos problemas, se enfiam ainda mais na merda que vocês mesmos cagam. Essa
que é a verdade de suas vidas, falsos devotos dos montes dos sonhos, sem o
mínimo de dó em minhas palavras. Lembro-me agora também de como é fácil
para vocês, falso devotos, acreditar em si mesmos, abraçando causas perdidas;
e um exemplo disso é o casamento. Mas vou explicar o que quero dizer, pois
de alguma forma passei por isso e soube enfrentar esse monstro: o desespero.
Digo que as pessoas tomam decisões desesperadas também o tempo todo. Algo
lhes acontece inesperadamente, e em pouquíssimo tempo vocês se apegam, por
exemplo, a um relacionamento acreditando que este sim é o verdadeiro amor.
Mas na verdade, essa é apenas mais uma ilusão, pois tomaram a decisão e
analisaram o contexto de forma desesperada. Assim nada pode ser compreen-
dido em sua essência. Ao pensar que as coisas estão muito ruins, e que vocês,
48 falsos devotos, devem conseguir se desafogar o quanto antes, se afogam ainda
mais, pois estão cegos. E se tornam mais uma marca nas estatísticas, divorcia-
dos, depressivos, infelizes. Bom, mas é claro que esses são exemplos fáceis de
serem apresentados e esquecidos. Vamos mentir também sobre isso, e fingir
que nada foi dito. A ignorância é mesmo um dom do ser humano. Ao invés de
entendermos o que está errado sobre o ser humano, vamos dizer que a culpa é
da matemática, e dos dados que ela apresenta em relação a tudo.
― Você gosta dessa lição sádica de realidade, pelo o que posso perceber
em suas palavras amargas. – disse a falsa devota. No entanto, também gosto de
escutar-lhe divagando sobre esses temas, que em sua maioria parecem repeti-
tivos, mas que possuem alto grau de ensinamentos. Repetitivos sim; e percebo
isso, pois tamanha é sua aversão a essa realidade. Agora entendo perfeitamen-
te, Rebeca, minha parceira de cama e de doutrina. Aí está mais uma coisa que
gosto em você, além dos orgasmos múltiplos que saem dentre minhas pernas:
você também faz meu cérebro gozar de prazer. Você é um martelo que não se
cansa.
― Sou um martelo de pensamentos, minha frágil sacerdote de prazeres.

| Rebeca
Sou um martelo pesado, coberto de certezas e punições sobre mim mesma por
conta disso. – dizia Rebeca. Sou a salvação e a minha própria extinção.
― E como você pretende fazer com que nós não nos extingamos? Acre-
dita em nosso futuro, de alguma maneira positiva? – indagou a falsa devota
envolta em orgasmos sexuais e intelectuais.
― É claro que todos continuarão suas vidas, pois ninguém será extin-
to. Ao menos que aconteça um colapso mundial de proporções mortais. Mas
acredito que não tenhamos tanta sorte assim. Talvez o ser humano seja esse tal
colapso que irá devastar o futuro conhecido. – dizia Rebeca. A única maneira
de todas as pessoas aprenderem a viver melhor é por meio do conhecimento
, do conhecimento sobre si. Só assim vocês podem enxergar o que é bom ou
ruim, mesmo que tudo esteja bem debaixo dos seus narizes, ou escondido em
palavras minúsculas. Isso não é um mal fatal; falo sobre seu modo de vida. No
entanto, as coisas poderiam ser melhores para todos e todas, caso estes todos e
todas aprendessem a conviver com a realidade. Por qual razão vocês, pequenos
sonhadores iludidos, não param um minuto para analisar suas vidas, e o quanto
estão prejudicando uns aos outros? 49
― Talvez as pessoas estejam ocupadas demais. – tentou a falsa devota.
Talvez não dê tempo...
― É verdade. Você está coberta de razão. As pessoas não têm tempo de
serem inteligentes. A ignorância é mais rápida e prazerosa. E de tanto viver sob
a sombra da mentira e da ignorância, vocês se acostumaram, e nada procuram
fazer para tomar o controle da situação. – respondeu. Vocês, eu repito, já estão
viciados demais, intoxicados demais em sua própria peçonha para consegui-
rem se salvar. E digo mais: a esperança sobre as novas gerações está ainda
mais acabada. Nesse caso eu repito meu clichê pessoal: a esperança é a única
que morre.
― E porque diz que essa esperança na juventude está morta? – interes-
sou-se a falsa devota, enquanto continuava beijar o corpo nu de Rebeca.
― Porque todos estão viciados. – respondeu ela. O que acontece quan-
do manipulamos uma quantidade determinada de medicamentos em uma pes-
soa, e após algum período essa quantidade não faz mais efeito?
― Acredito que se deva aumentar a dose.

Marco Buzetto |
― E é justamente isso o que acontece com as novas gerações. Elas es-
tão tão acostumadas ao próprio veneno, que estimulam a si mesmas a fabricar
e precisar de quantidades maiores. – confirmou Rebeca. Você não percebe o
quanto a juventude está abandonada? Abandonada porque não possui capa-
cidade de tomar conta de si mesma, e seus responsáveis estão ocupados com
outras coisas ainda mais supérfluas, ou estes não conseguem mais controlar a
situação dentro de suas próprias casas, com seus filhos. Todos abandonaram
uns aos outros. Por isso, a esperança não está mais na juventude.
― E onde você acredita que ela esteja, se é que está em algum lugar? –
insistiu a falsa devota enquanto se preparava para mais um orgasmo, falando
em sussurros e gemidos soluçados.
― Não existe esperança real; apenas uma falsa sensação da mesma. –
respondeu a jovem. No entanto, as respostas estão em nosso próprio tempo.
Não há como deixarmos para que os outros, futuramente, pensem em solu-
cionar os mistérios. Devemos começar daqui por diante, essa é a verdade. Por
exemplo, posso citar o caso da tão especulada falta de água potável em nosso
50 planeta no futuro. Caso não façamos nada para impedir esse problema hoje,
nós não teremos água, não apenas nossos filhos e netos. Todos parecem possuir
um julgamento futurista dos problemas, e por isso as coisas não se resolvem;
quando devemos, na verdade, julgar as questões necessárias de maneira ime-
diata, em tempo real. Aqui, e exatamente agora.
― Entendi o que você quis dizer, Rebeca, mesmo enquanto beijava
meus lábios inferiores. – disse a falsa devota. A questão é que não estamos
cuidando do hoje, de nós mesmos e dos nossos projetos embrionários futuros,
os famigerados filhos. Não estamos dando a devida importância ao todo, e pen-
samos apenas individualmente, em nosso próprio e momentâneo prazer, um
prazer que é falso, fictício, e que no final das contas deixa-nos ainda mais infe-
lizes. Por isso mentimos o tempo todo, para acreditarmos em nossas próprias
mentiras, criando uma falsa noção da realidade e da felicidade. E justamente
por isso você nos chama de falsos devotos.
A mulher falsa devota finalmente havia compreendido a filosofia de
Rebeca. Porém, enquanto falava à respeito para que a garota se orgulhasse de
seu entendimento, esta estava imersa nos prazeres da carne de tal maneira que

| Rebeca
não deu ouvidos as palavras de sua companheira de cama. A falsa devota, mas
ao mesmo tempo gemia, sussurrava e gritava de prazer, enquanto Rebeca a
açoitava com a língua em seus seios e orifícios. A verdadeira poesia estava ali
retratada. O nascimento da verdade pela filosofia vaginal das duas mulheres.
Por todos os cantos e bocas saiam jorros de palavras sábias, de Rebeca e sua
aprendiz, e todas essas palavras mostravam-se puramente reais, condizentes
com as necessidades do ser humano. A cada orgasmo que saia de suas vaginas,
novos diálogos também estavam a caminho, e uma nova seção de discussões
começava. Mas tudo terminou, mesmo havendo se passado uma dezena de
horas, quando duas garrafas de whiskey e uma de vodka secaram misteriosa-
mente; mesmo que o hálito das mulheres sobre a cama às entregasse.
No dia seguinte, tudo voltava ao normal... Porém, com algumas marcas,
mordidas e arranhões sobre a pele, e os lençóis visivelmente encharcados...
Sabe-se bem pelo o que, é claro.
...
Rebeca dizia que as pessoas, principalmente no reino dos sonhos per-
didos, cidade na qual vivia e vivenciava experiências tortuosas em relação 51
às pessoas, essas se comportavam de maneira avessa as suas próprias inten-
ções. Isso significa que os indivíduos daqui geravam industrialmente formas
de combater a si mesmos. Dissecando ainda mais essa teoria, Rebeca tentava
nos mostrar com suas palavras e gestos que as pessoas destruíam a si, sem ao
menos entender, perceber ou criticarem-se em meio minuto de realidade que
fosse. Isso não acontecia. Elas criavam um tipo de doença social dentro de si
mesmos, inalterável, forçando-as a manter-se firmes em suas excentricidades
em relação à ignorância, por exemplo. Essa “doença social” que se mostrava
frente aos olhos de Rebeca tornava coletivamente mínima a possibilidade de
uma verdadeira noção do que é a realidade, do conhecimento sobre ela. Porém,
ao mesmo tempo em que Rebeca nos mostra a total falta de moral, pudor,
interesse, respeito pelo si mesmo de cada um, a falsa devoção, as mentiras,
a insistência complexa nos erros sendo que o acerto na maioria das vezes é
ainda mais fácil; a tortura individual sobre cada um por eles mesmos para en-
tender suas próprias necessidades, enfim, tudo o que havia de ser combatido,
Rebeca possuía dentro de si, e pregava o contrário. Como ela mesma dizia:

Marco Buzetto |
“dar murros nesse sistema sociocultural, na cara de cada um” era a solução. E
isso a garota estava fazendo muitíssimo bem. Com seus erros ensinava outras
pessoas, escolhidas a dedo, minimamente acima da média, a perceberem os
contras por dentro e por detrás de suas próprias máscaras. Em fazer exatamente
o contrário do que pregava, Rebeca aprendia ainda mais: aprendia a manter-se
fora do caminho, mesmo querendo prosseguir e ajudar quem merecia. Mesmo
contorcendo-se completamente por dentro tentando não se meter na vida das
pessoas. Mesmo sabendo que não se pode ajudar quem não quer ser ajudado...
Mesmo assim, com a ignorância fatal sobre a cabeça de cada um, por suas
próprias escolhas insistentemente incorretas e degenerativas, Rebeca dava o
braço a torcer para si. Por esse motivo é que vez ou outra encontrava-se acor-
dando na cama de outro, ou outra, ou vendo o sol nascer pela janela de um bar,
semi-acordada, conversando com ouvintes que mais pareciam groupies, fãs
incondicionais, seguidoras, etc.
Rebeca, a jovem mulher contestadora dos sistemas, no fim das contas,
das noites, dos orgasmos, sempre se encontrava sozinha, novamente assim, ro-
52 deada de um infinito cosmo de puro e aterrorizante vazio. Mas a cada momen-
to, a cada dia em que acordava, Rebeca se acostumava com essa vida de fria
solidão. Por certos momentos até mesmo se orgulhava disso, de seu isolamento
social, intelectual, introspectivo... De sua morte da inocência. Ela aprendia
consigo mesma, isso sim é verdade. E percebia também, dolorosamente contra
sua vontade, ou não, que não havia nada errado em relação às pessoas viverem
daquela maneira tão vazia, tão marcantemente contrária ao que poderia ser
uma realidade muito mais feliz para todos. Pois, Rebeca percebia nos olhos
de cada um que individualmente suas realidade eram tidas como absolutas;
sendo que, acreditando nelas piamente, se tornavam felizes, pois não conhe-
ciam o resto dos pensamentos, os limites que poderiam ser ultrapassados para
melhorar suas vidas. Dessa maneira, Rebeca caia novamente em sua teoria que
virava clichê em cada página da vida, e dizia: “a ignorância é um dom do ser
humano”. E realmente o era. Ninguém reclama de absolutamente nada, mes-
mo que isso atrapalhasse fortemente, caso mantenham-se alienados, mendigos
do sistema social, ignorantes a qualquer preço. E talvez essa seja a realidade
que Rebeca não conseguia enxergar, por ser extremamente difícil de entender

| Rebeca
como os problemas podem trazer tanta felicidade à vida das pessoas. Rebeca
não entendia isso: que os problemas, de alguma maneira, motivavam as pesso-
as a continuar suas vidas, por mais medíocres que fossem. Por isso procuravam
e inventavam cada vez mais problemas, dificuldade, infelicidade... Isso dava
gosto em suas vidas. Aquele sabor delicioso que ninguém sabe de onde vem. E
Rebeca, por escolher em seu sangue o caminho da busca pelo buscar, da míni-
ma sabedoria, ou da tentativa, acabara por corromper sua ignorância, matando-
-a por completo (não a chamada inocência, pois essa é facilmente perdida;
sendo que a ignorância, é dificilmente controlada). Esse fora o erro de sua vida,
e no qual continuava por insistir, pois jamais conseguiria voltar a ser como
todos: apenas seres humanos. Realmente, ser igual a todos, para Rebeca, era
a tarefa mais difícil de sua vida, mesmo tentando constante e dolorosamente.

53

Marco Buzetto |
Parte III
O falso oportunista

Rebeca, a jovem dedicada à sua filosofia elaborada, da destruição, dos


falsos valores, encontrava-se vagando pelas ruas com seus comentários inter-
nos à respeito das pessoas. Fazia questão, também, de não olhar para o rosto
de ninguém, pensando sempre que uma simples linguagem corporal nunca era
tão simples assim, e que mostrava muito de cada um... Além de seus rostos e
olhares tradicionalmente vagos. Rebeca acreditava que ao ver qualquer pessoa
pelas ruas, em uma manhã, por exemplo, o resto do dia seguiria com visões
exatamente iguais às de qualquer outro: repleta de gente insuportável e auto-
martirizada. E em uma destas visões sobre o cotidiano social, eis que surge
um bípede já conhecido, um velho espírito sanguessuga. Rebeca sentiu-se à
vontade para olhar, porém, mesmo não gostando muito do que vi, trocou al-
54 gumas palavras e imediatamente o passado tomou conta de seus pensamentos.
Lembrou-se de alguns instantes de prazer, de sofrimento, de angústias e sorri-
sos, e acabou por sentir certa necessidade de outro momento assim, para uma
reflexão mais profunda que aquele ato proporcionaria. E para manter a tradi-
ção, lá estavam eles, em uma cama redonda de motel... Sim. O sexo a ajudava
pensar melhor, enxergar melhor, a compreender melhor.

― Sanguessuga! Isso mesmo! – exclamava Rebeca. Você não se cansa


de me procurar, e também de se deitar comigo mesmo sabendo que não o con-
sidero ao menos uma lixeira vazia? Pois, para ser uma, você precisaria evoluir
bastante...
― Não sei por que você me considera uma sanguessuga. Talvez por
sugar seus fluidos corporais até o fenecimento? – dizia o velho conhecido.
― Você sabe por que te chamo de sanguessuga, e também de falso
oportunista. – continuava a jovem nua sobre a cama redonda de motel. Você
conhece muito bem meus métodos e doutrina... Sabe como gosto de ofender
e ensinar quem passa por mim, ou está a minha volta. Mas você... Você não

| Rebeca
está a minha volta, e sabe tanto quanto eu sobre a falta de devoção das pesso-
as. Conhece meu discurso de cabo a rabo, e ainda assim insiste em manter-se
próximo a mim.
― Gosto de vigiar você, Rebeca. E gosto também de manter minhas
relações físicas contigo, uma mulher que conheço bem, e sei mais do que nin-
guém, suponho, excitar e levar ao mais fervoroso orgasmo.
― Pois supõe errado, meu velho fantasma. – disse Rebeca. Existem
outras pessoas melhor aplicadas nessa arte. Desculpe-me pela sinceridade. No
entanto, insisto que você sabe muito bem o que penso à respeito de tudo. Pois,
já ouviu bastante disso e daquilo saindo de minha boca, e também de meus
orifícios. Sendo assim, é um falso oportunista; pois, procura mentir sobre sua
necessidade de perguntas e respostas. Não precisa de nenhuma, pois já as co-
nhece bem, tendo me conhecido muito bem. É um falso oportunista, pois esta
tentando se aproveitar de algo, de mim, que já o conheço tão bem quanto você
mesmo. Você não tem como me enganar, pois, sabemos muito um sobre o ou-
tro. Sei quais são suas perguntas, e você sabe bem quais são minhas respostas...
Até mesmo quantas são até o momento em que eu me fecharei por completo, 55
te deixando sozinho no quarto.
Poucos conheciam Rebeca muitíssimo bem, e muitos a amaram nas pri-
meiras palavras, no primeiro susto que levaram, no primeiro murro. O chama-
do falso oportunista, por exemplo, é um daqueles poucos que a conheciam, e
por isso mesmo mantinha devida distância. Mas, em suas horas de necessidade,
Rebeca se tornava um ponto fixo no qual o falso oportunista podia focar seu
olhar e sua genitália.
― Você sabe que estou aqui apenas para me divertir, Rebeca. – confes-
sou ele. Estou fazendo apenas o mesmo que você... Não é isso? Estou satisfa-
zendo minhas necessidades humanas, já que não encontro ninguém a minha
altura: para o sexo qualquer um serve... Ainda mais aqui, nesse lugar podre
onde essa pequena palavra erótica é considerada primordial na vida de todos.
― Então, você está dizendo que se tornou um igual à mim? – indagou
a jovem nua e excitada. Você diz que tudo o que faz é para tentar ser como a
mim, imitando meus atos para com os outros...
― Exatamente! – expressou ele. Mas, não me considero um copiador

Marco Buzetto |
barato. Aprendi procurando seus ensinamentos; e aprendi também que as pes-
soas daqui não valem nada, assim como eu também não valia. Mas, agora, ago-
ra estou um nível acima de todo esse lixo social incrivelmente descontrolado
e não-reciclável. Aprendi a ser você, Rebeca: o seu Eu masculino. Um falso
oportunista que colheu todos os frutos necessários e agora também planta as
sementes. Sou um falso oportunista, como você mesma diz, pois reconheço
saber tudo o que você havia de ter me ensinado, e mesmo assim continuo pre-
sente em sua cama, em seu útero.
Rebeca havia encontrado, enfim, um igual à ela. Uma pessoa que pa-
recia se importar com si mesmo, e também com a necessidade de evolução do
ser humano. Essa pessoa conhecia seus mistérios, conhecia seus ensinamentos,
suas teorias, seus sentimentos pelas pessoas que aos dois rodeavam, e também
sua degeneração: sua vontade de mostrar-se contrário as atitudes cotidianas da
falsa verdade, da medíocre vaidade anti-racional da utilização do pensamento.
...

56 A causa e Efeito
da sensação de liberdade
― Eu entendo perfeitamente, Rebeca. – dizia Anna, sua velha amiga.
Mas você não tem vontade de fixar raízes, permanecer um pouco em uma só
pessoa, em um só lugar?
― Você está querendo que eu me estagne, é isso? – indagou Rebeca.
Você quer que eu me torne uma rocha, algum tipo de dona-de-casa que não
possui sangue nem vontade o bastante para saber que existe um mundo além
do supermercado, da padaria, do hospital e da sua minha própria casa? Alguém
que olha para fora do portão, por cima dos muros, e vê apenas uma calçada suja
precisando ser varrida?
― Ah Rebeca, você faz parecer tão ruim. Não foi isso o que eu quis
dizer. – respondeu sua amiga. Só imagino que você precise, um dia talvez, de
um pouco de sossego nessa vida. Sabe, um tempo para não se preocupar, algo
a fazer que não lhe ocupe tantas energias. Você não acha possível?
― Eu não quero me prender a nada, Anna, minha amiga. – disse ela.

| Rebeca
Não quero perder esta, no mínimo, sensação de liberdade. Sinto-me muito bem
assim; e só de pensar em deixar uma pessoa tomar conta de mim, ou se preocu-
par, ou de eu dever explicações e satisfações a alguém já me assusta. Mas não
um susto que me mete medo... Quero dizer que isso intimida, ameaça minha
liberdade. E simplesmente não quero isso para mim. Não quero que minha
mente se preocupe com bobagens do cotidiano das pessoas, coisas sem valor,
sem o menor e devido crédito.
― Não digo que você deva perder essa noção de liberdade, ou a liber-
dade em si. – continuava Anna. Mas acredito que você deveria, um dia, pensar
à respeito. Todos necessitam de uma companhia, Rebeca.
― Todos? Essa é conversa de gente fraca. De gente que não tem capa-
cidade, ou não conhece suas capacidades, de ser feliz sem precisar de alguém a
seu lado. Essa é a fala de uma pessoa derrotada por suas próprias expectativas e
medos. De alguém que anseia por uma felicidade que não está conseguindo ao
menos saber de onde pode vir. Daí procura essa tal felicidade em outra pessoa,
e quando menos espera, descobre que não está vivendo a sua, e sim a felicidade
do outro. – explicava Rebeca. Além do mais, sei o que significa a liberdade, ao
menos a minha, e isso não está ligado a mais ninguém, apenas ao meu próprio
bem-estar, o qual eu mesma posso ou não gerar em qualquer circunstância.
― Entendo o que você quer dizer. – confessou Anna, a amiga do copo
de vodka, agora com uvas-passas mergulhadas na bebida. Você não quer que
os conflitos irrelevantes tomem conta de sua capacidade...
― Exatamente! – exclamou. Não quero que alguém tome minhas ca-
pacidades como irrelevantes. Ou pense que sou limitada de alguma maneira,
por ser mulher talvez, ou por estar à procura de alguém que me satisfaça em
um relacionamento duradouro. Não quero fazer de mim uma pessoa desmere-
cida, sabe... Quero continuar mostrando meu potencial, minhas forças, minhas
convicções. Filiar-me a alguém é demonstrar que não possuo o domínio sobre
eu mesma, e não tenho capacidade de encontrar a “felicidade” que todos pro-
curam. Apesar de eu não procurar esta felicidade comercial, esperançosa que
todos procuram. Não quero um contrato assinado. Não quero tornar minha
existência um produto contratado com oficialidades. Minha felicidade não vem
dentro de um carro zero quilômetro, ou em uma casa mobiliada, ou em roupas
da moda e eletrônicos de ultima geração. Porque as pessoas querem tanto de
uma vez só, quando ao menos possuem a si mesmo? Pergunte a alguém, por
exemplo, o que ele representa a si mesmo. Aposto alto que a pessoa em questão
irá vagar muito entre adjetivos e palavras sem cabimento, até olhar sem graça e
dizer “sei lá; para quê isso?”, dando as costas logo em seguida.
― Então, você acredita que haja necessidade de sentir-se em liberda-
de... – tentava ela, Anna.
― Não só acredito, como já lhe disse isso em outras horas, Anna. – in-
terrompeu ela. Existe um motivo para eu me sentir livre. Não quero me sentir
de mãos atadas, ou como se tivesse uma bola de ferro limitando meus pés
em alguns metros quadrados. As pessoas precisam de motivos para se sentir
em liberdade. Do contrário, de que valeria suas vidas? Aquela conversa sobre
suas contas mensais, ou centenas de falsos problemas mundanos e pessoas,
demonstram que as pessoas precisam de motivos reais para se sentir felizes.
Não quero dizer somente que todos são cegos a isso, mas é essa uma parte da
realidade de suas vidas. Não encontram a felicidade, pois, estão preocupadas
58 demais procurando problemas... Como já disse anteriormente. Além do mais,
tenho motivos o bastante para querer me sentir livre. Um deles, por exemplo, é
saber que não devo minha vida a ninguém. Outros montes estão ligados a mi-
nha necessidade de buscar diálogos nos quais eu encontre uma hora ou mais de
boas palavras para debater à respeito do mundo, das pessoas e de suas neces-
sidades reais, e de como se alimentam de propagandas medíocres e mentirosas
que as façam sentir como em um filme de prosperidade forjada. A coisa toda é
mais profunda... Do tipo: reflexão e realidade.
― Mas você conhece bem todos os efeitos que estas sensações trazem
consigo, não é mesmo, Rebeca? – perguntava Anna. Você sabe muito bem,
sente na pele o quão difícil é para alguém valer-se do orgulho de ser além da
média.
― Conheço bem esse infortúnio. – respondeu a jovem. Tornei-me uma
pessoa completamente solitária, apesar de sempre haver alguém ao meu lado,
ou em minha cama entre minhas pernas e meus seios. É sempre difícil encon-
trar alguém que supra minhas necessidades reais, intelectuais. E quando en-
contro, confesso que me prendo tanto a essa pessoa, que tenho medo de querer

| Rebeca
permanecer ao seu lado. Ou, talvez, medo que ela queira permanecer ao meu
por muito tempo.
― Rebeca, então você está dizendo, literalmente, que em sua procura
pela felicidade você acabou encontrando a infelicidade?
― Não digo que isso tenha acontecido em relação a minha procura,
pois, pouco procuro a felicidade. Sei que a felicidade está dento de mim, então
pouco preciso procurá-la. Mas sim, encontrei a infelicidade, pois conheci tanto
as pessoas, tão profundamente a mim mesma e a elas mesmas, que percebi que
tudo o que posso fazer para me tornar feliz é me tornar uma pessoa infeliz,
sendo igual a todos os outros. E já que isso eu não consigo realizar, quero dizer,
ser mais um qualquer meio a massa, então sim, eu encontrei a infelicidade, e
a abracei com os braços e as pernas. – continuou Rebeca. É bastante triste ser
uma pessoa alguns em degraus acima, pois vivo meio a um bando de gente
inferior. Pior ainda é a sensação de acreditar ser superior. Para ser feliz ple-
namente, eu precisaria estar em convívio social de pessoas iguais a mim. E já
que isso, aqui, é pouco provável de acontecer, então... Mas, tenho você, minha
amiga Anna, que completa parte de minha necessidade. Além do mais, você 59
sabe, eu sei e todos sabem que é muito bom ser simplesmente mais um meio
a um bando de quaisquer... Isso torna todos e todas iguais, e é a melhor coisa
a ser feita. É melhor sofrer tentando ser igual a todos do que sofrer afirmando
ser diferente.
...

Marco Buzetto |
O Eu mesma
A infância perdida
― Essa é uma conversa comigo mesma; bom, um tipo de monólogo in-
fame, se preferir. Às vezes me pego assim, sabe, conversando comigo mesma.
Mas caso alguém escute, sinceramente não faz diferença. Penso que quando
conversamos sozinhos, essa é uma maneira de extravasarmos os sentimentos,
de maneira verdadeira, e com a possibilidade de encontrarmos respostas e
imobilizarmos ansiedades que nos façam mal. Gosto de conversar com minha
amiga Anna, mas às vezes prefiro uma amiga diferente, eu mesma: uma amiga
despedaçada, como um quebra-cabeça que eu possa montar sobre uma grande
mesa de madeira crua. Um quebra-cabeça difícil, para ser sincera. E em minhas
conversas solitárias, gosto também de pensar sobre infância, uma demonstra-
ção de humanidade que pouco possuí e desenvolvi. Na verdade, eu estava ocu-
pada demais tentando parecer adulta para não ter que resolver problemas de
60 criança, enquanto eu era apenas uma; e dessa forma perdi um pouco desse
período tão importante. Eu queria estar longe das tragédias que envolvem essa
fase: os conflitos com os familiares, por exemplo, que estão sempre presentes.
Assim, resolvi me afundar em problemas maiores, e acabei descobrindo a inte-
ligência, a intelectualidade, o questionamento, as dúvidas reais que poderiam
mudar o mundo e as pessoas caso fossem respondidas. Assim eu perdi parte
de minha juventude. Exatamente assim: querendo explicá-la a mim mesma.
Acabei perdendo minha grande festa no jardim, minha meninice. Queria tanto
me sentir adulta, que me perdi no meio do caminho, e agora não aguento mais
essa realidade. Ser adulto é um porre, uma grande merda fedorenta na verdade.
Repletos de responsabilidades que nos são empurradas pelo sistema, com as
pessoas nos dizendo a todo o momento o que devemos e o que não podemos
fazer, e com quem devemos nos relacionar; e também que a coisa certa a ser
feita é nos casarmos, constituirmos uma família normal, com no máximo dois
filhos, não mais que isso: cristãos, corretos, educados, que irão trabalhar alie-
nadamente sem conhecer outro tipo de realidade que não a mentira e a certeza
de derrota por detrás dos salários. Uma criança perdida: um filha esquecida...
| Rebeca
É isso o que sou. Esquecida e perdida por mim mesma. E não sei mais voltar
para segurar minhas mãos, fazendo, talvez, tudo diferente. É tarde demais para
dizer eu te amo; tarde demais para viver o hoje e tentar novamente sem erros
profundos. Falo sobre minha vontade de ser melhor. Pois, se pudesse, talvez
escolhesse o caminho da facilidade: da ignorância. O caminho das massas. Mas
não foi isso o que quis para mim, e também para as pessoas ao meu lado. Estou
perseguindo palavras e ideais às quais não consigo mais me fixar. Estou me
tornando à contradição de mim mesma; e apesar dessa iniciativa partir exata-
mente de mim para comigo, confesso que não me aguento mais. Tornei-me um
peso sobre meus próprios ombros, por mais que estes pareçam fortes o bastante
para suportar quantos homens se for necessário a me fazerem um orgasmo real.
Cansei-me de mim mesma, de gozar com meus próprios dedos, mesmo que
essa experiência seja cada dia mais prazerosa, pois, aprendo novos tatos dentro
de minha carne uterina. E quanto mais me conheço por dentro, melhor enten-
do as pessoas a minha volta. Entendo que suas felicidades não necessitam de
verdades. As pessoas gostam de falsas realidades, falsas realizações... Gostam
de verdades contadas por bocas mentirosas. E sentem-se felizes por acreditar 61
em um monte de mentiras, mesmo sabendo que é exatamente isso. Foi o que
chamei de acomodação das mentes, o que chamei de preguiça intelectual. Pois,
parece que ninguém possui um minuto de seu tempo para raciocinar. Estou
absolutamente cansada daqui, e às vezes me sinto uma tirana. Porém, dona de
uma tirania a qual ninguém dá a mínima atenção. Sou uma falsa comemoração
da sabedoria. Uma ilusão, ou uma versão real do que não é necessário para se
alcançar a alegria, por exemplo, ou se entristecer ainda mais.

Apesar de sua intuição sempre negativa sobre as pessoas, principal-


mente de sua sociedade – mais próximos de uma análise –, Rebeca permanecia
rodeada por falsos amigos. Sempre havia alguém para lhe pagar uma bebida,
ou um sexo oral. Suas frustrações se tornavam cada vez mais reais, e também
seu pesar sobre si mesma. Mas, nada que um velho e bom costume de whiskey
sem gelo não resolvesse.
―Você se lembra de mim, amiga?
― Como eu poderia ter esquecido? – indagou Rebeca. Você aparece

Marco Buzetto |
sempre que não preciso. Mas, tantas vezes precisei e você não estava presen-
te... Então desisti.
― Eu sou mais um qualquer em sua vida, Rebeca. Porque faz questão
de ter-me por perto? Eu, sinceramente, não preciso de você!
― E o que vai acontecer agora? Pode me dizer ao menos isso? Ou irá
mudar de assunto, fingindo que veio até aqui só para encher de álcool essa sua
cara suja, e transar comigo feito um animal divinizado?
― Não quero que você se sinta mal, Beca. Mas, não vim aqui para levá-
-la mais uma vez para cama... Um milhar de vezes, talvez. Tanto faz. Você não
sacia mais minha sede.
― O que vai ser então? Por qual experiência você procura? – pergunta-
va Rebeca. Eu quero saber... Ande. Qual das delícias da vida você quer provar
hoje?
― Vim para lhe trazer um pouco de sabedoria, velha amiga, Rebeca,
senhora dos copos vazios. Vim para fazer de você, novamente, uma pessoa
além da normalidade.
62 ― Então faça isso rápido, e meta uma bala na minha cabeça quando
terminar. Pois estou cansada de minha inútil vida moralmente imoral. – pedia
a jovem garota. Estou genuinamente exausta de mim, e procuro algo que me
traga de volta algumas esperanças, por mais falsas que sejam. Por mais que
sejam as falsas esperanças que todos abraçam com suas virilhas.
― Perceba Rebeca: você está rodeada por moscas, como se fosse um
punhado de estrume ainda quente. Você está se jogando penhasco abaixo, do
mais alto pico de humanidade que uma pessoa pode se enfiar. Porque não se
levanta e mostra, antes de tudo para si mesma, que você pode nascer novamen-
te e levar às pessoas um pouco de suas velhas palavras, dolorosas e uniforme-
mente cansativas? Pensa que todos já se cansaram de ouvir à respeito? Pois,
saiba que ainda não. Muitos querem ouvir suas palavras.
― Você pensa que sou algum tipo de profeta, então? É isso? – indagava
Rebeca. Não sou uma droga de doutrinadora, ou possuidora da verdade absolu-
ta que nem ao menos pertence a um merda de deus fajuto. Ninguém mais quer
ouvir meus vícios, por mais verídicos e carregados de ensinamentos que sejam.
Estou ultrapassada; isso sim é verdade.

| Rebeca
― Pelo contrário, Rebeca. Você não está ultrapassada, e sim, se inven-
tando novamente. Pois, essa é a verdade por trás dos fatos. Você é um ser natu-
ral, e na natureza nada se extingue, pois, tudo está em constante transformação.
Não é esse mais um clichê? Você não pode se dar por vencida agora, Rebeca,
no auge de sua sabedoria e excitação. Você tem ainda muito pela frente, mui-
to que contar, muitos ouvidos para fazer prestar-te atenção... E muitos pênis
e vaginas para fazer ejacular de inveja e vontades ocultas sobre suas vidas
indignas. Faça isso, Rebeca: ressuscite em si mesma. Você não pode se unir
à massa alienada e duvidosamente desesperada. Você sabe muito bem... Sabe
que é maior que tudo o que está a sua volta. Erga-se! Reaja! Não deixe seus
fantasmas derrubarem-na. Deixe sua vaidade de lado, Rebeca, e volte a ser o
que era; o que você realmente é. Você tem muito o que ensinar à estas pessoas
medíocres e desvalorizadas por suas próprias piadas.

Lá estava mais uma de suas verdades, das verdades de Rebeca que con-
versavam com ela através do espelho. Era como um monólogo, agora com
perguntas e respostas. Assim a coisa toda se tornava ainda mais fácil de lidar, 63
e um pouco mais difícil de engolir. Mas ajudava... Um bom tapa na cara dado
por suas próprias mãos. Rebeca insistia em si, mas não sabia como reagir,
como levantar-se daquela lona de tristeza por pensar que nada mais poderia ser
aprendido. Era bem verdade: as pessoas não se importavam com suas teorias
e instigações de novas verdades. Mas havia quem queria escutar ainda suas
histórias. Ainda mais se estivessem rodeados de um belo carnaval repleto de
orgias sexuais e doenças mentais, doenças que consumiam a razão e a moral
das pessoas. Todos gostam de tragédias, e ninguém desiste de ouvir um pouco
mais sobre o grande deboche que é a vida. E a garota Rebeca passou a odiar a si
mesma profundamente, mesmo sabendo que seu amor por si também aumenta-
va gradativamente. Coisa difícil de entender, mas fácil de acreditar. É só pen-
samos com o coração, com a ingenuidade, por exemplo. Caso pensemos com
a razão, nunca entenderemos a mesma razão por trás das palavras de Rebeca.
Para entendermos sua razão, precisamos deixar a razão de lado. Devemos pos-
suir algo em que possamos acreditar. Contradição! Rebeca, talvez.
...

Marco Buzetto |
Sophie
Essa conversa começou há anos atrás, antes de tudo acontecer. No en-
tanto, Sophie era apenas uma, como tantas outras. E como várias, sem motivo,
ela também sentia-se esquecida de alguma maneira, rejeitada e indefesa. Re-
beca a re-conheceu enquanto o ano de 2010 ainda estava em seu primeiro mês.
― É sempre bom ver você, Sophie. Por onde andou por todo esse tem-
po? – perguntava Beca.
― Estava por aí, em qualquer lugar, fazendo qualquer coisa e ganhando
um pouco, bem pouco. – respondeu. Mas, você parece ter mudado bastante...
― De maneira alguma. Estou mais parecida comigo mesma a cada dia
que se passa. Continuo mudando e me tornando sempre a mesma pessoa. –
brincou Beca.
― Eu, por outro lado, estou cada dia mais afastada da realidade desse
lugar. Parece que as pessoas daqui, de algum jeito, têm medo de mim... Gostam
de rir da primeira imagem. São um bando de desgraçados, isso sim.
64
― Cuidado. Esse papel é meu... – concordava Rebeca, sorrindo e tiran-
do suas roupas, pronta para mais um pouco de filosofia despida.
― Tive uma pessoa ao meu lado, mas parece que ele estava apenas es-
perando um bom motivo para continuarmos juntos. Tudo se tornou cansativo,
estreito demais, e eu não conseguia passar pelos obstáculos que o desgraçado
colocava em minha frente, obstáculos que ele mesmo inventava.
Lá estava ela, Rebeca, novamente pela contramão, abraços, carícias, e
tudo mais o que duas boas fêmeas desejosas poderiam fazer juntas, nuas. As
mãos se encontravam, os dedos, os seios, os glúteos... Os lábios superiores
encontravam-se com os inferiores em uma limpeza maravilhosamente erótica
a qualquer um que um dia pudesse ter visto a cena. Porém, uma coisa que não
acontecia, e isso Rebeca já havia vivenciado muitas vezes, era que sua parcei-
ra, Sophie, em momento algum permitia um beijo. Isso mesmo, um simples
e apropriado encontro de lábios bucais. As línguas pressionavam a carne e os
músculos do pescoço uma da outra, penetravam os orifícios auriculares como
ondas quebrando sobre os rochedos... Mas nenhum tipo de beijo que envol-

| Rebeca
vesse a boca das duas garotas. Sophie dizia, e Rebeca aceitava e compreendia
muito bem, que em um beijo havia muita emoção e sentimentos, assim como
em um abraço, e que seria melhor que aquele ato sexual prosseguisse sem eles,
sem os beijos, para que as duas não se iludissem, pois era exatamente isso o
que normalmente acontecia. O medo de se apaixonar perdidamente. A nega-
ção do fato. O beijo das duas era monstruosamente divino, e qualquer um se
apaixonaria facilmente, e seria impossível se disfazer desse sentimento, dessa
quase prisão perpétua. Não era como as prostitutas costumam dizer: “... tudo!
Menos beijo na boca”. Era mais do tipo: menos sentimento penetrável, e mais
penetração! E dessa maneira não ficariam ligadas por muito tempo, não esta-
riam presas em laços ilusórios.
Rebeca tinha seu cabelo escravizado pelas mãos de Sophie, em um
aperto tão firme que arrancava alguns fios facilmente, enquanto seu pescoço
ganhava dentes molhados próximos à jugular, marcando a circunferência labial
e finalizando uma marca erótica e depravadamente arroxeada. Estavam por
toda parte, transando como loucas, feito animais extasiados e instintivamente
famintos. 65
― Como é, Beca, as palavras desapareceram de sua boca? O que hou-
ve?
― Estou cansada, Sophie, sinceramente! – respondeu. Estou verdadei-
ramente cansada de reclamar de tudo, de toda a baixaria medíocre, insensata.
Estou cansada de reclamar e nunca conseguir fazer algo de verdade. Só con-
sigo me tornar cada dia mais infeliz, isso sim. E você sabe bem... Sabe muito
bem; em cada linguada que dou em sua vagina, você com certeza sente meu
sofrimento. Fiz tudo o que quis na vida, e entreguei minha alma ao diabo. Mas
ele não aceitou. Nem ao menos o diabo quer minha presença, minhas premis-
sas. Não aceitou, e tentou-me vender a dele.
― Transe e morra! – explodiu Sophie. Esse é meu lema: transe e morra!
Pois é isso o que somos, minha apaixonada Rebeca. Somos apenas animais, ou
um aglomerado de matéria que luta consigo mesma tentando se reproduzir. A
vida é puro sexo, e não podemos negar. Hoje temos gosto por isso, e entende-
mos que temos prazer enquanto realizamos esse ato, que em sua essência é a
pura busca pela sobrevivência e proliferação das espécies. E já que aprende-

Marco Buzetto |
mos que todo sexo é bom, prazeroso, que mal há em transarmos bastante, como
estamos fazendo, e emendarmos uma boa conversa a cada intervalo? Mas, em
relação ao que você disse, querida Beca, concordo plenamente: essa cidade
já está morta. É nojenta. E também sinto certa frieza de minha parte. Pois, de
que me adianta tentar lutar por algo que já está acabado, como é o caso dessas
pessoas?
― Creio que somos bastante parecidas, Sophie dos olhos de esmeralda.
– dizia Rebeca. Você também está cansada das mesmices do mundo, e de todos
os conflitos irresponsáveis que cada pessoa daqui e dali gera em si mesmos.
Somos parecidas até no modo como sentimos raiva e desafeto. Gostamos de
nos livrar do sofrimento e da solidão, e da falsa sensação de culpa, gerando
ainda mais de tudo isso.
― Você ainda sente aquela velha sensação, Beca? Aquela tristeza re-
pentina que vem de não se sabe onde e devasta seu coração, se é que possui
algum? Você ainda tem vontade de matar a todos, e depois a si própria por
conta da solidão evoluída?
66 ― Não posso responder de outra maneira. – concordou a garota. Sou
vítima de mim mesma... Da tão sonhada liberdade. De meus próprios olhos
torturados pela visão do que é único em mim, fazendo-me contemplar minha
própria vontade de ser mais, de ser maior que todos e todas. Consegui! Tornei-
-me, talvez, quase isso. E daqui de cima, tudo fica ainda mais distante. Deve
ser assim, exatamente assim que o tal deus onipotente se sente...
― O que um dia será de nós, minha companheira de língua e de cama?
– questionou Sophie, a jovem e bela, a segunda mulher mais bonita. O que
um dia nós faremos, ou deixaremos que nos façam que talvez mude o rumo
de tudo o que sentimos e passamos querendo: o bem comum, a facilidade no
cotidiano das pessoas, a sinceridade de suas vidas? O que será, obviamente,
infelizmente, se essas perguntas forem somente retóricas? Pois é exatamente o
que parecem. O que acontece caso sejam respondidas?
― Estamos em um universo repleto de insatisfações, Sophie, minha
usurpadora de suspiros prazerosos. – continuava Rebeca. Claro que digo uni-
verso me referindo a essa nossa sociedade pós-moderna, ou talvez pós-si-mes-
ma. Pois, não concordamos com nada do que está rodando pelas ruas imundas

| Rebeca
e vazias desse lugar. Eu, e tampouco você, não suporto mais a sombria face
de alegria desses sonhadores das alturas. Sombria, pois seus sorrisos mentem
em todos os momentos; seus dentes refletem os verdadeiros sentimentos: a
infelicidade, a tristeza, a derrota, o medo, a tortura. Estamos aqui, nessa cama
de voluptuosidade, fazendo o que devemos fazer; não apenas em relação ao
sexo, mas também aos nossos discursos e questionamentos. É isso o que so-
mos nesse momento, é isso o que sai de nossas vulvas úmidas: a filosofia da
destruição do si mesmo em nós para entendermos e concertarmos os outros.
Nascemos para perder.
― É puro pesadelo, Beca. Isso sim! É puro pesadelo. – sussurrava
Sophie, ao ouvido. Não seria esse pesadelo, então, fruto de nossas próprias
vontades? Pois, se preferimos buscar o entendimento em relação aos porquês
de todos esses indivíduos ausentes, não estaríamos também perdendo nosso
tempo? Eles continuam suas vidas, mesmo que mergulhados até os olhos em
sua própria ignorância. E nós, aqui, com ou sem este sexo extravagante, marte-
lamos ainda mais a ignorância, mesmo que não em nossas cabeças.
― Sua visão não está equivocada. – respondeu Beca. No entanto, já 67
tentei ser igual a todos e a todas. Mas nunca consigo por muito tempo. Pois,
acabo caindo diante de mim mesma, por minha própria espada em minha pró-
pria derrota. Tudo me cansa a ponto de me cansar de mim mesma. Então, é
inútil tentar me igualar em ignorância, ou em processos diários que me levem
para longe da realidade. É como se eu recebesse um soco na cara, ou um sexo
doloroso que machuc meu útero, me puxando de volta a toda essa invenção da
inteligência.
― Você está fazendo minha vagina secar, querida Rebeca. Pois, ao in-
vés de excitação, meu corpo está se enchendo de insatisfação. – disse Sophie
em tom dramático. Está me fazendo imaginar, e não sem querer, claro, que
existem várias realidades. Pois, existem vários tipos de pessoas; mesmo que
estas pareçam todas iguais. E esse pensamento me traz a distância em minhas
certezas sobre estes sonhadores infelizes.
― Várias realidades? – indagou Rebeca com semblante de quem sou-
besse bem o que sua amiga dizia, mas tentando disfarçar. Você quer dizer que
para cada indivíduo existe uma realidade determinada, ou até mesmo indeter-

Marco Buzetto |
minada?
― Digo que existem várias realidades, pois, reconheço que em cada
indivíduo existe uma crença diferente sobre si mesmo, e também sobre como
agem suas expectativas, esperanças, dúvidas, dádivas, necessidades, medos,
etc. Entendo que dessa maneira, existindo diferenças entre os indivíduos, suas
realidades também sejam diferentes, diferenciando-as umas das outras, conse-
quentemente.
― Me encanta conversar com você, Sophie. – dizia Rebeca. Então,
cada indivíduo existe em uma realidade específica. Porém, o que faz com que
todos estes coexistam em uma realidade próxima? Talvez a alienação, a neces-
sidade?
― É bem provável. – tentou Sophie. Penso que cada pessoa viva sua
própria realidade, pois, cada um é um ente individual, possuidor de si mesmo.
No entanto, o meio social, é claro, interfere e influencia o individual: o meio
externo influencia o interno. A alienação faz parte de um contexto generaliza-
do, que faz parte do cotidiano de uma sociedade. Um indivíduo não inserido
68 na sociedade em questão não pode ser considerado alienado ou não, pois, é
independente deste próprio conceito de alienação, não fazendo sentido em sua
vida. O mesmo acontece com o que falei anteriormente sobre várias realida-
des coexistindo ao mesmo tempo. Cada pessoa possui sua própria realidade,
porém, como pertencem ao mesmo meio social, essa realidade se torna cole-
tiva. A realidade coletiva, então, é o que mantém as pessoas inseridas em um
contexto onde todas as realidades individuais se encontram, e por sua vez se
comunicam, se transformando, se misturando e se confundindo.
― Essa nossa conversa está tomando tons bastante distintos. Um de-
les é científico, do tipo que duas pessoas conhecedoras da matéria permitem-
-se falar. O outro tom é mais além, talvez: conversa de quem está de porre...
Conversa de bêbados. – brincou Rebeca. No entanto, apesar de não estarmos
bêbadas, a não ser pela embriaguez de nosso suor e fluidos vaginais, sinto que
estamos indo bem longe nessa filosofia. A realidade coletiva, então, é vivida
pela massa inserida em suas próprias realidades individuais, sendo que cada
uma delas compõe o todo, confundindo-se uma com as outras. Isso, então, faz
com que possamos considerar uma única realidade de modo geral: chamada

| Rebeca
apenas de realidade em si.
― Sim, isso mesmo! – concordou a sábia Sophie. Todas as realidades
individuais compõe a realidade única, cuja qual conhecemos como realidade
propriamente dita, no campo de visão geral: A Realidade. Porém, essa também
é uma ficção, assim como um livro interior qualquer – meu qualquer interior.
Pois, o que vem a ser a Realidade? O que a determina, Rebeca?
― O real! – exclamou Beca, a ouvinte interrogada. O real deve deter-
minar a chamada Realidade. Pois, as pessoas tomam como verdadeiro o que
podem ver, sentir, ouvir, imaginar dentro dos padrões físicos.
― Você está indo bem, amiga nua. Então, pode-se dizer que se eu ima-
ginar algo como uma casa gigantesca, que alcança o céu e tem como quintal
metade do planeta, esta seria também uma realidade?
― Não! Seria loucura. – respondeu ela. Pois, como eu disse anterior-
mente, “imaginar algo dentro dos padrões”. Ou seja, não se pode ter como
realidade algo que ainda não tenha sido visualizado e construído. Quero dizer:
as pessoas tomam como real o que já lhes é determinado como realidade. O
que já foi ou está à sua volta. Não algo indeterminado, como, por exemplo, 69
essa sua casa gigantesca.
― Então, as pessoas baseiam o que é real, o que é realidade, usando
como referências o que já está determinado como realidade? – continuava a
mulher novamente excitada, Sophie. Esse é seu resumo?
― Sim. Não é óbvio o bastante? – indagou Rebeca. As pessoas não
baseiam suas realidades em algo que ainda não existe, e sim, em tudo o que
já lhes foi demonstrado e ensinado. Por isso se apegam às realidades dos seus
iguais: pois já lhes é algo conhecido e aceito como realidade. O resto é apenas
imaginação do desejo.
― Finalmente entendeu. Mesmo eu acreditando que você já conhecesse
muito bem estas questões e respostas, pois como eu, você também possui dois
cérebros, estando um deles no lugar do coração. – respondeu Sophie. As pesso-
as apóiam suas vidas e a si mesmas uns nos outros, e caso um deles esteja fora
do conjunto, a sociedade se vê desfragmentada... Parecem não acreditar em
si mesmos enquanto indivíduos. Não enxergam seu potencial enquanto estão
sozinhos. Acreditam precisar uns dos outros para ser felizes. E você Rebeca,

Marco Buzetto |
você sabe muitíssimo bem, até melhor que eu, o quão dolorosa é a solidão,
pois escolheu ser assim: liberta; um espírito livre; solitária mesmo com vários
ao seu lado.

Este sim era o melhor momento entre tantos que ocorreram ao lado de
tantas outras pessoas na vida de Rebeca, nossa mulher de lábios embebecidos
em álcool e lágrimas vaginais, suor e gemidos. Nestes momentos, quando a
mulher deixa de ser mulher e se torna simplesmente animal, honrando seus
instintos, os diálogos filosóficos acerca dos problemas e questões sobre o ser
humano se tornavam deliciosos ingredientes estimulantes para prosseguir o
sexo... Inebriante, subversivo, vulgar e ao mesmo tempo respeitoso. São mo-
mentos nos quais as duas mulheres deixam sua natureza social, civilizada de
lado, e ascendem as chamas da soberania de suas essências, desejosas, oriun-
da dos primórdios de seus corpos; mas enquanto estes corpos estão em uma
batalha quase sangrenta pela preservação dos desejos sexuais, suas mentes
funcionam e atingem o ápice do pensamento, permitindo-as dissecar todos os
70 pontos de vista sobre a humanidade, e, aqui, suas múltiplas realidades. Rebe-
ca e Sophie encontravam-se mergulhadas até os cabelos uma na outra, com
seus dedos e línguas percorrendo toda a extensão de suas vaginas, por vezes
lambendo seios, bocas, costas, barriga... Permitindo deleites, derramamento
de prazer, enquanto evocam Sócrates, Platão, Aristóteles, Heidegger, Scho-
penhauer, Nietzsche, e tantos outros mestres da filosofia, deixando-os brotar
de seus corpos molhados... Aborto filosófico em seus úteros. A filosofia nunca
esteve tão próxima dos seres humanos como nestes momentos. Aí uma coisa
que ninguém conseguiria ou tentaria imaginar: pensar o mundo sem a filosofia,
sem o sexo, durante o sexo; o sexo durante o pensamento e vice-versa. Um
junto do outro, inseparáveis. Não era possível! Estava lá; em todos os lugares...
Espalhada pela cama juntos dos toques de sexualidade muitíssimo afloradas e
perpetuados. Ode ao sexo e a filosofia!
― Andamos bem até aqui, Rebeca. – finalizava Sophie, terminando
também os beijos em todos os lábios no corpo de sua companheira de cama e
sexo. Temos mais alguns dias pela frente, dias sem glória, se bem me lembro.
Dias que mais parecem os sinos do inferno soando em nossas cabeças, nos

| Rebeca
lembrando do sofrimento que é este lugar podre de gente sem essência e sem
razão. Meus melhores momentos de corpo e mente eu passei com você minha
amiga sedutora de lesbianismo e bebedora de whiskey. Sua filosofia foi incrí-
vel para mim, e muita coisa eu aprendi e reaprendi sobre o mundo e as pessoas
enquanto beijava sua boca inferior.
― Me esgotei de tanto utilizar seu corpo como copo para minha saliva
e mesa para sobrepor minha carne e minhas tendências do pensamento. – res-
pondeu Rebeca, aceitando a finalização do dia e da cama. Além do mais, não
há ninguém com pensamento semelhante ao teu em minha história... Real-
mente você compreende minhas contradições, e sabe interpretar minhas de-
cisões egoístas e unânimes sobre a ignorância e degeneração do ser humano,
principalmente aqui, na cidade sonhadora, cidade dormitório; cama de ratos
e víboras. Falamos muito enquanto nossos corpos também se comunicavam.
E aprendi novamente que a melhor filosofia veio de dentro para fora de nos-
sas belíssimas vulvas úmidas e intelectualizadas. É isso o que somos afinal:
espíritos livres, repletos de insatisfações e incertezas sobre tudo o que está a
nossa volta. É isso o que também é o ser humano. E de tanto pensar à respeito, 71
tentando ao máximo estar contra essa existência, é realmente nela que nos en-
contramos, pois não paramos de contestá-la.
...

Por mais que a vida de Rebeca não se baseasse apenas nestas festas
de adoração a Baco, ela e suas companheiras, e por vezes companheiros, al-
cançavam picos de refexão sobre a vida nos quais muitos nunca passariam
perto. Uma filosofia da destruição; filosofia de vaginas e prazeres, de sexo
e demência; como costumavam dizer, era o que fazia com que os conflitos e
acertos sobre as questões valerem à pena. Os muitos momentos nos quais Re-
beca e seus parceiros de cama encontravam-se desnudos, faziam valorizar sua
inteligência e não-limitações dos porquês e poréns em relação ao ser humano
e suas respectivas problematizações. E como Rebeca mesma concordava em
pensar, por mais distante que ela e sua filosofia estivessem da realidade dos
“ignorantes”, na verdade também se encontrava inserida nesse campo; pois, de
tanto imaginar-se fora, por tantas vezes tentando se afastar e se diferenciar, esta

Marco Buzetto |
sua concepção de superioridade distante a fazia estar presente o tempo todo à
realidade alheia: pois, não conseguia encontrar-se em um contexto no qual não
reclamasse de tudo o que pensava ser incorreto. Por isso mesmo estava inseri-
da: por tanto tentar e querer se afastar.

― É isso o que me tornei, então: a contradição de mim mesma?

72

| Rebeca
Parte IV
O Eu mesma
Voltando à escuridão
Antes de imaginar o quanto Rebeca pendia a si mesma para o lado do
pensamento acerca das grandes e puras necessidades do ser humano, principal-
mente voltada à realidade de seu local, ela, mulher, tentava por todos os modos
iniciar-se na pura ignorância do ser. Rebeca tentou por várias vezes, sim, real-
mente tentou ser “igual” a todos e todas. Mas é sempre tão difícil esquecer tudo
o que se sabe. A ignorância, nesse sentido, é mais difícil que a inteligência.
Pois, torna-se mais difícil, a beira da impossibilidade, esquecer o que se sabe,
do que nunca haver aprendido. Por isso a chamada felicidade dos ignorantes.

― Certa vez, Anna, eu me fechei para tudo o que era da estância do


saber, tudo o que me trazia algum tipo de informação necessária para alimentar 73
minha mente. Por mil vezes, dia após dia, fechei minha mente e abri apenas o
meu corpo, e como abri... Tornei-me uma verdadeira estação ferroviária, um
porto de embarque e desembarque de tudo o que pode ser considerado da pior
qualidade. Mas, minha dor, meu sofrimento tornava-se ainda maior, justamen-
te por saber que nada daquilo seria necessário.
― Mas Beca, você não pode fugir, tampouco fingir ser o que não é. Não
pode fugir de sua realidade individual; você sabe muito bem, pois está à frente
de tudo o que se pode imaginar em sobre essa massa desesperada por alegrias
e sorrisos degenerados. – dizia Anna, a velha amiga de Rebeca, bebedora de
destilado de batatas. Você está se tornando uma contradição de si mesma, Re-
beca. Sinto muito em dizer isso. Mas é a pura verdade. Você ama suas picadas
de amor, e também a verdadeira forma de filosofia... Mas isso parece estar
acabando com você.
― Não acredito que você esteja de todo correta. – respondeu Beca. Não
acho que eu esteja me acabando em mim mesma. Mas sim, creio estar contra-
dizendo minhas próprias palavras o tempo todo, pois não consigo mais nada ao

Marco Buzetto |
que eu possa agarrar para saciar essa sede. Então, agarro-me em mim mesma.
― E isso é o mais certo de se fazer, então? – indagava Anna. É assim
que quer acabar consigo mesma: destruindo seus verdadeiros ideais, voltando
seu olhar à sua própria cabeça a ponto de não enxergar mais nada ao seu redor,
contradizendo, investigando, voltando-se contra sua própria vida?
― Se for isso, seria errado? – retrucou. Estaria de todo errado eu fazer
assim? Nada mais me atrai tanto a atenção para que eu possa manter minha
mente trabalhando. Ninguém mais é parcialmente necessário; ninguém mais
faz por merecer minha atenção destrutiva. Não sobrou ninguém, além de eu
mesma. Todas as pessoas estão e são fáceis demais para ser compreendidas e
analisadas por minha língua e suposições pesadas. De que valeria, então, eu
continuar tentando, buscando novas coisas em velhas pessoas?
― Talvez você tenha mesmo se cansado das pessoas ao seu redor. Você
pode estar certa. Todos parecem não ser mais nada, nesse mundo que você
parece ter criado ao seu redor... – dizia Anna.
― Ao meu redor? Minha volta, Anna? Do que você está falando? – in-
74 dagava ela, Rebeca. O que quer dizer? Parece que você está me condenando
por enxergar as pessoas em sua essência. É o que está fazendo? Está me con-
denando?
― Absolutamente não! – respondeu Anna. Mas acredito que você esteja
se valorizando demais, e desvalorizando ainda mais as pessoas...
― Você mudou muito, Anna. O que aconteceu? – esbravejou a pensado-
ra por natureza. Você parece ter virado o jogo para o lado de todos, e esqueceu-
-se que dias atrás você fazia o mesmo que eu. Porque agora defende a realidade
injuriada, falsa e desnecessária destas pessoas, desta sociedade medíocre?

Anna queria dizer que sua amiga havia desistido de continuar sendo a
velha Rebeca, com pensamentos evoluídos e ideais à frente dos pensamentos
pequenos dos outros indivíduos. Rebeca, na visão de Anna, sua melhor e talvez
única verdadeira conhecedora, havia deixado a si própria de lado, passando a
mendigar respostas por todos os campos sobre problemas aos quais as pessoas
não davam a mínima importância. E essa era uma das verdades do mundo: a
massa não se preocupa com pensamentos minimamente superiores – mas que,

| Rebeca
na realidade, fazem parte fundamental de suas vidas.
― Percebe minha preocupação? – indagava Anna. Não entende o mo-
tivo por eu desabafar tudo isso contigo, fazendo-a parecer contrária a mim
mesma?
Rebeca deixou a si própria de lado para viver apenas como ela mesma.
E mesmo esta idéia sendo abstrata ou complexa demais, podemos entender que
a garota deixou se levar por seus próprios paradigmas, intolerâncias, questio-
nando agora sua própria existência. Afinal, para que tanta sabedoria em uma
só pessoa, por menor que fosse a possibilidade de vários possuírem apenas um
décimo desta? Para que um dom tão imenso como estes, a razão, a sabedoria,
a vontade de evolução, sendo que a proporção de pessoas que nunca saberão
ao menos um nome de qualquer pensador é infinitamente maior? Tão igual
aos que não sabem que podem utilizar seus cérebros para pensar. Mesmo que
Rebeca pensasse que a apostila acadêmica não fosse necessária, pois os indiví-
duos deveriam ao menos prestar contas com sua própria evolução, utilizando
de seus cérebros para tornar a vida humana um tanto qualquer melhor. Não é
necessário, em sua visão, decorar a medicina, a filosofia, a química, a metafí- 75
sica, a matemática, a história, as artes, etc. Porém, afinal de contas, não há mal
algum em tentar caminhar um pouco mais além de nossos próprios limites,
que parecem nos puxar tanto para baixo como uma gravidade aumentada. Mas
também, talvez, qual o mal em não se fazer nada disso?!
― Não consigo mais ter paz comigo mesma. Não consigo, Anna. – di-
zia Rebeca, com o que poderia vir a ser um início de lágrima em seus olhos.
Não consigo ter paz; e não a consigo exatamente por eu mesma estar ao meu
lado. Cansei-me de mim... Literalmente. Fatalmente! Não consigo ser alegre
o tempo inteiro... Por mais que eu não seja dona destas palavras simples e
completas. Sinto-me uma mísera personagem de uma história medíocre criada
por alguém ainda mais medíocre. Sinto dizer a mim mesma que não possuo
nenhum valor de realidade... A menos que me levem a sério, ou tomem minha
vida e meus sofrimentos e desilusões como exemplos a não serem seguido.
― Pelo jeito a depressão sentou em seu colo hoje, minha amiga. – brin-
cou Anna. Você parece puro sofrimento. Nunca imaginei vê-la assim: grega,
tão dramática sobre sua própria vontade de ser ou não o que é... Ou não. Ou

Marco Buzetto |
sim... Talvez.
― Tenho dó da depressão. Coitada dela se passar perto de mim. – res-
ponde Rebeca. Mas você sabe que eu vivo de realidade, Anna. E esse é meu
sofrimento... A maldita realidade... Não que eu tenha a presunção de pensar-me
ou idealizar-me como o jovem Werther, mas essa também é minha palavra-
-chave. Esta merda de situação irônica que tanto procurei e me preocupei. Puta
que pariu!... O que há? Todos abandonam a si mesmos no final?
― Você parece dar adeus às ilusões de sua própria natureza.
― Não que eu goste de haver me tornado uma pessoa sabiamente à
frente de tantas outras, ou da maioria. No entanto, não há nada que me faça
desgostar disso. – dizia Rebeca ao vento, em seus pensamentos. É muito difícil
tentar ser o que não sou, pois já sou o bastante para não conseguir voltar para
casa. Acho que odeio tanto esta montanha e as pessoas daqui que tudo o que
faço é e ficará na memória deles. Deve ser uma espécie de tributo maldito que
tento prestar... Não sei se para ficar na história, o que seria besteira. Mas talvez,
para fazer com que esta montanha entre para a história dela mesma. Por mais
76 estranho que isso possa parecer. Não preciso ser lembrada. Definitivamente!
― Você precisa voltar, Rebeca. Precisa gerar seu próprio renascimento,
isso sim. – tentava sua amiga. Você precisa de novas experiências, novas atitu-
des, novas ilusões e desilusões, talvez. Novas aventuras, ou novos sofrimentos.
― Preciso de uma nova vida! – respondeu. Talvez seja mais fácil do
que tentar me encontrar em mim mesma. A verdade é a mesma que um dia eu
já lhe disse: estou cansada de mim. E ao menos sei o motivo dessa detestada
alucinação. Não tenho medo de ficar sozinha, ou de começar tudo de novo em
minha vida. Mas já não sei mais o que falo... Não reconheço em mim minhas
próprias palavras. Será verdade, Anna? Estou fora de mim, trancada do lado
de fora? Será a maldita verdade do início da loucura caminhando ao meu lado
de agora em diante? O número dezesseis volta a me perseguir... É isso o que
preciso: nascer novamente! Preciso dar a luz a mim mesma, saída de meu pró-
prio útero. É isso o que todos deveriam aprender a fazer, ou no mínimo tentar:
nascer novamente em si mesmos. Está aí... Fica aqui a lição para uma vida.
Nascer novamente em nós mesmos.

| Rebeca
Ah Rebeca... Mulher de sabedoria invejável. Talvez a nova filósofa de
um milênio escroto. Mesmo que tentemos nos comparar um pouco com sua
pessoa, mesmo que tentemos chamar a nós mesmos Rebeca, por mais que be-
bamos até desmaiar com a cara no balcão, nunca será o bastante para alcan-
çarmos sua supremacia de palavras e destemidas investidas contra o sintoma
do pesar: o ser humano; o pesar humano. O pesar. Por mais que compremos
as melhores garrafas de vinho, nunca em nossas vidas teremos o mínimo de
ânimo ou graduação intelectual, pequena dos lábios alcoolizados. E essa é uma
conversa direta, sim! Uma conversa a uma personagem que por muitas vezes
toma nossa respiração e nos torna completamente submissos. Isso sim! Inter-
locução. Essa é a verdade. O escritor se torna escravo de suas criações. E isso
não pode não ser um clichê maldito, ou bendito. É apenas um fato. Uma lição
de casa dada por uma professora maluca, para sempre, interminável. Estamos
aqui, planeta, mundo imundo, esfera suspensa em sua própria agonia, azulada,
poluída e prostituída. Estamos aqui: o leitor, as palavras indiscretas escritas
por um alucinado medíocre, e a personagem... Talvez a mais lúcida dos três.
Talvez a mais real de todos. É isso Rebeca, minha filha, amiga, mulher... O 77
gole de whiskey agora adocicado; a taça tardia de vinho. Mas começo a pensar
que seja por sua falsificação... Ou pelo copo sujo há uma semana e esquecido,
escondido. Tome conta de nossas vidas, de nossos deuses, Rebeca, mais uma
vez. Faça-nos valer a pena, a sopa, o cuspe, as lágrimas – lembre-nos para que
serve o gozo, o esperma, o óvulo.

― Sabe Anna, é como tentar desvendar o vácuo, algo nulo. – dizia


Rebeca. Assim eu estou me sentindo. É assim que me sinto quando tento olhar
para dentro, sentir meu sangue correndo na tentativa de irrigar meus pequenos
vasos conectados ao cérebro. Sinto-me explorando um terreno em completa
hostilidade; ou dançando o mais possante tango argentino em um campo mi-
nado de ponta a ponta sem tirar os pés do chão. Como se eu apontasse o obus
de um panzer à minha face, sem medo algum de atirar. Talvez a pansofia de
mim mesma.
― Acho que estou entendendo, Beca. – tentava Anna. Porém, como é
que se pode parar um tanque de guerras, este seu panzer, com apenas uma res-

Marco Buzetto |
posta? Como você procura entender a si mesma em um momento tão crítico,
um momento de desencontro em sua própria natureza?
― Talvez este seja um problema natural de todos, de todas, da massa.
Talvez seja isso o que as pessoas tentam entender, ou um dia se perguntam.
Não sei como, ou quando, mas um dia encontraremos as respostas necessárias;
as mínimas? Talvez. Será exatamente aqui que caio de boca e quebro meus
dentes: entender e explicar primeiramente a mim, depois aos outros? Não con-
sigo entender, ou ao menos explicar a mim mesma para que eu própria entenda.
Como vou, pertinentemente, explicar o que está a minha maldita volta? Penso
ser melhor não tentar mais nenhum tipo de abordagem... Quero mesmo é con-
tinuar enchendo a cara, isso sim. Droga de whiskey falsificado.
― Beca, tenho certeza que você conseguirá se entender, se encontrar,
antes que tudo se torne ilusão.
― Ilusão, Anna? Como assim? O que é real para você, ou para mim,
afinal? Já conversamos à respeito, toda essa besteira que nunca nos leva a lugar
nenhum. Não quero mais repetir tanto assim uma merda de frase, mesmo que
78 eu não controle minha existência. Sabe como é... Somos apenas personagens
que tentam ensinar quem nos vê a como lidar com suas próprias frustrações,
refletindo ou acreditando nas palavras de uma invenção. – continuava a garota/
mulher. A verdade é que preciso urgentemente de emoção, de alguma coisa que
eu possa me lembrar de alguma maneira, seja ela boa ou ruim, e também algo
que todos estes imbecis que um dia souberam de mim possam comentar ao
curso de suas vidas; o que chamam de vida. Preciso de uma grande ação nesta
porcaria de história nostálgica. Nesta minha vida estagnada, estrangulada.
― O que você querendo, Beca? Um assassinato? Violência? Estupros?
Loucuras e alucinações de qualquer tipo escritas em paredes ou papeis? É as-
sim que você acaba por entregar seus pontos de originalidade, sua identidade?
Em uma história patética sobre um lugar qualquer que ninguém ao menos ou-
viu falar, na qual seus moradores possam esquecer seu nome? – dizia Anna.
Não! Isso não. Você precisa mesmo de algo, de uma boa idéia escrita por seu
criador das linhas do destino. Mas nada de clichê, por favor. Quanto menos,
melhor. Quanto pior, melhor. Você é mais que isso. Todos nós somos! Apenas
não nos demos conta de nossa capacidade. Lembra? Não é bem isso o que você

| Rebeca
costumava dizer? E eu, em minha reencarnação.
― Não sei se consigo escapar disso tudo. Principalmente das paranóias,
alucinações, embriaguês e coisas do tipo. Não estou conseguindo mais nada
que me emocione, por exemplo, ou que me empolgue, ou me inspire. Sabe...
Coisas do tipo. Não consigo mais ao menos dar uma droga de risada por algum
motivo, por mais engraçada que seja a piada, ou por mais que meus maxilares
tremam de vontade. Pareço não querer esboçar qualquer tipo de reação por
coisa alguma... Mesmo sem saber quando me sinto assim. É como uma música
triste que se repete em minha mente, em minha atual vida sem fundamentos.
― O que você acha de viajar? – indagou Anna. Uma bela viagem...
Talvez ajude em algum sentido.
― Desculpe-me, Anna, mas você sabe que prefiro apenas ficar na bebi-
da. Sem cogumelos, por favor.
― Não estou falando de drogas, Beca. – gargalhou ela. Estou falando
de uma viagem de verdade. Porque você não dá um tempo fora, longe daqui.
No campo, talvez.
― Campo? Parece bom. Mas acredito que não seria uma boa coisa. 79
Nem as árvores topam estar comigo no mesmo ambiente. Você deve concordar:
o ser humano é mesmo um saco. Tire a mim como base.

E lá fora ela, Rebeca, mais uma vez. Não ao campo. Porém, agora em
uma viagem pela imensidão de sua própria inexistência. Seu pensamento está
longe, revestido por uma lúcida vontade de satisfazer seu sofrimento. Rebeca
quer insistir em sua vontade, e tentar voltar à medíocre realidade de ingratidão.
Essa viagem dizia respeito ao ato simples de tentar se relacionar novamente,
pois, como de costume, seus pensamentos faziam-se cercados de problemati-
zações sobre o ser humano, dos sacos de ossos e fezes. Tentava mais uma vez
voltar para casa. Essa era sua questão no momento: acreditar que havia uma
casa para a qual pudesse voltar. Seu cérebro. Sim, essa era sua caverna, sua
morada sombria e eterna. Um oceano de insatisfações e questionamentos que
fazia Rebeca afogar-se sem ao menos conseguir bater os braços desesperada-
mente gritando por socorro.

Marco Buzetto |
O andarilho imaginário
Uma pessoa chamada Exceção
― Procurando um pouco de ação, garota? – indagou um idiota qual-
quer com um cigarro entre o indicador e o polegar. Não acha que está no lugar
errado?
― Lugar errado? – questionou Rebeca, retrucando a presunção do mais
novo conversador. A questão é: o que você está fazendo tão longe de casa,
estranho macaco falsamente evoluído?
― Conheço sua atual frustração, Rebeca... Solitária Rebeca. Você não
sabe mais sobre o que conversar, ou no mínimo com quem conversar. Você não
se aguenta mais, isso sim. Não consegue sair da quarta parte de sua vida. Não
consegue sair do abismo no qual escolheu se meter, ainda na adolescência.
Porque não seguiu os passos de todos, e se tornou um rato de indústria, ou um
manequim de loja, quem sabe? Não! Você não. Ao invés disso, você escolheu
80 ser alguém. Mesmo conhecendo as dificuldades e armadilhas que lhe foram
impostas como sacos de papel em sua cabeça; como algemas de flores sem
espinhos ao redor de seus pulsos.
― De onde você vem, estranho homem? – questionou ela, curiosamen-
te. Por qual lado você vem? Esquerda? Direita?
― Meio! – respondeu ele. Venho pelo meio. Mas não o de sua vagina,
como todos estão acostumados a sair e entrar não importa o tempo, faça faz sol
ou chuva sanguínea. Venho pelo meio de sua cabeça; o que chama de cérebro.
Você me pôs aqui Rebeca, diante de seus olhos. Mas talvez eu seja mais real
que você mesma. Pois, sou fruto da imaginação de uma personagem. Isso não
me faz real?
― Ou ainda menos. – respondeu ela. Como você pode ser real, se é
apenas fruto da imaginação de algo já imaginado?
― Como você, Rebeca, pode acreditar ser real o bastante para me ques-
tionar? Pois, não foi o que você resolveu deixar para trás: a discussão sobre a
realidade?
― Xeque! – respondeu ela. Esse foi um bom início. Um ponto para

| Rebeca
você, estranho imaginário que me apanha desprevenida. Não quer mesmo fa-
zer parte de minha lista de trens e pessoas que entram e saem entre minhas
pernas?
― Já fizemos isso, Rebeca. Pois, quantas vezes você imaginou seus
dedos como pênis, tocando fundo seu útero cheio de desejo? Quantas vezes
você gemeu sozinha, desejando um homem ou uma mulher fazendo-a ter nove
orgasmos numa mesma transa?
― Parece que você tem razão, meu amigo desconhecido em mim mes-
ma. Xeque novamente. Então, nos resta apenas o velho e bom discurso: o que
queremos de nós mesmos, afinal? O que você pretende, e o que eu posso ou não
aceitar ou colaborar, talvez. Talvez seja isso o que você procura; algo assim.
― O que você pretende, Rebeca? Diga-me você, afinal.
― Quero apenas... Quero... Bom, realmente é difícil resumir a opera
dessa maneira. – tentou ela responder.
― Pelo que me lembro, você quer tentar explicar coisas sobre as pesso-
as. Não é? – perguntava ele. Sua tentativa de resumir ou desvendar a vida da-
queles que você chama de medíocres. Parece algo que apenas uma pessoa em 81
especial pode fazer; uma pessoa com uma vida ímpar, sem igual, uma pessoa
chamada exceção talvez. Talvez você mesma, Rebeca. Este é seu sobrenome:
exceção?
― Contradição, talvez. Não é essa a verdade das pessoas? – brincou
ela, tornando-se novamente repetitiva em seus assuntos. Não é isso, então, o
que você vem me mostrar novamente, sem deixar que eu ao menos imagine o
que há frente aos meus olhos, ou por detrás de minha nuca? Não é isso, meu
homem de folclore pessoal, uma realidade melhor ou mais concreta que a sua?
― Diga-me de uma vez por todas, Rebeca: o que diabos você quer de si
mesma, ou de todos a sua volta? Maldição, mulher! Você ao menos conhece
a si mesma. Como quer, no mínimo, escutar o que todos têm a dizer em seus
ouvidos que nunca escutam? Infeliz! Infeliz de você, Rebeca. Por todos os
deuses e deusas, ou por qualquer saco de estrume em que qualquer um acre-
dite. Diga-me, diga a você, mulher infeliz: o que diabos você quer de si
mesma? Pois não é exatamente essa a questão essencial?
― Não sei! Está bom assim, desgraçado perguntador? – indagou ela

Marco Buzetto |
violentamente. Não faço mais a menor idéia do que quero nesse momento,
pois não tenho mais vontade alguma de saber algo sobre as pessoas. Essa é a
questão, a maldita questão, seu animal miserável. Não quero mais questionar.
Tento não fazer mais isso; no mínimo tento. Pois não quero mais me preocupar
com tudo o que está a minha volta, e ainda ser chamada de louca. Cansei-me
de tentar manter uma conversa séria com as pessoas, sendo que, mesmo antes
de terminar, estas já estão debochando de meus pensamentos, como se eu esti-
vesse errada. Maldição. Grande maldição. Nesses momentos, tudo se resume
em dizer que eu permaneço errada... Onde está a razão, o maldito segredo para
que eu possa descobrir o caminho mais fácil do entendimento racional por
parte das pessoas? E eu que sou tomada como diferente. Mas a verdade não é
essa! Maldição! Não sou eu a diferente. Os outros que são todos iguais. Iguais
demais. Todos iguais, eu já disse!
Este era o sentimento de uma pessoa perturbada, sim. Porém, sua per-
turbação vinha de fora para dentro, e depois para fora novamente. No entanto,
muitíssimas vezes mais refinada, purificada. Onde estariam, por onde anda-
82 riam as possuidoras das verdades, das pequenas coisas bonitas? Onde estariam
às prostitutas, às vagabundas de esquina? Estaria este se tornando mais um
inigualável amontoado de páginas escritas sem nexo, sem sexo? É isso? Sopa
pública recém fabricada nas mesmas panelas imundas de séculos atrás? Onde
estão vocês, queridas amigas de sabedoria e respeito? Onde está a violência,
o número dezesseis que não se cansa nessa linha, e que tamanho opróbrio traz
aos olhares alcoolizados? É isso então, um clichê repleto de enigmas e desen-
tendimentos em todas e quaisquer palavras que não se encaixam, que não se
acomodam em nenhuma frase.
― Deve ser mesmo verdade o que dizem por aí. – continuava a garota/
mulher. No final do dia, não fazemos a menor idéia sobre o motivo pelo qual
lutamos.
― Você está saindo do assunto novamente, minha dona de imagina-
ções. Por favor, mantenha o foco no diálogo. – pedia o homem imaginário.
― Não consigo. Você ainda não percebeu?
― Claro que sim. Percebi muito além disso, na verdade. – respondeu.
Percebi que você, Rebeca, repleta de supremacia, não consegue me dizer algo

| Rebeca
que seja relevante nessa conversa ilusória. Dê uma golada seca nesse seu
whiskey vagabundo, pois ao menos se prestou a comprar um de qualidade, e
sinta o pesar amargo e alcoólico de sua vida adormecendo seus lábios. Faça
isso, Rebeca... Faça!
― Rebeca? Rebeca, com quem você está falando? beca?!
― Com um... Havia um homem... Deixa pra lá! – respondeu.
― Acho que você bebeu um pouco além essa noite, minha amiga. –
respondeu Anna. O que acha de irmos para casa? Já está mais do que na hora.
Eu te levo... Vamos.
E não havia homem algum diante dos olhos de Anna. Não havia ho-
mem, nenhuma palavra dita em voz alta. E também não havia solidez nos pés
da garota. Bom, talvez, em nenhum dos lados, na verdade.
A partir de agora, era apenas ela, Rebeca, sozinha em sua casa; deixada
pela melhor amiga, para que talvez pudesse retomar sozinha os rumos de suas
conversas e vontades. Ah Rebeca, que solidão injusta. Que preconceito consi-
go mesma. Onde estão seus olhares inocentes, afinal? Teriam um dia existido?
Você, Rebeca, poderá ser um dia chamada ser humano? Ganhará, talvez, esse 83
privilégio? Essa é a lição em mais uma página: privilegiar-se de suas próprias
condutas destrutivas. Ou seria: desvendar as difíceis e alucinadas palavras em
um livro natimorto?
― Vamos, inocente Rebeca. Ande logo com suas tentativas.
― O que você quer que eu diga? – continuava ela a falar.
― Continue me dizendo onde você acha que se encontra o inferno.
Você realmente acredita que o céu está onde o inferno está?
― O inferno está na terra, meu amigo invisível. – respondeu ela. É bem
aqui, onde nos encontramos. É aqui que todo o sofrimento do ser humano se
encontra de uma só vez. E melhor: faz-nos acreditar que suas torturas virão
apenas depois da morte. Assim como acontece nesse aquário insalubre chama-
do sociedade. Um lugar completamente incompleto, de grandes probabilida-
des, mas sem um pingo de vontade.
― Parece-me que você está voltando ao seu normal, finalmente. – disse
o homem em sua frente, o homem sem existência. Aí está seu velho e nova-
mente novo problema: a sociedade. Não é isso?

Marco Buzetto |
― Tenho certeza que sim. – respondeu ela. Por vários dias tentei me en-
ganar, dizendo não a mim mesma, fugindo do assunto e buscando novos con-
flitos para eu me distrair: alguns intelectuais, outros ainda mais, sexuais. Mas
você me ajudou agora, trazendo minhas velhas manias de volta. De qualquer,
forma tenho que lhe agradecer. Você, um alguém de mentira, minha própria
imaginação, que, sinceramente, não sei por que aparecera como homem e não
como mulher, ou um diabo assexuado. Pois é difícil agradecer algo que alguém
do sexo masculino possa ter feito por mim, uma mulher, pelas mulheres, por
sua honra, pela vida, ou por nada.
― Sou apenas o seu verdadeiro conflito, Rebeca. – disse. Sou aquele
que veio para tirar suspiros inflamados e indesejados, e também culposos de
seus pulmões. Não adiantam suas partidas de xadrez, ou copos e copos de
whiskey sem gelo, falsificado ou não. Pois, o problema dessa sociedade, e vejo
isso bem aqui, em sua mente, pois sou fruto dela, o problema está justamente
em uma só pessoa: você, Rebeca. Você é o problema desse lugar. E se quer
outro em meu lugar, já que um homem não é o bastante, me torno alguém
84 assexuado. Uma mulher, um homem, algo desprovido de gametas. Onde está
sua filosofia, Rebeca? Mas, já que sou assexuado agora, não estou me referindo
à filosofia vaginal, uterina, orgástica. Não me refiro a você com meu próprio
prazer.
― Você pode ter razão, meu espectro. – respondeu a garota/mulher.
Porém, se não sou alguém o bastante, ou minimamente eficaz em detestar esse
lugar onde tudo acontece de maneira vulgar, então quem um dia irá fazer essas
coisas, essas minhas alucinações? Quem um dia terá a ânsia e a visão ática e
destrutiva dos valores modernos de uma cidade abandonada por seus próprios
moradores? Quem vai julgar e desfrutar da ignorância limitadora destes ine-
briantes sonhadores acordados?
― Essa pessoa pode mesmo não ser você, Rebeca. Ou você ainda não
parou para pensar nessa hipótese? – continuava o espectro de ilusão. Você pode
apenas estar enxergando o que quer diante dos teus olhos. A sociedade pode
não ser tão ruim como você vive dizendo e acreditando. E também tentando
fazer com que outros a sua volta acreditem e digam, como em um discurso
populista qualquer de países latinos.

| Rebeca
― Você quer me fazer, realmente, acreditar que esse miserável lugar,
esse ambiente de alienados e limitados indivíduos pode ser um bom lugar para
se viver, ou no mínimo para se passar bons momentos?
― Estou dizendo que pode não ser tão ruim assim. E que tudo o que
você enxerga de malevolência intelectual está dentro de sua mente; seu reflexo,
talvez. Ou não sou eu um parceiro desses pensamentos? Uma ova de sua ima-
ginação... Conhecendor do que há pelas redondezas do seu cérebro. Esse seu
lugar, um aquário de peixes mortos com água avermelhada de glóbulos. É isso
o que você quer dizer com suas palavras? É mesmo assim que você quer ser
lembrada, Rebeca, como alguém que matou uma cidade inteira e não deixou
sequer um metro de terra descontaminada onde a vida pudesse retomar? Está
procurando por alguém miraculoso? Demônio alcoolizado...
― Não procuro por nada, seu desgraçado imaginário. – respondeu a
garota. Esse lugar já me deu tudo o que eu poderia ter absorvido. Nada mais é
importante por aqui. Muito menos a mim: uma filha de maldades criada pela
sociedade que me condena e me acolhe sem ao menos saber de meus planos.
― Isso mesmo, filha do demônio, você não precisa de mais profanação 85
de si mesma. Esqueça isso, Rebeca. – continuava seu amigo de pensamento.
Esqueça a si mesma; deixe-se de lado; mas volte a ser o que sempre foi. Volte
sua mente superior às coisas melhores... O que acha? Deixe o que vive dentro
de você se tornar adulto, quem sabe um sábio ancião.
― Suas palavras são alucinadas, e você é o verdadeiro demônio dentro
de mim, que me assiste a todo instante. Um demônio criado por mim, e que não
me deixa em paz. Um demônio de necessidades, o qual não consigo destruir
como fiz com os falsos valores desse lugar.
― Agora chegou à hora de você partir, minha amiga criadora. Não
acha? Não haverá chegado a sua hora maldita de deixar todos em paz?
― Está supondo minha morte? Minha partida eterna? É isso? – indaga-
va ela. Quer que eu me torne minha própria poeira de estrela?
― Como posso dizer coisas assim, sendo que sou fruto de suas próprias
palavras? Essa, então, não seria uma vontade sua, reprimida? Você estaria,
pois, me usando como desculpa. Um dia, então, dirá a alguém que eram vozes
em sua cabeça? Nada disso, Rebeca! Invente outra... Não virar clichê. Lembra-

Marco Buzetto |
-se disso?
― Você é o fogo que está caindo do céu, maldito espectro. E está ten-
tando me ajudar, por menos que eu acredite. Por mais que eu não acredite em
mim mesma nestes momentos. Quem irá me auxiliar enquanto meus castelos
estão em chamas? Pelos deuses, seu desgraçado, deixe-me sozinha... Parta da-
qui, de minha mente. Não estou imensamente embreada; não percebe? Você
está dentro de mim, e me viu chorar, sorrir, gozar, sangrar... E por milhões de
vezes sofrer desesperadamente. E ao menos se importou em dar as caras. No
entanto, para me condenar ainda mais, mesmo com um tom de auxílio, assim
você vem: discreta, porém violentamente.

Rebeca havia ganhado um bom amigo agora, mesmo que assexuado.


Talvez para seu próprio bem, para não cair na tentação da filosofia destruidora,
de vaginas e orgasmos. Sua nova companhia insistia que ela, Rebeca, devesse
voltar a sua realidade, porém, deixando de amaldiçoar o mundo: apelativa-
mente. E a garota, infelizmente para si mesma, voltava sua atenção às palavras
86 de seu pensamento ilusório chamado espectro. Este é um daqueles momentos
em uma vida no qual não conseguimos ao menos pensar em alguma coisa, ou
sequer escrever poucas palavras... Às vezes levando uma manhã toda e me-
tade de uma tarde ao escrever uma página. Assim Rebeca estava se sentindo,
tragicamente. Suas idéias não apareciam, não vinham à mente arremessadas
pelos mentores do pensamento. Sua vontade de não continuar era bem maior
que a de prosseguir, fazendo-a por vários momentos voltar sua cabeça ao chão,
talvez procurando um minuto de reflexão, ou algo que a ajudasse em suas
decisões, novas decisões na verdade. Pois, como seu amigo de pensamento, o
espectro necessário e julgador, disse: talvez fosse melhor deixar um pouco as
coisas de lado, e procurar a si mesma. A lição nesse trecho, então: acreditar em
si mesmo, ou ninguém acreditará. Sendo que, também em vários momentos de
nossas vidas, pensamos: porque estamos o tempo todo fazendo coisas que não
fazem o menor sentido? Voltamos àquele pensamento de que as coisas são o
que são, e pronto! Não podemos passar o tempo todo acreditando em misté-
rios, em segredos a serem desvendados. Pois, nunca seria o bastante. Por esse
exato motivo é que Rebeca, a garota de lábios embriagados e filosofia sexual,

| Rebeca
deveria voltar suas angústias e frustrações para o além, para fora, para o mais
longe possível; e, desta vez, participar de sua própria história de vida: vivendo.
Não somente Rebeca, mas todos nós precisamos de algo que nos prenda
a atenção. Algo para pensarmos durante tanto tempo que nos faça acreditar que
a vida vale a pena, sem que nos tornemos vazios, completamente iludidos pela
realidade, salvos pela ignorância; que assim seja; é o que queremos agora, o
que deve ser... O que devemos deixar acontecer: salvos pela ignorância. O que,
porém, não se pode é o que Rebeca sabiamente chamou de limitação. Isso sim,
de sua parte, está mais que correto. Não devemos deixar a limitação do pen-
samento sentar-se em nosso colo, ou nos abraçar demasiadamente. Pois assim
estaremos nos entregando à desvantagem. Crescer é a ordem: evoluir. Essa
deve ser a velha nova lei de nossas vidas. O que aparentemente muitos entre
nós não estão fazendo, ou fingem estar.
Parando para tomar um cafezinho, olhando pela janela embaçada e trin-
cada de um ônibus público, as pessoas não procuram por mim ou por você. Na
verdade, procuram pelas pequenas coisas; mas não fazendo a menor idéia do
que são, ou onde estão. Bebendo seus licores noturnos, os figurões acreditam 87
possuir tudo. E realmente possuem. Mas, o que é tudo? No entanto, em contra-
partida, nós ignoramos o fato de que tudo possui um preço, escrachados pela
máxima de que “o dinheiro não compra tudo”. Infelizmente para os pobres
e felizmente para os mais afortunados economicamente falando, essa é uma
verdade absoluta. Porém, o que é tudo? Uma verdade, claro, voltada às neces-
sidades do ser. Nós estamos aqui, onde o dinheiro comanda tudo, um mundo
capitalista até os testículos, e como podemos pregar a ilusão de que o dinheiro
não compra o que quer comprar a nossa votla?
Porém, retornando ao contexto, dito sobre os figurões, a sociedade tam-
bém está imersa em pensamentos. Suas felicidades, no entanto, estão muito
além do que o dinheiro compra, e isso é um fato. Pois, quanto menos se tem
menos se sonha; e, consequentemente, mais facilmente se conforma e se feli-
cita pelo pouco o que se conquista.
E Rebeca sentia-se isolada por um simples motivo, ligado a toda essa
conversa sem fundamento: Rebeca pode tudo. Pode ser massa, e também afor-
tunada. Pode ter o mundo em suas mãos, pode fazer tudo o que lhe pedirem ou

Marco Buzetto |
o que quiser. Pode conquistar tudo e a todos. Mas também pode estagnar-se o
quanto quiser. Rebeca vale de tudo, por tudo. Por isso mesmo sente-se sozinha
a ponto de não querer ninguém ao seu redor. Prefere assim. Por muitos motivos
violou e depravou os valores e a moral da sociedade. Por tantas vezes Rebeca
fez questão de levar a virgindade declarada dos cérebros limitados ao completo
e deflagrado sangramento. E agora fazia isso também consigo. Fazia com que
seus ouvidos se enchessem de sangue que escorriam por conta de pensamentos
benéficos acerca da sociedade, sua maldita civilização que gritava palavrões e
blasfêmias contra a inteligência. Sim, o jogo estava virando. Uma verdadeira
partida fulminante na verdade. Pura selvageria. Rebeca dava o braço a torcer...
E ao menos sabia o motivo. Sentindo-se indefesa, a garota/mulher que virava
mais um copo com dois dedos de whiskey tornava-se mais uma: apenas uma
pessoa comum.

A contrapartida
88 ― Então, você resolveu se adequar. Resolveu se encaixar nesse cubo
mágico que nunca se resolve?
― Não posso afirmar, mas também não posso negar. É ainda uma dúvi-
da em mim. – confessou Rebeca.
― Nem ao menos lhe reconheço, garota. Você não parece a mesma be-
bedora de doses que costumava frequentar meu bar há meses. Você ao menos
ridicularizou meus petiscos no balcão. O que há, Rebeca? Onde você está?
― Isso não é da sua conta. No entanto, confesso que tudo parece me-
lhor olhando dessa altura, no mesmo horizonte que todos. Não tenho mais que
olhar para vocês de uma distância altíssima. Não preciso mais disso. Estou
igualada agora; vendo todos e olhando na superfície de seus olhos... Não mais
no fundo deles. Não faço mais isso. Não vejo mais os conflitos eternos por
aqui. Esse lugar já não é tão ruim assim. Na realidade, as coisas por aqui são
boas. Os pássaros voam, as pessoas os observam como se nada estivesse acon-
tecendo. E eu aprendi, finalmente, que realmente nada acontece. Nada de tão
misterioso, rude, catastrófico. Nada de ocultação em forma de palavra. Apenas
comédia e lamentação, isso sim.
| Rebeca
― Estão ouvindo? Rá, rá, rá... Ouçam. – falava o homem em voz alta
para que todos vissem seus lábios se movendo. Estão ouvindo o mesmo que
eu? Onde estará a garota Rebeca, meus amigos? Quem é essa que tomou seu
lugar de supetão e faz de conta que também bebe whiskey como ela? Mas eu
percebi... Claro que sim... Com gelo, você me pediu. Rebeca, a verdadeira,
filósofa sexualmente filosófica, nunca pediria cubos de gelo em seu copo. Pois
ela mesma é a frieza, a indiferença congelante.
― Anna, minha amiga de tempos, por favor, diga a esse homem quem
sou. Talvez ele se cale. – pediu Beca.
― Já fiz isso. Mas, você está mesmo diferente. – respondeu. A começar
pelo o que disse sobre a sociedade que nos rodeia... Não é tão ruim assim?
Do que está falando, Beca? O que aconteceu, de verdade? E o gelo em sua
bebida... Não! Essa não é você. Não aquela supremacia feminina que tanto
me encantou e caminhou ao meu lado. Vire sua face estranha. Quem, ou o que
você se tornou?
― Estou dizendo que nada aconteceu. E essa sou eu mesma. – repetia.
Porém, tornei meu pensamento para coisas boas sobre o que me rodeia. Por- 89
que diabos tenho de massacrar o tempo, tudo e a todos? Não posso apenas ser
como qualquer um, e acreditar que este realmente é um bom lugar? Não posso
fazer com que as pessoas aqui acreditem que suas vidas realmente valem a
pena... Pois, até dias atrás fiz totalmente o contrário. Você me conhece, amiga
Anna. Esse ainda é meu útero, e minha filosofia parte mesmo daqui, de onde
saem tantos filhos e penetram tantos estranhos. Filhos, é claro: falo dos meus
pensamentos.
― Então, quer dizer que a sociedade que te rodeia, esse nosso emara-
nhado, não mais te comove por conta de suas limitações? – insistia a amiga.
Quer dizer então, que você não se importa com a degenerescência da evolução
humana, vista nítida e agressivamente a nossa volta? Ou melhor: a regressão?

Exatamente! Rebeca não se importava mais com os conflitos escanda-


losos da regressão progressiva das mentes alienadas e limitadas dessa moda de
dinossauros falsamente crescidos em suas mentes. Mas tudo o que conseguia
era dizer apenas que nada havia mudado em sua essência. Tudo o que se via era

Marco Buzetto |
realmente ela, Rebeca. Porém, transformada em pura admiração sonhadora.
Sim. A garota de violências filosóficas e agressividades vaginais voltava seus
olhos a mais nova conclusão em sua vida: a sociedade valia a pena.
― Veja querida Anna, de olhos claros, cabelos dourados e pele de gelo:
as pessoas aqui vivem felizes, como se tudo a sua volta estivesse na mais per-
feita ordem. E o que aprendi é que realmente está. Tudo está bem. Sem in-
felicidades que não possam ser contornadas, ou esquecidas. Sem frustrações
ou lágrimas que não possam ser enxugadas com boas toalhas compradas em
boutiques de falsa grife... Todos estão muitíssimo bem. E nada pode ser mais
real. Pois, a vida é curta demais, contrariando as especulações. É curta demais
para fazermos de tudo uma guerra. O tempo de uma vida é curtíssimo, quando
comparado aos anos que a terra, ou os mares ou as montanhas possuem. É
curta demais para reclamarmos o tempo a todo tempo. Mesmo contrariando a
máxima supostamente atribuida a Bonaparte, “quando um homem para de re-
clamar é porque parou de pensar”. Não se pode acreditar que a vida signifique
sempre um verdadeiro código de existência a ser desvendado. Viver, apenas,
90 já é uma grande coisa. E isso nós devemos fazer sem nos preocupar com os
mistérios gerais do universo. Deixemos essa ocupação para quem realmente
gosta, entende e ganha para isso. Para nós, simples humanos, resta-nos apenas
a verdadeira felicidade do acaso de existência.
― Bom, realmente não a reconheço, mulher com pedras de gelo. Você
não é a deflagração de ideais que tanto me ensinou. – continuava Anna. Não
acredito, por mais benéfico que possa parecer, que você, Rebeca, tenta por
várias vezes fazer-me acreditar, e a si mesma, que esse lugar e seus pares se
tornaram grandes coisas na vida de todos, principalmente na sua, que tanto
aprendeu e ensinou fazendo-se contra tudo o que aqui vive e se auto-consome.
― Existe uma contenda em suas palavras que não me deixa à vontade,
velha Anna. Você, com uma mente tão evoluída, tratando as poucas vontades
do ser humano como incompetências? Tratando de displicentes e insubordi-
náveis tudo o que existe de mais simples no que chamamos de necessidade;
ou seja: o que chamamos de felicidade. Não posso acreditar, pequena grande
filósofa, que você esteja maleficando os valores de importância do ser huma-
no. Em minhas palavras volto a ver o número dezesseis. Mas desta vez estes

| Rebeca
não me trazem momentos de delírio ou de indagações repletas de remorso.
Mas sim, trazem bons pensamentos aos quais posso me apoiar e rever meus
próprios conceitos. O mundo é um bom lugar, e esse berço faz parte do todo.
Logo, a capela de sonhos inalcançáveis é um bom lugar para se viver.

O espectro
― Vamos Rebeca, volte a falar comigo. Converse novamente com este
que lhe trouxe tantos bons momentos de pensamentos ruins e desequilibrados.
― Não tenho mais nada a conversar com você, maldito instigador de
alucinações. – respondeu ela. Quero finalizar nossa fala, essas páginas que
tanto me prendem e me metem medo e desgosto.
― Você finalmente aceitou sua nova persona. Não é mesmo, minha
seguidora sem vontade? – indagou o espectro, seu amigo assexuado criado
pela demência.
― Agora você me aparece como mulher, maldito. Ainda prefere não
possuir órgãos genitais? Ainda prefere o desprazer do não sentir prazer? Não
91
acredito que você possua o dom, ou o poder de voltar a minha mente no instan-
te que desejar, e fazer dela um verdadeiro parque de diversões de mau gosto.
Você sim sabe fazer a vagina de uma mulher se parecer como um deserto.
― Não fuja do assunto como o diabo da cruz dos hipócritas, minha
criadora. Pois, aceite que, partindo de alguns dias atrás, você tornou sua face
para as boas palavras sobre esse lugar imundo. – dizia o espectro.
― Dane-se isso. E que você também se acabe; ainda mais falando mer-
da aos montes. Pois, agora que decidi acreditar que tudo nesse lugar desespera-
do pode dar certo, você vem me atentar com negações, me lembrando que um
dia fui totalmente contra todos estes princípios de bondade. Está me julgando
de errada, quando decidi corrigir os erros e aceitar suas palavras sobre as bene-
ficências daqui. Onde estão seus princípios, espectro desgraçado? Porque tanta
contradição? Não quer me deixar fazer as coisas por minha própria conta, me
alienando como fazem os governantes?
― Não quero por correntes em seus pés e algemá-la em minha cama,
Rebeca, como seus governantes fazem contigo e com todos; mesmo dando-
Marco Buzetto |
-lhes a falsa noção de liberdade. – continuava o espectro. Quero apenas enten-
der, decidir se resolveu, de uma vez por todas, aceitar o que está a sua volta.
― Não somente aceitei como concordei com ela. Concordo agora com
as pessoas daqui. Estes baixos. Concordo com suas precauções, com seus atos,
com suas vontades que tanto me pareciam perdidas, desperdiçadas. Compre-
endi os anseios das pessoas desse meu lugar, e percebi que não existem males
em ser um seguidor da vida simples; me refiro a reflexão simples, a falta de
vontade do pensar.
― O que é, e o que nunca poderia ter sido, Rebeca, caso continuasse
em seus devaneios sobre problemas alheios? Você, então, diz agora que sente
vontade de continuar nesse lugar imundo? Percebeu o quanto trocamos de po-
sição: você dizendo que aceita, que gosta desse ninho agora, e eu complemente
diferente, sempre negando meu diálogo novo? Não possuo constância, pois
quero justamente isso: continuar fazendo seus pensamentos valerem a pena.
As pessoas não podem simplesmente se fechar, dando as costas à sua própria
liberdade mental. E isso você também não pode deixar que aconteça.
92
A velha confusão na mente dos mortais adentrara o cérebro de Rebeca,
que tanto, agora, conversava consigo mesma, ou com o chamado espectro, que
se figurava como mulher e homem ao mesmo tempo. Agora Rebeca virava sua
cabeça, seus olhos, sua atenção para dentro, tentando descobrir se era verda-
de ou não que, de um momento a outro, como um raio em uma tempestade,
inconstante, seus pensamentos sobre seu berço, a cidade ensanguentada por
Treviso, haviam também se transformado em bondade. E a lição nesse mo-
mento, não apenas à Rebeca, é exatamente essa palavra, que por si traduz uma
realidade contraditória frente a nossos olhos: inconstância. Uma palavra, ou
sentimento, ou repressão deste mesmo sentimento, que faz com que tomemos
rumos diferentes em nossas vidas, o tempo todo, brigando e contradizendo
vontades anteriores. No entanto, a inconstância de nossos próprios pensamen-
tos faz exatamente isso: torna-nos pré-determinados a errar, ou a desistir. E
assim, negamos também a própria negação.
O espectro fazia coisa semelhante na vida de Rebeca. Contraria a si
mesmo, pois também é fruto dos pensamentos de Rebeca. O espectro torna

| Rebeca
seus momentos uma montanha-russa, ou um carrossel que não para de girar.
Ele torna sua vontade de dizer sim uma coisa errada. E quando finalmente a ga-
rota diz não, o espectro faz também o mesmo: dizendo ser errada essa escolha.
Pondo-a em jugos de valores sobre si mesma, sobre o que quer ou não dizer ou
sentir, o espectro lhe dizia: verdade! E quando a garota/mulher concordava, ele
lhe dizia: mentira! Possuímos, pois, também um espectro?

93

Marco Buzetto |
Parte V
Eu definitivamente não consigo acreditar que todos a minha volta acre-
ditem em seu próprio fim, buscando-o. – dizia Rebeca em sua mente. Porque
tudo é destruição? E isso não sou eu quem diz, apenas, como se quisesse acabar
com a reputação de alguém. Digo, pois, é o que se mostra como verdade. As
pessoas não se interessam mais umas pelas outras, e por mais que eu pareça
a verdadeira ameaça, na realidade a ameaça maior está dentro delas mesmas.
Sem nenhum interesse, isso sim. Nenhum interesse em sua própria existência,
nenhum interesse na cooperação, ou para o bem-estar comum. E depois, depois
eu, Rebeca, é quem levo a fama de profeta da destruição, dos males; tenho que
ouvir, pelas costas... Claro, tenho culpa por expor os defeitos de todos. Sou eu
a amaldiçoada... Isso sim. Não são mais os filhos que dão as costas aos pais,
e sim eles próprios, os pais. Estes parecem contribuir para o definhamento de
suas proles. Mães que não se importam com a segurança, a alimentação, o
94 bem, o lazer, a higiene dos filhos... Necessidades básicas que todo ser humano,
principalmente as crianças, merecem e precisam por direito.
Mas talvez seja essa palavra a chave: obrigação. Quando alguém se
lembra de seus deveres, dos quais não podem se afugentar, essas atividades se
tornam um pesar, mesmo que seja uma escolha própria, premeditada, absoluta.
Vejo pessoas que na maior parte do tempo, para o público, demonstram uma
imagem íntegra, de honestidade, moralidade, respeito, confiança, sensatez.
Mas, que dentro de seus lares não passam de cobras muitíssimas vezes piores e
perigosas. Essa é a diferença da realidade que se possui daquela que se vende.
Não seriamos, pois, todos assim? Esta se torna uma máxima nesta página de
minha vida. E eu, Rebeca, sou o monstro de mil faces.

A única verdade na qual a garota Rebeca podia confiar nesse momento,


e se apegar, era a realidade de seu copo e de seu corpo. Pois, ela sabia bem
quais eram suas intenções, suas reações, suas verdades a cada gole e o que isso
podia lhe oferecer. Essa era uma questão verdadeira na qual a garota por varias
vezes recorria: ao que as pessoas se apegavam, se interessavam, afinal? Uma
| Rebeca
questão difícil de ser respondida. O que existe na vida de cada um, fazendo
com que esta valha a pena sem trazer a velha e dolorosa sensação de culpa e
vazio?
― O que as pessoas fazem para motivar suas vidas? O que, por mil
demônios, esse bando de carne moída faz para atrair para si o prazer da exis-
tência? – continuava a garota a se perguntar.

O Ser Humano em si mesmo


― Eu sinceramente não saberia responder com certeza a essa pergunta.
Mas se eu puder ao menos deduzir, diria que o ser humano está onde ele pró-
prio se encontra. – dizia alguém. Não é mais ou menos por aí o que você está
dizendo, Rebeca?
― Absolutamente não. – respondeu a garota. Quero indagar sobre a
existência do ser humano para si mesmo, em si mesmo. Não quero saber sua
posição, sua localização dentro de um espaço físico; mas sim, onde e quando o 95
ser humano se encontra em si mesmo.
― Você percebe que eu não faço a menor idéia do que você está falan-
do?
― Sim, tenho certeza de que não sabe. No entanto, tome a nós mesmos
momento como exemplo de minha indagação. Pois, o que realmente vale não
é a resposta, e sim a pergunta correta a ser feita. Essa é a verdadeira filosofia.
– respondia a bebedora de malte escocês. Sua posição física é exatamente essa
onde se encontra: entre minhas pernas, com seu músculo reprodutor dentro do
meu. E a minha, obviamente, é deitada sobre esse colchão velho, recebendo e
abraçando seu pênis. Mas, o que quero saber é: aonde o ser humano, as pesso-
as, enxergam-se em seu próprio espaço, em si mesmas. Onde e como as pes-
soas sabem o que são, e como se satisfazer? Digo: será possível que ninguém
nunca tenha tentado olhar por cima de sua própria cabeça, olhar-se de cima,
bem do alto, e se encontrar em sua essência observando para onde está ou não
indo, ou o que está ou não fazendo de digno ou indigno como uma divindade
monoteísta qualquer costuma fazer sobre os seres?

Marco Buzetto |
― Acho que você está pensando muita besteira, quando nesse momento
deveria estar focando sua atenção ao prazer corporal que tento lhe oferecer. –
continuava o cúmplice sexual.
― Você é nojento! Repugnante, sinto lhe dizer. No entanto, essa parece
ser uma das respostas que pretendo obter, ou ao menos uma parte dela. – dizia.
Me parece que sua vontade de me fazer sentir seis, sete, às vezes oito ou nove
orgasmos em uma só transa é uma parte do aonde você se encontra. Quero
dizer: essa é sua realidade como homem e como animal, instintivo, óbvio, ob-
jetivo. Esse é seu espaço atual, e talvez geral, pois tantas outras vezes que nos
encontramos essa cena se apresentou da mesma maneira. Sendo assim, sua ne-
cessidade de me presentear com todo o prazer sexual possível é uma realidade
natural em sua vida, no si mesmo presente em sua existência.

Rebeca, com todas as palavras, dizia que a visão sobre o chamado si


mesmo, em todos nós, sobre nossas cabeças, podia nos explicar como e quan-
do somos realmente naturais, sem fazer de conta, sem encenarmos nossa vida
96 como se estivéssemos em um teatro, ou pior, em um programa de TV. Queria
dizer que, não importasse quantas vezes fazíamo-nos de personagens, felizes
ou tristes, fiéis ou infiéis, completos ou incompletos, nossos instintos de huma-
nidade estariam sempre presentes, marcando nossa verdadeira existência por
meio de necessidades primitivas que são as bases de nossa vida. Não importa,
então, o quão mascaradas as pessoas poderiam se fazer frente ao público, pois,
dentro de suas casas, por exemplo, ou entre quatro paredes vermelhas, todos
mostram suas verdadeiras faces e intenções. O mais moralista de todos, em
seus momentos de solidão ou extravagâncias, torna-se o mais sujo e asqueroso
objeto de prazer de si mesmo. Pois, é como se existisse uma energia que, de
tanto pressionar as pessoas a ser o que não são, também forçasse essas mesmas
pessoas a se libertar das amarras e mostrar suas puras atitudes. Sendo esse,
então, um fardo muito pesado para aguentarmos a vida toda sem que façamos
nada para suavizar nosso falso sofrimento existencial.
― A verdade é que todos nós precisamos tomar um tiro, isso sim. – fi-
nalizava a garota. Parecido com o que Zevon costuma dizer; mesmo aqui não
sendo a pobre Jeannie. E outra verdade é que um assassino precisa de pessoas

| Rebeca
vivas para se sentir útil, tanto quanto vários outros precisam prestar serviço a
um profissional dessa área.
― Agora você quer que todos nós nos tornemos alvos para um ines-
crupuloso assassino? – continuava seu cúmplice sexual a perguntar. É o que
você quer? Que todos nós alimentemos o que você titulou de profissão? Um
assassino?
― Profissão ou não, assassino ou não, advogado, banqueiro, político,
policial, carniceiro... Tudo é profissão. E todos esses segmentos necessitam de
público, de alvo, de energia, de combustível. – dizia a garota Rebeca. Queren-
do ou não... Aceitando ou não, sou seu combustível para o sexo. Não é mesmo?
Não é esse o exemplo?
― Não há moral que possa me ajudar agora. – respondeu. Sinto dizer
que você tem razão, Rebeca. Tem razão, quando vemos por esse ângulo.
― Afinal, concordou comigo. Mesmo eu pensando seriamente que sua
concordância seja apenas para que eu me cale, e você possa continuar com seu
cunilíngua.
― Sinceramente, não sei por que não continuar. – respondeu o parceiro. 97
Além do mais, mesmo com seu heideggerianismo tão aflorado, ainda prefiro
voltar minha atenção a sua vulva. Prefiro o existencialismo puro da penetração,
poética ou não.
Esta foi a finalização de um diálogo simples. No entanto, mesmo que
o parceiro de Rebeca, momentâneo, estivesse mais interessado em continuar
o sexo por sua própria existência, essa também seria parte da resposta para
uma das questões de garota. O fato puro de continuar o sexo, sem que houves-
se qualquer interferência, principalmente linguística, demonstrava o dom da
solidão da existência por si mesma. E essa é parte da resposta para Rebeca e
suas críticas. “As pessoas são o que são, e pronto”! Por mais que o tal existen-
cialismo pudesse ser criticado, sua veia essencial é correta. O que é, é! E esse
é seu começo, meio e fim, sem que haja trajetórias de mutação compreensível
pelo caminho.
Todos fazemos coisas das quais não nos orgulhamos, ou nos orgulha-
mos até demais, e não fazemos a mínima idéia do motivo real. Mas, mesmo
assim, continuamos. É bom, e nos sentimos saciados.

Marco Buzetto |
O exemplo do atirador, do assassino, talvez fosse mesmo um exemplo
ruim, faltando um pouco de compreensão. Porém, sua representação é boa
para pensarmos a necessidade de alguém para se matar. Mesmo não parecendo
haver um motivo real, que seja valioso, que possa ser levado em consideração,
quem o faz, quem toma forma de um assassino, acredita em seus motivos. E
isso ele o faz sem questionar o certo ou o errado na perspectiva da lei ou da
sociedade, ou da religião mais infame. Pois, em sua perspectiva, aquela que a
ele importa, o que faz é totalmente correto. E isso sim serve para todos e todas
também. Pois, tudo o que fazemos nos parece, mesmo momentaneamente, cor-
reto o suficiente para continuarmos fazendo, seja o que for, doa a quem doer.

Sobre a solidão
Depois da metamorfose de êxtase, orgasmos e violências, saliva e suor
genitais arrancados e transparecidos pelo lençol daquela noite, naquele maldito
98 quarto de paredes deprimentemente avermelhadas, Rebeca encontrava-se no-
vamente solitária, mesmo com qualquer um ao seu lado; mesmo com garrafas
e mais garrafas do velho suco de malte secas e espalhadas pelos cantos; mesmo
com o carinho e as carícias mais excitantes já proporcionadas pelo dinheiro ou
pelos corpos voluntários. Rebeca estava novamente ali, assim: olhando para
cima, direta e fixamente ao teto como se esse tivesse alguma palavra a lhe
dizer, ou desabar como uma pedra sobre sua maldita cabeça ensandecida, an-
gustiada, como uma marreta viciada que não cansa em momento algum de lhe
bater sobre seu baú craniano.
Mais um capítulo subjugado de um livro medíocre. Mais uma página
sem nexo marcando a vida de Rebeca em um período de inadimplência pesso-
al. Mais palavras sobre uma história surreal que calcula friamente e divulga os
detalhes não acontecidos de uma vontade potencialmente numérica em nossa
realidade. Novamente o número dezesseis se demonstra nestas páginas e traz
a memória marcante de tempos felizes jogados ao vento. Um semblante visto
a olho nu caminhando na calçada em frente a uma loja de roupas, sapatos e
brinquedos, tortura a visão de um qualquer, que hoje sente a mais completa

| Rebeca
falta desse alguém a seu lado. Pois, não é essa a nossa realidade? E novamente
se apresenta aquele número. Mais uma vez traz consigo os melhores momentos
de uma eternidade que se foi.

― Muito bem Rebeca. Você parece não se cansar dessa mediocridade,


essa dramatização infernal que você apresenta a si mesma.
― O que posso fazer, Raquel? O que diabos posso fazer agora? Eu
praticamente vendi a alma, o corpo, a mente, o espírito e o mundo. Vendi as
pessoas às piores palavras e adjetivos. O que mais eu poderia fazer, se não a
mesmice de sempre?
― Não consigo ver motivos para sua intolerância. – dizia Raquel, sua
nova amiga. A insatisfação condena seus próprios atos. Como um juiz sem
escrúpulos, isso sim.
― Minha insatisfação, Raquel? Esse é seu problema comigo... Minha
insatisfação? A insatisfação é um demônio do bem! – concluía ela.
― Você ao menos sabe o motivo de estarmos conversando? – indagou
― Talvez por que alguém quase te atropelou essa noite. – respondeu. 99
É claro que não sei o motivo, Raquel. Você é alguém, só isso. Alguém que
apareceu em minha vida, do nada. Do absoluto imundo de um formigueiro de
múltis inquietos. Não faço a menor idéia, minha nova amiga. Apenas sei que
prezo essa amizade selada por olhos azuis de vinte e quatro meses e um sorriso.
― Então é isso? Você agradece o fato de eu quase ser atropelada? – sor-
riu ela. Isso eu nunca imaginaria. Você poderia, ao invés dessa espera, ter dito
“oi”, “olá”... Qualquer coisa. Aquele lugar estava incontestavelmente poluído,
de gente, de fumaça, de poeira e um chão de pedras traiçoeiras, assim como os
pares de estrelas carregando pessoas.
― Acho que o surrealismo abraçou nossos corpos, Raquel. – brincou
Rebeca. Sinto-me à vontade ao seu lado, trocando palavras e sorrisos inco-
muns. Obrigada pelo voto de amizade. Isso sim é uma verdade dentro de mim,
sincera. Digo, à vol d´oiseau... Passando da realidade à minha própria loucura
contagiosa.

Por alguns segundos, Rebeca escapava daquela realidade traiçoeira,

Marco Buzetto |
viajada e pesada. Daqueles costumes inconvenientes de reclamação e discur-
sos sobre sua solidão e insatisfação. Os momentos bons que pairavam sobre
seus olhos eram preenchidos por ela, Raquel, uma nova desconhecida que tra-
zia consigo, de terras distantes, uma expressão voluntariamente simpática que
fazia Rebeca se sentir lisonjeada.
Raquel, essa incrível mulher desconhecida, possuía em seu interior uma
energia completamente distante de tudo o que Rebeca um dia havia percebido
em outrem. Uma energia repleta de passagens amargas, mas também carregada
de sentimentos ultra-sônicos como trovões novos.
Essa energia era exalada de seus poros como consequência de uma re-
sistência gigantesca sobre suas próprias dificuldades. Uma energia palpável,
tenra. Uma energia bela, que só ela possuía, e que a encontrava em poços
profundos vindos de um par de oceanos azuis inigualáveis. Aí estava a fonte de
sua energia e magnificência: esses oceanos azuis. E Rebeca sentia isso. Rebeca
vislumbrou esse potencial assim que, depois de algumas centenas de segundos,
escutou da boca de Raquel sobre seu bem mais precioso. Havia uma paixão
100 incompreensível expressada em suas palavras. Duas safiras perfeitas lado a
lado. Rebeca sentiu essa paixão, e admirou incansável e incontestavelmente.
― Mas e sua solidão, Rebeca? Onde está? – continuou Raquel.
― Minha solidão está em mim mesma, minha nova amiga. O que faço
agora é aprender a controlá-la e dosá-la ao meu modo, para meu melhor pro-
veito. O que alguém como você iria querer com uma ninguém como eu? Às
vezes me esqueço em que tempo estou, qual época, em qual período. Muitas
vezes penso em fatos que pertencem a meados dos anos ´90, acreditando terem
acontecidos há alguns dias atrás. O que há de errado comigo, Raquel? O que
há? Seria esse um diário da loucura? Ou é apenas uma confissão de um alguém
degenerado...

Sim, talvez fosse mesmo o diário de um louco. Ou, no mínimo, de uma


pessoa um tanto quanto perturbada psicologicamente. O diário da loucura.
Pois, por que razão fugir dessa moda? Para onde correríamos se não houvesse
para onde voltar?
Rebeca contradiz a si mesma a todo momento em suas conversas. Por

| Rebeca
um lado, uma garota que dá o braço a torcer dizendo que o problema real não
está mais na sociedade ao seu redor, e sim nela mesma. Do outro lado, outra
garota que luta a pauladas com a primeira, que jura fazer jus aos princípios
da imaculada depravação moral e cívica sobre tudo e contra todos que lhe
rodeiam.
Variando em suas palavras, Rebeca não sabe mais o que é pleno e o
que é mutilado, ou incomplexo. O segredo estava na quantidade de dias que
Rebeca passava sem discursar sua peçonha. Esse era o segredo. Uma variável
imprudente, fazendo com que cada página ficasse isolada, principalmente de si
mesma, controvertendo a necessidade real de sua existência. Seria esse, então,
um manual do que ser ou não ser, dado de presente àqueles que não procuram
absolutamente nada? Um emaranhado de questões que não levam a lugar al-
gum?
― Ah número maldito. O que há para eu fazer agora? – indagava ela,
Rebeca. De onde mais tirarei forças para contestar e condenar tudo a minha
volta? Essa sim se tornou minha solidão. Não possuo mais nada agora.
― Como, Rebeca? Como você é capaz de dizer algo degenerativo des- 101
sa maneira? – repreendia sua amiga. Não se pode desistir. É o que você está
fazendo no momento. E qual é a razão? O que explica sua não-razão para algo.
― Raquel, minha amiga de sentimentos controvertidos pela dúvida,
não há mais o que eu fazer. Não entende? – continuava Beca. Sabe, você é
nova nesse plano, nestas páginas, e não sabe pelo o que já passei em palavras,
pelas pontas dos dedos que possuem meu destino e minha loucura. Já fiz o
mal por completo. Já me dividi e me prostituí perante minhas contradições;
e assim fiz questão de pensar o bem puro sobre tudo. Mas não sou capaz de
mudar novamente e continuar me voltando contra ou a favor... E agora, não
mais sobre tudo, e sim sobre mim. Qual é a maldita semelhança que possuo
com a realidade?
― Talvez o possuidor do seu destino e da sua loucura não saiba real-
mente para o que você sirva no momento. – respondeu Raquel. Talvez esse
movimentador de dedos e corpos não conheça a verdade por trás de sua exis-
tência, Rebeca. Certa vez li um livro à respeito de um homem que descobriria
no final sua verdadeira identidade de não-existência. Ele era uma personagem;

Marco Buzetto |
mas se sentia à vontade dessa maneira, buscando a paz em sua mente no final
das páginas, não o final de sua vida.
― Está dizendo que eu devo aceitar minha realidade, Raquel, sem ao
menos lutar contra minhas próprias angústias?
― Você não pode se vender, Rebeca. E é isso mesmo o que está fa-
zendo no momento. Porém, está vendendo sua sanidade. É isso. – continuava
Raquel, a nova amiga de sentimentos fortes e palavras sábias. É exatamente o
que está fazendo: destruindo a si mesma, sem motivos. Talvez sem razão, sem
explicação.
― Seria essa a vida em Marte? Talvez eu esteja mesmo descobrindo a
essência dita por Bowie.
― Você não está tão distante assim, Rebeca. Mas infelizmente é o que
pensa no momento, por muito tempo. Você acredita estar distante de tudo e
de todos, quando, na realidade, está mais próxima do que um dia imaginou.
– continuava. Todas as pessoas são iguais. Você mesma um dia afirmou essa
máxima. São poucos os detalhes que mudam de uma história à outra, e muitas
102 vezes o final é sempre o mesmo. Ou não?
― Sim, você tem razão, minha nova amiga. Devo mesmo estar per-
dendo a razão que um dia acreditei possuir. Além do mais, o que provaria essa
sequência de dezesseis ao meu redor? Coisas que somente eu enxergo, pois
apenas eu compreendo. Mas das quais tantas outras acontecem a todos. E que
sentido faz esse montante de palavras? Nenhum!
― Você não poderia ser mais dramática do que já é, não é mesmo? –
prosseguia.
Rebeca já não sabia mais qual era sua verdadeira essência. Haveria ela
realmente perdido a sanidade? Raquel, sua nova amiga a ajudava com os pen-
samentos sobre si mesma, mesmo não sendo sua velha conhecida Anna. Ra-
quel estava ali, colaborando com suas palavras. Fato esse que muitos de nós
não fazemos, e deixamos escapar oportunidades únicas de mudar nossos atos
mais incontroláveis e inoportunos; coisas que mais nos ameaçam e prejudicam
em tempo recorde.

Chegamos àquele ponto da história de uma pessoa no qual não sabemos

| Rebeca
mais o que fazer, qual palavra dirigir sem estragar a realidade. Chegamos à
crítica sobre nós mesmos. Pois, quem um dia não se sentiu exatamente assim:
vazio?
Existem muitas palavras dizendo para não acreditarmos em nós mes-
mos, e em nada que nos rodeia. Porém, o que é uma composição dos anos
setenta se comparada a realidade atual, e suas dificuldades? E é isso o que
Rebeca sente: um abismo de diferenças entre sua existência e sua pós-vontade
de pensamento. Vontades essas que não a deixam acreditar em suas mudanças.
Afinal, Rebeca volta a sua origem crítica da sociedade, ou permanece intacta
em uma realidade que a condena e permeia em suas frustrações? Rebeca con-
tinua seu silogismo eloquente do mal sobre a vontade do ser humano, ou torna
sua face para positividades inexistentes até então?

― Sabe Raquel, a verdade é que eu me apaixonei por você. – atirou


Rebeca. Espero que compreenda o que quero dizer. Me apaixonei por sua ima-
gem, por sua devoção pelos oceanos azuis que preenchem sua vida. Me apai-
xonei por seu carisma e seus pensamentos relacionados ao comum. Você é o 103
que há de ser. Você é exatamente o que é. O que eu não sou e não consigo ser
e fazer. E isso eu admiro, e por isso me apaixonei por ti. Você, Raquel, possui
um odor de realidade o qual eu sinceramente nunca senti. E isso embriaga o
sangue. É lindo a ponto de ser perigoso... Para mim, claro. Perigoso para mim.
Seria errado eu expressar essa minha nova realidade para ti?
Raquel disse a sua amiga não haver problemas naquele nível de since-
ridade, e que esse era um ponto fundamental o que ela admirava nas pessoas:
sinceridade. Porém, muitas não a possuem. Raquel ficara expressivamente fe-
liz com todas as palavras advindas da boca de Rebeca. Disse-lhe também que
suas conversas continuariam a qualquer dia, por mais distantes que parecessem
estar uma da outra.
Os diálogos entre as duas novas velhas amigas se seguiam com muita
honra e respeito uma pela outra. Raquel simplesmente adorou o conhecimento
advindo da boca daquela que um dia blasfemou incessantemente sobre tudo e
contra todos. E chegou ao ponto de compreender o dom, ou maldição, demons-
trados por Rebeca em toda sua filosofia pessimista, realista, destruidora e ao

Marco Buzetto |
mesmo tempo doce e surreal.
No entanto, e como lembrou profeticamente a nova e adorada velha
amiga: o melhor estaria por vir.

Ubermensch
― Não quero confusão de sua parte, por favor. Então, andemos logo
com o que realmente interessa, óh andarilho da sabedoria. – disse Rebeca, de
imediato.
― E o que você quer, Beca, minha melhor e pior amiga de todos os
tempos?
― Beije-me logo com seus lábios sangrentos e me deixe louca. Fecun-
de em minha mente o conhecimento supremo dos interesses e desinteresses.
– pedia a garota, velha conhecida do superior ser diante seus olhos. Diga-me
Aske, qual é a verdade do ser humano?
― E porque haveria de saber a verdade entre todos os homens e mulhe-
104
res, Beca? Por qual motivo essa seria sua frustração onipresente?
― Por favor, Aske, meu senhor e ídolo de prata... Eu viajei pela eterni-
dade dos corpos e entranhas das pessoas mais asquerosas procurando por res-
postas comuns a todos, condizentes com a realidade das sociedades, mas nada
encontrei além de um sentimento padrão e inconsciente de degenerescência
e destruição de si e de tudo. Seria essa uma vontade humana e anti-cósmica?
― O que você sente, Beca, minha idólatra assumida, é o sentimento
comum de busca incessante pelo nada universal. – respondeu ele, mestre da
realidade destrutiva.
― E quando encontrarei as respostas que procuro, Aske, meu senhor, e
farei delas problemas passados? – implorou Beca.
― O mal dos homens e mulheres é exatamente esse, minha Beca: pro-
curar as respostas, quando deveriam estar procurando as perguntas corretas.
Esse é o verdadeiro segredo da filosofia universal; a chave dos acontecimentos
contém esse segredo; e você bem o sabe. Porém cega a si mesma procurando
mais palavras sobre as quais poderá um dia se debruçar, e zombar de todos a

| Rebeca
sua volta, com ar de superioridade.
― Não é isso o que procuro, óh meu ídolo de prata...
Rebeca explicou sua frustração àquele que em sua mente havia se tor-
nado o ponto máximo de excitação cerebral. Disse-lhe que não queria ser lem-
brada pelas pessoas por sua antipatia intelectual, mas sim por sua essência
transformadora, e não transmutadora. Queria sim que todas as pessoas um dia
se lembrassem do seu nome. Porém, não para perjurar, e sim, para tornar a vida
verdadeiramente mais fácil.
― Suas intenções são boas, Beca. Mas não boas o bastante. – disse o
askeniano.
― Porque diz isso? Por qual razão minhas intenções não são boas o
bastante? – indagou ela. Pois, em seus dias, nunca deixara a agressividade de
lado para tratar a realidade como tal?

Aske respondeu a garota/mulher que suas vontades iniciais sempre fo-


ram as de agressividade incondicional contra a realidade violenta do ser huma-
no. Porém, percebeu que nunca seria ouvido mesmo dessa maneira. As pessoas 105
nunca o ouviram com a voz mansa, tampouco aos berros. Essa era uma pre-
missa com a qual pessoas como ele e Beca haveriam um dia de se acostumar.
― Não compreendo Aske, meu senhor. – continuava Beca. Onde está a
realidade então? Como mudar o arredor se as pessoas não se lembram de nós,
ou ao menos nos ouvem? Essa minha questão é correta?
E Rebeca realmente não entendia, em profundidade, o que Aske queria
lhe dizer. Esse, por sua vez, lhe explicou como no início de sua busca, assim
como Beca, ele também preferia pela segurança da agressividade em suas pala-
vras. Mas, com o passar dos anos buscou também a passividade em cada frase,
e percebeu que desse modo não estaria facilitando o entendimento às outras
pessoas ao seu redor, mas sim a si mesmo. Essa era uma forma pacífica de se
satisfazer a si mesmo: voltando sua mente a ares mais puros, onde pudesse
encontrar paz o bastante dentro de sua própria mente. Pois, não se podia satis-
fazer a si mesmo em um ambiente de terror e guerra em sua mente. Aí morava
a dificuldade nas palavras, em um ambiente violento, dentro, e não fora; tão
próximo que fazia com que todas as coisas ao redor parecessem distantes de-

Marco Buzetto |
mais, fugindo ao entendimento.

― Já que não me diz qual é a verdade dos homens e mulheres, diga-me


ao menos qual é a sua própria. – pediu ela, Rebeca. Por onde andou todo esse
tempo, e por onde um dia há de andar ainda mais, Aske?
― Não possuo verdade alguma, Beca, minha seguidora à distância pró-
xima. – respondeu ele seriamente. Conheço a todos, e a grande maioria não me
conhece. Essa é minha verdade! Conheço o olhar e o sorriso de cada um, e bem
por isso conheço também suas derrotas e lágrimas. Não possuo verdade, minha
Beca. Pois, minha verdade possui a mim. Eu sou aquele que veio e que se foi,
como um relâmpago. Mas, também como todo relâmpago deixei minhas mar-
cas, minha luz. Mesmo destruindo eu construo dentro das pessoas. Construo
novos horizontes, e ainda mais questões de sofrimento.
― Volto a falar contigo em outra ocasião, Homem do Alto. Ídolo de
Prata. – finalizou a garota, dando-lhe um beijo na face e um abraço sincero.

106
O Distraído
Passei parte da minha vida valendo-me apenas do pouco conhecimento
que recebia pelo cotidiano. No entanto, esse conhecimento nunca me ajudou
de maneira realmente modificadora, pois, não pode ao menos ser chamado de
conhecimento. É puro senso comum valido da conformidade. O que, afinal de
contas, quero dizer? Maldição! Mil demônios mulheres.

― Sim, você é um distraído. – condenou a garota a um homem.


― Mas fui distraído assim como você, Rebeca.
― Imagino que tenha sido de maneiras diferentes, isso sim. Pois, minha
distração vem da busca pelo o que pode ser atentado. Tudo aquilo que pode
prender minha atenção de alguma maneira positiva. E, o que não é valido do
positivo, também tem minha atenção, para que eu extraia dali qualquer forma
de experiência que pode colaborar com a vida.
O distraído é apenas alguém, um qualquer envolto em áurea comum
que paira sobre a cabeça das massas. O que pode ser contestado pelos olhos de
| Rebeca
um distraído? O que pode, ou não, ser cobiçado por suas intenções, já que não
enxerga diante de seus olhos as aflições do mundo e das pessoas que choram
lágrimas de sofrimento e ignorância?
― Conheço você, Rebeca. – continuou ele. Apesar de eu ser distraído,
já percebi sua existência, seus passos pelos corredores da vida, entre as pessoas
e as árvores. Você, Rebeca, é aquela que veio para chatear a todos, para aborre-
cer a razão e a moral e transcender a visão do que é real perante todos e todas.
É o demônio da inconformidade, do que não se pode ser sem ser criticado. É
o espírito que não deixa o ser humano descansar a cabeça no travesseiro sem
pensar sobre sua própria existência patética. Por isso, então, sou distraído?
― É distraído por não tentar ao menos influenciar outros como a ti, a
serem como a mim. Por isso é distraído. – dizia Rebeca. Pois, conhece a reali-
dade imunda das pessoas, e já me viu por várias vezes pregando a crítica sobre
tudo e contra todos. Porém, o que fez para seguir meus passos? O que fez para
tornar à vida um pedaço de prazer, ao invés de um punhado de dor?
― Rebeca, minha mestra, você deve compreender que nem todas as
pessoas gostam de viver apenas de realidade. Sobre isso você já teve conversas 107
semelhantes em outras páginas da sua vida, entre os braços de outras pessoas.
― Tenho certeza disso. No entanto, o que não posso deixar de criticar
é sua comodidade diante da ignorância humana. Quero dizer: porque então, já
que conhece as verdades que pairam sobre a cabeça dos homens e mulheres,
não faz algo para colaborar com a evolução dos mesmos? Porque, afinal, não
auxilia as pessoas em sua jornada mundana? Porque não faz de sua vida uma
sala de aulas?
― Porque me faltam seguidores, minha cara. Alunos. Por isso sou dis-
traído. Por isso escolhi ser assim. – respondeu o homem. Fiz a mesma escolha
que você um dia tentou fazer: ser igual a todos. No entanto, diferente de você,
eu permaneci assim, mesmo conhecendo todo o contrario sobre tudo.

A verdade é que não havia nada de errado em ser como todos; não nessa
história. O distraído ensinou a garota Rebeca que, por mais que ela tentasse
mudar a história das pessoas, ensinando-as a serem melhores para si mesmas,
isso dependia unicamente da vontade de cada um. Isso sim era uma verdade

Marco Buzetto |
ainda a ser revelada às pessoas. Pois, como ajudar alguém que não quer ser
ajudado? A escolha parte de cada um, isso sim. Alguém tem de escolher algo
para si, antes que outros escolham. E, enquanto isso não acontece, o mundo se
resume em apenas alguns punhados de pessoas vivendo sob a sombra fresca e
prazerosa da completa vaidade de um cérebro ignorante. Nada vale. Tudo vale
absolutamente nada. O que é hoje, amanha não faz o menor sentindo, a menor
diferença.
― Você vê, Rebeca, como olham as pessoas para você? – indagou o dis-
traído. É como se cada um deles e delas a condenasse; e dissessem a si mesmos
o quanto você é louca em querer colaborar em algo em suas vidas. E, na reali-
dade, não possuo diferença alguma com essas pessoas. Na verdade, eu apenas
aceito minha condição de escolha: de não interferir em nada sobre os outros. E
eles, por sua vez, fazem o mesmo; porém, decidiram viver em ignorância. Sa-
bem que existe algo errado em suas vidas. No entanto, para que sofrer lutando
quando se pode sofrer sorrindo como se nada tivesse acontecido?
― Você pode estar certo, homem distraído. – disse a garota enquanto
108 entornava mais meio copo de álcool manipulado em forma de bebida.
― Não!, minha amiga. – bradou ele. Você é quem está certa! Mesmo
que isso dependa exclusivamente do ponto de vista de cada um. Em sua análi-
se, o conhecimento e a evolução humana está correta, enquanto para outros a
inanição e a comodidade são a verdade divina por trás dos olhos. Todos esta-
mos corretos sobre nosso próprio ponto de vista.

O escravo artista
― Porque lhe dão esse nome? – indagou a garota Rebeca.
― Porque sou um artista, e sou escravo dessa minha condição. – res-
pondeu ele à garota que não encontrava satisfação.
― E porque você escolheu ser um artista, quando poderia ser um exem-
plo do capital sistêmico, e trabalhar pelo dinheiro?
― Escolhi ser o que sou, pois o que sou escolheu a mim primeiro. –
respondeu ele, sem ao menos pensar na resposta. Sou um artista porque a arte
me escolheu. Foi esse meu destino escrito. Você, Rebeca, escolhera sentar-se
a sombra dos bares e bebericar de bons whiskeys enquanto filosofa. Eu, por

| Rebeca
outro lado, escolhi pintar e sentir o cheiro da tinta enquanto expresso minhas
opiniões.
― Sou também o que sempre fui, meu novo amigo... – dizia ela.
― Sim. E por isso mesmo hoje é outro dia de ressaca em sua vida. –
respondeu o artista. Você escolheu encher a cara e falar sobre tudo, mesmo que
isso não interfira em sua inteligência. Qual é o segredo, Rebeca, de você saber
tanto sobre mim e sobre tantos a nossa volta? Qual é o segredo que mantém
suas esperanças vivas sobre a possibilidade da felicidade?
― A esperança é um sentimento de derrota, meu amigo artista. – com-
pletou a garota. Eu não espero nada de ninguém. Na verdade, meu pessimismo
me diz o que pensar. Pois, dessa maneira, pensando o pior vindo de todas as
pessoas, não me sinto incomodada quando alguém demonstra suas verdadeiras
intenções; e não quebro a cara por ninguém. Apenas digo a mim mesma: eu já
esperava. E tudo fica como está.
― E essa também é uma conformidade então. – disse o artista. Você já
se conformou com a escolha inconsciente que as pessoas têm pelo errar. E eu,
um artista escravo de mim mesmo, erro a todo instante, presumindo qual será
meu próximo engano sobre o que faço ou deixo de fazer. O erro faz parte de
minha realidade. Porém, conscientemente. Pois sou um artista. 109
― Mas é escravo! – exclamou a enigmática Rebeca. Você é escravo
de sua arte. Você, assim como eu, mesmo dizendo-se um espírito livre, é um
transgressor do cotidiano, da moral absoluta. Pois, assim como eu, você tenta
desequilibrar o que está sólido na vida das pessoas. Para quê, pois, alguém
precisa da arte em nossos dias?
― O ser humano criou a arte como forma de expressar seu cotidiano,
relatando suas experiências e costumes. – continuou o artista. O ser humano
precisa da arte, pois ele faz parte da mesma. Por isso sou importante, e viciado
em minhas idéias artísticas. Sou escravo, pois quero manter os costumes da
crença no que é bom para o ser humano. A Cultura é necessária, e a arte é essa
necessariedade. Um café, um cigarro, uma bebida... Nada disso é vício. Tudo
não passa de um detalhe para o que é arte e o que é o artista.
― Claro que sim. E por isso mesmo não condeno os vícios imorais,
apenas os morais e ignorantes, egoístas. Tudo o que fazemos é partilhar da
nossa própria solidão, essa é uma das verdades. Meus ideais e filosofia per-
manecem comigo, assim como a arte contigo. – continuava. Eu também sou
escrava de minhas virtudes. Mas, quem não é escravo ainda hoje? A vida não
passa de um romance mal gerado, por amadores pobres de espírito criativo.
― Somos incontroláveis, minha querida concubina da sorte e do azar.

Marco Buzetto |
– persistia o artista escravo. Pois, não planejamos o que somos. Apenas somos,
e ponto final.

O artista explicou a Rebeca que sua arte vinha de tempos ocultos em


sua mente, e que tudo o que fazia, para ele possuía uma razão. Suas pinturas,
desenhos, modelos de argila, ou fosse lá o que fizesse, para ele representavam
em si um movimento rebelado que tinha como objetivo manter sua mente lon-
ge de pensamentos destrutivos, e que o ajudava a encontrar novas capacidades
pessoais desconstruindo limites impostos pela sociedade.
Rebeca e o artista escravo conversaram durante horas noite a dentro, e
concordaram à respeito de tudo, principalmente a diferença sobre o ser huma-
no escravo de si mesmo. A garota insistia em sua ideologia filosófica contra a
ignorância conformista das pessoas que faziam de si mesmas um baú trancado
com mil fechaduras; porém, que em seu interior possuíam apenas vácuo: um
nada que estremecia os ossos do mais bem planejado e alicerçado alguém.
― Somos todos escravos. A diferença está em “escravos de quem e
do que”? – atirou ela, Rebeca. Esse é o modificador da importância de nossa
escravidão. Aceitamos ser escravizados pelo o quê? Pela inteligência ou pela
110 ignorância? Pela submissão ou pela vontade capaz?

O que faz do artista, pois, um escravo, é exatamente o que o define. É


escravo de si mesmo, e esse fato não tem volta. Não há possibilidades de um
escravo artista se libertar. Por mais que o diga, que afirme, nunca conheceu
e nunca conhecerá a liberdade. O escravo artista é o homem, a mulher, é o
escritor, o pintor, o escultor, o músico, o gênio entre o povo. Porém, o escravo
artista nunca, absolutamente nunca será um ser humano livre.
O artista pode conhecer os corações de todas as mulheres, de todos os
homens, de todas as crianças. O artista, o poeta... o escritor, enfim, já dormiu
com todas as mulheres sobre o seu corpo, e conheceu a liberdade em todas elas.
Porém, nunca conheceu sua própria liberdade.
O artista sonha, o escritor sonha, derrama as lágrimas como cachoeiras
violentas que moem pedras, como se estas não fossem rígidas o bastante.
O escritor sente seu coração bater e bater; sente sua voz enlouquecer,
bradar com a força de seus pulmões. O escritor sente o sangue ainda quente
correndo por suas veias. Todas às vezes como se rasgassem seu corpo por
dentro, pois tamanha é sua amargura e acides. O escritor olha fundo no espelho
e não encontra nada além da imagem de um homem deprimido, repleto de
emoções e frustrações – sentindo-se invencível quando pensa naquele rosto,

| Rebeca
fazendo dele um homem à prova de balas.

O escritor não foi livre e nunca será, pois o número maldito corrompe
sua alma.
O escritor não será livre, pois nunca foi. E as lembranças o puxam de
volta à cela de suas memórias.
Como uma página em branco, decimu sextu, ou completamente ensan-
guentada por pesadelos e saudades de algo que jamais teve, e nunca mais terá
de volta.
O escritor nunca sobrevive, e nunca sobreviverá a liberdade. Pois está
vazia em sua vida, e não tem a menor graça.
O ser humano nunca conheceu a liberdade, e nunca conhecerá! Pois ele
é escravo de sua própria memória. Por mais que a voz de um louco diga “te
amo, mas não te quero. Quero continuar te amando, mas quero continuar não
te querendo”.

― Não quero que essa noite termine. – sussurrou Rebeca ao vento. É


tudo sobre você! No final, é tudo sobre você.
111

Marco Buzetto |
Parte VI
Sobre a síndrome de Vira-Lata

Esta sim é completamente indiferente à máxima sine ira et Studio – sem


cólera nem parcialidade – que um dia Tácito nos dissera. Uma verdade maní-
aca que as pessoas possuem seguindo-as seja lá aonde forem.
Porque, afinal, essa mania de cachorro vira-latas? Porque as pessoas
possuem a inclinação mórbida para a submissão e humilhação pessoal? Parece
até uma propensão constante ao que não se pode fazer. Um vício carismático
e azucrinante que flagela até mesmo o mais alto mendigo, ou o mais baixo dos
diplomados.
Na realidade, é necessário apenas que alguém dê a si um título de supe-
rioridade para que todos e todas a sua volta lhe recebam como O Eleito!, fazen-
do deste um ser superior. O ser humano possui essa natureza de degradação. O
112
costume da escravidão em seu sangue cultural, pelo o qual, pelo o que parece,
não vale a pena lutar contra, ou estar em alerta. O vício pela dominação.

Mas, qual é o motivo pelo maldito sentimento de culpa que as pessoas


levam consigo em suas almas? Seria o elucidado e alienado pecado original? A
parcialidade, aqui, é exatamente a escolha de ser imparcial perante aos aborre-
cimentos conta a instituição pessoal, individual. Talvez Tácito não tenha ima-
ginado o quão imparciais as pessoas se tornariam à respeito dos verdadeiros
acontecimentos; da instituição humana. Pois, de qualquer forma, essa impar-
cialidade culminou no sentimento de acomodação, de sedentarismo.
O que significa a palavra propensão? Esta, pois, quer dizer inclinação,
tendência a alguma coisa. E é exatamente assim que o ser humano atual se faz
perante sua própria espécie. A inclinação de algumas pessoas pela obediência
incontestável chega ao nível do ridículo. Por exemplo, a subserviência a uma
concepção de entidade superior. Notem a palavra concepção. Sim, pois deus
não passa disso mesmo: uma mera concepção do próprio ser humano. E par-

| Rebeca
tindo dessa idéia, digo que o ser humano tornou-se escravo de sua invenção
divina: uma entidade forjada, estabelecida para manter a ordem daqueles que
estão abaixo. Então está aí: quando inventamos todo esse desvio de atenção da
realidade, passamos a ser ainda mais escravos, tirando a nós mesmos do co-
mando, e ainda mais tendenciosos pela servidão. Daí o princípio da síndrome
de vira-latas. Mas ainda há muito para além.

― E porque você se sente dessa maneira, tão certa sobre seus valores,
quando na verdade é o contrário que demonstra? Que valores são esses, afinal?
– indagou Rebeca. Você, então, que se deixou dominar piamente por um ser
superior, por isso deixa acontecer o mesmo em relação às pessoas? É escrava
de deus, porque não também do ser humano?
― Confesso que faz parte da minha realidade acreditar na superiorida-
de de um ente divino. E por isso mesmo existe dentro de mim essa facilidade
de ser dominada também por um igual. Abaixo a cabeça por qualquer coisa que
eu não compreenda. – dizia uma mulher de natureza simples, que de uma hora
à outra se tornou rica. 113
Essa mulher, pois, de natureza simples, por sorte da vida ganhou de re-
pente uma herança distante: milhões em dinheiro e ações em bolsas de valores
a fizeram sorrir durante dias e noites sem acreditar no que havia acontecido. E
agora, depois de anos com essa sorte em conta, mantém ainda seus velhos há-
bitos. O que era no passado continua sendo ainda nesses tempos; porém, com
mais dinheiro para ser doado a seja lá qual for a igreja.

― Você está no princípio do aprendizado. – disse Rebeca à mulher.


Não passa de uma nova rica, o que é muito pior do que um rico secular. Pois,
mantém costumes antigos que ferem a realidade atual. Você veio das castas
inferiores, e, mesmo assim, agora se volta contra seu passado. É uma contra-
dição tamanha.
― E como eu deveria ser? Quer que eu me desapegue da minha riqueza
assim, do mesmo jeito como ela me veio?
― Não acho que você deva fazer isso. Porém, é uma rica de espírito po-
bre. E trata mal aqueles que são como você um dia foi. No entanto, esses estão

Marco Buzetto |
ganhando pontos a sua frente, pois são conformados com a realidade. Você, por
outro lado, pobre de espírito, não consegue enxergar o que há diante de seus
olhos: um abismo colossal que a separa em três pontos: a casta inferior, da qual
você um dia fez parte economicamente falando; a casta superior, na qual você
se situa no momento; e, o que chamo de casta supra.
― E o que seria essa casta supra, Rebeca? – indagou a mulher sem
entender uma só palavra.
― O que chamo de casta supra é justamente aquilo que você não com-
preende, e simplesmente não faz parte. – resumiu a garota Rebeca. É uma es-
tirpe única e irrevogável. Um extrato no qual as pessoas se identificam apenas
pelo olhar, sem ao menos conhecerem umas as outras. É a classe intelectual,
além da economia, muito além do dinheiro que levam consigo na carteira.
― Não entendi o que você quer dizer, Rebeca. O que é essa casta supra
que tanto enche sua boca enquanto fala?
― A casta supra, minha amiga infame, são as pessoas que não precisam
se mostrar aos outros; são aqueles que estão além do que pode ser visto. São os
114 intelectuais, os mais cerebrais. São aqueles que usam seu cérebro para a absor-
ção do conhecimento geral, não apenas para cumprirem meras funções orgâni-
cas, da respiração, do andar, falar, comer... São aqueles que estão além de tudo.
― São esnobes, isso sim. – sussurrou a mulher, já com um olhar devo-
rador, como quem condenasse as palavras de Rebeca.
― Você fala assim, pois reconhece seu lugar. E está fazendo exatamen-
te o que eu vinha falando no começo de nosso diálogo: abaixando a cabeça.
Está se mostrando submissa a minha idéia.
Rebeca ensinou a mulher nova rica que a chamada casta supra não era
esnobe, pois, era totalmente independente de riqueza. São aqueles que buscam
o conhecimento, são sábios, e por isso possuem um grau de evolução maior do
que os pobres e os ricos. Pois, como dito, não dependem das finanças. O sábio
é sábio com bilhões em conta, com centavos em um bolso furado de uma calça
doada, ou sequer um grão de feijão para matar a fome. Não dependem de deus
ou do diabo, do bem ou do mal.
― E você nova rica, não entenderia o que é isso justamente por fazer
parte dos ignorantes; esse que é seu lugar, junto dos que não fazem questão

| Rebeca
de possuir um cérebro, pois o trocariam por algumas moedas. – continuava
Rebeca. Aquele que possui a mente livre não conhece o significado de apenas
uma palavra...
― Ah!, então você admite que o sábio realmente não sabe tudo?! – ex-
clamou a mulher nova rica, com um sorriso irônico e malicioso. Até que enfim
mostrou alguma humildade.
― Nunca disse que um sábio não é humilde, tão pouco eu não o seja.
Pois, já lhe disse que um sábio não é esnobe, mas sim superior. São coisas dife-
rentes. Um esnobe pensa ser melhor que todos, é nojento, vicioso, degradante
por considerar a si mesmo um semi-deus perante a todos, que deve ser respei-
tado e idolatrado pelos inferiores. Já o sábio reconhece todas as realidades, e
sua alma não faz parte de nenhuma delas; seu corpo sim. O sábio não é esno-
be, pois compreende que não há motivos para o ser, visto que todas as outras
classes não compreendem o seu valor. E não entenderiam caso lhes tentasse
explicar algo sobre o assunto.
O que Rebeca pretendeu dizer a mulher nova rica, é que um sábio não
necessita explica sua realidade a ninguém. Pois, caso tente esboçar alguma 115
teoria a respeito de qualquer coisa, principalmente a necessidade de mudanças
sábias na vida de outra pessoa, esta lhe daria as costas. Esse é um dos castigos
do sábio: ser tomado de louco, como estranho. Não é fácil explicar algo um
pouco mais complexo a quem não possui capacidade ou vontade de compre-
ender. Normalmente, o que se faz é explicar, e depois explicar a explicação.
Estranho? Fato!

― E isso não é ser esnobe? – questionou a mulher.


― Não! – replicou Rebeca. Isso é ser realista para com os fatos.
― E qual palavra o sábio, ou o intelectual, ou seja lá o que for, não
reconhece e não compreende, afinal? O que esse supra-homem não reconhece?
― A submissão! – exclamou Rebeca, enquanto beijava enfurecidamen-
te os lábios da mulher nova rica. A dependência, a baixeza, a obediência, a
sujeição, a subordinação. Em outra palavra, a subserviência.
― Mas há quem diga que ser assim é possuir humildade. – tentou a
mulher, enquanto transava seu corpo com o de Rebeca.

Marco Buzetto |
― De maneira alguma. – continuou a garota. Engana-se aquele que diz
isso. Pois, ser humilde é não demonstrar soberba, por exemplo; ou arrogância,
ou fatuidade, sobranceria. Isso é o contrário de humilde. Ser sábio não é isso.
Mas também não é aceitar tudo como absolutamente imutável: até a si mesmo.
Não aceitar ser controlado é ser sábio; seja lá pelo o que for: governos, admi-
nistrações, hierarquias, chefias, pessoas, relações... Qualquer coisa. O sábio
não é manipulado. Pois ele luta pela autonomia do pensamento ilimitado. Mas
é claro que nos momentos em que devemos nos ater a hierarquia por respeito
a ocasião, isso deve ser cumprido. Por respeito. Não por controle. Porém, nada
além do concordado. Não estou incitando uma revolução anarquista.
― Mas faz exatamente o contrário. – jogou a mulher, enquanto tocava
o corpo de Rebeca.
― Apenas quando é de sua conveniência. – disse. Pois, não é exatamen-
te isso o que está acontecendo nessa cama?
― O que é o vira-lata então?
― Rá! – expressou Rebeca. Não diga mais nada. Se quiser, ainda dis-
116 posta, sinta-me. Vira-lata.

O que mais sabemos sobre a síndrome de vira-latas, afinal? Já se re-


sumiu aqui várias formas, sendo que a derradeira é a vontade de submissão;
quando se abaixa a cabeça para tudo sem questionar. E temos que questionar
tudo, sempre. Daí nasce à eficiência do ser humano. Se não questionamos a
realidade, então o quão reais nós somos? O complexo de vira-latas humilha as
pessoas, e por estarem tão complexadas, não enxergam a humilhação sofrida,
e definham.
Cuidado vira-latas, pois irão perder o posto para os seres humanos!

― Uma boa notícia escraviza alguém? – indagou Rebeca.


― Uma boa notícia? Como poderia?
― Uma boa notícia escraviza uma pessoa caso essa esteja gloriosa des-
ta boa-nova. – respondeu Rebeca. Se uma pessoa recebe uma notícia com a
qual sonhara por várias vezes como realização, então, essa escraviza sua men-
te, pois viverá a sombra da lembrança boa.

| Rebeca
― Compreendo. – disse alguém. Entendo o que você quis dizer, Beca.
Pois, se alguém me dissesse que gostou de algo que realizei, então essa boa
notícia sobre mim me fará sorrir, como forma de reconhecimento pelo o que
faço. Assim, viverei, mesmo que apenas por alguns dias, assombrada por uma
expectativa de continuar recebendo saudações.
― Exatamente. E por qualquer que seja o motivo, tornar-se-á vítima de
suas próprias boas intenções para com os outros. Pois, de tanto receber gratifi-
cações, ainda mais elogios alguém quer ouvir: “parabéns pela boa performan-
ce”, alguém diz ao dramaturgo; “parabéns pelo romance”, outro ao roteirista;
“parabéns pelo filme”, dizem ao diretor; “parabéns pela crítica”; “parabéns
pela obra de arte”; “pela pintura”; “pela escrita”; “pelo trabalho”, etc. E o sor-
riso se estampa de orelha à orelha movendo a máquina humana para que pro-
duza ainda mais, afim de receber essa dádiva do reconhecimento novamente.
– continuava Rebeca.
― Então o reconhecimento também nos escraviza.
― Sim. Mas, disso eu não tenho mais paciência para falar. Aliás, eu
nem ao menos sei do que estou falando... A maior parte do tempo eu nunca sei. 117
– disse a garota entornando mais um dedo de malte destilado goela a baixo. Eu
sou meu próprio vira-latas! Essa sim é a pura verdade. Pelo sim ou peno não.
Pelo bem ou pelo mal, sou eu meu próprio escravo e senhor.
― E sobre o que você pretende falar agora?
― Nada! – disse ela. Pretendo apenas continuar nosso ato de desespero
sexual. Afinal, de que adianta ficar conversando, quando o velho e bom, e bê-
bado, e cheirado Freud já resumiu toda verdade em apenas uma palavra: sexo?
Vamos dar ainda mais razões a ele.

Procura-se um motivo
― Vejo que você ainda tenta saciar sua sede de não se sabe o que.
― Você me conhece bem, Anna. Sabe que eu não eu desistiria assim,
sem ao menos saber o que procuro. – respondeu.
― Beca, as pessoas estão falando coisas a seu respeito, sabe... Coisas

Marco Buzetto |
que normalmente não trazem nenhuma glória.
― E desde quando você se preocupa com minha glória, Anna? – inda-
gou Beca. Pelo o que sei minha honra já estava mais do que suja, na visão das
pessoas que tento ajudar. Aliás, não quero entrar na sedutora zona de conforto.
Prefiro, ao invés disso, me aliar ao meretrício intelectual.
― Meretrício?! Claro. Quem não prefere? Prazer e dinheiro ao mesmo
tempo. – declarou Anna. Você não estaria em uma zona de conforto nem se
fizesse força. Zona de conforto é para quem não tem nada a perder, tampouco
ganhar.
As duas garotas, parceiras, cúmplices, se faziam amantes a muito tem-
po, apenas de pensamento, e a virgindade cerebral das duas havia se corrom-
pido praticamente ao mesmo tempo, mesmo sem saber, sem querer, como
qualquer virgindade dada de graça ao acaso, pelo simples “confio em você”
momentâneo, e inocente.
Anna sabia que Rebeca ainda não havia encontrado sua maior alegria,
ou sua melhor frustração, a ponto de conseguir parar de investigar tantos ho-
118 mens e mulheres. Uma verdadeira iconoclasta. O silogismo apodíctico alcan-
çado pelos discursos brigava diretamente contra o sofisma irreverente das pro-
posições populares. Ou seja: a filosofia inconformada de Rebeca ainda lutava
com punhos a ferro e fogo contra as ilusões das pessoas.

― Até onde quer chegar, minha amiga Beca? – indagou. Isso não lhe
incomoda? Você não se cansa? Já não passou suficientemente do limite?
― Não sei até onde pretendo chegar, Anna. Porém, já me sinto mesmo
um tanto abatida. Mas quero continuar. – dizia. Será que a vida não vale mes-
mo a pena? A minha ou a dos outros? Ou será que vale até mais do que um
dia imaginei? Será que desvalorizo demais a vida, as pessoas, suas angústias?
― O que você descobriu nesse tempo todo, Beca, se abrindo a tudo e a
todos? – esquadrinhou Anna. Digo, do que pode se orgulhar de ter aprendido
ou feito alguém aprender desde que começou essa sua investigação humana?
― Aprendi coisas valiosas, minha companheira de pensamento duvi-
doso. – brincou Beca. Porém, pergunto antes a você: onde está à reflexão, o
pensar, a tal sabedoria?

| Rebeca
― Posso dizer que o verdadeiro sábio é aquele que contesta tudo, cri-
ticando todas as verdades que lhe são apresentadas como absolutas. E além
desta, criticando também tudo o que está a sua volta, inclusive duvidando de si
mesmo e de sua própria natureza individual. – iniciou Anna, sem pensar muito
nas palavras que saiam de sua boca.
― Você está coberta de razão, Anna, como sempre. Por isso me orgulho
tanto de ter a ti a meu lado. O que seria de mim sem uma pessoa com a mente
tão elevada como a sua para me entender e criticar? – continuava Rebeca. E é
exatamente isso o que faço, você bem o sabe. Não quero deixar minha mente
morrer fazendo com que ela pare de pensar e maldizer todas as veracidades.
Não quero viver à sombra da verdade; quero morrer a beira da dúvida, isso sim.

Então, não é exatamente o que Rebeca fez e continua fazendo? Tudo


bem que todos possuam sua filosofia de vida; disso ninguém duvida. Mas ela
queria apenas que esses soubessem que esta ao menos existe de fato. Assim
como Nietzsche, Wilhelm Dilthey, Bérgson, e tantos outros já alertaram e com-
preenderam. É mesmo o velho matiz da vontade de potência, com sífilis e 119
bigode.
― A verdade é que estamos muito longe de descobrir o que andamos
fazendo de correto nessa vida. – tentou Anna a continuar. Posso dizer que a sa-
bedoria se resume em apenas uma palavra, ou quem sabe milhares delas. Mas
a triste realidade é que passaremos a vida dizendo não, enquanto outros dirão
aquele sim humilhante com tom de deboche.
― Você bem que tem razão, como sempre, Anna; como sempre. Eu já
disse que invejo seus olhos e sua língua?

Quanto mais queremos uma resposta, mais esta nos foge como um rio
fluindo de uma montanha. Quanto mais precisamos de uma só palavra que
possa contribuir para nosso bem-estar, não há nada de mais amargo que o sabor
da indecisão sobre o que queremos saber. Então, qual é a maldita pergunta que
Rebeca tanto procura, já que a resposta não é digna de um sábio questionar?
― Mas você já ouviu de tudo, Beca. Porque não para de jogar a vida
fora dessa maneira? – continuava Anna. Não é isso o que você está fazendo?

Marco Buzetto |
― Sobre o existencialismo, minha seguidora de bebedeira, o que você
teria a falar? – retrucou Beca. Minha própria filosofia: isso é o que procuro en-
tão. Procuro a mim mesma dentro dessas lixeiras imundas. Mesmo que todos
os grandes pensadores já tenham desvendando tudo o que há para se saber e
levar uma vida tranquila, ainda assim me sinto na obrigação de continuar o
trabalho de todos eles, e adequar seus pensamentos a nossa sociedade tão mal-
tratada que se encontra em farrapos; maltratada por ela mesma. São as asas que
carregam desde a grande águia até o menor dos beija-flores, e é a mente que
leva o ser humano as mais completas viagens e deflagrações contínuas ao redor
de suas tendências questionadoras. Não quero ter minhas asas amputadas.
Rebeca já sabia quais eram os motivos que a moviam frente às indaga-
ções filosóficas e mundanas. Sabia bem como era estar do lado da prata ou do
latão.
― Talvez esse seja meu jeito de beliscar a sociedade para que acorde
desse transe. Um soco bem dado no nariz, isso sim é o que parece. – brincou
Beca, com olhar cabisbaixo. Mas também pode ser o jeito que encontrei para
120 ter alguém com quem conversar durante a noite.
― Você está deixando um exemplo bastante confuso às pessoas, Beca.
– disse Anna. Já pensou nisso? Já pensou no quanto está confundindo a mente
dos homens, mulheres, deuses e demônios que se deitam contigo?
― Conheço meu moralismo pervertido. – respondeu. E, definitivamen-
te não sei o que procuro. E também já não sei se existe alguma coisa errada
com as pessoas e seu modo de viver essa não-vida.
― Talvez você esteja lidando com uma crise, minha amiga.
― Crise é uma desculpa por não sermos capazes. Conheço minhas ca-
pacidades; e antes de me declarar em crise, prefiro jogar a toalha e a mim
mesma do pico do penhasco mais alto.
― E para isso você está preparada?
― Não! Estou mais disposta do que antes. Só não sei por onde reco-
meçar, pois parece que já passei por todas as portas. Talvez o penhasco seja
minha própria cabeça. – confessou Beca. Mas até mesmo meu pensamento está
ficando pobre. Baixo. Pobre coitado.
― Como? Suas idéias estão acabando, é isso? – questionava Anna, com

| Rebeca
a testa franzida. Será que Rebeca, aquela que nunca pecou sem algum motivo
válido, está deixando suas convicções de lado?
― Não sei, Anna. Não sei. – respondeu. Mas qual é meu condenado
motivo para continuar? Já fiz tanta coisa, andei por tantos lugares, me deitei
com tantos corpos e transei com todos os pensamentos possíveis. O que mais
tenho a fazer? Sequer saio do lugar. Minhas frustrações continuam as mesmas.
Ainda me sinto completamente vazia e suja, como um útero menstruado.
― Mas esse útero ainda pode gerar uma vida. – completou sua amiga.
Porque não geraria novos desafios?
― Me tornei estéril, Anna. Infértil. Como plantações adubadas com
veneno mortal. Isso é o que parece. Penso que de mim não sairá mais nada, a
não ser um jorro de derrota.
― Não Beca, não diga isso. Tenho certeza que você vai trazer muitos
filhos ainda a esse mundo. – profetizou a filósofa de cabelos loiros e longos. As
pessoas herdarão seus pensamentos. E esses serão seus pupilos.
Talvez, filhos não fosse uma idéia genial especulada pela amiga de Re-
beca. E essa última, por sua vez, possuía uma idéia muito pessimista sobre a 121
entrega de novas crianças às terras de ninguém. Nem mesmo com os melhores
planos administrativos Rebeca um dia sonharia em trazer ao mundo crianças
para jogarem com o azar do nascer ao por do sol. Pois é exatamente o que
se faz. Talvez, morrer jovem seja uma idéia melhor. Morrer no auge de suas
capacidades. Muitos podem querer isso ao invés de definhar em solidão como
velhos indefesos. Ou, talvez, esta seja apenas uma explanação egoísta, para
sairmos do assunto. Devemos, então, morrer cavalgando o vento? O amanhã
nunca chegará!

Passado o momento de loucura, voltemos ao assunto: a infeliz história


de Rebeca.
― Anna, a velha questão me incomoda nesse momento. – continuava
Beca. Sabe... aquela tímida indecisão sobre a vida: vale a pena ou não? Se vale,
onde está a prova? Se não, por que continuamos?
― Essa mais parece uma pergunta de um suicida. – jogou Anna as pa-
lavras.

Marco Buzetto |
― De maneira alguma. – disse. Uma vez ouvi em algum lugar que o
suicida é um covarde. Não acredito dessa maneira. Pois, um dia bem disseram
que o único meio de nos mostrarmos contra tudo o que está errado é tirando
nossa própria vida. Do contrário, por mais que não queiramos, estamos acei-
tando tudo de cabeça baixa. Pela simples ironia de estarmos vivos. A vida é
mesmo uma ilusão?!
― Você está viciada, Rebeca. Isso sim me parece uma verdade.
― Viciada? Será mesmo? – indagou ela subitamente, com o suspiro de
uma pessoa assustada. Por um milhão de estranhos! Será mesmo? Pelas multi-
dões em discórdia, Anna, será mesmo que estou viciada?
Rebeca abria seus olhos e enxergava a si mesma discursando teorias
e malfazejas por longas horas que pareciam não ter fim. Viu-se falando para
muita gente, muitos deles amantes à toa, sem qualquer vínculo. E se pergun-
tou: “porque diabos estou perdendo meu tempo com essas pessoas que não me
importam um grão? Porque uma bebedora de grande energia como eu estaria
interessada em mudar o que as pessoas são, sendo que ao menos percebem o
122 que acontece a sua volta?”

― Você está abrindo meus olhos Anna, meu amor platônico. Esse é um
perigo que muito me incomoda no momento, minha amiga. O que você fez?
― Não sei se você vai tão longe assim. – brincou ela. Não sei até onde
pode chegar se medirmos em tempo, é claro. Semanas? Alguns poucos meses?
Acho que você não vai aguentar a pressão de uma visão pacífica sobre as pes-
soas. Além do mais, ainda não descobriu o que está procurando, Beca...
― Talvez seja minha redenção. – murmurou a garota olhando tímida e
desconfiadamente para cima, para o céu, e também para o abismo vermelho.

Do sofrimento solitário
Parte I

Sofrer solitariamente é trazer a tona todos os pensamentos possíveis

| Rebeca
sobre si e sobre o mundo; o todo que todos falam, mas que ninguém realmente
conhece ou sabe o que é. É pensar a respeito de todas as coisas já realizadas em
nossa vida e refletir sobre o que foi e o que ainda será, correto ou não de nossa
parte; e caso outras pessoas estejam envolvidas em nossos planos, pensamos
de imediato em seus possíveis erros e acertos, para que nada fuja do contex-
to previsível. E que o imprevisível seja coisa do passado. O que uma pessoa
solitária teria a mais de fazer, a não ser pensar, e pensar, e pensar; e quando já
estivesse cansada, poderia pensar mais um pouco para descansar? Claro, tem
quem prefira fugir a vida toda. E de alguém impossível de deixar para trás...
As pessoas fogem de si mesmas. Tem vergonha do que são, do que fazem. Não
aguentam se olhar no espelho sem sentir nojo, e uma solidão profunda que
adentra seus olhos até a o final da alma. Deve ser por isso que vemos tantas
pessoas despenteadas por aí...
Acho que foi Dylan quem um dia disse algo do gênero: “... você não
pode criticar o que não conhece”. Então deve ser mesmo assim que nos sen-
timos. Estamos prontos para criticarmos a nós mesmos? Sabemos por onde
começar? E Rebeca, está convertendo sua alma, sua filosofia destrutiva, em 123
um processo estranhamente inovador de pensar a respeito da felicidade nas
pessoas? Sua redenção talvez ainda esteja distante, difícil de ser encontrada.
Porém, por quem? Qual é a trama aqui? Sangrar solitário ou sorrir solitário?
Que diferença faz, então?

Do Amor, do Desejo e da Contradição


Da Contradição
Rebeca passou alguns dias pensando sobre si, pensando em como e
quando poderia mudar sua vida. No entanto, tudo o que acreditava era uma
moral pré-definida em sua mente, com ideais próprios, ética e princípios nos
quais apenas ela acreditava e somente ela compreendia. Rebeca, a linda garota
de cabelos negros e pele branca, encontrava-se em um momento de reflexão
pura. Tudo bem, pode até ser: esses momentos não são raros. Não raramente
Rebeca analisava sua própria vida levantando questões dignas de ensaios inter-

Marco Buzetto |
mináveis. Porém, dessa vez a garota Rebeca pôs a si mesma, sua mente e seu
corpo em um apuro do qual nunca mais se sentiria a mesma depois. Um mo-
mento único, que cometeu um estrago maior do que mil vulcões em erupção.

― O que você fez comigo? – perguntava uma voz doce, delicada. Não
consigo parar de pensar um minuto em você.
A garota Rebeca nada podia fazer nesse caso, pois percebera que o grau
de sentimento que pairava sobre suas cabeças estava em um nível assustadora-
mente acima do considerado inofensivo.
― Não consigo parar de pensar em você. Eu te odeio Rebeca! – con-
tinuava.
― Como isso aconteceu? Em que momento? – indagava ela.
― Não sei. Eu não sei responder suas perguntas. Só sei que meus senti-
mentos por você são grandes, extremamente fortes; que me fazem sonhar com
seu corpo em qualquer momento do dia e da noite. – respondeu.
Na cabeça de Rebeca, todas essas palavras de um valor extraordinário
124 suavam realmente assim, extraordinárias. Porém, uma preocupação andava de
mãos dadas com seus melhores pensamentos: “e agora”?
― Você sabe que não podemos tornar oficial esse envolvimento, não é?
Sabe que existem perigos demais sobre o que está acontecendo.
― Sim, isso eu entendo perfeitamente. – respondia aquela voz deliciosa
de se ouvir. Mas não aceito. Compreendo, mas não aceito o fato de não poder
fazer o que quero contigo, e deixar você fazer o que sei que deseja fazer comi-
go. Não aceito que um sentimento assim não possa ser posto a frente de todos
e todas para que vejam o quanto eu te amo.
Rebeca conhecia os motivos que iam contra os princípios deste envol-
vimento. Ela conhece todos os detalhes e faz questão de se lembrar e martirizar
os momentos nos quais pensava deliberadamente sobre o assunto.

― Se eu pudesse por a prova tudo o que sinto por você, faria isso sem
ao menos pensar. Pois possuo uma montanha de sentimentos. – confessava
ela, Rebeca.
― O fato de eu ter a religiosidade aflorada em de mim, corroendo mi-

| Rebeca
nhas entranhas, e um deus acima de minha cabeça a todo instante...
― Esse é o menor dos problemas. – respondeu Rebeca. Mas, o fato de
você ter em idade o número que me persegue, isso sim faz gerar um problema
real.
― É isso, então? Dezesseis é a resposta? – indagava Jakellyne, a mara-
vilhosa garota de longos cabelos de fios dourados, olhos lindos e sorriso digno
das deusas nórdicas e celtas.
Jakellyne, a mais exuberante garota se fazia presente em todos os cantos
para onde fosse o olhar de Rebeca. Jakellyne possuía uma simpatia colossal.
Aquele ar de desejo e pecado pairando sobre si mesma. Lábios simplesmente
invejáveis compunham a mais bela de todas as bocas que Rebeca um dia ousou
beijar.
Sim, a divina garota Jakellyne, além de possuir dezesseis anos de idade
possuía também o coração de Rebeca em suas mãos. E Rebeca, como se pode
ver e já ter conhecido à respeito, não poupava idolatria para com a garota. Esta,
simples e pecaminosamente, era em tudo melhor que qualquer outra pessoa
que um dia possa ter passado pela cama de Rebeca. Pois, além de lá, Jakellyne
reinava onipresente nos desejos e delírios da garota/mulher Rebeca. Desde o
abraço, o toque, o beijos, carícias e sorrisos... Ao peso de seu corpo sobre o de
Rebeca, tudo, absolutamente em tudo, Jakellyne se sobressaía a qualquer um.
― Você é toda a contradição da qual jurei me manter distante, Jakelly-
ne. Meu delírio, minha fúria pecaminosa... Meu não mortal. Minha dádiva.
― Não acredito no que ouço dessa boca que tanto me beijou encanta-
dora e escandalosamente. – respondia. Não acredito que você, Rebeca, quem
eu tanto amo e odeio ao mesmo tempo, tenta me fazer aceitar palavras tão
indignáveis, tão duras, tão negacionistas.
― Você é minha contradição. E se a maldição da religião estivesse tam-
bém sobre a minha cabeça, eu diria que também que você é meu pecado, e te
aceitaria sem culpa.
― Você diz isso por eu ter comigo essa maldição, não é? – continuava
Jakellyne. Por isso fala sobre pecado.
― Nada disso! – negou Rebeca. Já disse que esse é meu menor proble-
ma contigo. No entanto, também é um fato a se pensar. Pois, se eu não prego
religião alguma; como posso me sentir à vontade contigo, com alguém que
acredita piamente na existência de um ser soberano que exerce controle sobre
tudo e sobre todos? Essa também é um das contradições que existe entre nós.
O fato de existir religiosidade sobre a cabeça de Jakellyne fazia Rebeca
sentir certo incômodo. Pois, a seu modo de pensar, como amar alguém que não
possui liberdade do amor sobre si mesmo? Claro, para Rebeca esse pensamen-
to fazia todo sentido. E, cá entre nós, enfim...

― Você deveria vir comigo, qualquer dia desses.


― Ir contigo?! – indagou Rebeca. Ir contigo...
― Sim! – respondeu Jakellyne.
Ir à igreja? Rebeca von Weisheit, na igreja? Isso só podia dar errado.
Além do mais, esses convites nunca acabam muito bem. Pois não servem como
convite apenas, mas também como uma amarra que não pode ser solta.
― Desculpe, Jakellyne. Mas eu não vou. Aliás, esse é um de meus prin-
cípios o qual não quero quebrar.
― Sim, eu sei. – respondeu a garota. Se fosse com outra pessoa, você
bem que iria, não é? Mesmo você considerando que a crença em um ser supe-
rior, divino, torna as pessoas enfraquecidas, confusas demais, iludidas demais,
escravas demais.

Ignorando completamente o comentário incômodo de Jakellyne, Rebe-


ca resolveu partir rumo a sua indignação sobre suas contradições.
― Eu jurei pelos deuses não me meter com uma pessoa religiosa, por
mais interessante que fosse a experiência. Jurei não me relacionar com alguém
menor de idade. Jurei que não me relacionaria com alguém tão próximo, além
do sentido profissional. – dizia Rebeca. E antes de você aparecer, eu mantinha
meus ideais livres de qualquer culpa. Porém, também antes de você aparecer, a
muito tempo eu não sorria sem motivo; não sentia calor entre meus seios; não
mentia a mim mesma negando estar apaixonada.
Rebeca aos poucos confessava seus sentimentos pela garota que aqui é
chamada de Jakellyne. A distância não significava nada, se comparada à paixão
que existia entre as duas. Com os pés no chão e o desejo na estratosfera.
― Você vê Rebeca? Percebe o quanto me ama? – indagava a garota,
como quem forçasse uma porta trancada, difícil de adentrar.
― Você é minha contradição, Jakellyne. Minha pura e dolorosa contra-
dição. E eu luto uma batalha dura e extremamente dolorosa com meus ideais e
princípios toda vez que penso em você.

Do Desejo
Apesar de Rebeca considerar a garota dos fios dourados sua contradição
pessoal sobre todos os aspectos, ainda era realista o bastante para confessar
seu desejo por Jakellyne. Como alguém como Rebeca podia desejar tanto uma
simples garota? A resposta também é bastante simples: Jakellyne era tudo, me-
nos uma simples garota aos olhos de Rebeca. Jakellyne não era só uma garota
linda com seus dezesseis anos – aquele número que tanto atormentava Rebeca.
Nada disso. Jakellyne era um poço de simpatia e felicidade. E isso chamava
a atenção de Rebeca de uma maneira completamente fora do comum, quase 127
incontrolavelmente. Pois, por mais que Rebeca contrariasse as verdades nas
pessoas, via em Jakellyne um sorriso verdadeiro, e um sentido diferente para
a palavra alegria. Porém, não sabia dizer ao certo o que era esse misticismo
que envolvia a garota da décima sexta dimensão. Pela primeira vez, por conta
de Jakellyne, Rebeca sentia o que sentia, e ponto final. Sem muita explicação.

― Não consigo Anna. Não consigo parar de pensar...


― Você a deseja. Essa é a verdade.
― Sim! – expeliu Rebeca de sua boca. Eu a desejo. Quero a boca,
o corpo e os pensamentos de Jakellyne a todo instante. Mesmo conhecendo
todas as contradições existentes em minha mente sobre o assunto, eu desejo a
presença de Jakellyne, não importa o que aconteça. Quero o seu nome. Quero
suas vontades. Quero sua voz, seus olhares... Quero ouvir-la dizer o quanto
me ama e me quer. Quero sentir desejo pelo desejo que ela possui sobre mim.
E não importam quantos dedos de whiskey eu tome em goladas, não consigo
esquecer a existência de Jakellyne em meus pensamentos.

Marco Buzetto |
― Mas, o que é o desejo, Rebeca? Qual é o significado dessa palavra,
para uma pessoa que se utiliza da razão e do questionamento sobre todas as
coisas como você? – indagava Anna. Pois, eu a conheço melhor que todas as
pessoas que já passaram por sua cama. Sei o quanto duvida da dúvida. E não
é isso mesmo o que sente agora? Não é a dúvida que faz você desejar ainda
mais essa garota?
― Você tem razão, minha amiga do passado. – sussurrou Rebeca. Você
tem razão. Não gosto do sentimento da dúvida, pois prefiro ter consciência de
um fato ruim, ao pensar em mil hipóteses sobre algo que não está explicado.
Sendo assim, o que me resta sobre esse caso?
― Resta você afirmar, minha amiga. Afirme que contrariou a si mesma.
Afirme que duvida do que sente por uma garota de adolescência divina. Afirme
que Rebeca perdeu para si mesma, pois contrariou seus próprios pensamentos
desde o primeiro dia em que pôs os olhos em Jakellyne. – continuava Anna.
― Se isso for mesmo verdade, se odeio a dúvida, mas desejo Jakelly-
ne, então, o que sinto? – indagava Beca sobre si mesma, ainda aos sussurros.
128 Desejo Jakellyne por duvidar do que sinto, ou duvido do que sinto por desejar
essa garota?
― Eu iria ainda mais fundo nessa questão atormentadora, Beca. Con-
trariando a si mesma, você deseja ou detesta a garota chamada Jakellyne? Pois,
e você sabe que essa é uma verdade, Jakellyne fez o que nunca outra pessoa
conseguiu sobre Rebeca: fez com que você duvidasse sobre si mesma.

Do Amor
Com certeza esse é um tema que muda totalmente o rumo dos fatos na
vida de Rebeca. O Amor.
Rebeca já havia transado, apostado, feito e desfeito, conquistado e
abandonado, bebido e conhecido tudo o que teve direito em vida, e quem sabe
até mesmo experimentado o gosto da morte em alguns de seus devaneios e mo-
mentos mais íntimos. Porém, o amor é uma droga pesada, que vicia na primeira
dose, sem levarmos em consideração a quantidade administrada. O nome desse

| Rebeca
vício, dessa vontade inigualável? Jakellyne.
― Não sei ao certo o que me apaixonou em Jakellyne. Talvez sua ju-
ventude, sua jovialidade. Aquele sorriso inocente... Sem maldade aparente;
apenas bobagens de uma idade confusa. Talvez tenha sido sua beleza; a imatu-
ridade insegura em suas palavras ao conversar comigo tentando parecer mais
velha, porém, deixando escapar sua encenação a cada frase mal construída.
Talvez uma dose descontraída e sem querer de indiferença por mim.
Esse é o sentimento do amor agindo nas veias, sangue e cérebro de Re-
beca. Porém, o que é, afinal, o amor? Há um fundamento universal? Há alguma
explicação racional para tal sentimento, que não seja o envolvimento químico
de feromônios, adrenalina, oxitocina, neurotransmissores..., que fazem com
que essas mesmas alterações químicas sejam traduzidas pelo cérebro como a
sensação do amor? Afinal, somos todos elementos químicos. Contração uterina
causada pela hipófise. Sorriso aeróbico.
Pode o amor ser um momento de alegria, uma festa no parque, uma
noite em um concerto, um passeio pela praia, um sorriso, uma amizade, um
jantar... doces, bebidas, um fim de semana na cama com a pessoa que gosta- 129
mos? O amor pode ser a escolha pela solidão? Pode uma pessoa amar sozinha?
Ou melhor, pode alguém sentir amor em estar sozinho?
Sexo, paixão, amizade, desejo; a limerância de Dorothy Ten-
nov ou a relação triangulada de Sternberg de amor consumado:
intimidade+paixão+compromisso. Serotonina, dopamina, vontade, vontade,
vontade!... Instinto, instinto... Sexo, sexo... Sexo! Ou seja: reações de nature-
za animal traduzidas em sentimentos humanizados. Ou não?
Independente das teorias filosófica dos gregos ou as científicas dos psi-
cólogos atuais, o amor é um agente motivador; e cresceu em Rebeca de uma
forma torrencial. Tudo isso passava do sangue ao agora tão esquecido coração
de Rebeca, depositados ovuladamente por uma só pessoa: Jakellyne.

Essa garota de mistério tão simples a ser decifrado, certo dia deixou es-
capar de sua boca algumas palavras que fizeram o coração de Rebeca bater mil
vezes por minuto. Jakellyne sussurrou ao ouvido as seguintes palavras: “Você
é só minha. Não quero te dividir com ninguém. Entendeu”? Essa frase fez com

Marco Buzetto |
que Rebeca pensasse no sentimento do amor. Possessão! Não no sentimento
sentido em seu coração, mas sim, o amor disparado, atirado displicentemen-
te, agressivamente expelido e subliminarmente depositado nas palavras de
Jakellyne. E depois de ouvir tais palavras, Rebeca pensou em correr arrancan-
do seus cabelos, fugir desesperadamente, meio sem entender bem o que estava
acontecendo. Porém, milésimos de segundos profundos de reflexão, Rebeca
olhava intensamente nos olhos de Jakellyne, como se pudesse mergulhar fundo
em cada um deles, e pensou: “Este é o amor que tanto dizem?” Pela certeza ou
incerteza, a ordem era continuar com os beijos, abraços e amassos naquele sofá
novo, azulado de dois lugares.
Rebeca sentia um amor tão profundo advindo do coração daquela jo-
vem, perfeita, e de ingenuidade atraentemente sexy e delicada, que não con-
seguia se conter sequer um minuto. Seu coração explodia em felicidade. O
sangue nas veias de Rebeca corria uma maratona ao redor do mundo. E o suor
derramado por seu corpo se misturava a saliva e suor de Jakellyne, deixando
reluzente a penugem finíssima e dourada de seu corpo excitado.
130
― Eu não sei Jakellyne; estou confusa. – dizia Rebeca. Confusa por não
conhecer de verdade esse sentimento.
― O que lhe confunde, então, é o desconhecido?
― Sim, Jake, minha amada. – respondeu ela, Beca. O que me confun-
de, o que me entristece, o que me maltrata, o que me mata é a dúvida. E nada
mais duvidoso do que esse sentimento que nunca senti em meu coração. Eu te
amo Jakellyne, minha pequena Jakellyne. Te amo com todos os meus direitos e
deveres. Te amo como se eu nunca tivesse existido antes de te conhecer e ouvir
essas palavras da tua boca sedosa.
― Então é isso? – indagou Jakellyne. Só me ama por ter ouvido essas
palavras saídas da minha boca? Do contrário, então, não me amaria?

Isso não era verdade. Não para Rebeca. Porém, estava aí plantada mais
uma semente da dúvida. Se Jakellyne não tivesse, certa vez, dito “eu te amo”,
Rebeca então sentiria amor pela pequena garota de fios de ouro em forma de
cabelo? Só as mulheres sangram?

| Rebeca
― Eu nunca teria dito que te amo, Jakellyne. – confessou Rebeca. Nun-
ca teria dito tal barbaridade, mesmo se essa fosse a verdade mais profunda.
Pois, se você nunca tivesse dito antes de mim, confessando seu amor, eu nunca
teria dito, para não comprometer seus pensamentos, sua quietude, sua sanida-
de. Eu nunca teria dito que te amo, pois assim você poderia viver sua vida com
tranquilidade, sem sangrar o coração por uma pessoa pela qual você não possui
certeza sobre o que sente.
― Então, você admite sentir o mesmo que sinto por você? – perguntou
a pequena Jakellyne. Admite ter veneno correndo por suas veias?
― Admito ter seu veneno correndo em minhas veias. E não quero me
livrar desse risco. Mas temo encontrar também o antídoto com o passar do tem-
po. Isso me mete medo. Não quero te fazer chorar com mais força no futuro.
Prefiro ver algumas lágrimas agora, do que uma tempestade de tristeza amahã.

Do sofrimento solitário 131


Parte II
Qual é a trama aqui? Sangrar solitário ou sorrir solitário? Existem al-
guns tipos óbvios de pessoas; estereótipos que não passam despercebidos.
Existem aqueles que necessitam de companhia a todo instante. Existem aque-
les que gostam dessa mesma companhia, porém, um pouco distante. Existem
também aqueles que preferem a solidão; ou seja: preferem estar sozinhos, não
importa com quem.
Este último estereótipo, ironicamente contraditório, declara que mesmo
uma pessoa estando completamente sozinha, sem uma companhia definitiva
a seu lado, e pouco se importando se outras não definitivas existem, mantém
em pensamento um semblante ou outro, de alguém que esteve em sua mente.
Daí o que Rebeca chamou de sofrimento solitário. Uma companhia eterna em
nossas mentes, que conduz o sentimento de derrota, perda, tristeza e ressen-
timento – ressentimento positivo – por um fantasma irressuscitável. Nem ao
menos o maldito décimo sexto número pode trazer de volta à realidade algu-
mas imagens existentes apenas no passado. Enfim... Antes disso, você pode ir
para o inferno.
Marco Buzetto |
Para Rebeca, sofrer solitariamente é conhecer a si mesmo. Ser solitário
é uma opção corajosa, expressamente ambivalente, porém, precisa em suas
vontades. Para ela, ser solitário depende da capacidade de controle sobre si
mesmo; depende de capacidades justas sobre o que se quer para si. Ser soli-
tário, para Rebeca, é saber exatamente o que se está fazendo, indo, pensando,
querendo, negando. É uma escolha forte, porém, repleta de sofrimentos em seu
início – daí a ambivalência.
Mais tarde, como parte de uma espécie de processo de transição da
ansiedade, esse sofrimento se torna fácil de lidar, por conta da compreensão e
convivência sobre o mesmo. Se torna um aliado. Não um inimigo.

132

| Rebeca
Parte VII
Vivendo para vencer. É isso o que Rebeca anda fazendo ultimamente?
Vivendo... Vivendo como uma verdadeira mulher, para talvez um dia mor-
rer como uma vespa entre a palma das mãos de um desavisado? Uma mulher
normal talvez não acordasse durante a madrugada gritando aos urros como
Rebeca costuma fazer. Talvez um transtorno bipolar... Nada disso! Para Rebe-
ca, bipolar é pouco. Um transtorno polipolar seria mais correto. Nada de “do
céu ao inferno em um segundo”, não, pois Rebeca é o próprio céu e inferno.
Rebeca está entre todos os pontos, nos quatro cantos do mundo, em todos os
planos físicos e metafísicos.

― Agora que você descobriu o verdadeiro amor, Beca, que tal confes-
sar sua devoção pelo ser humano?
― Eu nunca faria uma coisa dessas Anna, minha amada. – respondeu.
Eu jamais entregaria os pontos assim. Jamais jogaria a toalha nesse chão imun-
133
do. Eu ainda não venci, e não fui vencida. O que aconteceu com meu suposto
coração fora apenas um momento de devaneio sob a luz da dúvida.
― Cada dia que se passa fica mais difícil conviver, não é mesmo...
― Você tem razão, Anna. – confessou. Cada dia que se passa fica mais
difícil conviver comigo mesma. Não me aguento mais; e às vezes me pergunto
se está sendo tão difícil para os outros me aguentarem, assim como para mim.
― E parece que você nem ao menos tem aturidade sobre esse seu livro
aberto chamado vida... Ou tem? – disse Anna.
― Não sei. Realmente não sei o que está acontecendo. Até parece que
perdi o controle da situação. Parece que as más notícias estão mais fortes, e
as boas notícias não passam de coincidências em minha vida. Devo exercer
influência, não controle, eu acho.
― Parece que depois da invenção da palavra coincidência, tudo deixou
de ser especial. – completava Anna. Como o estouro de uma garrafa de hidro-
mel prometido ser aberto apenas no natal, e que exatamente no dia vinte e cin-
co tem sua rolha arremessada por conta da pressão, molhando todo o assoalho
Marco Buzetto |
e espalhando seu perfume dourado cristalino por toda parte.
― Lamentos, Anna. Tristezas. Pensamentos confusos. Amores vindos
de não se sabe onde, e lágrimas congeladas de vontades que não se pode reali-
zar. Falsas alegrias. – completava Rebeca. Será mesmo assim a vida?

A Negação do Amor
Verbos venenosos
Rebeca transa com a verdade como uma prostituta ou uma adolescente
embriagada, fazendo tudo o que lhe vêem a cabeça.
― Eu chupo a verdade e deixo-a gozar na minha cara. – pensou ela
sussurrando, meio que afirmando suas próprias expectativas.
― O que você não sabe, Rebeca, é o motivo que te tornou essa pessoa
obcecada por respostas plausíveis. Qual é o motivo? Existe algum? Você faz o
134 que faz, é o que é por qual razão? Você ao menos possui alguma?
― Não preciso de razão. Porém, quero ir mais além. Quero ir a fundo.
Quero buscar na alma das pessoas suas razões, não as minhas, para continua-
rem sendo o que são. Para continuarem vivendo. – dizia Rebeca. Quero buscar
as razões que fazem a sociedade se mover rumo a essa visível catástrofe sócio-
-plasmática. Se é o amor, tanto faz. É isso o que eu busco. Quero saber o que
existe no centro dessa amálgama injuriada chamada ser humano.
― Mas Rebeca, tanto tempo se passou desde o começo destas páginas
que lhe atribuem vida, e nada você aprendeu? – indagou alguém que penetrava
seu corpo.
― Quero os detalhes. Quero o sangue, a saliva e o suor de cada expli-
cação. Quero ter um orgasmo para cada resposta que me derem. Quero sentir
nas paredes do meu útero o gozo da contradição em cada palavra jorrada pela
boca das pessoas. – respondeu a garota Rebeca. Aliás, algumas semanas resu-
midas em poucas páginas não bastam. Eu quero mais... Eu tenho muito mais
a ser explorado.
― Você perdeu o foco. Perdeu o prazer... Não sabe mais onde procurar,

| Rebeca
pois não sabe mais o que está procurando. Não sabe mais quem você mesma é.
― Eu sou Rebeca! Rebeca von Weisheit, o Amor e a Solidão.

Os dias na vida de Rebeca passavam lentamente. Tão velozes como um


trem-bala, como um turbilhão. E a garota/mulher continuava sua busca pelas
respostas de algumas perguntas as quais apenas ela conhecia. Questões, talvez,
nunca compreendidas em sua mente. O whiskey já não ajudava mais. A vodka
pura, russa, de Anna já não respondia questão alguma. O gim, o absinto, a
sambuca, o vinho, nem mesmo o hidromel de Aske lhe trazia algum devaneio
objetivo, ou um pouco menos vago do que o de costume.
...

Quem precisa do amor, de amor? Quem precisa amar? Quem, por mil
demônios e anjos, precisa ser amado, afinal de contas? Quem quer ser afron-
tado, contrariado, escravizado... Quem quer sucumbir ao amor? Quem quer
ser suicida?
135
O amor não é um sentimento a dois. Não pode, por natureza, existir um
amor único entre duas pessoas. Cada um possui seu próprio amor: o amor pelo
outro. Um relacionamento: dois amores! E eles, os amores a dois, são solitá-
rios. Um sentimento de amor briga com o outro pela ocupação do espaço entre
dois corpos. Para que um fique, o outro precisa partir. É assim num contrato a
dois. Pois, não é isso o casamento? Um contrato? Não são os DOIS, mercado-
ria? Não está UM cedendo a utilização do seu corpo, de si, ao outro, pelo tempo
em que permanecerem juntos? A união é um comércio.
Como pode, então, o AMOR ser feliz, cedendo seu lugar a outro, dimi-
nuindo sua potência, ou até mesmo deixando de existir? Para que duas pessoas
se amem, verdadeiramente, em sua totalidade, de verdade, é preciso que não
amem um ao outro.
O amor é solitário! Só se pode amar sozinho! Não se pode ter amor ao
lado de outra pessoa, de outro amor. De fato, quem ama, quem realmente sente
amor e quer o amor, está e estará sempre, a todo instante, sozinho. Pois, uma
relação a dois, três... se baseia em ceder: ceder aos pontos de vista do outro,

Marco Buzetto |
ceder às vontades do outro, dizer não! a si mesmo. E quem, sejamos francos,
pode ser dono o bastante de si mesmo e de seus sentimentos a ponto de dizer
não! ao outro, ao amor do outro?

A solidão ama! Não as pessoas. As pessoas não amam. A solidão ama,


pois o amor ama a si mesmo.
Então, o que torna possível um relacionamento? O que torna possível
que duas pessoas fiquem juntas, permaneçam unidas? Bom, não é o amor!
Pois, quando se está junto, a vida continua, e as conquistas também. As respon-
sabilidades aumentam. Os gastos, as necessidades, o trem continua no trilho e
o preço que mantém seu combustível é alto. A vida continua a se construir, e
um segue pelo caminho do outro, juntos, meio que sem querer; mais ou menos
por impulso, pela alienação do “estar junto”, meio que sem saber por que se
está indo para o mesmo lado. Essa é a conveniência!
É conveniente fazer o que o Outro quer, para que eu também consiga
fazer o que Eu quero. Faça de novo, e de novo: vire-se para trás, e volte! É
136 assim que funciona. É uma troca, não é mesmo? Eu faço o que você quer, hoje,
e você faz o que eu quero, amanhã. Pode ser? Está bem assim? Está bom pra
você? E, caso uma das partes não cumpra com seu acordo, pronto!, está aí: cri-
se, um impasse. Não minta! Mantenha seu mundo real em mim! Enlouqueça!
Grite; esperneie. Mas, mesmo assim, o outro amor está aí, tentou sobreviver,
se sobressair. Mas, não! Aqui não, meu amigo! Só há espaço para um amor. O
outro que ceda espaço. O outro que dê o braço á torcer. O outro que chore em
silêncio quando eu não estiver olhando.
Quando você, Amor, estiver sozinho, quieto no seu canto, acabado de
acordar de uma noite de choradeira ainda com lágrimas nos olhos... Aí sim!
Agora sim você pode olhar para frente e enxergar o horizonte. Aí sim você
pode ver o resto do mundo à sua frente.
A solidão ama o amor, pois ama também a vida, o viver.
A solidão existe quando se está acompanhado. Não quando se está so-
zinho.
A solidão existe quando se tenta mostrar ao outro o amor por seu pró-
prio ponto de vista. E dói quando o outro o aceita, pois o amor desaparece.

| Rebeca
O amor é um gênio forte, e quer continuar vivo, ativo, excitado!
O amor é um gênio forte, que não quer partilhar um pedaço de si com
o outro.
O amor a dois é solitário. O amor a dois é triste, pois chora sozinho
pedindo espaço. Chora sozinho pedindo atenção.
O amor ama a solidão, pois assim pode continuar vivo. A cumplicidade
mata o amor. Queima sua existência. Fura seus olhos com um prego quente, e
o deixa chorando sangue.
O amor morre quando há união. E quando acaba o amor, o que sobra é
o casamento. A conveniência da união.

Tome cuidado, Amor. – gritou Rebeca. Pois, quando provarem seu sa-
bor, quando perceberem sua existência, outro tentará tomar seu lugar. Coita-
do de você, Amor. Fuja! Corra! Esconda-se nas montanhas, nas cavernas, no
fundo dos oceanos. Esconda-se na escuridão de um útero virgem, e fique lá
até que possa nascer sozinho, ou até que percebam que você também fala suas
próprias palavras.

Alfabeto Apolítico
Vou lhe dizer uma coisa sincera, do fundo do que restou do meu co-
ração. Pessoas como você e eu vivem rodeadas de gente que nos adora. Mas,
quanto mais pessoas estão a nossa volta, menos gosto sentimos por elas. E,
vez ou outra, vários destes sentem desprezo também por nós. Então, não existe
maldade em transparecer, vez ou outra, também nosso desprezo por alguns?
Não existe bondade. Não existe maldade. Não existe certo ou errado para quem
não acredita. Não se pode confiar em ninguém com mais ou menos vida que
você. Não se pode confiar em ninguém. Muito menos em nós mesmos! Pois
cada um de nós é passível de erros formidáveis, praticamente impensáveis.
O ser humano é um ser imperfeito e tende muito a melhorar; sua evolução é
extremamente necessária. Urgente!
Porém, como realizar tal ousadia? Deveríamos, ainda, perder tempo
com o ser humano? Poderíamos, ainda, nos dar ao luxo da esperança pela
bondade e pelo bem do ser humano? Ou melhor, (pior, quem sabe), seríamos
ignorantes o bastante para pensar no ser humano de alguma forma? Devemos,
ainda, perder essa energia e esse nosso tempo tão precioso em busca de neces-
sidades e anseios tão básicos, tão primais? Não é o ser humano, ainda, uma
perda de tempo? Enfim, não se pode pensar, ou querer pensar em qualquer que
seja o assunto. Não vale à pena. Não pode valer à pena. Nenhum de nós vale.
O que mais? O que mais podemos fazer?

A sepultura do consciente

Rebeca dizia que quando a necessidade não é mais necessária, ela deixa
de existir. O mesmo acontece com nossos pensamentos conscientes.
Para Rebeca, não era o amor pelas pessoas que importava. Na verdade,
essa concepção de amor, para ela, não fazia a menor diferença. Rebeca acredi-
138 tava que o amor, esse termo tão simples, é um sentimento muito novo, e ainda
pouco compreendido. Um sentimento moderno. Um sentimento que, apesar de
prender a atenção de muitas pessoas, é, ainda, incerto, e pouquíssimo confiá-
vel. Se esse sentimento é uma sensação confusa, quem o sente, ou diz sentir,
não é, então, tão confuso quanto?

― O que você considera claro, Rebeca?


― Clara é a maldade no coração das pessoas. – respondeu.
― Então você admite que as pessoas possuam um coração? – continuou
Anna.
― Se meio quilo de carne podre pode ser chamado de coração, então
sim, admito. No entanto, se aquilo que o ser humano possui no meio do peito
é algo além de um órgão, posso chamá-lo de “gerador de conflitos internos”.
As palavras de Rebeca provavelmente querem dizer que não há bonda-
de no ser humano se esse possui um coração podre, ou seja, um coração cheio
de vícios, repleto de conflitos gerados por si mesmo. O ser humano não passa,
então, de apenas mais um, meio a tantas espécies que já extintas. No entanto,

| Rebeca
possui a capacidade de extinguir a si mesmo, chegando, esse fato, à beira do
abismo da linguagem poética.

― Eu não aguento mais tanta pressão. Não aguento mais tantos pro-
blemas que dia e noite são depositados em mim como se eu fosse uma lixeira
abandonada atrás de um motel imundo. Não aguento mais a pressão em mim
gerada por tantos conflitos alheios.
Sim, ela está passando por dificuldades. Está passando por muitos pro-
blemas de saúde, quem sabe até mesmo mentais. No entanto, por que um deve
sofrer pelas dores do outro? Por que diabos eu deveria sofrer e chorar a dor
que ela sente e chora? Não teria ela mesma se colocado nessa situação?
Quando o ser humano chega ao ponto de enxergar a si mesmo no es-
pelho, na verdade encontrou a si mesmo no fundo de um abismo; no fundo
do abismo mais escuro e apavorante que existe. O abismo do inconsciente.
Por quê? Porque não existe salvação para o inconsciente. Não existe remédio
milagroso. Não existe milagre que auxilie no mal da profundidade dos olhos.
Parece até que estes, os olhos, dão a volta em seu eixo e olham para dentro, ou 139
para dentro da memória viva. Estes olhos enxergam o assombrado, o número
maldito da repetição paradoxal na linha anterior que traz consigo formas inex-
plicáveis de solidão.

― Ninguém responde esse paradoxo, Anna, minha idólatra. Ninguém.


Nem você, nem a mim, tampouco aquele que se diz ou dizem ser o mais sábio.
― Você está falando sobre deus, Beca, meu ídolo de pés de barro?
― deus? deus, Anna? – indagava a bebedora de whiskey e sêmen san-
guíneo. Você ainda acredita nessas besteiras, nesse folclore armado? Nessa
cantiga de ninar que assusta as crianças?
― Há quem acredite, mesmo não sendo você ou eu. – respondeu Anna.
― Vou lhe dizer uma coisa, Anna, e que fique gravado em toda sua me-
ninge: o problema não está apenas nas pessoas acreditarem em deus; mas sim,
essas mesmas pessoas acreditarem que esse tal deus acredita nelas.
― Isso quer dizer...
― Quer dizer que a existência de um ser tão egoísta é uma aberração

Marco Buzetto |
por si só. No entanto, acreditar que essa mesma aberração estereotipada, acre-
ditar que esta besta imaginária acredita e realiza ações acreditando na existên-
cia humana, é ainda menos racional. Tenho pena de quem deixa de acreditar
em si mesmo, e espera ser salvo acreditando em algo tão ilusório, tão mentiro-
so, tão mesquinho.

Às vezes, quando você dorme


Um relato para além do aquário
Certa vez Rebeca conheceu uma pessoa no mínimo curiosa. Claro, nes-
se ponto você pode dizer que a garota já conheceu todas as formas de seja lá
o que for. Pode dizer que Rebeca já conheceu todos os homens e mulheres
intimamente... O que não deixa de ser verdade. Rebeca já transou com todos e
contra todos buscando nadar para as profundezas da superfície. Porém, o en-
contro a seguir não possui única e exclusivamente o contato carnal. Vai além.
140
Eu senti tudo. Todos os sentimentos humanos sendo absorvidos por
meu corpo. Eu tentava gritar, mas parecia em vão. Tentei esmurrar a lataria,
mas parecia que eu não possuía cem gramas de força sequer. O tempo estava
parado, completamente parado. Minha mãe no banco do motorista, já desa-
cordada, minando sangue; minha irmã ao lado dela, no banco do passageiro;
dava pra ver o que restou do cérebro misturado a fragmento de ossos e cabelo
espalhados pelo teto de ferragem distorcida.
Eu estou no banco de trás, um pouco entorpecida por conta do aciden-
te. Grito. Eu grito cada vez mais alto. Mas minha voz não sai, e o tempo
continua congelado. A queda parece não ter fim... Mas a ponte não é tão alta.
Estou menos sonolenta, com a adrenalina tomando conta do meu ser.
Grito por minha mãe e chacoalho seus ombros e cabeça com violência, para
que acorde. Estou tentando soltar meu sinto de segurança, mas está emperrado.
A cabeça de minha irmã aberta como uma flor desabrochada no verão, e eu
evitando a todo custo olhar aquela cena. Ninguém por perto. Nem ao menos
sei o que houve com o caminhão no qual batemos. Há tanto sangue espalhado
| Rebeca
que forma um chuvisco vermelho fora do carro. Consigo ver as gotas ainda no
ar, enquanto caímos.
Entendi por que pareço não conseguir gritar. Meu maxilar está em pe-
daços, praticamente esfarelado. Agora entendo por que sinto tanta dor. Com
o susto, tentei por minha língua dependurada, com as mãos, de volta ao que
restou de minha boca. O desespero toma conta de mim. Uma cena mais ater-
rorizante que a outra. Nosso carro ainda caindo, congelado no ar, e minhas lá-
grimas vertendo como torrentes de meus olhos, tentando encontrar uma saída.
Um barulho altíssimo, que ecoa em minha cabeça. Finalmente caímos.
A altura da ponte em relação ao rio não é tão grande, mas mesmo assim há
muito barulho. Deve ser o eco ensurdecedor em meus ouvidos. Ainda aflita,
tento não morrer afogada. A água invade rapidamente o carro, e parece lavar
das paredes e ferragem a tintura cerebral e viscosa de minha irmã.
Estou engolindo muita água. O gosto é terrível. Pesado. Um gosto de
agonia. Gosto de caixão. Minha consciência está diminuindo rapidamente.
Sinto o gosto da água, como quando tomamos banho e engolimos pouco sem
querer. E eu que gostava tanto de tomar banho de chuva. Era uma verdadeira 141
amante da chuva, da água. Mas aqui tudo está diferente. A luminosidade do
sol sendo refletido dentro do rio, que era tão linda, diminui a cada metro que
afundamos. Não são apenas os raios solares que perdem força. Meus olhos
também, e já começo ter dificuldade para enxergar.
Mais um barulho. Esse, porém, abafado. Chegamos ao fundo do rio. É
sereno aqui em baixo. Uma tranquilidade sem igual. Sinto meu coração baten-
do forte, muito forte, tentando consumir cada milímetro restante de oxigênio
em meu sangue. O mesmo acontece com meus pulmões. Não aguento mais.
Quero respirar... Ainda, desesperada. Mas não posso... Não consigo.
Sinto a água entrando em meus pulmões. Pesada. Não há mais luz do
sol aqui embaixo. Ou não há, ou já não enxergo mais.
Alguns últimos goles forçados tentando buscar oxigênio. Meus olhos
tremem como num colapso enfurecido. Meu corpo todo treme, e tenho espas-
mos nos membros inferiores e superiores. Está frio; muito frio...
Sei que parecia uma eternidade. Mas, agora está acontecendo tudo tão
rápido, e sinto cada detalhe em meu corpo e meu arredor. Para quem tinha

Marco Buzetto |
dúvidas sobre como é sentir a morte chegar, está aqui explicado. Estou morta
junto de minha mãe e irmã há muitos dias, não sei bem quanto tempo ao certo,
pois não sei se é dia ou noite. Mas, já não há muita pele recobrindo nossos cor-
pos, pois os peixes já se encarregaram de matar a fome. Suas bocas se esfregam
com muita voracidade em nossa carne. Faz cócegas. Mas é triste. Os corpos
da minha mãe e irmã estão muito inchados, parecem balões prestes a explodir.
Que pena. Infelizmente não reencontrei minha querida amiga Rebeca.
Ela faz falta aqui embaixo. Estamos em um verdadeiro aquário. Sinto falta dela
comigo aqui embaixo.
Quem sabe minha memória esteja ainda presente. Quem sabe as pesso-
as ainda leiam minhas palavras. Quem sabe elas ainda se lembrem como foi
minha morte. Quem sabe algo ainda faça sentido na vida.

Chamando a chuva
142
Os poucos pássaros que voavam em frenesi deixavam o céu. O barulho
frenético da modernidade dava lugar ao canto ritualístico do pensamento. As
árias atmosféricas soavam e ecoavam por todo o esplendor, chamando a chuva.
E Rebeca? Rebeca, aquela filósofa alcoólatra e uteromaníaca? Ela está aqui
também, dançando com as gotas cristalinas que caem do céu; bebendo a água
celeste, tocando seu corpo, transando com a chuva.

― O que há na chuva que tantas pessoas se atraem por ela? – se pergun-


tava. O que faz com que as pessoas tenham medo, e ao mesmo tempo afinidade
com essa tormenta que cai sobre suas cabeças em forma de água? Por que a
chuva conforta e ao mesmo tempo assola a todos os seres?
Quer dizer, por que nos apegamos a sentidos primitivos, como esperar
pela chuva, por exemplo, ansiando seus benefícios. Por que temos medo do
fogo, e torcemos para que seu calor aqueça nossas mãos durante o inverno? Por
que gostamos do vento em nosso rosto, refrescando o dia, e ao mesmo tempo
tememos sua força devastadora? Por que, também, temos uma relação perpé-

| Rebeca
tua com a terra, na qual plantamos e colhemos, e ao mesmo tempo ficamos
amedrontados caso essa se mova por um terremoto, ou decepcionados caso não
de mais frutificações?
Rebeca, em suas vias do pensamento, estava fazendo uma crítica não
aos elementos, mas sim, o apego do ser humano a um passado primitivo de
idolatria e medo. A chuva continua caindo, molhando o corpo de Rebeca en-
quanto festeja e aplaude seus seios, umbigo, barriga, cintura, vagina... Rebeca
ritualiza seu próprio corpo e faz dele um templo de questionamento súbito e
esmagador.
O que é o ser humano, a humanidade, se não uma coleção de vícios de
aspectos tribais, de um passado do qual não soltamos das mãos.
A chuva, o céu, o vento, o fogo, a terra, o amor, o ódio, os sentimentos
que são atrativos às pessoas, o choro, a alegria, o rancor, a tristeza, a lamen-
tação tradicionalista, o desejo inconsciente de tornar tudo uma obra divina,
como a invenção do próprio deus; para que, hoje, a necessidade da crença em
algo divino? Qual a função, hoje, para o ser humano moderno, da existência na
crença de deus? Hoje tudo é explicado, quando não auto-explicado. É o medo, 143
o medo de soltar a mão do passado tradicionalista, alienado. Um passado que,
em seu tempo, fazia sentido, mas que hoje não deve ser levado a sério, para que
o indivíduo possa progredir.
Acreditar em um ser superior, divino, é afirmar e reafirmar que o ser
humano é um ser inferior, digno de piedade e pena. Se ajoelhar perante o ina-
nimado, dentro de uma igreja ou na beirada da cama, é manter viva uma crença
de que o ser humano nunca alcançará esse ser. Quanto mais as pessoas na terra
rezam para deus “no céu”, mais se distanciam.
Esperança é esperançar, ir à busca do que se quer. Não viver em la-
mento, pedindo piedade e esperando que “alguém” nos ajude. Esperança não é
esperar. A espera faz do ser humano um covarde, e essa palavra deve ser posta
na lista do que é prejudicial ao ser humano.

― Devemos chamar a chuva. Devemos pedir por ela. – continuava Re-


beca. As pessoas devem querer que a chuva venha em forma de tempestade,
de tormenta, em sua plenitude mais enfurecida, para que lave o mais grosso e

Marco Buzetto |
grudento apego ao passado injuriado. A chuva deve lavar o ser humano de seus
apegos prejudiciais, tornando-o limpo e claro para receber o que é positivo. O
ser humano deve estar limpo para receber a si mesmo em sua plenitude, e com-
preender que apenas a crença em si próprio é que pode modificar a realidade
que há muito não o agrada.

Quando a chuva ama

Quando não conseguimos nos afastar de algo ruim, estamos fadados a


passar o resto da vida, que pode não ser muito tempo, é verdade, cultivando
sentimentos medonhos, medíocres, e que nos afetam diariamente. Quando não
conseguimos deixar o que é ruim, nos tornamos um templo de mágoa, de so-
frimento interno.

144 ― O que acontece muitas vezes, minha Anna, é que o amor nos deixa
mortos por dentro. Não vivos. É exatamente o contrário do que se pensa. O
amor não aviva. Ele mata. E mata de formas terríveis, como os mais capa-
citados torturadores. O amor mata a mente dia após dia, sorrateiramente, em
silêncio.
― Do que está falando, Beca?
― Estou falando da chuva e do amor, minha serena amiga de cabelo
ensolarado. O amor chama a chuva, e a chuva chama o amor. O amor ama a
chuva, e a chuva ama o amor.
― Parece que esse é mais um daqueles momentos de bebedeira e deva-
neio. O que foi Beca? Noite ruim?
― Não há noite ruim, Anna. Nem dia ruim. A noite é noite, e o dia é
apenas o dia. Não há mistério, além daqueles que criamos.

Rebeca sabia bem o que estava dizendo. Não estava bêbada, muito me-
nos dando vida a mais uma quimera.
Quando diz que o amor mata, quer dizer que, em momentos de solidão,

| Rebeca
lembranças não superadas de um amor passado podem voltar a si como fantas-
mas, como espíritos do passado que nos fazem martirizar. O amor, nesse caso,
apegado tão fortemente ao passado que não se superou, prejudica o ser huma-
no, e faz com que tenha fraqueza em seu coração. Fraqueza. Não superação.

― Então, quer dizer que não devemos amar, Beca? – indagou Anna,
sorrindo com seus lindos lábios finos e claros.
― Pelo o contrário. O amor não é proibido. É proibido o sofrimento
embasado no amor.
― E como fazer para que as pessoas não sofram por amor?
― Essa é a canção de um fantasma há muito tempo esquecido. Deve-
mos cantar junto dele. Não podemos ficar olhando enquanto ele dança alegre-
mente; e nós, sentados na poltrona chamada luto.
― Mas, o luto, Beca? O luto? – questionava Anna. O que tem o luto a
ver com isso?
― Pura filosofia, Anna. Pura loucura minha. Você deve ter faltado a
essa aula, aposto. – explicava. Quando há uma perda em nosso coração, por 145
exemplo, com a morte de um ente querido, o que fazer?
― Bom, deve-se seguir em frente. Certo?
― Correto! A vida de um não para porque a do outro parou. Essa perda,
então. deve ser superada. Concorda?
― Sim. Concordo. Devemos superar a perda do luto para seguir em
frente. – respondia Anna.
― Mas, superar a perda, apenas, quer dizer tentar esquecer o passado?
― Acredito que não.
― E porque diz isso, Anna?
― Não há como esquecer algo que marca tão profundamente nossa
memória. – respondeu a bebedora de vodka.
― Exato, Anna. Exatamente!

Sendo assim, o que entendemos, então? O amor deve ser esquecido,


deve ser posto de lado para que não soframos? A memória, então, deve ser
esquecida? Não! Nada disso.

Marco Buzetto |
Rebeca quer explicar que não há como esquecermos, assim como con-
cordou Anna. A perda de um amor pode ser comparada a perda de um ente
querido. Se um deles morre, mesmo que simbolicamente, como o amor, não se
pode viver em luto eterno. Não podemos viver nos martirizando pela perda de
algo que tanto nos alegrou. O que fazer, então?

― Diga Beca. Responda essa questão. O que se pode fazer para não
vivermos em luto, chorando pelos cantos constantemente?
― O que se deve fazer, minha amiga de corpo tão macio e suculento,
minha querida amiga de cama e pensamento, é seguir em frente. Como? Iden-
tificando a causa do problema, refletindo sobre o mesmo, compreendendo-o,
aceitando-o. Assim se deve proceder mediante uma perda tão grande e marcan-
te na vida de qualquer mendigo, de qualquer rei.

Sim. Compreender e aceitar a dor da perda. Esse é um bom conselho,


uma boa lição dada pela mulher que se deita e transa com qualquer um. Re-
146 beca realmente compreende a fundo os males no ser humano. O desapego de
Rebeca ensina quem está ao seu redor. É a compreensão dos fatos que faz
com que compreendamos o que há de errado ao nosso redor, permitindo que
continuemos nossas vidas, sem sofrer. Quando se compreende e aceita, não há
sofrimento.

― Assim a chuva ama. Pois a chuva vem para lavar o que é pesado
e ruim na vida das pessoas. Assim se deve viver: compreendendo o que nos
cerca. A chuva ama, pois quer o bem a quem está sob suas lágrimas. A chuva
ama o amor, e o amor ama a chuva, pois precisa dela para lavar o que é ruim.
O que é ruim é a falta de reflexão e compreensão. O que é bom é a chuva, que
cumpre sua função. O amor é neutro.

O amor é neutro. A necessidade é parcial. O amor é um sentimento


puro. E sendo puro, não possui complexidade. Cego é o momento. E exagerada
é a ansiedade. O amor em si é um sentimento vazio, preenchido com momen-
tos e necessidades que possuem sentimentos próprios. Ele é preenchido pela

| Rebeca
necessidade de cada momento presente na vida das pessoas. O ódio também é
amor. O ódio é uma paixão que proporciona o mal. Ou seja: a paixão também
é neutra. Sendo preenchida pelo momento e pela necessidade. O ódio também
é um sentimento puro. O momento e a necessidade é que fazem de um senti-
mento mal ou bom. A ambiguidade está em quem sente cada um deles. Não há
diferença entre os dois. Quem constrói a diferença é a necessidade e o momen-
to. A diferença não está no sentimento. Mas sim, no que constrói o sentimento:
a necessidade e o momento.

A existência é primária. Para que haja a consciência, é preciso que a


pessoa exista. Se ela existe, existe. O que faz dela um ser que escolhe uma
opção são a necessidade e o momento. Do contrário, é apenas uma pessoa que
existe. Tão pura e vazia quanto o amor. Existir, por si, não é suficiente e bom.
A existência em si não prova nada. Uma pedra existe, mesmo assim ela
não possui consciência de escolha. Um cachorro existe, mas age por instinto e
condicionamento, levando em conta processos específicos de escolha baseados
em ações programadas pelo tempo, pelas experiências. Um objeto inanimado 147
existe. Porém, não possui nada além de si mesmo. O ser humano existe, e é
dotado de escolhas livres. Escolhe o amor ou o ódio. E essa escolha é baseada
em suas necessidades momentâneas.
O amor é uma paixão muito forte que produz o bem. E o ódio também
é uma paixão muito forte, que produz o mal. Logo, a paixão é o modificador
comum do processo. A paixão é o filtro. A paixão é quem empurra para um
lado ou para o outro.

Imperador de uma desconhecida região


Viagens por cavernas e desertos
O imperador de desconhecida região é ninguém menos que nós mes-
mos. Ou melhor, deveríamos ser. Mas, por quê?

Marco Buzetto |
― Simples. – exclama Rebeca. A maioria das pessoas não compreende
a si mesmas. Não conseguem entender seus próprios caminhos. Quando esse
problema acontece, o ser humano torna-se vítima. Vítima de sua própria insu-
ficiência.
― Mas, como compreender a si mesmo? – indagou uma voz ofegante e
suada vinda de cima da garota/mulher.
― O reino mais desconhecido é o que levamos conosco. Está em nos-
sa mente. Os sentimentos devem ser superados, para que haja a plenitude da
sabedoria. No entanto, esse é um campo inexplorado. Um campo de batalhas.
Nossa mente é um campo de batalhas que não cessam. – respondeu Rebeca, ao
homem que penetrava seu corpo freneticamente, apenas se valendo do diálogo
como forma de desculpa para transar com a garota.

A cada posição, Rebeca, além de gemidos e orgasmos, punha para fora


também mais palavras e pensamentos. Enquanto seu clitóris róseo rejubilava
de prazer, as questões vinham à tona, mesmo que sem resposta.
148 ― O ser humano deve conhecer a si mesmo, antes de qualquer coisa.
Antes de abrir seus olhos pela manhã. Antes de levantar-se da cama. – conti-
nuava ela enquanto soluçava em gemidos entre cada palavra. As pessoas, igno-
rantes como o são, devem compreender o que são, o que sentem, o que fazem;
antes de tomar conta do que é externo, devem olhar para o interno. Devem
voltar sua atenção ao útero, no caso das mulheres, e ao cérebro, se for homem
o bastante.
― E é assim que alguém pode se tornar imperador de si mesmo? Onde
está a região desconhecida, então?
― Você é tão medíocre quanto qualquer outro. – respondeu Rebeca.
Deve pensar que o deserto é meu ventre, e cavernas são meus ânus e vagina. É
claro que as cavernas são as profundezas da consciência. O deserto é o cami-
nho no qual alguém se prende sem saber aonde vai, por falta de compreensão
sobre si mesmo. As pessoas deve adentrar a profundidade mais obscura de suas
cavernas, e tomar coragem em relação as suas atitudes.

Para Rebeca, a consciência não passa de uma obscuridade. E por ser di-

| Rebeca
fícil de compreender, por conta de sua profundidade e complexidade, a maioria
se mantém distante dessa caverna. Não por medo. Mas sim, por pura ociosida-
de. Pensar, um ato tão simples e primário do ser humano, para as pessoas que
temem suas cavernas, é um trabalho árduo, às vezes traumatizante.

― O deserto é um local tempestuoso. É um lugar que mete medo, pois


é vasto e incompreensível. – continua Rebeca, enquanto toma banho e se livra
do suor e sêmen largados em seu corpo. Alguém olha para o deserto e teme o
que vê, pois é desconhecido e repleto de mistérios e perigos em todos os can-
tos. O mesmo acontece com a consciência, mais do que a inconsciência. Pois a
consciência está presente a todo instante. E isso põe medo. A presença do pen-
samento “difícil” põe medo nas pessoas. Quando alguém incompleto, quando
uma pessoa com medo de si mesma olha seu consciente, suas memórias e
pensamentos, é como se visse o deserto a sua frente. E se não há compreensão
sobre o que acontece, todos os caminhos desse deserto levarão para o mesmo
lugar: o vazio.
149
Porém, o deserto também é um local cheio de vida e evolução. Por me-
nos que não vejamos, uma gama enorme de seres se desenvolve e sobrevive em
condições de extrema solidão. Porque, então, é diferente com o ser humano?
Porque um ser infinitamente superior que qualquer outro que viva no deserto,
olha para ele e sente medo do que vê? Não se pode olhar para a consciência e
ter medo. O deserto deve ser enfrentado. Deve ser conquistado. Assim deve se
comportar um ser evoluído. Assim deve se construir em cada um o imperador
de desconhecida região.
Se podemos fazer escolhas, e essas escolhas estão diretamente ligadas
à vida como a queremos, porque, então não escolher o lado que mais nos be-
neficiaria? Porque escolher a solidão em um deserto aterrorizante, quando po-
demos escolher plantar e colher frutos e vida em um deserto compreensível?
...
Os dias e noites se passavam, e novamente Rebeca se encontra embria-
gada, elevada pelo espírito da contestação. Rebeca se levanta, se deita, bebe
cada vez mais, toca seu corpo com luxúria, com vivacidade. Seus dedos aden-

Marco Buzetto |
tram seu templo de dúvida, úmido e aquecido pela vontade de saber mais. O
que Rebeca procura? Porque não sabe a resposta para essa pergunta?
Rebeca encarou o deserto, olhou fundo em seus olhos, conheceu to-
dos os atributos do ser humano e de si mesma. Transou com a terra, o sol e a
vastidão. Introduziu cada grão de areia, cada pedra, cada árvore em seu útero,
atingiu o orgasmo e deu a luz a mais perguntas. Porém, seu filho é incompleto,
pois não possui a questão das questões. Não possui a pergunta que move sua
mão como uma locomotiva. Onde está? O que mais Rebeca terá de enfiar em
sua vagina? Teria que penetrar o mundo todo em seus lábios de prazer?
Conversando consigo mesma no reflexo do espelho, Rebeca beija sua
boca, seus seios, sua barriga, em uma imaginação tão fértil que proporciona
altíssimo grau de realidade. Rebeca faz amor com ela mesma, e interroga-se
como em nenhum outro momento:

― O que há de errado com você, Rebeca? – perguntava sua versão


refletida. O que há de errado? Você não consegue se satisfazer com ninguém,
150 com nenhuma resposta mundana, com nenhum atrevimento científico.
― Talvez seja isso. Talvez eu esteja errada. – respondia ela mesma, aos
sussurros. Talvez eu seja o erro que está tão próximo que não me permite ver.
― E agora está desolada? Está arrependida?
― Não sei se estou arrependida. Nem ao menos sei se acredito nessa
misericórdia. Pois é isso o que o arrependimento é: uma misericórdia de uma
pessoa sobre si mesma. Como o protagonista pode perdoar o próprio protago-
nista? Só a compreensão sobre si pode ajudar. A reflexão. O questionamento
eterno sobre tudo o que nos cerca e afeta. – continuava a Rebeca real.
― Não sei. Você parece confusa. Tão confusa que se entrega aos braços
e sexo com seu próprio “eu” no espelho. Eu sou seu martírio. É isso o que sou.
Mesmo que você ejacule em sua própria boca, e sinta seu sabor, não vai en-
contrar o gosto da satisfação. Você não pode dar a luz a um filho dessa união.
Não pode mais engravidar de si mesma como antes fazia sem problema. Seu
cérebro está se tornando estéril.
― Nunca! – bradou a Rebeca real, ainda em frenesi. Meu cérebro é
como o útero de uma virgem adolescente. É completamente capaz e fértil para

| Rebeca
gerar uma vida.
― Então faça a pergunta certa, Rebeca. Resolva a questão máxima de
sua vida. O que você busca? O que lhe atraí a caminho que nunca tem fim? –
indagava seu reflexo. O que você procura meio a tanta escuridão e tempestade?
Uma tormenta, um torvelinho, um cataclismo vaginal que lave sua menstrua-
ção e faça brotar a sanidade?
― O que mais terei de molhar com meu orgasmo? – se perguntava ela
durante o último orgasmo epitelial da madrugada. Porque nenhum fruto parece
nascer em meu ventre?

151

Marco Buzetto |
Livro II Parte VIII
O que seria da humanidade caso não existissem heróis? E quando digo
heróis, não me refiro às personagens de máscaras e capa voando pela cidade
em busca de crimes a serem resolvidos. Nada disso. Quando digo heróis, me
refiro a cada um de nós, você e eu. O que seria das pessoas, se exemplos de
sofrimento e superação não existissem? O que seria de nós, simples humanos
comparativos, se tudo fosse perfeito desde o nascimento até a morte? Quando
digo herói, não me refiro à garrafa de bordô ganhada como lembrança de final
de ano, que com certeza resolverá alguns problemas momentâneos trazendo
novas inspirações. Quando digo herói, me refiro também ao garoto que teve
de ser pai de si mesmo para não cair morto na sarjeta do senso comum. Me
refiro a garota que tem de ser sua própria mãe dia e noite dizendo a si mesma
para ter cuidado com os homens, e para não andar pelas sombras depois que
152 o sol se foi.

Além de tudo, além de todas as coisas, o ser humano tem de ser seu
próprio pai, sua própria mãe, seu próprio irmão, seu próprio cuidador e salva-
dor. Precisamos ser nossos próprios TUDO ao mesmo tempo, nossos próprios
temores e destemores; nossos próprios deuses e deicidas.

Das Frustrações
Com os olhos vermelhos por conta da dilatação exagerada dos vasos
sanguíneos e a pulsação frenética do coração às partes mais remotas do corpo,
o mesmo se encontra num estágio de total raiva e angústia. Essa mistura estúpi-
da revela sabores tão amargos que só nos dá vontade de gritar, gritar muito. Al-
guns arrancariam seus cabelos, outros sairiam correndo sem rumo; em outros,
as mãos pulsariam de tal maneira que apenas um soco bem dado numa parede
ou em alguém aliviaria a pressão. Sendo assim, por que não? Por que não fazer

| Rebeca
algo do tipo? Por que um grito desesperado é apenas um grito desesperado, e
um soco na cara de alguém traz consigo ainda mais problemas? Por quê? POR
QUÊ? Maldita moralidade. Maldito falso moralismo.

Quando se frustra, frustra-se por motivos exaustivos. Pensar repetida-


mente em pesares que nos magoam é exaustivo. Reclamar demasiadamente
sobre assuntos passados é exaustivo. Tentar o tempo todo e não conseguir é tão
exaustivo a ponto de trazer consigo a fúria. E nesses momentos, gritar apenas
não resolve. Chorar apenas não resolve. Quebrar tudo o que está a sua volta
não resolve. Porém, tudo isso ameniza, e muito, a situação.
No entanto, o que se faz necessário é o controle absoluto dos senti-
mentos. Acalmar-se em momentos assim é uma tarefa extremamente difícil.
Porém, urgente!
O que está em jogo aqui é o desejo de realizar algo e não poder. Daí a
frustração. Esse é um medo real que todos possuem. Quem, em sua sanidade
virtuosa, nunca se sentiu frustrado, nunca desejou a realização de algo sem o
conseguir? Quem, então, nunca se sentiu frustrado, e ponto final? 153
O escritor que desejava ser músico. O músico que desejava ser pintor.
O pintor que desejava ser ator de teatro. O professor que a todo custo sonhou a
vida como empresário; ou o empresário que durante anos quis ser bailarino, até
jogar seus sonhos no meio fio para que a água os levasse embora.
Se pararmos cinco minutos no dia para pensar à respeito de nossos an-
seios e angústias, certamente iremos amanhecer com uma corda ao redor do
pescoço e a boca cheia de formiga. Claro, essa é apenas uma metáfora, certo?,
um modo de se colocar as coisas. No entanto, que a verdade seja dita: se pon-
derarmos muito sobre os detalhes que deixamos passar, e que tornaram nossa
vida ainda mais sem sentido, todos pediríamos demissão do emprego na manhã
seguinte à leitura dessas linhas.

Para que não haja frustração, é preciso que não exista também o anseio,
a vontade, o “querer além”. Para que esses sentimentos não existam, é preciso
que não existam os sentimentos. Para que não existam os sentimentos, é pre-
ciso que não exista o raciocínio. Se esse não existe, o ser humano igualmente

Marco Buzetto |
não existe. Seríamos, então, uma contradição em vida.
O querer além é natural de um processo de anseios e necessidades tanto
psicológicas quanto fisiológicas. Querer mais, querer além, é tornar-se vivo
para a continuidade da vida.
Querer além do que somos, e sermos além do que querermos é uma
máxima que deve ser exercida para se alcançar níveis que nos ajudem a con-
templar a vida. Ser mais do que se é, é superar a si mesmo. É enxergar a si
mesmo como algo obsoleto, e dar um passo à diante em busca do que não se
tem, do que ainda não se alcançou. Querer além e ser além do que se é, até o
ponto em que se possa ver nosso próprio pensamento visto do alto, olhando-se
para baixo.

Do Anjo e do Demônio
Quando, certa noite, Rebeca fazia o que lhe era de costume – transar e
154 beber até desmaiar –, eis que, depois de ser deixada por seu casal de parceiros
da vez numa cama imunda de motel, empapada em vinho, saliva e esperma,
uma voz se faz ouvir ao longe chamando seu nome, e dizendo:

― Rebeca, você é a fúria sexual dos deuses personificada num corpo de


mulher. Você não passa de vício e tragédia. Você não é mais nem menos que
qualquer prostituta que se deita por dinheiro. No entanto, ao invés de moeda,
você é paga com palavras, com diálogos, com os desprazeres e questionamen-
tos que a vida, tanto sua quanto de terceiros, lhe traz. Não sei o que é pior: ser
paga com dinheiro ou com diálogos intermináveis sobre a verdade, a razão, a
sanidade, as dúvidas e as necessidades das pessoas. Você, Rebeca von Wei-
sheit, não passa de um pedaço de qualquer coisa vomitada por uma vagina que
ao menos lhe desejou. Você, Rebeca, filha da sabedoria, foi posta pra fora de
sua primeira casa, pois nem essa, nem esse útero pútrido aguentou o peso de
tê-la dentro de si. E ele doeu, até que lhe retirassem à força.
― Por que diz isso? – indagou Rebeca. Por que, maldição, está dizendo
essas coisas, sem ao menos antes se apresentar? Você é anjo ou demônio?

| Rebeca
― Não são os dois a mesma coisa? – respondeu a voz e o semblante na
poltrona ao lado da cama. Sou o que você preferir que eu seja.
― Então é demônio. Só assim me entenderia. Só um demônio estaria
próximo assim de mim; próximo assim de um corpo vazio.
― Você é impura, Rebeca. É pura luxúria. É tédio e felicidade ao mes-
mo tempo. É paciência e impaciência. É santidade e pecado em cada gozo, em
cada palavra. Cada gota de orgasmo que escorre de você por entre as pernas
é quente como o fogo do inferno e cristalino como os olhos do menino que
chamam de filho de deus.
― Então o pecado e a tentação rondam também o deus dos deuses? Eu
sou esse pecado? Será que deus se excita quando olha par abaixo e vê a mim,
transando feito Madalena com suas ovelhas? Será que o calor que sinto em
minha vagina durante a noite é a língua divina de um deus solitário procurando
prazeres humanos mais próximos do que ele mesmo da realidade?
― Cuidado, Rebeca. Você come com as mãos cheias de veneno res-
pingado. Não morre, pois nem a morte aguenta a acidez da tua carne. Não vai
para o inferno, pois Lúcifer esgotaria todo o seu sêmen vulcânico dentro de sua 155
vagina e boca, e nem assim você se satisfaria ou cairia em prantos.
― Se o diabo não me quiser, será por medo. Medo de que eu tome seu
lugar, isso sim.

O anjo-demônio continuou seu diálogo sobre a bondade ou maldade no


coração de Rebeca. Ela, por sua vez, interpretava tudo o que a entidade dizia
como sendo devaneios inocentes para converter seu pensamento.
Claro que Rebeca não é santa, e tampouco o queria ser. Rebeca é apenas
uma mulher, como qualquer outra, uma mulher com desejos, anseios, neces-
sidades e dúvidas que rondam a cabeça de qualquer um. A única diferença,
talvez, seja que a garota/mulher bebedora de whiskey faz o que quer, quando
o quer, e compromete seu corpo em qualquer ocasião. Talvez seja essa uma
pequena diferença, um pequeno detalhe que a separa de qualquer outra mulher
no mundo civilizado: Rebeca não nega seus instintos a si mesma.

― Você, demônio angelical, é uma besta tão cheia de vícios quanto

Marco Buzetto |
eu. Não há anjo que não seja viciado. Não há anjo que não tenha uma vontade
maior que todas as outras dentro de si. Afinal, você existe, e existe por uma
causa; e essa causa se chama mentira, também conhecida como ilusão, como
hipocrisia, como religião. – continuava Rebeca. Sua mentira sim é selvagem,
e rouba a sanidade dos homens e mulheres de maneira absurda. Se na testa do
diabo há o sinal da besta, na testa de seu pai existe o sinal da desvirtude. Se na
testa do diabo há o sinal da maldade explícita, na testa de seu pai existem to-
dos os tipos de crueldades implícitas que nunca serão compreendidas por seus
seguidores, tamanha a profundeza na qual estão submersos.

O anjo-demônio, bastante incomodado com as palavras escandalosas


de Rebeca, iniciando sua fúria em forma de vontade para castigar a garota/mu-
lher por suas blasfêmias, fez com que as luzes se apagassem repentinamente,
gritando que havia apenas uma verdade, e essa não era a verdade de Rebeca.
No entanto, tão rápido quanto ele, Rebeca retrucou: “a única verdade, meu ex-
citado demônio, é que não existe verdade. A única verdade é meu útero aberto
156 a qualquer um que me queria por a prova”.
― Você, anjo, tal como qualquer outro ser que já tenha se apresentado
a mim, quer nada menos que penetrar meu corpo, isso sim. É isso o que você
quer também. Quer conhecer toda minha essência, toda minha luz, toda mi-
nha obscuridade. Você, assim como qualquer outro, quer me ver gritar, gozar,
gemer; e quer descobrir, assim como eu, qual é o segredo por traz dos olhos
das pessoas. Eu me deito, bebo e gemo de prazer para descobrir no ser hu-
mano quais são seus anseios, suas verdades, suas carências, seus medos, seus
prazeres e desprazeres, pois são iguais a mim. E você, anjo-demônio, com
quem se deita? Para quem você geme ou quem geme para você? Quem se abre
freneticamente para que você o penetre, ou quem penetra você em busca de
respostas? Quem é seu igual? Quem é seu consorte?

Qual é o sinal que esperamos? Onde está a benevolência ou a malevo-


lência? Onde estão os pecados e purezas? Não podemos apenas olhar o mundo
pela janela do quarto enquanto transamos, ou da cozinha enquanto tomamos o
café da tarde, e vermos apenas o mundo do jeito que nos é apresentado? Onde

| Rebeca
está o segredo, se é que existe? Onde está a conspiração ou os planos maquia-
vélicos criados para poucos dominarem o mundo acima de muitos? A chuva
não apenas cai e molha o solo? Isso já não é o bastante? Não é essa sua função,
além de resfriar a atmosfera? Não é a função do fogo apenas queimar e fazer
sucumbir o que lhe é de agrado? Não é presunção e egoísmo demais acreditar
que o fogo serve também para aquecer nossos corpos nos dias de frio? Não há
pensamentos mais adiante do que as necessidades humanas para levarmos em
consideração?
Por que acreditar que tudo é parte de um plano maior? Onde está esse
plano maior, e por quem está sendo orquestrado? Somos, então, apenas degraus
para apoiarmos essa subida? Se um plano maior, divino, existe, não seríamos
tão somente iguais a qualquer povo escravizado na história da humanidade?
Pior ainda: ao menos conheceríamos esse escravocrata. Como já foi dito: o
pior não é acreditar em deus. É acreditar que deus acredita nas pessoas.
Plano divino?! deus!? Rá!... O ser humano não consegue compreender a
si mesmo, quanto mais algo sobrenatural.
157
Falsidade. Piedade. Charlatanice. Imposição do medo. Falso moralis-
mo. Tendenciosidade. Misericórdia. Imposição. Negligência. Mediocridade.
Boicote. Desconfiança. Extinção da natureza humana. Punição. Imoralidade.
Desumanização. Covardia. Flagelo. Hipocrisia. Mentira. Religião.

― Deus ex machina. É isso o que você é, anjo-demônio. – continuava


Rebeca, agora abrindo suas pernas e seu útero ao ser angelical de ereção demo-
níaca. Um deus trazido ao mundo pela força mecânica para demonstrar apenas
a interferência da superioridade do medo e do controle sobre o ser humano.
Você não passa de uma idéia e uma solução para a dramaturgia grega.
― Você é a encarnação viva do próprio diabo, Rebeca. Você é pura
luxúria. Sãos todos os pecados em uma só pessoa. Não viverá muito além dos
sonhos sobre a realidade que saem de sua cabeça confusa. Lúcifer!
― Sim, meu nome também pode ser Lúcifer. Pois, também trago ao
mundo a clareza, a luz do pensamento racional. Eu, assim como esse arquétipo
da maldade, faço meu nome significar “o que leva o archote”, pois, o ser huma-

Marco Buzetto |
no precisa enxergar seu próprio caminho. E esse é o medo dos moralistas. Esse
é o medo dos hipócritas. Esse é o medo dos controladores, dos pastores do re-
banho cego. Esse é o medo. O medo de que alguém leve a luz àqueles que não
enxergam o quanto são enganados. Você é o anjo-demônio: mais demônio do
que anjo. Do contrário, não estaria rasgando minha carne tentando a todo custo
entrar ainda mais, ainda que impossível, meu corpo com sua espada ereta.
Você é nojento, é repugnante! Você é aquele que deseja e não tem coragem
de realizar. É a imagem de todos os seres que são reprimidos a todo instante.
Você tem vontade, mas não tem coragem. Quer, mas não pode ter. Tem fome,
mas não pode comer. Tem sede e não pode provar apenas um gole que seja.
Quer ejacular, mas a falsa moralidade o impede. Quer gritar de prazer, mas a
hipocrisia hipócrita, que mente a si mesma, dilacera sua genitália com a boca
dos santos em seus sermões. Você é reprimido por uma força maior. Por um
plano maior. Você, anjo, demônio; é proibido de ser o que realmente deseja
ser. Você, anjo lacrimejante, é digno de piedade, pois acredita tão fortemente
em uma verdade única e absoluta que se esquece de acreditar em sua própria
158 verdade; esquece de acreditar em si mesmo enquanto matéria existencial. Me
dê sua mão, pois você é maravilhoso. Você não está sozinho!

Claro que a aparição de um anjo ou um demônio à garota/mulher Re-


beca não poderia ocorrer em total normalidade. Durante o diálogo entre os
dois, Rebeca ouvia vozes vindas de não se sabe onde, distantes, várias vozes
desconexas, sem simetria. Vozes sussurradas, de tão distantes. Rebeca sentia
seu corpo esquentar e esfriar abruptamente, repetidas vezes. Sua mente vagava
instável, seus olhos zonzeavam e a iluminação do quarto pareciam ofuscar a
vista, piscando, variando de tons claros para escuros como relâmpagos em
noite de tempestade.
Durante o diálogo com o anjo-demônio, Rebeca sentia seu corpo sendo
tocado por várias mãos ao mesmo tempo, cada uma com uma função. Carícias.
Massagens. Agressividade. Socos repetitivos entre seus seios... E as vozes con-
tinuavam fracas, ao longe. Seriam as mãos dos demônios do céu ou do inferno
em busca de seu corpo?
Quando toda psicodelia assustadora deu trégua, eis o que Rebeca ouvia

| Rebeca
ao som sussurrado de uma voz doce, mas preocupada, bastante próxima:

― Beca?! Beca?!, você está me ouvindo? Você está bem? Sou eu. Anna.
Você nos deu um puta susto.
― Anna? O que você faz aqui? Onde está o anjo-demônio?
― Onde está quem? Você estava em coma, Beca. Há três dias. Eu não
conseguia falar contigo; o gerente do hotel onde você estava escutou te ouviu
gritando, chorando... Você não respondia a porta, e quando ele entrou, deu de
cara com você desmaiada sobre a cama, fervendo em febre. Ele então viu mi-
nhas chamadas no seu telefone, e me ligou.
― Estou aqui há três dias? Estou numa cama de hospital há três maldi-
tos dias? Mas como? E o anjo, Anna? E o demônio...
― Provavelmente você estava sonhando. Não tem anjo nenhum aqui, e
nenhum demônio também. Você passou por vários procedimentos até estabili-
zarem sua saúde. Vários médicos trabalharam em você.
― Isso explica as vozes e as mãos. Que sensação estranha.
― Deve ter sido muito ruim. Não consigo imaginar o que se passou por 159
sua cabeça durante o coma. – continuava Anna, salvadora.
― Não, Anna. Não foi ruim. Estes três dias e três noites eu passei na
companhia de um ser oculto, carregado de incoerências e desejos. – confessa-
va. Devo ter desmaiado por conta da bebedeira, certo?
― Na verdade, não. Os médicos disseram que você estava desidrata-
da... Com muito álcool no sangue, é verdade, mas desmaiou, aparentemente,
por conta da maratona sexual. O gerente do hotel disse que você estava no
quarto a três dias também, e que várias pessoas entravam e saíam...
― Ele deve pensar que sou uma prostituta.
― A essa altura, Beca, minha amiga, quem não pensa? – retrucou Anna,
com um sorriso debochado nos lábios e uma das sobrancelhas erguidas. Mas,
conte mais. O que o anjo lhe disse? Com certeza era um prelúdio de sua morte.
― Não. Nada disso. Em momento algum minha morte foi pauta da
conversa. – respondeu a ressuscitada garota. O anjo começou me passando um
sermão, dizendo que minha vida é desregrada e toda aquela história que já me
cansei de ouvir... rá!... toda aquela besteira... blá, blá, blá...

Marco Buzetto |
Durante anos Rebeca ouviu da boca de inúmeras pessoas que sua vida
não valia nada, e que a cada dia ela transformava o restante do que sobrava em
cinzas. Muitas dessas pessoas não eram apenas espectadores. Muitas delas se
deitaram com Rebeca, usaram seu corpo e fizeram dele a morada dos prazeres
mais infames e grotescos. Rebeca, apesar de seu valor único e inestimável, por
ansiar constantemente respostas que satisfizessem seu questionamento sobre
as necessidades humanas, tornou-se um universo de impureza. Universo do
qual Rebeca se tornara ditadora. Rebeca tornou-se a imperadora de seu próprio
covil, guardando as chaves de sua própria prisão.
Rebeca ouviu durante anos as pessoas lhe atacar com palavras infames
repletas de desprezo, maldade e calúnias. E esse desapego ao pensamento e
opinião alheia sobre ela, fez com que Rebeca mergulhasse a fundo em sua
busca incessante pela chave que abrisse a mente dessas mesmas pessoas, para
que ela conseguisse introduzir sabedoria em suas cabeças, mudando suas pers-
pectivas em relação ao mundo e seu convívio coletivo.
Rebeca trancou-se em sua caverna, em seu próprio útero, e deu a luz
160 várias vezes a uma nova versão de si mesma. Algumas vezes teve de fazer
abortos insuportavelmente dolorosos, mas que contribuíram ainda mais para
aperfeiçoar o saber que carrega consigo.

Do Erro Consciente
Ou, do Orgasmo

Abortar a si mesmo, gerar outro e dar a luz a um ser totalmente evoluí-


do. Essa é uma das máximas de Rebeca para que o ser humano compreenda a
necessidade de superar a si mesmo e ir além de suas próprias capacidades. O
suicídio dá lugar a outro que compreenderá mil vezes melhor a realidade a sua
volta. Essa é uma verdade de Rebeca, pois, de que adiantaria uma vida de erros
constantes, se estes não são em momento algum refletidos. O erro é a morte de
passos dados confusamente. O caminho que não nos leva a lugar algum e nos
faz dar voltas e voltas no mesmo lugar, como peixes em um aquário, encon-

| Rebeca
tra seu fim em uma queda que, dependendo da altura, pode ser extremamente
dolorosa, dificultando nossa subida. Esse é o erro. O erro é fruto de caminhos
percorridos sem prévia análise dos fatos. O erro é o final. E com ele, deve-se
deixar para trás o que saiu errado.
O Erro é como o gozo, a ejaculação. A ejaculação é o momento final.
Depois dele, o ato se acaba. Porém, dá lugar a um processo de geração de outra
vida. Ela, aprimorada, melhor adaptada às relações com o mundo e o que o
cercará em sua vida. Deve-se aproveitar ao máximo os momentos antes do or-
gasmo, para que os corpos se conheçam infinitamente, e para que o útero esteja
preparado suficientemente para receber e conceber um ser melhor que os dois
evocam com seus gemidos. Assim, a ejaculação e o orgasmo feminino tornam-
-se um final gerador, não uma falha sem prévia análise. O mesmo deve-se fa-
zer em relação ao Erro. Ele deve ser conhecido em seus menores detalhes antes
que se acabe, para que o próximo passo nasça fortificado e melhor adaptado,
resultando em um caminho menos improvável, e que menos escorregadio. As-
sim, quanto mais se errar conscientemente, mais se aprenderá.
161
O que é necessário compreender é que o final não é a única importância
que se deve levar em consideração. Mas sim, também os momentos todos que
o antecedem: o ato de se despedir. É necessário compreender a totalidade do
momento que se vive, para que a finalidade seja positiva. O final é a troca de
tempo: é o caminho que se termina para que outro tenha início.
Rebeca, a extravagante alcoólatra viciada em sexo e perguntas entendeu
e aceitou essa relação entre o início, o momento e o final. Rebeca compreendeu
a necessidade de transição do erro para sua forma mais ambivalente: que é o
nascimento de uma nova versão do si mesmo. Os dois lados. Essa ambivalência
do erro cometido deve ser analisada em toda sua extensão. Errar apenas, sem
consciência dos fatos e sem aprendizado, é apenas isso: apenas um erro que
não se aproveitará. Para se aprender com o erro, é preciso ir além do orgasmo.
É necessária a vontade, o desejo, o sentimento cominado em ação, o ato em si,
as carícias, o beijo, o toque, a masturbação, o calor entre os corpos, a excitação
em sua essência e seu maior nível, para assim se alcançar sabedoria. É preciso
transar todas as instâncias da ignorância, da dúvida, dos questionamentos. É

Marco Buzetto |
preciso transar nossa própria mente com ela mesma para que nasça a compre-
ensão. É preciso transar consigo mesmo para fazer nascer o outro-além.

Do outro-além
Ou, do Ulterior

― O que é o outro-além, minha Rebeca? – indagou Anna. Às vezes não


compreendo seus termos.
― O outro-além, Anna, querida idólatra, é o que virá no lugar do que
já existe. – respondeu Beca. E, se mesmo assim você não entendeu, continuo
minha explicação: o outro-além, ou, o ulterior, é aquele que nasce de uma re-
lação dual. Vamos chamar somente de ulterior. O ulterior é o que vem depois.
No entanto, não é o além-homem de Nietzsche, é diferente também do que eu
chamo de supra-homem. Esses dois já são a evolução em sua essência. Na ver-
dade, o ulterior é caminho para o ser humano evoluído. O ulterior é aquele que
162
é gerado no útero da relação entre duas pessoas parcialmente evoluídas. Dessa
relação, o filho será o ulterior, melhor estruturado, melhor adaptado ao meio
no qual viverá, será mais do que seus pais seus pais. O ulterior é aquele filho
que parece não ter saído nem a cara nem o gênio tanto do pai quanto da mãe.
É o filho que nasceu e em pouco tempo de vida irá superar seus progenitores,
demonstrando toda capacidade além do que seus pais possuíam.
― Então ele é melhor que seus antecessores. – sintetizou Anna. Melhor
que seus pais, que seus avós, seus bisavós. O ulterior é a união de todo o co-
nhecimento adquirido durante todo esse processo de nascimento.
― Não apenas a união do conhecimento, mas também das experiências,
dos pontos de vista, das sensações, das frustrações, dos anseios, das esperan-
ças, da educação, da intelectualidade... É a união de tudo o que existiu na vida
de cada envolvido desde sua primeira pessoa no passado mais distante. É a
síntese. E seu próximo será a síntese da síntese. Nesse processo, não há tese ou
antítese, apenas a transmutação de uma síntese para outra.
― E você, Rebeca, é a evolução em algum nível assim? – brincou Anna,

| Rebeca
a perguntar. Quero dizer, você já cumpriu seu papel de sintetizar todas as coi-
sas em seu próprio umbigo? Já direcionou todas as forças de seus antepassados
para dentro de seu útero? Você é uma dessas pessoas que acredita que todas as
experiências dos pais passam para os filhos, e que a vida dele é a continuidade
da vida do pai e da mãe, e suas expectativas são cada gestação maiores?
― Sim. E quem não acredita? – finalizou.

Della Solittude
Ou, Confissão

O que aconteceu, foi que a guerra se viu. A guerra viu a si mesma. Re-
beca é a paz e a guerra ao mesmo tempo. É a contradição e o antônimo de tudo.
Rebeca viu a si mesma. Viu a sola de seus próprios pés quando olhou pra cima;
encarou a si mesma como um abismo aterrorizante; mas não gostou do que viu.
O gosto do whiskey não lhe agrada mais como antes. Está tão ácido que
163
queima o esôfago de maneira incompreensível. Está tão doloroso beber quanto
à frustração de ir embora com a sensação de que se esqueceu de dizer algo im-
portante. A memória também queima como as fogueiras da inquisição. Porém,
quando caímos na estrada, os caminhos são vastos a ponto de nos assustar.
Mas, mesmo assim, continuamos.
A falta de consideração que temos com nossa pessoa é tão grande que
nos faz esquecer os bons motivos que nos mantém no caminho. E quando Re-
beca olha pra si mesma, fundo em seus olhos, e vê que a guerra não terminou
dentro de seu coração, é como um susto, como um soco que marca a alma, e,
de tão forte, não nos faz lembrar, e sim, esquecer ainda mais o que nos motiva.
Pois o choque de nos deixar de lado é tão sorrateiro e natural que ao menos
percebermos o que deixamos para trás: individualidade.
Quando a Guerra olha pra si mesma, percebe o quanto está sendo me-
díocre, quantas coisas são deixadas de lado para se sabe lá o que. Não como os
legionários romanos que guerreavam entre si mesmo nos tempos de paz, pois
a guerra se fazia necessária. Nada disso. Quando a Guerra olha fundo em seus

Marco Buzetto |
próprios olhos, vê que está sendo incapaz de perceber o quanto desnecessária
é.
A guerra aqui, claro, é Rebeca. Porém, por que ainda não percebeu que
é desnecessária? Há, ainda, algum motivo para se manter constante e, talvez,
intacta? Existe, ainda, algum motivo para não se tirar a própria vida? Afinal,
descobrir a todo instante que não o mundo, mas sim, as pessoas, não valem
nada, pode ser motivo suficiente para não se ter mais vontade de continuar an-
dando, trabalhando, nascendo, convivendo com pessoas ainda mais medíocres
que nós mesmos... E pior: perceber que nada o que se fizer fará diferença, pois,
as pessoas não querem mudar, não querem ser melhor do que são e do que po-
dem ser. Talvez, essa seja a guerra que deve olhar para si mesma e sentir pena
de existir, de tentar, de continuar.
Existe um motivo para não se meter uma bala na própria cabeça?
Existe um motivo para não se entupir com as drogas mais pesadas e
implorar uma overdose quando a vida não faz mais sentido?
Existe motivo para não se jogar de uma ponte ou de um prédio em um
164 mar de concreto a centenas de metros abaixo?
Quem é o grande amigo que nos diria que sim, a vida faz sentido e vale
a pena? Quem será, se é que existe, o grande amigo que nos tomará pelos bra-
ços e com um chacoalhão dilacerador irá nos acordar de um transe que cega os
olhos, para vermos que a realidade é essa mesmo, e não faz a menor diferença
se é boa ou ruim, pois cada um faz seu próprio caminho valer apena?
Sim, o amor é um inferno. O amor é uma das, se não, a mais pesada
de todas as drogas. Ele sim pode nos causar uma overdose irreparável; danos
irreversíveis. Ele sim, o amor, nos causa uma das maiores dependências inex-
plicáveis na vida. Ele sim pode nos aborrecer, ou trazer aquela falsa sensação
de felicidade que qualquer cheirada ou tragada também nos traz.

― Qual é o problema em estar sozinho? – indagava Rebeca a si mesma.


Qual é o problema? Quero dizer, a felicidade não está na coletividade. Não está
na parceria. Não está no outro, e sim, em si mesmo. A felicidade não depen-
de da existência de outra pessoa junto a alguém. Não existe felicidade plena.
O que existe são momentos felizes. Ninguém é feliz o tempo inteiro. Esse

| Rebeca
sentimento não é perpétuo. Ninguém pode dizer, com a boca cheia, com toda
seriedade e veemência que É feliz. Não se pode ser feliz o tempo todo, quanto
mais para sempre. A afirmativa para sempre não se completa ao sentido de
feliz. Feliz para sempre? Impossível! É como a lei de Newton da ocupação de
dois corpos em um mesmo lugar. Impossível. Para um existir, o outro deve se
retirar. A felicidade pode estar em uma pessoa. Porém, terá de dar lugar a outro
sentimento; e esse a outro, e assim por diante.

A solidão, no olhar de Rebeca, faz bem ao corpo e a mente. A solidão


torna o tempo uma escola, que nos auxilia no processo de reflexão e aprendiza-
gem. Estar sozinho por alguns momentos, por tempo indeterminado, não é pre-
judicial; mas sim, construtivo. É um momento de renovação de nós mesmos,
de nossa consciência. Estar sozinho, na visão de Rebeca, traz à tona memórias
a serem repensadas: traz também novas expectativas e emoções futuras em
relação ao que pode ser conquistado.

― É assim que compreendo a solidão. É dessa forma, nos ensinando, 165


que a solidão acaba por nos proteger. É estando sozinho que se compreende a
solidão. Do contrário, tudo não passa de teorias. É estando sozinho, também,
que se compreende a complexidade e necessidade de se estar acompanhado. –
continuava Rebeca, ao vento. É frente a solidão, quando se olha fixamente para
ela, que se entende a vontade de ter alguém ao nosso lado. Para quê, não se
sabe. Porém, a vontade está lá, marcando o tempo como um metrônomo, com
batidas fortes que não nos deixam esquecer o ritmo.

É estando sozinho, segundo Rebeca, que o ano se torna outro na voz do


grande maestro Pavarotti, com uma garrafa de Nero d’Avola Sicilia, de colo-
ração tão sanguínea que deixa os olhos lacrimejando, tamanha sua beleza. Só
assim se compreende a solidão e a necessidade de se ter alguém ao seu lado.
O sabor do vinho, tão delicioso e marcante, aliado a toda potência e doçura
descomunal do grande gênio e mestre italiano, faz com que a solidão seja nada
mais que uma amiga. Uma amiga tão simpática e querida que torna o novo
ano que se aponta em um caminho de novas esperanças, por mais tímidas e

Marco Buzetto |
transparentes que pareçam.

― Cante maestro. Cante, óh divino italiano. Cante, ó deus vocal. – pe-


dia Rebeca, ao vento, dentro do quarto de paredes vermelhas. Cante, óh genial
mestre inigualável. Cante, enquanto provo ainda mais deste vinho que tua voz
completa o sabor. Não estou só, óh Dio degli dèi. Sei sempre al mio fianco,
come sempre, il grande maestro. Tua voz percorre todo meu corpo, por minhas
veias, tingindo meu sangue com sua beleza, e ecoa em meu cérebro deixando
uma cicatriz que nunca se fechará, espero. Torço para que não.
...

Rebeca ainda procura o motivo que faz com que as pessoas odeiem a
si mesmas. Por que, maldição, todos parecem querer se destruir? Essa é uma
questão que raramente sai da cabeça da alcoólatra mulher/garota. Raras as ve-
zes, também, que Rebeca troca seu whiskey por uma taça de vinho. No entan-
to, temos de convir: o momento, aliado a figura do italiano fabuloso, implora
166 que se abra uma garrafa de vinho; esteja sozinho ou acompanhado. Não há
prazer maior. Isso sim é uma verdade.

Se passaram cinquenta minutos do novo ano. Cinquenta minutos que


parecem igualmente fiéis aos primeiros cinquenta do ano passado. Nada parece
mudar. Sai ano, entra ano, tudo continua a mesma coisa. Por quê? Por que o
sorriso no rosto das pessoas é o mesmo. Não? Repare. Veja. As pessoas não
mudam, além do envelhecimento visível do corpo. As pessoas não mudam.
Não querem mudar. E não é a transição de um ano para o outro, repleto de
novas e velhas promessas, que mudará essa realidade. O ser humano é o que é,
e não quer mudar por pura pirraça. Não quer ser melhor do que consegue ser,
por pura falta de vontade... Quem sabe, de vergonha na cara. As pessoas são o
que são, e ponto final, Rebeca!

Por que, maldição, querer ajudar a figura do outro? Afinal, Rebeca quer
a todos iguais a ela, é isso? Quer que todos sejam uma réplica fiel ao seu pen-
samento e complexidade? Quer que todos busquem a vida toda por respostas

| Rebeca
infames que completem sua existência? É isso o que Rebeca von Weisheit
quer? Que todos provem a si mesmo que podem mais a todo instante?
O que há Rebeca? Estamos quase há uma hora passada ao novo ano, e
todos temem, debochadamente, que o fim esteja próximo. Mas você sabe, você
sabe que o final já chegou. Você, mais do que ninguém, talvez, sabe que o fim
dos tempos está dentro de cada um. E não é preciso a maldade ou o plano de
um deus ou deuses para fazer valer o fato de que ninguém vale nada... Não
é preciso nada disso, para fazer com que o mundo acabe. Haja o que houver
o mundo ainda será mundo. O que acabará serão as pessoas. Essas sim. Pois
farão por merecer: como sempre. O mundo não acaba. O mundo continuará, e
continuará ainda melhor sem o ser humano sobre sua superfície, maculando e
destruindo sua moradia como um câncer que não sossega até ver a si mesmo
definhando às escuras, pálido.

Pronto, Rebeca. Uma hora se passou dentro do novo ano. E agora? O


que será do ser humano nessa nova fase de promessas repetitivas? O que será
de Rebeca? Sairá da gaveta rumo ao mundo conhecido, ou ficará trancafia- 167
da num quarto exageradamente avermelhado reclamando que nada está certo
como antes, sem ao menos conhecer o antes como imagina.
O que será de Rebeca, pecando além da conta para que todos vejam? O
que será de seu corpo, de suas lágrimas, de seu suor, de seu gozo sexual, de seu
útero, de seus seios? O que será dos milhares de vidas ejaculadas e assassina-
das por dezenas de homens dentro de sua vagina? O que será das centenas de
óvulos não fecundados junto aos seus, das centenas de mulheres que tatearam
seu útero por dentro e por fora com suas línguas e dedos?

― Diga Rebeca. Diga a si mesma: o que será de você sob o sinal desse
novo ano, dessa nova fase? Existe a possibilidade de você sorrir, ao menos
uma vez? Existe a possibilidade, ou existira, de você olhar para os lados e não
enxergar sentimentos incompletos? Você, Rebeca, finalmente gozará todo seu
prazer sexual pura e simplesmente para satisfazer suas necessidades fisioló-
gicas, sem se preocupar com perguntas e respostas ingratas, minhas? – conti-
nuava Rebeca, falando consigo naquele quarto vermelho, enquanto o maestro

Marco Buzetto |
brandia sua voz e outra taça de Nero d’Avola deitava-se boca à dentro. Ah essa
safra. Dois mil e nove parece ter sido um ano maravilhoso na Sicília.

Esse era o dia da transição, e Rebeca parecia estar sozinha por vontade
própria. Deixou até o último minuto para se despedir e voltar a sua caverna.
Deixou até o último minuto para acertar o tempo exato de chegar a sua casa e
se entregar à bebedeira, refletindo e argumentando sobre sua vida de maneira
interna e externa. Rebeca analisa os fatos de dentro para fora e de fora para
dentro. Rebeca olha para si de uma distância segura, para não tomar partido.
Fogos no céu, felinos debaixo da cama silenciados pelo barulho colori-
do sobre suas cabeças. O medo é visível, e impossível de se compreender por
esses bichanos tão delicados. “Que maldição de barulho infernal é esse que
tem seu eco nas paredes do meu corpo”?, parecia indagar, assustada, a persa
de grossas patas e pelo marmóreo com os olhos arregalados e curiosos.
Enquanto isso, o reflexo das luzes e dos estouros coloridos penetravam
a janela ondulada e manchavam a pele clara de Rebeca em uma aquarela in-
168 crível. Porém, quando a garota/mulher olhava para fora, sentia apenas vontade
de ficar ali, quieta, sem atender a porta ou ao telefone. Olhava para fora, os
rojões estourando em cores incansáveis pelo céu, e tudo o que conseguia sentir
era vontade de ficar sozinha. Foi exatamente assim que acontecera. Esse é
um relato real de uma jovem mulher que idolatra a solidão de uma maneira
tão bem articulada e amigável, que ao menos se dava conta de que um evento
como esse só poderia acontecer de um ano a outro. Enquanto isso, a felina per-
sa se deitava sobre o baú, carregando um peso de desconfiança nos ombros e
no olhar, querendo acreditar que os estouros festivos pudessem ter terminado.

― Já se passou uma hora e meia do novo ano, e tudo parece exatamente


igual ao anterior. O que será que vai mudar? O que eu, Rebeca, estarei fazendo
no aniversário do criador? Estarei aqui para homenageá-lo? Será que serei
apenas um eco de seus delírios no vigésimo sétimo dia? Será que eu, Rebeca
von Weisheit, serei apenas uma lembrança extremamente positiva e feliz (es-
pero eu), na mente das pessoas que me conheceram? Não sei. Perdoem-me... É
o sopro da humanidade me pegando desprevenida. Às vezes me esqueço que

| Rebeca
sentimentos assim são secundários.

― O problema de se ir dormir sozinha, é que quando se acorda, passa-


das dez horas do primeiro dia do novo ano, é que ao olhar para o lado, ainda
deitada na cama, se vê que não há ninguém ao lado. Estar sozinho, muitas ve-
zes, quer dizer que irá se deitar sozinho, e irá acordar sozinho. Sem a presença
daquele sorriso majestoso dando bom dia. Sem o piscar dos olhos acastanha-
dos mais vivos. Sem o cheiro maravilhoso da pele sentido de tão próxima a
nossa durante toda a noite. Ir para a cama sozinha, em plena transição de um
ano a outro, quer dizer que, muito provavelmente, irá se acordar sem aqueles
lábios finos adocicados lhe dizendo que “eu te amo”. – martirizava Rebeca
revirando suas memórias.
...

Aquele número, Rebeca, você se lembra? Se lembra do décimo sex-


to aparecendo diante de seus olhos a todo instante? O que há? Não faz mais
diferença? Não lhe toca mais como antes? Percebe o quão desumana você 169
está se tornando? Percebe o quanto menos humano seus sentimentos estão se
tornando? O que era uma glória de décima sexta instância se tornou apenas
um número qualquer que não faz mais a menor diferença. E, quando lhe traz
algumas memórias, são apenas isso, memórias de um passado já superado:
não!, compreendido. Um passado com final compreendido, aceito. O que há,
Rebeca? É o que lhe pergunta os olhos de quem a conhece. O que há, Rebeca,
que faz seus olhos não umedecerem mais com lágrimas de derrota e saudade?
Talvez tenha esfriado demais. Talvez tenha se esquentado a ponto de ebulição,
e depois de fervidos, os sentimentos transbordaram de seu corpo e não mais
fazem parte dele.

― Um ano se passou, Rebeca. Um ano, e você não passa de alguns


registros infames. No primeiro dia, depois de se passado dois mil e onze anos
desse calendário gregoriano, você passou com a sorte de ter nos braços a mais
bela de todas as mulheres, com seus corpos sobre um sofá recém comprado,
desvirginando a inocência de uma paixão recíproca e tímida. A sua, na ver-

Marco Buzetto |
dade. Pois a dona dos fios de ouro sentia-se em casa, à vontade. Você é quem
estava tímida, com medo. – ecoava a memória na mente de Rebeca, talvez no
papel do subconsciente. E no próximo ano, veja só... A sorte se foi, e a proeza
de começar o ano com um sorriso descomunal e bobo nos lábios, enquanto o
sol nasce no horizonte, parece não fazer sentido dessa vez. Não! Dessa vez
não. A entrada nesse novo tempo foi solitária. Certo, você quis assim, Rebeca.
Você pediu momentos de solidão. No entanto, sem querer. E o décimo sexto
lhe aparece novamente diante dos olhos. Mas nada dizem.
― São momentos como esses que nos ajudam. – respondia Rebeca a
sua própria consciência. São momentos esses que nos permitem refletir e al-
mejar novas considerações para o futuro. O que há comigo, minha amiga? Por
que o eco dentro de meu corpo diz que algo está errado? Estarei entre o céu e o
inferno? É isso? Ao menos sei o que estou dizendo. Entrei naquela fase torpe,
com uma membrana inflexível diante de meus olhos.
― Você parece cansada, Rebeca. Isso sim. – continuava sua mente, a
condenar-lhe. Você parece não querer continuar. Afinal, continuar para quê?
170 Continuar o quê, na verdade? Você não é quase uma alcoólatra. De fato, pouco
álcool consumiu durante seus dias. Você não é viciada em sexo. Afinal, nem
todo o sexo do mundo lhe satisfaz. Do contrário, teria gosto pela necessidade.
― O que há de errado, então, minha mente julgadora? O que há de erra-
do, se não lhe pareço cometer um pecado atrás do outro sem ao menos me dar
conta? Quer dizer, então, que falhei; que ao menos consigo cometer pecados?
― Você se dá conta, Rebeca. Esse não é o problema. Você peca, sa-
bendo que irá pecar. É o gosto pelo pecado que lhe motiva. Mas não o pecado
religioso, pois esse não faz a menor sentido. Você, no entanto, peca contra si
mesma. Peca contra seu próprio pecado. Você, Rebeca, demora, demora muito
e volta atrás o tempo todo. Você não se completa. É como um sonho que nunca
termina. Um sonho torto que não tem fim; daqueles que dão a sensação de se
estar caindo num buraco que não tem fim. E esse buraco é o seu próprio abis-
mo. Esse abismo, Rebeca von Weisheit, é sua consciência. Esse abismo sem
fundo é seu ventre, é seu útero, é sua vagina. Esse abismo sem fundo, repleto
de desafios e medos não compartilhados é a sua mente. Se o planeta todo fosse
um falo, e você transasse com ele, mesmo assim você não teria satisfação.

| Rebeca
― E então, o que há comigo? Por que não encontro esse final de que
tanto me fala? Por que não me satisfaço? Por que, já que o orgasmo é o final,
eu não o tenho mesmo penetrando o mundo todo em meu corpo?
― Você quer o final, Rebeca, quer o orgasmo, quando ao menos rece-
beu o beijo, ou o toque. Você procura gozar com a consciência, com a intelec-
tualidade, com o saber, com o prazer do conhecimento, mas ao menos se lem-
bra do princípio de seu caminho. Não se lembra de si mesma e sua iniciação.
Você, Rebeca, não nasceu virgem, pois nasceu transando com o questionamen-
to. Você não nasceu virgem, Rebeca. – concluía a consciência.

171

Marco Buzetto |
Parte IX
Nas paredes do quarto

― Como foi sua primeira vez? Diga-me. Como foi? Heim... Fala! – pe-
dia alguém. Fala, sua vagabunda.
― Foi como agora. Como agora. – respondia Rebeca, com a voz trêmu-
la. Foi como agora, seu porco. Foi nojento. Degradante. Foi a mesma coisa que
transar com você, seu imundo.
― Você gosta... Eu sei que você gosta. – continuava. Com quantos
anos? Heim, sua piranha?! Com quantos anos você fez amor pela primeira vez?
― Nunca fiz amor na minha vida, seu desgraçado. Eu não sei o que é
isso. – continuava Rebeca. Não sei o que isso significa. Minha vagina nunca
soube dentro dela o que é o amor. Com certeza você também não sabe o que é.
Com certeza você não tem amor nesse membro podre e torto.
172
― Você entendeu minha pergunta. – completou a voz ofegante e acele-
rada. Você entendeu o que eu disse. Quero saber! Anda, reponde. Quero saber
com quantos anos você deu pela primeira vez. Quantos anos você tinha na
primeira vez que alguém te comeu?
― Eu tinha três vezes mais do que tenho agora, seu maldito. – respon-
deu ela, sob a pressão de um corpo suado e mal cheiroso.
― Você ainda não conseguiu, não é mesmo? Não consegue o que quer.
– insistia, agora com a voz serena, retirando seu membro pingando de dentro da
garota/mulher. Já passei por você dezenas de vezes, e em momento algum você
se mostrou satisfeita. Nunca demonstrou ter encontrado o que tanto procura. Já
transei com você de todas as maneiras, em todas as posições. Já conversamos
sobre todos os assuntos possíveis e impossíveis. Já gozei em todos os seus
orifícios, e não vi você ter um só orgasmo intelectual sequer. Por que, Rebeca?
Por que está fazendo isso comigo? Porque faz isso consigo? Por que degrada
seu corpo e cansa sua mente dessa maneira, procurando respostas complexas
para questões simples sobre as pessoas?

| Rebeca
― Não! – confessou Rebeca, com o olhar cabisbaixo. Não estou conse-
guindo. Nada me parece bom o bastante.
― Rebeca, qual é o sabor que possui o conhecimento?
― É o mesmo sabor que possui o ato mais prazeroso que possa ser feito
e sentido pelas pessoas. É o sabor da conquista. De ter se finalizado um ciclo,
dando lugar a outro. Esse é o sabor do conhecimento. Saber cada vez mais,
conhecer cada vez mais o impossível, para que dê lugar a algo ainda menos
explorado e compreendido.
― E quando as coisas não tiverem mais sabor em sua boca. Rebeca, o
que fará então?
― Acredito que já esteja acontecendo. Penso que nada mais possui sa-
bor em minha boca. Não sinto mais o gosto do doce, do salgado, do amargo, do
ácido, do cítrico, do formidável, do sêmem, do orgasmo feminino. Meu pala-
dar tornou-se duvidoso. Às vezes mordo um pêssego maduro, ou uvas delicio-
samente rubras, e tenho a sensação de estar mordendo a boca de uma serpente,
ou os lábios de um vulcão em erupção.
― E isso, o que quer dizer? 173
― Quer dizer que tenho de trocar minha pele. Quer dizer que tenho de
regenerar minhas papilas gustativas. Quer dizer que o tempo está passando, e
tudo o que existe, em mim, está ficando para trás. E essa distância fica cada
segundo mais longe e difícil de retomar.
― Não sei como lhe agradecer, Rebeca. Você, acima de qualquer mal
necessário, me ajuda com cada beijo a manter meu coração distante do seu.
Você me ensina amar ao contrário. Me ensina amar de uma maneira tão forte
que sinto necessidade de me afastar ao máximo e o mais rápido possível

Amar ao Contrário
Se amar, de maneira natural, é querer estar o mais próximo possível da
pessoa por quem se tem esse sentimento, amar ao contrário é quase a mesma
coisa. É o mesmo sentimento, com, talvez, a mesma potência. Porém, esse
amor pede distância. Pede o mais alto nível de individualidade possível. Amar

Marco Buzetto |
ao contrário quer dizer manter-se unido a alguém pela necessidade incompre-
ensível de estar longe. Nesse ponto, há igualdade entre o amor natural e o amar
ao contrário. Um sentimento incompreensível. Um sentimento que não polpa
esforços, que não mede prestígios, que não implora pequenas coisas.
Amar ao contrário é querer estar o máximo possível distante da pessoa
que se ama. É querer, de tão próximo, correr o mais rápido possível para longe,
para fora.
Amar ao contrário, ao contrário do que pode se pensar, é continuar
amando.
Amar ao contrário é sentir tanto amor pela pessoa desejada que se sente
também a necessidade de ver, ouvir e sentir este amor pelo lado de fora, como
na visão de um desconhecido. Amar ao contrário é querer estar longe o bastan-
te para se poder admirar ao máximo quem se ama.
Amar ao contrário, ao contrário do que pode se pensar, é gritar o mais
alto e forte possível: “eu te amo”, desde que se esteja longe o bastante para
que ninguém escute.
174 Amar ao contrário não é sofrer calado. Nada disso. Amar ao contrário é
desejar que a distância não tenha fim, para que se sinta vontade de chegar cada
vez mais perto de quem se ama.
Amar ao contrário é a vontade de sentir saudade.
Amar ao contrário é a vontade de estar longe, para sentir o prazer de
querer chegar mais perto.
Amar ao contrário. Ao contrário.

― Ao contrário: amar. – dizia Rebeca. Amar é o sentimento mais hu-


mano, talvez, que (ainda) exista. Animais não amam. Eles possuem instinto
de sobrevivência. Animais não choram a falta do amor. Mas sim, a falta do
corpo presente que defenda seus iguais. Isso é o amor para o ser humano? Ser
humano é abandonar nossa natureza e ancestralidade instintiva? Ser humano
é deixar de existir enquanto ser natural? É deixar de existir enquanto matéria
criadora?
― Ser humano, Rebeca, então, é fazer do sexo, daqui em diante, um ato
meramente repugnante, que nem a reprodução servirá, tamanha a frieza que o

| Rebeca
ser humano cultiva dentro de si?
― Não sei, meu amigo. E pretendo também não pensar nisso. – res-
pondia Rebeca. Afinal, isso não é conversa para um bom capítulo. Não o sexo.
Amar ao contrário. Esse sim é um bom tema.

Amar ao contrário. Quem nunca sentiu amor assim? Quem nunca sentiu
essa vontade, ou no mínimo a dúvida que rondasse a cabeça, de gostar tanto de
uma pessoa a ponto de querer deixá-la? Com aquele olhar profundo, direto na
alma, que pode ser traduzido pela frase “eu te amo tanto, que prefiro terminar
tudo”. Essa frase que, talvez egoísta, nada mais é que, também, um egoísmo
ao contrário. É o egoísmo pelo o outro, para o outro, e não por si mesmo. O
egoísmo que pede que se pense primeiro para fora, e por último para dentro.
Afinal, o amor move as pessoas? O que mostra que o tempo passou?

― Não sei ao certo. Se tanto o amor quanto a fé move montanhas, e as


pessoas, então? São movidas por esses sentimentos também? A fé é a crença
forte em alguma coisa. E o amor? Também é um sentimento de crença ferrenha 175
em algo ou alguém? É o amor que move os outros sentimentos? – indagava
Rebeca, ao vento.
― Como é, Beca?
― O amor, Anna. É o amor é que move o mundo?
― Rufh... Oras, não sei, Beca. De onde veio essa pergunta? Você estava
aí, quieta, bebendo seu café. Pensei que estivesse cansada, ou tão longe que
não estivesse com vontade de conversar. – respondeu Anna. Quem diria que
em plena nove da manhã você viria com essa pergunta, assim, de repente.
― Não foi do nada, minha amiga chocólatra. Eu estava pensando nisso
noite passada. Essa pergunta foi apenas um eco do que pensei ontem.
― Você é o caos, Beca, minha querida amiga eternamente apaixonada.
Se fosse um livro, seria um livro caótico, denso, ruim de ler, difícil de acompa-
nhar; talvez até cansativo. Apesar de curioso ao se olhar a capa.
― Se eu fosse um livro, Anna, tenho certeza que poucos me leriam. O
que há de emocionante em mim, para que outros saibam pelas páginas? Que
escritor seria medíocre e decadente o bastante para escrever algumas dezenas

Marco Buzetto |
de páginas sobre mim? – respondia. Não Anna. Nada disso! Eu não sou tema
bom o suficiente para me dar ao luxo de ao menos pensar que um dia alguém se
interessaria por mim. Afinal, nem como pessoa em mim se interessam. Quanto
mais em uma história em forma banal, carnal. Quero que me amem ao contrá-
rio, Anna. Quero que mantenham distância de mim. Quero que as pessoas me
amem a tal ponto que comecem a correr sem direção, como baratas desespera-
das tentando se salvar, com a única vontade em mente: se salvar a todo custo.
Não estou aqui para ser amiga de alguém. Não estou aqui para ser amante de
alguém. Não estou aqui para fazer ou dar carinho. Não estou aqui! Eu, Rebeca,
não existo, e continuarei não existindo. Não quero que beijem minhas mãos.
Quero ser antropófaga, e comer minha própria carne até o último grama. Quero
ser apenas um vazio, aquele vazio que todos sentem, mas não se sabe do que.
Um fantasma que não deixará nenhuma lembrança. Quero apenas estar aqui
agora, e nunca mais depois. Talvez seja exatamente isso o que procuro. Meu
final. Sim. Acho que é isso. Quero o meu fim a todo custo. Vivo me pergun-
tando por que as pessoas parecem querer se destruir, quando na verdade sou
176 eu que quero. Ou também quero. Porém, aqui se levanta outra questão quanto
a minha resposta: por que eu iria querer meu próprio fim? Está vendo, Anna,
meu amor? Mesmo que eu responda tudo o que for perguntado, seja no outro
ou em mim, no planeta ou fora dele, para toda a resposta haverá outra questão
que farei... E nunca encontrarei meu final. Pois, meu final é a extinção de todas
as questões. Quando todos souberem sobre tudo, esse será o final. Quando não
existir mais questões, eu, Rebeca, extinguirei meu útero e a mim mesma.
― Enfim você encontrou seu motivo. – parabenizou Anna. Enfim você
conseguiu a resposta que tanto procurava. Finalmente escreveu sua última pá-
gina. Agora pode parar de transformar a si mesma. Agora pode parar...
― Não sei Anna. Não agora. Ainda não... Tavez.

Além do Arco-íris
Ou, O que há Depois do Fim?
O que há depois do final, afinal? Afinal, o final é o fim, certo? O que

| Rebeca
pode haver depois disso?
Quando Anna diz à Rebeca para parar de degradar seu corpo, pois já
encontrou a resposta que tanto procurava – “quero meu final a todo custo”
– isso quer dizer que Rebeca, a garota que nunca se satisfaz, finalmente desco-
briu porque faz tudo o que faz, bebe tudo o que bebe, transa tudo o que transa.
Finalmente Rebeca descobriu a resposta que tanto lhe atormentava com sua
pergunta. Por que diabos Rebeca von Weisheit agia como agia? Pronto. Estava
aí respondido: encontrar seu próprio final. Claro! Porém, e agora? O que há
além do arco-íris? O que há depois do fim?

― O que você faria Anna, meu arquétipo? O que você faria se houvesse
realizado tudo o que um dia almejou realizar?
― Não sei, Beca. Essa é uma pergunta difícil. Talvez eu descansasse.
Acho que é isso. Quando eu realizar tudo o que quiser, acho que vou me deitar
um pouco sob a sombra de uma árvore...
― Então, depois de realizar tudo, sua resposta para o fim é morrer? –
provocou Beca à sua amiga eterna. 177
― Morrer?
― Sim! Morrer. – respondeu. Se não se busca mais coisa alguma, se
todos os planos estiverem realizados, se todas as conquistas estiverem feitas,
todos os sentimentos experimentados, todo amor já vivido... Então, o que mais
resta?
― Não vejo problema, Beca. – brincou Anna.
― Você não vê, por que ainda não pensou à respeito. – respondeu Re-
beca. Pense comigo, minha querida Anna, a quem tenho tanto amor. Se não
há mais nada em nossa vida que valha a vontade, o desejo, a necessidade,
a ambição... Se não formos mais ambiciosos sobre novas conquistas, então,
para quê continuar vivendo? De quanto dinheiro mais um bilionário precisa?
Acredito que uma pessoa que alega ter tudo na vida pode se dar de presente um
tiro na cabeça, ou um laço bastante resistente na sacada do prédio ou no galho
de uma árvore.
― Isso quer dizer...
― Quer dizer que não há motivos para se acumular tantos bens, Anna.

Marco Buzetto |
Não há motivos para amar tudo o que se pode; ou amar tanto em tão pouco
tempo. Não há motivos para enriquecer de maneira demasiada. Não há moti-
vos para se ter mais do que o necessário. Afinal, para quê? Qual é a finalidade
do acumulo?
― E quanto ao acúmulo de conhecimento?
― Conhecimento não se acumula, Anna. Você bem sabe. Conhecimen-
to não é para sempre. Não é imutável. Pelo contrário. O conhecimento é mo-
dificado a todo instante. Não existe verdade absoluta, assim como não existe
conhecimento eterno. O que se aprende será aplicado a outros processos não
aprendidos anteriormente, e que virão para contrapor o que já passou. O conhe-
cimento, Anna, você bem sabe, nunca está acabado, pois enquanto se mantiver
o cérebro vivo, o pensamento estará sempre em construção. Porém, um carro
será sempre um carro. Mesmo que se troque por outros diferentes, a função
básica do carro será sempre a mesma, não importa o ano ou o modelo, ou a cor,
ou quem o dirige. Um carro será sempre um carro, não importa em que tempo
na história da humanidade estivermos. – continuava Rebeca. Uma casa será
178 sempre uma casa. Não importa se é um buraco escavado em uma rocha, uma
cabana na floresta, uma casa na árvore ou a mais extravagante e desafiadora
obra arquitetônica. Não importa se foi Niemayer, Le Corbusier ou Frank Lloyd
Wright, ou quem sabe o tal arquiteto do universo que a construiu. Uma casa
será sempre uma casa, não importa em que tempo estivermos. No entanto, o
conhecimento nunca será O Conhecimento, pois esse não é para sempre. Saber
mais, aprender mais, conhecer mais... A vontade sim é para sempre. O alcance
do conhecimento não. Esse é passageiro completamente mutável. – finalizou.
― Compreendo, é claro. – respondeu Anna, com as sobrancelhas para
cima. Você sabe que te amo Beca, e que sempre estarei ao seu lado. Mas, não!
Não sou sua amante, tampouco sua mãe. Sou apenas sua amiga, e quero seu
bem a qualquer preço. Não importa o que você faça, ou no que acredite.
― Se lembra quando te perguntei o que você faria caso tivesse reali-
zado tudo o que um dia desejou? – tornou Rebeca. Pois bem, talvez seja atrás
dessa resposta, agora, que eu deva ir. O que mais preciso saber sobre mim, ago-
ra? Não mais sobre as pessoas, sobre o outro lá fora. Mas sim, o outro em mim.

| Rebeca
Rebeca quer deixar de por as pessoas à prova e provar a si mesma ago-
ra. Afinal, não se pode mais buscar a todo preço respostas nos outros, enquanto
que não encontramos primeiro nossas próprias em nós mesmos. O que é com-
preender a si mesmo? Isso finalmente ajudaria?
Rebeca passou todos os momentos aqui registrados buscando respostas
que satisfizessem suas questões sobre a vida alheia, sobre o que faz do outro
um ser incompleto.
De tanto procurar questões que respondessem a suas perguntas, Rebeca
olhava mais para fora do que para dentro. Por mais que seus interesses fossem
compreender aos outros, a vida das pessoas, baseando seu ponto de vista e
conhecimento sobre tudo e sobre todos, Rebeca, mesmo assim, deixou falhas
pelo caminho. Tornou seu corpo um templo de aprendizagem. Ensinou a todos
os que passaram por sua cama, por sua vagina; ensinou a todos a compreen-
derem os problemas e resoluções. Ensinou a vida e a morte a qualquer um que
estivesse disposto a deitar-se e aprender com ela. Rebeca deu de beber a todos
os sedentos, e deu de comer a todos os famintos. Porém, de tanto ensinar o
outro lá fora, de tanto doar de si para quem quisesse, Rebeca definhou e perdeu 179
sua identidade. Rebeca, mais do que ensinar e contaminar as pessoas que esti-
vessem a sua volta, fez com que seu corpo e sua mente se contaminassem, e se
perdeu em um redemoinho de pensamentos fragmentados. De tanto fragmentar
seu prazer, sua carne, Rebeca fragmentou também sua mente, e esqueceu-se de
olhar suas próprias necessidades.

― Preciso começar de novo, Anna. Preciso recomeçar, e encontrar o


ponto principal em minha vida. Não quero mais saber por que as pessoas estão
vivas. Não quero mais saber o que mantém viva a esperança nas pessoas ao
meu redor que parecem não se dar conta da complexidade da existência. De
tanto ensinar outras pessoas sobre isso, acabei perdendo minha consciência.
De tanto querer contribuir para o progresso evolucional da mente do outro,
retrocedi a minha própria mente, e agora eu penso para trás. Não como antes.
Não penso mais como antes eu pensava. Penso agora para trás, como se eu não
soubesse absolutamente nada. Foi isso o que aconteceu comigo. Veja só! Caos
e confusão! Minha busca pelo meu final começa justamente no ponto de início.

Marco Buzetto |
Do início para o final, do final para o início. Tudo é uma espiral que deixa a
mente zonza e recomeça. A vida é isso. Minha vida se tornou assim: um círculo
eterno de finais e inícios que se desgastam. – intencionava ela, Rebeca. O cor-
vo, abutre ou condor que come meus olhos sou eu mesma. Daqui para frente,
daqui em diante... Desse ponto em diante será Rebeca que irá aprender com
seus próprios prazeres e desprazeres.

Já foi dito que compreender a si mesmo em primeiro lugar é, acima de


tudo, um trabalho complexo. No entanto, a complexidade se torna mais amena
a cada passo bem administrado. Compreender a si mesmo é uma tarefa diária,
que Rebeca bem o sabe, mas que deixou para trás ao longo de seu caminho.
Pois, viciou-se tão profundamente em querer contribuir para o bem comum a
todos que mortificou seus próprios princípios. O vício de dizer não aos outros
fez com que ela dissesse não! a si mesma. E assim começou seu caminho de
retrocesso.
Olhar para frente tendo enxergado todo o caminho pelo o qual se passou
180 anteriormente. Essa é a máxima de agora. Essa é a régua que traça o ponto de
partida de Rebeca, e também o nosso. O chamado “um passo de cada vez”. No
entanto, esse passo deve ser pesado, firme, fixo como metal fundido; e que o
vento não o leve. Deve ser um passo dado posteriormente de se ter examinado
minuciosamente todo o percurso. O passo deve estar além da reflexão, e não
no mesmo momento.
Essa é a visão de quem ficou para trás. Pois, quem ficou para trás teve
tempo o bastante de refletir sobre seus próprios passos ainda não dados, e os
passos de quem já está bastante a sua frente. E esses passos são, muitas vezes,
repletos de falhas. O passo de quem ficou para trás será mais forte, se bem ob-
servado, correto e melhor investido. E deve ser pesado e firme o bastante para
que o vento não o leve.

| Rebeca
O Trasanteontem
Ou, A visão de quem ficou para trás
Está certo. Quem se superou com certeza merece todo crédito. Quem
chegou na frente com certeza foi mais esperto e rápido. Com certeza merece
todo prestígio pela conquista. Quem alcançou primeiro seus objetivos real-
mente se destacou, e servirá de exemplo à muitos, à tantos outros que virão
depois dele, e, talvez, com o traçado sobre o mesmo caminho.
Porém, e quanto àquele que ficou para trás? Este será tachado de perde-
dor? Quem ficou para trás, o antes de anteontem, o trasanteontem, é o que? É
pior que aquele que deu o primeiro passo?
O trasanteontem, o dia anterior ao anteontem, não é significante?
Quem se destaca não é também aquele que ficou para trás em algum momento
da vida? Ou, todos nasceram vitoriosos? Será que todos nasceram campeões de
sangue perpétuo? Ninguém nasceu cabisbaixo e depois ergueu a cabeça além
das nuvens? Se todos nascessem reis e rainhas, não haveria sobre quem reinar. 181
Se todos fossem coro, ninguém seria solista.
Aquele que ficou para trás em alguma parte do caminho, ficou para trás
por conta de fatores muitas vezes insignificantes, mas que se mostraram de
extrema importância depois que de quebrar a cara contra o muro... Um muro
de vidro, bastante grosso e transparente, que permitisse ver o caminho adiante,
porém, sem passagem.
Entretanto, quem ficou para trás também possui uma vantagem, assim
como aquele que passou adiante sem dificuldade. Quem ficou para trás pôde
ver todo o caminho percorrido por quem estava a sua frente. Pode ver e ouvir
coisas que colaboram para seu engrandecimento. Pode ver e ouvir conselhos
valiosos sobre o que se deve ou não fazer. Em suma, então, quem ficou para
trás não é perdedor, ou inferior; ele está apenas alguns passos atrasado. No
entanto, devido a toda reflexão sobre seus erros, e toda compreensão que tirará
sobre eles, quem ficou para trás conseguirá facilmente dar o passo adiante, pois
estará completo em si mesmo. O passo adiante, que o levará ao topo desejado,
será apenas um fragmento de todo trabalho desenvolvido anteriormente a ele.

Marco Buzetto |
Aí está uma vantagem de quem ficou para trás em relação àquele que
chegou primeiro ao topo. Quem ficou para trás está preparado para recomeçar
se acaso um abismo estiver a sua frente, inesperadamente. Pois, todo seu tra-
balho de subida foi minimamente trabalhado e refletido sobre o que se quis. Já
aquele que alcançou o topo rapidamente não teve tempo de estabelecer a sis-
tematização dos erros, e quando um abismo se apresentar a sua frente, a queda
se torna dolorosa, e a subida de volta, se conseguir, será extremamente mais
difícil. Por um motivo simples: seu pensamento está construído de cima para
baixo, e não debaixo para cima. Assim, seu caminho para baixo também está
mais claro que seu caminho para cima; opaco e distorcido.

A Ira do Tempo
Ou, Do Caminho para Baixo
Quer dizer, descer ainda mais depois que se chegou ao final do poço não
182 tem como. Como cair ainda mais depois que já se alcançou último piso? Há
pessoas que reclamam que chegaram ao fim do poço, e que de agora em diante
é apenas solidão e sofrimento.

― Saber é sinônimo de sofrimento. – diz Rebeca. Há aqueles que recla-


mam já terem perdido tudo, chorado tudo, sofrido tudo o que se podia sofrer.
Porém, o que não se sabe é que o sofrimento é sinônimo do Saber. Isso eu
aprendi da maneira mais difícil e isolada, e infeliz.
― Quer dizer que quanto mais se sofre, mais se sabe? – indagou a eter-
na companheira de Rebeca.
― Sim. Quanto mais se sofre, mais se aprende. Quanto mais choramos,
melhor compreendemos nosso próprio choro, provando das lágrimas como um
hábito. – respondeu. O sofrimento não é inimigo. É aliado. Um grande aliado.
E isso apenas o tempo e o caminho para baixo nos ensina.

A verdade é que não há caminho para baixo depois que se já alcançou


o final do poço. O único caminho é para cima. Ou seja, quanto mais se desce,

| Rebeca
maiores são as chances de subir de volta, pois só existe esse caminho.
Depois da luz no fim do túnel, há ainda mais luz, pois nunca se chega
ao fim do túnel. O túnel é horizontal, e o horizonte nunca pode ser alcançado;
ele estará sempre à frente de aonde se chegou, sempre um passo adiante. Se o
horizonte é uma ponte, ou uma árvore, ou uma casa vistos ao longe, quando se
chega até um deles o horizonte já se tornou outro, está novamente em um pon-
to adiante. Se dermos dez passos para o horizonte, o horizonte nos responde
dando também dez passos adiante. Pois o túnel é horizontal, e sua luz ofusca
nossa vista, impedindo-nos de compreender o que se passa.
Já o poço é para baixo, e quando se chega ao final, escuro, cego, o único
caminho é para cima, seguindo-se a luz que vem de seu exterior. Dessa manei-
ra, então, o final se torna um companheiro e professor; e quando se chega até
ele, o limite para baixo está fixado, e a subida se torna o dever de casa que se
precisa aprender, e superar.

― Então a subida é uma nova superação. – contribuía Anna ao pensa-


mento. 183
― Sim Anna. A subida é a superação. Depois que se aprendeu alcan-
çando-se o fim de tudo em si mesmo, a nova fase é superar os fatos, superar a
si mesmo, e subir, renascido.
― Você não fala apenas da superação física, Beca. Fala também da
superação total, a superação plena do ser humano.
― Obviamente. Essas analogias e simbolismos cansativos e, por vezes,
chatos demais, são apenas fontes de exemplificações práticas. O que devemos
levar em conta, e a sério nesse diálogo, é a superação racional do ser humano.
Pois, esse deve olhar profundamente para si, se tornando seu próprio abis-
mo, seu próprio covil, e depois, depois de compreendida sua situação, deve
sobrepor-se a si mesmo, superando-se novamente. O que ficou para trás, o que
é fraco e não mais necessário, deve ser mantido no chão daquele poço, e se
possível enterrado de cabeça para baixo, para que nunca mais ressurja. Para
que não exista um eco de insegurança. – replicou Rebeca. No entanto, deve
servir de exemplo também para o que é ruim, e o que não pode ser repetido.

Marco Buzetto |
Tendência de ir cada vez mais abaixo. Essa é uma moda infinita. Um
raio de esperança que cruza toda escuridão e atinge a consciência tornando o
raciocínio ainda mais claro e lógico. A tendência de se ir cada vez mais abaixo,
o termo literal, conta, na verdade, de se procurar sempre a reflexão pesada
sobre nós mesmos. E essa reflexão pesada, séria, concentrada, está em um mo-
mento de isolamento do eu para o mundo. Ou seja, é um momento no qual o
indivíduo para totalmente o que está fazendo e se torna analista de sua própria
vida, conselheiro de seus próprios passos.
Rebeca não aceita as ações literárias típicas de auto-ajuda. Diz que esse
tipo de leitura é obsoleta, mercadológica, tornando a esperança, o desespero e
a baixa estima de do leitor um filão rico em investimentos, donde se pode tirar
muito dinheiro. Livros de auto-ajuda, na opinião de Rebeca, servem apenas
para explorar o sofrimento. O que ela faz, então, e fez durante toda sua vida, é
a auto-ajuda ao contrário.

― Auto-ajuda ao contrário. Isso sim. A auto-ajuda ao contrário faz o


184 indivíduo menosprezar a si mesmo de uma maneira tão profunda que não o
resta mais escolhas além do regresso. – explica Rebeca à sua companheira.
Feito isso, durante um processo de sofrimento reflexivo, o indivíduo se cansa
de tanta lamentação, se cansa de expor sua fraqueza a níveis deprimentes e hu-
milhantes, e se torna forte. Vence a si mesmo pela derrota. Isso serve também
para os religiosos. Chega de tanta lamentação em seus cânticos, em suas mis-
sas ou cultos. Por que lamentam tanto? Por que tanta auto-humilhação? Chega!
― Enquanto ao eco de insegurança, Beca? O eco é um fragmento que
passou despercebido, e agora volta para nos assombrar?
― Exatamente, Anna. O eco de insegurança é sentido durante a fase de
transição da fraqueza à superação, ou seja, do fraco para o forte. Se durante
esse momento no qual o indivíduo renasce, por algum motivo, lembranças e
dores mal compreendidas em relação ao seu passado lhe voltam à mente de
um jeito forte, abusivo, pode-se cair novamente no fundo do poço. E esse tipo
de queda machuca a alma. Esse é o eco de insegurança. É o momento ou uma
fraqueza que ressurge em nossa mente e nos faz lamentar novamente o que não
foi superado. Sendo assim, para se superar, acima de tudo, deve-se compreen-

| Rebeca
der todo tido de sofrimento já experimentado. Se acaso não se compreende um
fato ruim, uma perda, uma lágrima, uma desilusão, sentiremos o peso do luto
por muitos dias, comparado a morte de um ente querido ou relacionamento mal
acabado, e se esse luto não for também superado, novamente estaremos fada-
dos à queda. Compreender tudo o que nos cerca, seja física ou mentalmente.
Essa deve ser a máxima da vez. – concluiu Beca.

Do Luto
Ou, Da Privação
― Começo dizendo que o luto também deve ser superado. E pronto!
Mas, juntamente com a superação, o luto deve ser respeitado. – rosnou a garota
Rebeca, irada. Parece que ninguém entende o que digo. Ninguém compreende
a necessidade de superar a si mesmo, começando pela compreensão e supera-
ção de seus problemas? Maldição!
― Calma, minha amiga. Um dia tudo fará sentido. 185
― Você só pode estar de brincadeira, Anna. Perdeu inteiramente o ju-
ízo? – indagou Beca, gargalhando pelas palavras de sua amiga. Você está se
ouvindo? Você, Anna, cheia de vigor cerebral, conhecedora da incapacidade
humana, me dizendo que “um dia tudo fará sentido”? Não posso acreditar...
― Beca, só disse isso para te acalmar, Sei que não concorda...
― Então, se quer que eu me acalme de verdade, diga que a humanidade
que vive em luto irá sucumbir perante sua própria tristeza. – continuou Rebeca,
expressivamente. Pois, parece que essas pessoas não estão preparadas para se
superar.

O Luto o qual Rebeca se refere é exatamente o sentimento da perda, o


sofrimento pela perda. No entanto, não a perda pela morte, mas uma perda
comparada a ela. Nesse caso, o luto é comparado à privação. Isso sim. A priva-
ção que o indivíduo submete a si mesmo. A privação é inimiga do desenvolvi-
mento racional do ser humano. É a privação que não permite que se raciocine
logicamente, baseado em fatos, necessidades e atitudes que atribuem vida ao

Marco Buzetto |
indivíduo.

― É a privação, Anna, que condena uma pessoa a vagar por todo um


passado que não trará benefício algum. – explicava Beca, há tempos sem tran-
sar ou beber. A memória não compreendida é uma privação. Essa memória
que digo, é o sentimento de perda em algum sentido, seja em relação ao amor
fraternal, o amor a um amigo superestimado, o amor que se tinha ao parceiro
de cama. A privação também é relacionada à derrota.
― Então, se uma pessoa não supera a perda, ela passa a viver sob o véu
do luto que cobre sua cabeça, ofuscando seus olhos – completou Anna.
― O luto, Anna, mulher que tanto amo, assim como esse véu que você
citou, que cobre os olhos, impede o indivíduo de compreender a perda. – conti-
nuava. A perda deve ser compreendida também. O fim deve ser compreendido!
Se algo de muito pesar nos faz sofrer, precisamos compreender de onde vem
esse sofrimento, qual é sua raiz. Tendo feito isso, compreendido qual é a raiz
do sofrimento, esse deve ser aceito enquanto perda, enquanto fato passado. Ou
186 seja, o que está perdido, está perdido. O que ficou para trás, ficou para trás. O
passado só pode nos ensinar; não nos privar. Não é esse o papel do passado.

A Privação, o Luto, se dá por conta da negação sobre o que aconteceu.


Quando não sabemos entender o que aconteceu em relação a um fato ruim em
nossa vida, um fato que nos trás grande tristeza em pouco tempo, o luto faz
com que nos privemos da exploração de novas fases da vida. A negação entra
como consequência de querer continuar sofrendo pelo o que se foi, por insis-
tirmos em remoer o passado, porém, sem buscar a aceitação necessária para
seguir em frente.

― Essa pessoa que não compreende e não aceita o fato desgostoso que
aconteceu em sua vida, nega sua própria aceitação, e não progride. Não deixa
o passado que o magoou para trás. Assim, sua visão sobre seu próprio futuro se
torna densa, quando não totalmente escurecida. – explana Rebeca. O passado
e as memórias não compreendidas são como um círculo vicioso que mantém a
pessoa e o sofrimento no centro de sua própria atenção.

| Rebeca
― É aí que entra nosso vício pela bebida. – brincou Anna.
― Sim, é natural. As pessoas buscam recursos que facilitem sua convi-
vência com memórias ruins. Drogas, bebida, sexo, violência... Tudo isso são
ferramentas utilizadas por quem não compreende a si mesmo. Assim como
eu. Chega ser estranho, não é? Se tornar escravo de suas próprias memórias.
Como se tivessem vida própria, e controle sobre a gente; quando deveria ser o
contrário. Mente e corpo é uma coisa única. Um deve estar saudável para que
o outro também esteja.

Normalmente as pessoas se prendem a uma questão errônea sobre o so-


frimento da perda, que é: “por que eu não esqueço isso”? Quando, na verdade,
deveriam se perguntar: “por que não consigo compreender isso, e aceitar”?
Aceitando o ocorrido, pode-se dar o passo adiante, e continuar a vida de ma-
neira suportável.
O erro, então, está em querer esquecer. Esse não pode ser o foco. Não
se pode fazer isso. Pois, quanto mais se quer esquecer de algo ruim que nos
aconteceu, mais temos que nos lembrar, e isso nos maltrata. A questão é: “por 187
que não aceito”? Aceitar, para poder conviver com a lembrança, sem sofrer.
Essa é a máxima para o momento.

― Claro, no começo é um processo doloroso, e muito demorado. –


confessava Rebeca. Porém, com o tempo se torna automático. Assim que um
fato ruim se mostra presente em sua memória, a busca é pela consciência e
pela compreensão do mesmo, logo em seguida: a aceitação. Em pouco tempo,
a vida em seu cotidiano já está fluindo naturalmente, sem cicatrizes ou feridas
abertas que doam ainda mais.
― Beca, meu amor incondicional e nunca esquecido, por que está di-
zendo tudo isso sobre memórias, sofrimento, luto, negação, etc.? – indagou
Anna. Por acaso está tentando provar a si mesma?
― Sim Anna. Exatamente por isso. – confirmou Rebeca. Estou fazendo
toda essa busca incansável pelo passado, pois são em minhas memórias e em
meu sofrimento que vasculho.
― Talvez um dia você esteja pronta, ou novamente pronta, para escre-

Marco Buzetto |
ver sua própria biografia, minha amiga.
― Biografia? E quem compraria tal inutilidade? – brincou ela, Beca. E
como se chamaria? “Rebeca – descontentamento e perda absoluta de tempo”.
Pronto! Está aí o título dess mediocridade. Mas é verdade, Anna. Você tem
razão. Estes pensamentos não são menos do que minhas próprias lembranças
e pensamentos sobre tudo o que fiz e todas as minhas experiências, por mais
absurdas que pareçam. Você sabe como são verdades.
― Infelizmente, Beca. Infelizmente sei que tudo o que sai da tua boca
realmente aconteceu. Mas não sei se sinto orgulho ou pena, alegria ou tristeza
por você. Me perdoe. – respondia Anna. Me perdoe. Mas você sabe que não
são todos que aguentam tamanho teste. Não são todos que entram em um cam-
po de batalhas tão caótico e perigoso e sobrevivem para contar a história de
todo sangue e lágrimas derramados num solo infértil. Mas você foi assim. E
ainda o é. Infelizmente? Felizmente?
― O que será daqui pra frente, Anna? O que será da minha vida assim,
de hoje em diante? Será que se perguntam isso também?
188 ― Tenho certeza que sim, Beca.
― Será que todos têm esse medo na vida, de morrer e não ter deixado
marca alguma para ser lembrada depois? E eu lhe digo Anna: o fim terá uma
pergunta semelhante.
― O fim?
― Sabe Anna, esse é, talvez, meu único medo. Não sei se é comum.
Não sei se alguém pensa diariamente assim como eu. Mas, tenho medo de não
ter sido nada.
― Você não foi e não é o vazio, Beca. Você possui todo conteúdo neces-
sário. Teu nome deveria ser um adjetivo daqui em diante.
― Para quê, Anna? Para me olharem nas ruas ou nos bares, e eu sentir
o peso do mundo recaído sobre meus ombros, de uma maneira que eu não con-
siga ao menos compreender o que está acontecendo?
― Não, Beca. Você possui a naturalidade do ser humano. Você possui
a compreensão de um ser natural que busca a superação, não importa a que
preço. É o instinto pelo saber, por mais contraditório que possa parecer. Você
possui o anseio, a vontade, a busca que nunca se esvai. Não importa se esse

| Rebeca
é o final, o começo, ou apenas uma parte a menos explorada sobre seu corpo.
― Talvez, então, eu durma feliz essa noite, minha amada inexploravel.
Talvez eu possa dormir sem acordar com dores pelo corpo, pois dormirei leve.
E talvez eu durma tão triste por exatamente esse motivo, e acorde mais pesada
ainda com todo meu corpo quebrado como um terremoto deve ser.

Este não é o fim, nem o começo. Apenas mais um trecho da vida de


Rebeca que ela mesma se põe a disposição pra explicar. Daqui para frente, tal-
vez até respondendo a questão dessa garota/mulher tão completa e ao mesmo
tempo incompleta em si mesma... Talvez daqui em diante tudo seja ainda mais
obscuridade, ou cores sobrepostas como num arco-íres não usual.
Daqui para frente... Nada será o que deveria ser. Assim como na vida
e na morte de cada um que pela vida e pelo corpo de Rebeca um dia passou.
Caos e confusão.

189

Marco Buzetto |
Parte X
Da Convivência

Um de meus maiores problemas sempre foi o convívio social. Essa ca-


pacidade de olhar para o outro e se sentir à vontade em relação a ele é uma
normalidade que pouco me agrada. Quando esse tipo de convívio se esten-
de para toda a sociedade, me deprime. Mas, quando o trato diário é com a
família, me assusta. Me assusto de duas maneiras: quando a realidade do
convívio familiar é real, ou seja, quando as pessoas mostram o que realmente
são, repletas de mesquinharia, insensatez, hipocrisia, imoralidade: a família
moderna; e também, quando os vícios são da família como era até a metade do
século passado, repleta de união, amizade, confraternização, cumplicidade...
Não sei o que me assusta mais. O mais, ou o menos.

190
A garota Rebeca, nesse ponto, pratica o mais comum ato de confissão
sobre si, contando trechos de sua vida familiar comparáveis àqueles que pas-
samos no dia-a-dia. A família, esfera assustadora da existência, funciona para
tornar as coisas cada vez mais fáceis, ou infinitamente mais difíceis. O correto
é que em algum ponto de nossa vida, ainda durante o desenvolvimento pessoal,
algo fragmentador acontece, e as pessoas vão cada uma para seu canto, seguin-
do sozinhos seus caminhos.

― Mas com a família não há “sozinho”. Sozinho nunca quer dizer


exatamente isso. O indivíduo está sozinho, mesmo que sua relação familiar
esteja rompida. Seus passos sim são solitários. Seus caminhos são difíceis,
longos e desérticos. Porém, sua prestação de contas é cobrada a todo instante
pelos mesmos membros familiares que lhe deram as costas. Seus erros são
condenados como um rei é condenado ao fio do machado a perder a cabeça. –
completa Rebeca.
― Sim Beca, é realmente difícil de conviver em sociedade. Porém,

| Rebeca
quando essa é micro, sociedade familiar, as coisas tendem a piorar ainda mais,
mesmo que pensemos não ter possibilidade disso ou daquilo acontecer. –
apoiava Anna.
― A cobrança, Anna. A cobrança é algo terrível. A pressão. A mesqui-
nharia. A cobrança que um membro da família sofre em seus momentos mais
difíceis dentro de um círculo familiar é algo tão pesado que não faz mais do
que deixar as coisas ainda piores. Saber que seus iguais estão contra suas inten-
ções, contra suas idéias e métodos por nada menos que um capricho é difícil de
compreender, e fatalmente doloroso de sentir. É uma sensação de não estar fa-
zendo nada certo. Uma sensação de inutilidade. Uma sensação de incapacidade
constante que acorrenta os pés e as mãos. E dessa forma, se prova que todos
ao seu redor tinham razão: você é nada! – continuava Rebeca. Sabe Anna, às
vezes eu olho as pessoas ao meu redor e penso: “o que eu estou fazendo aqui?
Preciso dar o fora”.

Tudo parece uma provação sem igual, que fugiu do controle e não faz o
menor sentido. O provador não sabe mais o que quer de quem se está provan- 191
do. Tudo fica tão automático, o convívio familiar se torna tão mecânico, que a
vida se torna alienada, sem finalidade. Mecanização da família. Industrializa-
ção da familiar. Instituição familiar. Quem nunca se perguntou, um dia irá se
perguntar, e pode começar agora: por que a família parece querer varrer seus
próprios membros pra debaixo do tapete?

― A vida está fora de contexto, Anna. – afirmou Rebeca. Sempre pensei


assim. Sempre pensei que a vida estava fora de contexto. Minha vida estava
fora de contexto. Eu não era mais dali ou daqui. Minha identidade não era mais
aquela que eu vivia dentro de casa, durante a adolescência e parte da juventu-
de. Me sentia uma total desconhecida. Quando eu olhava as pessoas da minha
família, da minha casa, eu não conseguia ver meu rosto, não me encontrava.
Até mesmo o espelho do banheiro refletia outro rosto que não era meu. Era
como se eu olhasse a vida de fora, como expectador, e nenhum trecho da ópera
me agradasse. Um sofrimento só. Cada segundo era uma pontada no coração
com qualquer objeto extremamente enferrujado, para que me matasse aos pou-

Marco Buzetto |
cos e dolorosamente a cada dia. Eu também me tornava enferrujada. Princi-
palmente meu cérebro. Minha memória, meu raciocínio, minha velocidade de
pensamento e resposta já não eram mais as mesmas, e diminuíam dia após dia.
Será que todos um dia se sentiram assim?

Os olhos de Rebeca não eram como cachoeiras... Pareciam mais como


piscinas cheias, prestes a transbordar. Porém, a vergonha que sentia em dizer
aquelas palavras confidenciais era tanta que as lágrimas secavam, e recomeça-
vam junto de outra frase.

― Eu me desesperava, Anna. Eu olhava as pessoas conversando, dando


risadas forçadas, muito altas para chamar a atenção, e meu sangue corria mais
rápido, como se tentasse fugir do meu corpo. Eu tinha vontade de fazer o mes-
mo. Sair correndo, sem rumo, descontroladamente, implorando um acidente
fatal que pusesse fim a esse meu martírio diário. Como se meus ossos, minha
carne, minhas veias, meu sangue, meus órgãos, cada um quisesse correr para
192 um lado diferente.
Será que isso é comum, apesar de não ser normal?

Quais são os níveis seguros para se sentir triste? Quais são os limites?
Até que ponto uma pessoa em sua sã consciência aguenta toda pressão de se
sentir isolado no centro da multidão?
Uma pessoa solitária não conhece a dor de se sentir isolado. Melhor di-
zendo, uma pessoa solitária não conhece a dor de ser isolado. Pois, é isso o que
a sociedade faz. A sociedade cria, zomba, isola e destrói o monstro. A família
cria e destrói o excluído. A ovelha se torna negra por influência majoritária do
próprio rebanho. Alguém precisa ser o espírito ruim, para que as outras se so-
bressaiam. A felicidade não está ao alcance de todos. Uma pessoa solitária não
conhece a dor de ser isolado, pois, ela previamente não conheceu o convívio
entre seus iguais. Assim, não sofre como seus iguais.
Aquele que não conhece a alegria, não sabe o que é tristeza.
Aquele que não conhece a simpatia, não sabe o que é a antipatia.
Aquele que não conhece o prazer, não sabe o que é o sofrimento.

| Rebeca
Aquele que não conhece o amor, mesmo assim sabe o que é o ódio.

― Era claro, muitíssimo claro que algumas coisas eram feitas por que-
rer, pra querer me incomodar, com o propósito de me deixar aborrecida. E
depois, visivelmente cabisbaixa, quando o silêncio da minha parte se tornava
constrangedor, eis que eu era obrigada a ouvir: “ta tudo bem, filha? Aconteceu
alguma coisa”? Deboche, isso sim.
― E qual era sua resposta, Beca?
― Minha resposta? Minha resposta era engolir as palavras e as lágri-
mas, abaixar a cabeça, e voltar para o meu quarto, fingindo ser o que eu nunca
fui. Uma pessoa normal, talvez. Um cachorro com o rabo entre as pernas, isso
sim.

Do Silêncio
Ou, Do Estado de Repouso
193

Aprendi, obrigatoriamente, a ignorar qualquer coisa de uma forma tão


intensa que, às vezes, praticamente me esquecia o que havia acontecido. Às
vezes sentia que era apenas fruto da minha imaginação, ou uma memória
construída. Isso me ajudava a ouvir menos, e ficar mais em silêncio. Nenhum
barulho me incomoda tanto quanto o que as pessoas fazem. Barulho de fala.
Barulho de risada falsa, de gargalhada para chamar a atenção. Barulho de
gente que fala acima do volume numa uma conversa no mesmo cômodo. Ba-
rulho de gente.

Silêncio. O silêncio como forma de tranquilidade. Não o silêncio pro-


priamente dito, com ausência total de ruído. Mas sim, um silêncio de tranquili-
dade, de quietude individual, mental. Um silêncio de serenidade
Rebeca conseguia, por vezes, e foi obrigada a conseguir, desenvolver
essa capacidade, conseguia se sentir serena mesmo meio ao caos total ao seu
redor, ou o caos dentro de si mesma. A paz e a guerra. A serenidade caótica em

Marco Buzetto |
pessoa. O equilíbrio em sua plenitude.

A frieza congelante em mim não é racional, foi condicionada. Minha


frieza foi construída, implantada. Foi necessária como um escudo foi neces-
sário a um centurião romano. Minha frieza foi imposta como necessidade.
Imposta pelo meu subconsciente para defender minha sanidade... Como um
repelente automático. Um espelho tão forte que não importava a força do im-
pacto, ele não se quebrava. Uma armadura de gelo impenetrável que calor
algum derreteria.

Gritar ao máximo, a todo volume, para sentir o silêncio dentro de si.


Talvez seja isso o que as pessoas fazem. Talvez seja por isso que o ser
humano faz tanto barulho: para saber o que é silêncio. Talvez se faz tanto ba-
rulho para poder dormir tranquilo à noite, e considerar o volume mais baixo
que o nosso próprio um ruído imperceptível. Se alguém grita dez vezes, e outro
grita apenas uma, sendo todos na mesma altura, nos incomodamos menos com
194 o primeiro. Porém, o fato é que qualquer um é barulho, alto e desnecessário.
Infelizmente, aprendemos a conviver mais com o ruído menos expressivo.
Será que o planeta Terra sem o ser humano seria menos barulhento? O
mundo já não é barulhento demais?

― O problema, Anna, é que tudo é relativo.


― E como isso pode ser um problema?
― O que é barulho para você pode não ser para mim, e vice-versa. –
respondeu Beca. O que você considera silencioso, ou comum, ou normal... Até
mesmo o que você considera real pode não ser para outra pessoa. Sendo assim,
como dizer o que é barulho que incomoda e o que não é e não incomoda? Será
que devemos andar com um sonômetro no bolso? Que horas um barulho é
barulho de fato?

Quando se busca a concentração por meio da imersão total em um am-


biente silencioso, as reflexões vêm à tona de maneira clara, e razoavelmente
rápida. No entanto, o que Rebeca aprendeu, foi entrar em contato com seu

| Rebeca
estado de espírito reflexivo em um ambiente caótico e repleto de ruídos fora do
comum, os quais deixariam tantas outras pessoas rapidamente enlouquecidas.
O que Rebeca conseguiu, durante toda sua vida, em todos os momentos
trágicos, incompletos, difíceis e confusos, foi olhar para as explosões solares e
enxergar a serenidade. Rebeca olhou para os terremotos e percebeu o silêncio
tectônico. Essa garota/mulher viciada em questionamentos conseguiu encon-
trar a tranquilidade nos momentos mais difíceis, os quais poucos acreditariam
existir. Rebeca encontrou o silêncio em ruídos extremamente altos e caóticos.
Quando olha para uma explosão atômica ou erupções solares gigantescas, en-
surdecedoras, Rebeca ouve apenas o silêncio.

― É como se os gritos mais tenebrosos e desesperados fizessem de


mim uma pessoa mais serena. Eu ouço a aflição extrema e encontro nela lacu-
nas calmas. Até mesmo quem grita o mais alto e desesperadamente possível
precisa de segundos de silêncio para recuperar o fôlego. – dizia Rebeca. Tudo
é muito estranho, Anna, minha querida e sexy amiga. Às vezes, enquanto sinto
a quietude dentro de mim, sinto medo do que virá. Os gritos, o desequilíbrio, a 195
histeria, tudo isso mantém minha mente consciente e atenta. Por mais que eu
deteste o barulho da humanidade, sinto falta.
― Você é uma mulher controversa, Beca. Você sabe disso. Em momen-
tos diz que não gosta, em outros diz adorar algo.
― Talvez seja essa a graça da existência, minha Anna. Gostar hoje
para detestar amanhã, e vice-versa. Gosto do barulho para encontrar o silêncio
dentro dele. Isso me agrada.

Exemplos assim confundem a cabeça de quem quer que esteja próximo


à garota/mulher. Rebeca, apesar de seu elevado nível de compreensão e racio-
nalidade, por vezes se prende a explicações difíceis de interpretar.
O silêncio é uma necessidade. O barulho é uma ação/reação. Se um é
mais importante que o outro, isso não importa. Porém, como o ditado clichê
não se cansa de existir: “depois da tempestade vem a calmaria”. No entanto,
o que acontece quando a calmaria é demais? Por que os soldados romanos du-
rante um período muito longo de paz disputam entre si? A guerra é necessária

Marco Buzetto |
para manter a paz? Dualismo. O barulho é necessário para existir o silêncio.

― Imagine a mais catastrófica explosão ainda não conhecida. Uma ex-


plosão devastadora que pode exterminar a vida no planeta de maneira fácil e
rápida. Feche os olhos, Anna; imagine. Pense nisso nos próximos quarenta e
cinco segundos. Assustador! – explanava Beca. Mesmo assim, quase imper-
ceptível, a velocidade da luz é muitíssimo mais rápida que a do som. Você verá
o brilho flamejante da explosão antes de ouvir o estrondo horripilante do que
acontecerá a seguir. É esse o ponto do silêncio. A beleza está entre a luz e o
som. Existe serenidade e simetria entre os dois extremos. A paz e a destruição
estão afinadas. Harmônicas.
― E é isso que lhe agrada: o silêncio que existe antes da desgraça?
― O silêncio, Anna. O silêncio me agrada. O que vem depois é apenas
o segundo passo. O barulho da explosão também é um mantra.

196 Manter-se vivo


O que normalmente se faz para conviver em sociedade de pacificamen-
te? Fazemos concessões, várias delas, várias vezes! Deixamos nossas convic-
ções de lado para melhor conviver com os vizinhos, com familiares, com ami-
gos e colegas de trabalho. Deixamos pontos de vista de lado para não gerarmos
conflitos. Deixamos a fala pela metade para não nos estendermos em assuntos
que não nos agradam, apenas para não aborrecermos quem está falando. Até
que ponto, então, nós morremos para que outro se mantenha vivo?

― Não sei até que ponto, Beca. Não sei se existe essa pretensão, essa
passividade.
― Passividade, Anna. Essa é a palavra certa agora! Até que ponto so-
mos passivos? A passividade perante conflitos interpessoais é realmente ne-
cessária? Se for, até que ponto? Pois, se é passivo aceitar a opinião alheia, por
que o outro, então, não faz o mesmo? Existe realmente a necessidade de um
prevalecer sobre o outro?
― E você acha que fazendo isso, aceitando a opinião alheia, as pessoas
perdem sua identidade?
― Aceitar a opinião alheia em demasia, ao ponto em que não exista ou-
| Rebeca
tra e prevaleça apenas esta, sim, é prejudicial. Pois, não apenas a opinião alheia
prevalecerá, mas também o modo de se pensar do outro. A identidade se torna
apenas uma, caso não se tenha consciência de que um é diferente do outro. O
modo de enxergar a realidade se torna igual, padronizado. O outro deixa de ser
o outro, e se torna apenas um. A diferença se torna obsoleta. A diferenciação se
torna obsoleta. – explicava Rebeca.

O pecado não é pecado, diz Rebeca. No entanto, pagar pelo pecado, isso
sim é errado. Pois, de que adianta a livre escolha sobre si, se a todo instante es-
peramos acertar as contas com alguém? Por que, então, acreditarmos em uma
justiça talvez divina, talvez ainda mais sobrenatural? Por que acreditar que em
algum instante de nossa miserável e rápida, teríamos de acertar as contas e
pagar por erros cometidos pela simples vontade de cometê-los?
Ter consciência sobre os atos torna o erro uma vontade correta. Se er-
ramos sobre nós mesmos, movidos pela vontade, erramos com a consciência
limpa, livre de culpas. Sendo assim, livre de julgamentos previamente estabe-
lecidos ou futuros.
Estar vivo é manter a vontade de se fazer o que se quer. Porém, sem
prejudicar a vida alheia. Pois, a vontade é individual. O alcance, e tudo o que 197
parte da vontade realizada, são responsabilidades únicas do indivíduo; pessoal
e intransferível.
Durante toda vida podemos pensar que o que nos mantém vivos é uma
inspiração, ou um plano futuro, algum sentimento variável em nossa consciên-
cia, como o amor, por exemplo. Chegamos a pensar, também, que a inspiração
de nossa vida que mantém o fogo aceso dentro de nossos corpos é a memória
sobre fatos isolados que ocupam a mente de maneira, até certo ponto, cons-
trangedora.
A lembrança daquela velha pessoa que martela o cérebro dia após dia
mantém o sangue correndo pelas veias. No entanto, esse mesmo sangue não
chega a lugar algum, pois sempre volta ao seu ponto original. O sangue em
nossas veias não alcançam outros caminhos, mas sim, permanecem circulando
os mesmos passos, com as mesmas funções, sem trazer algo novo, que não seja
uma enfermidade.

― E a alteração, Beca, o que acha?


― Alteração?
― A alteração, minha amiga viciada em sexo e insatisfeita. – respondia
Anna. As alterações que acontecem nos rumos da vida. Você acha que exercem

Marco Buzetto |
alguma influência direta? De onde elas surgem, afinal?
― Os rumos da vida mudam seu caminho de acordo com as ações que
realizamos. Não há mistério algum: comemos, bebemos, dormimos, acorda-
mos, trabalhamos, nos relacionamos com pessoas relativamente confiáveis,
passamos a vida toda repetindo ações e preceitos que colaboram, ou não, com
nossas realizações. As mudanças que ocorrem entre todos estes pontos são
consequências de algo que aconteceu, mas que não prestamos atenção. Não
há mistérios. Apenas fatos que não percebemos que aconteceram, e que, de
alguma forma, colaboraram para nosso bem-estar ou mal-estar.

Possuímos muito mais em comum com Rebeca do que imaginamos.


Sua vida de busca incessante por algo que não se sabe o que é; seus sentimen-
tos de ódio e amor, rancor e gratidão, caos e serenidade, são sentimentos que
habitam dentro de nossos corações e mente em todos os momentos. Porém, não
nos damos conta da potência que cada um deles possui.
O que, afinal de contas, é se manter vivo?
O cotidiano, o dia-a-dia que não nos perdoa e que condena cada um de
nossos atos é uma dádiva ou uma pena a ser cumprida? Afinal, estamos aqui
198 para cumprir regras pré-estabelecidas, ou habitamos um mundo real, repleto de
esferas que necessitam urgentemente serem reformadas?

― Afinal, Anna, quando você olha para fora, pela janela do quarto, ou
pela porta antes de por os pés para fora pela manhã, você vê um mundo a sua
volta coexistindo de maneira serena, apaziguada, atrativa? Ou vê uma verdade
que poucos se dão conta, ou quando dão, fingem o contrário para não terem
que pensar à respeito? Você vê a felicidade ou a tristeza? – perguntava Beca,
com lágrimas nos olhos. Estou cheia, Anna. Sinto muito. Mas estou cheia de
tudo. Cheia de olhar pela janela e fazer de conta que tudo funciona de acordo
com o que queremos. Estou cheia de olhar para fora e me ver convivendo em
uma sociedade que me martiriza, que me faz sentir em um quarto escuro, isola-
do de todo o resto com um enjôo descomunal que me faz vomitar sangue. São
as pessoas que criam essa sensação de que nunca vamos poder ou conseguir.
Ou melhor, sempre podemos, mas nunca conseguimos. Podemos poder, mas
não podemos conseguir. O mundo nos faz nascer; nos molda; nos ensina, nos
oprimi e nos mata. Será que é isso, Anna, será que não aprendi direito? Por que
tanta lamentação?

Rebeca se encontrava num momento de extrema reflexão sobre si mes-

| Rebeca
ma. Tenta desesperadamente compreender o que tanto lhe faz infeliz. Mas essa
infelicidade não é aquela: antônimo da felicidade. O “estar infeliz” de Rebeca
é não compreender o todo. Compreender tudo apenas pela metade não lhe
agrada, e a aborrece. E a frequência com que pergunta se esse sentimento paira
sobre a cabeça de todos é enorme. “Como eu gostaria de estar na mente de
cada ser vivo desse planeta, para poder sofrer de maneiras diferentes”, dizia
ela. “Estou cansada de sofrer sempre do mesmo jeito, do meu jeito”!
Porém, até mesmo a não-rotina pode virar a própria rotina. O incomum
se torna atrativo, alucinógeno. Por mais que não utilizemos toda capacida-
de mental, o pouco que existe dentro de nossa cabeça se torna cansativo. É
necessário um choque intelectual. Um chacoalhão interno. É necessário um
momento de absorção de novas frequências. Dessa forma alimentamos e au-
mentamos nosso ser.

― Será que eu comi tanto que não me cabe mais nenhuma mordida que
seja? Preciso vomitar, Anna. Preciso por para for algo que ainda não digeri. E
depois, depois de vomitá-lo todo, tenho que olhar concentradamente em todos
os fragmentos, vasculhar cada grama daquilo que havia dentro do meu estô-
mago, com minhas próprias mãos se preciso for, para compreender o que ainda 199
falta. Assim o alimento da minha mente pode ser novamente absorvido. Assim
posso comer novamente o que pus para fora. Depois de tê-lo compreendido.

Existe, então, o “saber demais”? Será que até para o conhecimento se


aplica a máxima que “tudo em excesso é prejudicial”? Se a bebida em excesso
maltrata e destrói o fígado, o conhecimento em demasia prejudica o cérebro e
a consciência? A dose é que faz o veneno!
Existe, então, quem fique louco... Quem perca a razão, a lógica, ao ten-
tar absorver mais conhecimento do que se pode aguentar?
Qual é, então, o limite da inteligência para que não se fique louco? Ou
já não ouviram: “... era tão inteligente que ficou louco”!

― Porém, não é a loucura uma paixão intensa sobre algo? – continuava


Rebeca. Posso, então, estar tão apaixonada pelo saber que não me dou conta
do quanto estou sendo prejudicada? Como algo tão bonito pode ser altamente
maléfico? Me sinto traída. Traída por mim mesma! Minha racionalidade me
engana. Minha mente evolui para o crepúsculo. A questão é: o que vai aconte-
cer quando o sol não mais iluminar as superfície?

Marco Buzetto |
Parte XI
Eu Desabarei
Ou, Da Queda

― Não importa mais o que aconteça, eu encontrarei meu final. E não


está tão longe, na realidade. Sinto que em poucas palavras minha vida irá se
acabar, como acaba o verão e começa o inverno. Como acaba a luz e começa a
escuridão. – dizia Rebeca. Sinto que não há muito mais a ser dito. Minha vida
não possui tantas emoções assim, que precise ser estendida por tanto tempo.
Sinto que meu fim está próximo. Cada vez mais próximo. E minha queda será
bem do alto, praticamente da estratosfera.
― E o que você vai fazer? Pretende por um fim em tudo, de vez?
― Um fim? O Fim? Quer saber se eu vou tirar minha própria vida?
200 – indagou Rebeca. Bem que eu gostaria. Acho que essa é uma das grandes
tentações do ser humano: conhecer o outro lado. Conhecer a sensação de tirar
sua própria vida. Porém, às vezes penso se não seria muito egoísmo da minha
parte. Por outro lado, egoísmo a quem? A mim mesma? Acho que não vou me
importar mais depois de ter meus miolos espalhados pelo chão, decorando as
paredes. Mas, não sei. Essa não é a solução. Talvez não...

― Por que você não me beija?


― Acho que o beijo é pessoal demais, tão íntimo. Não deve ser trivial.
― Às vezes não te compreendo. Você não é capaz de me beijar, mas vai
para cama comigo sempre que tem vontade. O que há de tão íntimo num beijo,
que não pode ser comparado ao entra e sai da tua língua em minha vagina.
Não quer beijar minha boca, mas meus lábios internos e externos e meu clitóris
enchem sua boca de saliva.
― Você não é a primeira, e tantos homens também já me disseram o
mesmo. – confessava Rebeca. Porém, talvez não tenha explicação. Talvez não
uma explicação cabível. Não quero te beijar, e pronto. A intimidade do sexo

| Rebeca
entre nós já não é o bastante?
― Você tem medo! Isso sim, Rebeca. Tem medo de seus sentimentos.
Não quer me beijar, pois tem medo de sentir tudo o que te fere. Toda alegria
contra a qual você luta.
― Bom, essa é uma opinião bastante conveniente. Pode mesmo estar
certa. – retrucava ela, Rebeca. Talvez o toque de seus lábios junto aos meus
gerem tanta alegria que raios e trovões ecoarão por nossos corpos, do meu para
o seu, principalmente, e com essa carga tão generosa de prazer você definhe,
assim como eu. Talvez a felicidade sirva para isso: nos fazer morrer quando
ela não está por perto.
― Você não se cansou da vida, Rebeca. Na verdade, você se cansou de
você mesma. Tenho certeza que, se você pudesse, transplantaria seu cérebro,
para poder explorar toda a novidade que fizesse um strip-tease à sua frente.

O que é a angústia? É essa aflição intensa? Ou é a ansiedade intensa?


Søren Aabye diria que é uma condição humana que desperta, caso desperte, a
possibilidade de se explorar a liberdade. À Martin, o alemão de Meßkirch, a 201
agústia se torna o nada absoluto que faz com que a existência se torne possível.
Para Rebeca, os dois estão corretos. Porém, toda essa filosofia corroe o
coração e o espírito de uma maneira tão ácida que pouco se consegue absorver
em matéria de conhecimento. Por outro lado, Rebeca também diz que “o sofri-
mento é o maior professor e conselheiro”. É a partir dele que surge a reflexão.
É a partir do sofrimento que as pessoas colocam suas malditas mentes para
funcionar, e pensam em atitudes passadas, presentes e futuras.

― É sofrendo, chorando, perdendo, corrompendo seu coração com a


tristeza fria do intolerável que as pessoas se dão conta de todos os aspectos
de suas vidas medíocres. – continuava Rebeca. Sei que me repito. Sei que sou
uma espiral que volta sobre si mesma. No entanto, como ensinar sem a repeti-
ção? É a repetição que condiciona o saber. Será que é por isso que as pessoas
sofrem tanto? Uma vez, apenas, não seria o bastante? Masoquismo! Foda-me,
mate-me, beba meu sangue... Como diria Lawless. Mate. Foda. Morra. Só as-
sim é real!

Marco Buzetto |
― Você continua sem me dar um beijo sequer, Rebeca.
― E você continua a se surpreender com isso. – respondeu. Não me
conformo. Não vou te beijar.
― Você me dá nojo!
― E você, engolindo cada gota do meu orgasmo, não se enoja de si
mesma também, a ponto de lavar os lençóis com seu vômito enferrujado? É
você quem suga todos os fluidos de meu útero, e eu que te enojo! Irônico...
― Você é nauseante, Rebeca. Não sei como existe quem consiga olhar
para você sem sentir pena, sem sentir raiva, mesmo sentindo prazer e vontade
de se deitar contigo. Mesmo usando da desculpa da busca pela sabedoria para
adentrar seus orifícios. Pois, você sabe que não é tudo o que imagina ser. Mas
está muito além desse tudo inalcançável. Mesmo você procurando alguém para
matar esse rostinho bonito.
― Ainda procuro respostas, você sabe. – confessou Rebeca tristemente.
― Sei que quanto mais anda, menos alcança o que quer. Quanto mais
corre, menos enxerga o que está a sua frente, pois o suor do sexo corrói seus
202 olhos. Você não vai encontrar nada. Não vai descobrir o que há de novo, pois
tudo é demasiado velho. Não existe o que ainda não foi descoberto. E, pelo
visto, esse não o será. Mesmo que você teime. Mesmo que você queira. Mesmo
que você grite e transe desesperadamente em busca de respostas pelas quais
ainda não sabe a pergunta.
― O que é você, tenebrosa?
― O que é você, Rebeca? Quem é você? O que procura? Ainda anseia
a morte do velho para que o novo surja evoluído?
― E você, maldita consciência, já não matou minha sanidade o bastan-
te? – finalizou Rebeca olhando ao espelho sua face pálida e embriagada.

Da Hesitação
Ou, Da Dualidade dos Sentimentos
Possivelmente todos irão passar por isso. É quase uma ordem natural.
Todos um dia irão hesitar. Não importa como, quando, onde ou por que. Todos

| Rebeca
hesitarão. Com a família, com a namorada ou namorado, com seu parceiro ou
parceira de sexo casual, com seu patrão, seus filhos, seus amigos. Hesitar é par-
te natural de aprendizagem. No entanto, hesitar em relação ao outro é saudável;
hesitar consigo mesmo é ruinoso.

― Você hesitou quando mais poderia ter sido feliz.


― Feliz? Parece que esse é o errôneo tema central da minha vida. – res-
pondeu Rebeca. A felicidade é tendenciosa. Não acredito mais que seja neces-
sária. Não acredito mais que possa ser conquistada. Pois, como conquistar algo
que aos poucos desaparece? Não existe estabilidade na felicidade. Existem
dúvidas. E se existem, estar feliz se torna uma paranóia. Não quero ser para-
nóica. Não pela felicidade.

Buscar a felicidade a todo instante, acima de qualquer coisa, é, além


de uma utopia, um trabalho paranóico. Não se pode ser feliz o tempo todo. A
felicidade não é concreta, não é segura. Os momentos felizes durante toda a
vida vêm e vão, de tempos em tempos, uns diferentes dos outros. O momento 203
é outro, a felicidade é outra.
Sendo assim, se existem momentos felizes, dispersos, a felicidade tam-
bém é dispersa, e necessita de uma pausa, às vezes longa de uma a outra. A
felicidade não é eterna, tampouco duradoura. A felicidade é um sentimento
rápido, tão alucinógena quanto qualquer outra substância que nos altere as
capacidades cerebrais. Tal como o amor; a droga mais pesada. A droga que
mais maltrata, e também a que mais nos engana e vicia; que tanto me seduz à
repetição.

― A felicidade é cansativa. O que acontece com quem não quer ser


feliz o tempo todo? Somos obrigados a ser iguais até mesmo com nossos senti-
mentos? – continuava Rebeca. E se não quero amar? Preciso? É preciso?
― E se não queremos manter a calma, e viver em constante raiva da
vida? – indagou sua consciência, reaparecendo.
― Não sei. Realmente não sei. – respondia Rebeca a si mesma. Não
quero ser feliz, e não quero nada em meu coração que não seja sangue e oxi-

Marco Buzetto |
gênio. Não posso, mesmo, estar sozinha? Sou obrigada, então, sociedade me-
díocre, a ter outra pessoa ao meu lado, só para repetir seus padrões chamados
de normais?

O que fazer quando não se quer nadar junto à corrente, e sim contra
ela? O que fazer quando buscamos sentido e bem-estar em reações alternati-
vas sobre a vida? Para que, então, sentir-se feliz? Pura química, assim como a
adrenalina. E o amor também é químico. Tudo não passa de respostas organi-
zacionais do sistema nervoso. Por que, então, sentir-se deslocado da sociedade
– forçados por ela mesma – se não se quer sentir a padronização sentimental
na qual a maioria esmagadora das pessoas vive?

― O que faz um amante sexual ser feliz? – indagou Rebeca.


― Ele busca momentos que o satisfaçam sexualmente.
― O que faz um amante admirador ser feliz? – indagou novamente.
― Ele busca pessoas a serem admiradas, satisfazendo-se assim.
204 ― O que faz um casal sentir amor e felicidade um pelo o outro? – con-
tinuou.
― Eles buscam momentos felizes e o amor em cada um, completando-
-se um ao outro.
― O que faz um psicopata matar? – perguntou Rebeca a si mesma,
estranhamente.
― A loucura? O desequilíbrio? A vontade?
― A felicidade em realizar o ato. O amor pelo sofrimento carnal de
alguém. – respondeu Rebeca, unindo tudo em contradição e reflexão temática.
O sofrimento do outro gera prazer, felicidade e amor a quem quer realizar
tamanha barbárie. Sendo assim, como dizer que a felicidade não está também
em aspectos ruins ou maléficos da vida? Sendo assim, não existe a possibili-
dade de se dizer o que é ou não a felicidade, onde ela está, quando e como se
apresenta. Se a felicidade e o amor podem estar em aspectos tão diferentes um
do outro, então como dizer que não existam maneiras diferentes de sentir-se
feliz, sem ao menos demonstrar? A vitória para um é a derrota para o outro. O
amor para um é a dúvida para o outro. A felicidade para um é a incompreensão

| Rebeca
para o outro.
― Quer dizer que você não quer mais ser feliz? Está se entregando a
hesitação. Desistindo? Não quer mais encontrar ou buscar a felicidade? – re-
trucou sua consciência.
― Talvez eu nunca a quisesse. – respondeu Rebeca. Se eu os possuísse,
a felicidade ou o amor, eu não saberia o que fazer com nenhum dos dois. Não
quero ser obrigada a sentir amor pelo o outro. Tenho bastante amor por mim e
para mim; tenho felicidade o bastante em viver comigo mesma. Estar sozinha
não me assusta, não me incomoda; não me atrapalha em nada.

Socorro!
Ser subjugado.
O que justifica ser subjugado?
Para que serve ser subjugado? De que adianta?
Quem subjuga? Por que subjuga? 205
Por que ser subjugado por membros da própria família?
Por que ser subjugado por parentes próximos?
Por que ser subjugado pela sociedade que te exclui?
De onde vem essa necessidade, essa fúria? Essa vontade que parece não
ter fim nem meio; apenas começo.
Por que ser subjugado pelo amor? Pela solidão? Pela escolha contrária?
Não há fim nem meio. Há apenas o começo.
Há apenas o começo.
Não há fim nem meio.
Há apenas o começo.
Há apenas o começo, que nunca acaba.
Há apenas o começo da fúria e da humilhação do subjugado. E nunca
acaba.
Nunca acaba!
Há apenas a continuidade da humilhação do subjugado. E nunca acaba.
Nunca acaba para o subjugado. Para quem subjuga, o fato é apenas um

Marco Buzetto |
acontecimento banal.
Há apenas a banalidade para quem subjuga.
Para o subjugado, há apenas o começo, a humilhação de quem subjuga.
E nunca acaba.
Depois da humilhação do subjugado, e a fúria sobre si mesmo por não
compreender o que se passa, por não haver por onde compreender o que se
passa, haverá também o desprezo sobre si mesmo, as angústias, os desprazeres,
o infortúnio, a descrença sobre suas capacidades, o rebaixamento total de suas
possibilidades. E haverá também a dor, o sofrimento, os problemas, os confli-
tos internos, a saúde desregrada.
Depois de tudo isso, o perecimento.
Depois de tudo isso, o indivíduo definha.
Depois de tudo isso, não resta nada do ser humano.
Depois de tudo isso, sua essência se esvai.
Depois de tudo isso, mesmo que o corpo resista...
A consciência está morta.
206
― Família? – indagou Rebeca. Eu não tenho família. Ou tenho, e ainda
não me dei conta... Ou não se deram conta da minha existência.
― Quem são seus entes queridos, Rebeca?
― Não tenho entes consanguíneos, minha consciência que me fala. –
respondeu. Meus parentes estão mortos. Na verdade, eu estou morta para eles.
Fui gerada, criada, condicionada, moldada, molestada, subjugada por meus
próprios criadores, e cá estou: morta para todos. Meus entes queridos são os
que eu não conheço. E é você, minha consciência viva em terceira pessoa.
São também aqueles com quem me deito casualmente. Meus entes queridos
são aqueles que transam e gozam na minha cara como cachorros famintos que
comeram mais do que podiam aguentar e regurgitam o que lhes fez mal.
― Então, estes são teus parentes? Teus pais e tuas mães?
― Estes são meus parentes, minhas mães, meus pais, irmãos e irmãs.
– continuou Rebeca. Meus parentes mais próximos e queridos são aqueles que
não fingem se importar comigo. Meus inimigos são meus amados, pois são
honestos. O mal está naquele que não conseguimos decifrar. Sei o que esperar

| Rebeca
dos meus inimigos.

O mal está na proximidade de quem nos ama.


O mal está no silêncio de quem finge nos querer bem.
O mal está nas palavras confortadoras de quem finge ser amigo.
O amigo é quem nos abala. O inimigo é conhecido.
O amigo é desconhecido. O inimigo não nos abala, pois é declarado.
O amigo não declara suas intenções. Ele apenas se faz presente.
O inimigo é honesto para prejudicar. E prejudica de longe.
É fácil reconhecer um inimigo.
É difícil reconhecer um amigo.

― E eu, sem ao menos saber o que é certo ou errado. Não sei mais o que
vale ou não a pena. Não sei mais o que sinto ou pretendo sentir. – revelava Re-
beca, com a voz cansada e trêmula. Nem menos sei o que sou, ou por que sou
o que sou. Não sei mais se sou amigo ou inimigo, pai, mãe ou irmã. A dúvida
sobre mim me corroeu. Não é mais o outro que me prejudica. Sou eu mesma. 207
Porém, aprendi vendo e sentindo o que estava ao meu redor. De alguma manei-
ra, então fui condicionada, mesmo tentando lutar contra os conceitos da socie-
dade. Voltei ao ventre de minha mãe. Nasci de novo; novamente fui criada e cá
estou: mais uma vez infeliz. Dei a luz a mim mesma e estou tirando-a de mim.
Aprendi bem. A sociedade cria o monstro. A família cria o subjugado. E eu fiz
as duas coisas comigo mesma, pois aprendi assim, e não consegui me separar.

Fugir do Controle
As coisas fogem ao nosso controle quando não conseguimos compre-
ender o que está acontecendo a nossa volta. Seja na sociedade, na família ou
na amizade, quando fatos cotidianos passam despercebidos ou nos ferem de
maneira arbitrária, normalmente nos retiramos depois de certo tempo pensan-
do “o que aconteceu”?
Pois bem, aconteceu que as coisas fugiram do controle.

Marco Buzetto |
Quanto às coisas ruins, bom, essas são muito piores e difíceis de con-
trolar. Com certeza. É como se o próprio diabo dos cristãos estivesse tentando
nossa alma, dia após dia, sem conseguirmos visualizar os fatos com clareza,
deixando-nos levar. Ou então, como se tudo o que fizemos saísse errado, como
se não soubéssemos nada do que se passa, tanto fora quanto dentro de nosso
ser.
Fugir do controle é descontrolar a nós mesmos. É fazer com que nossa
sanidade esteja prejudicada, em um nível de violação podre e mal cheirosa que
entorpecesse nossa respiração, fazendo tudo a nossa frente acontecer de manei-
ra estranha, imprópria... Tão psicodélica como se a espiral arco-íris fosse nosso
cérebro, se transformando em gelatina.

― E quando a violência sai do controle, bom, acontece o mesmo o que


em minha vida toda aconteceu. – confessava Rebeca. Tive uma infância e ju-
ventude praticamente iguais a todos: repleta de alegrias e choradeiras. Coisas
boas e ruins acontecendo ao mesmo tempo, mas sem que eu me desse conta.
208 Tudo passava pela minha vida de um jeito simples e pouco marcante. Posso
dizer, com certeza, que pouquíssimos fatos me marcaram.
― Então o que fez de você essa garota/mulher que é hoje, Rebeca?
― Como? O que sou hoje? – indagou ela.
― Uma mulher sem regras, sem respeito por ninguém, tampouco por
si mesma. Não é isso? Uma mulher fria como os paredões de gelo dos pólos.
― E quem é você, minha consciência, para julgar dessa maneira? –
continuou ela. Quem é você, a não ser uma estranha qualquer que em nada
contribui à minha sanidade?
― Só quero saber quem é você, garota/mulher, para não respeitar a si
mesma com esse jeito tão impuro. – persistiu a consciência. Só quero saber por
que logo você Rebeca, minha “quase eu”, para gerar tanta discórdia dentro
de si mesma? Quem é você, Rebeca, para fazer de sua consciência um mundo
quase inabitável de feições e afetos inimagináveis, tentadores, injustos, asque-
rosos, pecadores? Deve ter sido sua adolescência, então, que lhe deixou assim:
pecadora.
― Não existe pecado maior que aquele que ainda não foi cometido.

| Rebeca
Não pecar é o pecado. Ser santo é irreal, utópico, hipócrita, injusto, folclórico.
Egoísta. – respondeu Rebeca. Meu único pecado aqui, durante todo esse pro-
cesso depravado de confissões e devaneios sobre minha vida, é não ter encon-
trado meu final. Ou, quem sabe, ter perguntado demais, questionado demais a
realidade, as pessoas e suas ações. Pois, ainda não compreendo grande parte
das coisas que movem os indivíduos. Talvez, e ainda assim, a incessante busca
pela felicidade. Compreendi que não é o alcance que faz as pessoas felizes,
mas sim, a incansável busca. Buscar para sempre, sem ao menos saber o que se
quer. No caso da felicidade, é exatamente a mesma coisa. O status quo é dizer
que se busca a felicidade incansavelmente. Nunca dizer que se é feliz, e pronto.
Dizer ser feliz, e que possui a felicidade, é cair num vazio vergonhoso, no qual
não haverá mais busca alguma. No qual não haverá mais motivos para lutar.

Será nossa sina querer controlar tudo?


Será nossa sina querer controlar os sentimentos?
Será nossa sina querer controlar a felicidade?
Será nossa sina? 209
Será nossa...? Assassina!
Será nossa sina assassinar a humanidade?
Assassinar o instinto...
Assassinar a espontaneidade?
Sentir é espontâneo!
Sentir sem querer, sem pretender sentir.
Isolar, controlar, querer para si para todo o sempre algo que, racional-
mente, deve ser momentâneo, passageiro... Querer ser feliz para sempre é im-
plantar em nós mesmos a carnificina do egoísmo.
O descontrole.
A felicidade.
A felicidade deve ser descontrolada; deve ser dinâmica; deve ser irregu-
lar e nunca repetitiva. Pois, a felicidade não é para sempre.
A felicidade é para o agora, para o momento em questão.
Mil vivas à felicidade descontrolada.
O descontrole da paixão; o descontrole do amor.

Marco Buzetto |
― O ser humano não pode ser domesticado. – implicava Rebeca. O ser
humano deve ser descontrolado. O senso de humanidade deve ser descontrola-
do. Dizer não! à padronização dos sentimentos. Essa é a máxima nesse ponto.
― E você, Rebeca, tornou-se padronizada?
― Sou o contrário da padronização, minha consciência. – respondeu
ela. E isso você bem sabe. Sou tudo o que ninguém quer, ou talvez o contrário
disso também. Talvez eu seja exatamente tudo o que todos os homens desejam
em uma mulher, e tudo o que todas as mulheres desejam para si em matéria de
liberdade total de suas frustrações moralistas e condicionadas pelas socieda-
des, ou pelo inacreditável cárcere da religião. Sim, pode ser mesmo isso. Tal-
vez eu seja o desejo de todos para si: tudo o que querem e nunca poderão ter ou
ser. Ainda não. Pois, as pessoas ainda se encontram mergulhadas em um molho
grudento e sem tempero, cheirando a hipocrisia. Talvez todos ainda se encon-
trem empapados em seus próprios dejetos intestinais. Todos mergulhados sob
um mar de estrume tão pesado que ao menos conseguem botar os narizes para
fora, e sentir que no mundo existem outros aromas, talvez melhores, talvez
210 ainda piores. Talvez seja eu, Rebeca, mergulhada em veneno, cozinhando a
passo lento.

Meu próprio veneno.

| Rebeca
Parte XII
Sobre mim

Eu sou Rebeca von Weisheit, também conhecida por Beca, por


prostituta moderna, por vagabunda, alcoólatra, bêbada, viciada em sexo... E
infinitos outros nomes e adjetivos dos mais impróprios. Porém, alguns também
me conhecem por pensadora, instigadora do pensamento; alguns se lembram
de mim por eu ter brigado contra todos para descobrir o que leva a felicidade
às pessoas. Alguns se lembram de mim por eu ter transado com centenas de
homens e mulheres em busca de respostas. Alguns se lembram de mim por eu
ter questionado as principais motivações do ser humano. Alguns se lembram
de mim por eu ter perguntado “o que move a sociedade”? “Que sentimento é
o combustível do ser humano”? Alguns se lembram de mim por eu ter gozado
e tido orgasmos fenomenais enquanto explorava não só o corpo, mas também
211
a mente de todos que se deitaram comigo em dias e noites de embriaguês. Por
outro lado, outros se lembram de mim por eu ser Rebeca, uma garota/mulher
comum, talvez igual a todas as outras, mas que se cansou de somente fechar
a boca e as pernas.

― Tenho certeza que quando as pessoas terminarem de me conhecer,


surgirá uma dúvida que, certamente, irá mover a todos de uma maneira muito
mais rápida. – profetizava Rebeca. Tenho certeza que todo meu discurso de
repetição fará brotar no consciente do ser humano uma semente de descontrole
sobre as regras que seguem cegamente. Pois, como já foi dito, um viva! ao
descontrole.
― Você ainda tem a si mesma como parâmetro, como um modelo para
ser entregue às gerações futuras. Mesmo dizendo que ainda não compreende
tudo e tudo aquilo que as pessoas buscam e sentem; mesmo assim seu egoísmo
fala mais alto em relação a si mesma.
― Meu egoísmo de nada vale agora. Esse não é meu juiz. Nem mesmo

Marco Buzetto |
você, minha incompreensível consciência. Nem mesmo você é minha juíza
agora. – respondeu ela.
― E o que mais você quer, minha inimiga íntima? O que ainda procura?
Mais um copo? Mais um corpo? Mais uma transa? Mais um gozo? Um último
orgasmo? – implicava a consciência. Talvez você ainda procure o mínimo:
um diálogo, mais um assunto, mais um tema oriundo dessa mente insana e
demasiadamente comum. Pois, até a loucura é normal. Até mesmo a loucura é
da natureza das mulheres e homens.
― É bastante possível que eu continue contigo ao meu lado até o fim.
– respondeu Rebeca, provadora de turgescência. Mas não sei se isso é bom ou
ruim. Não sei se permanecer consciente seria a coisa certa. Pois, o que é menos
pior: morrer consciente ou inconsciente?

Do Início
06/01/2010
212
Era madrugada, entre duas ou três horas. Um quarto todo branco
que não era o de Rebeca, com uma porta cinza que também não era dela. A
janela não dava de frente para o céu azul escuro da noite, e nem a luz da lua
iluminava seu ninho. A janela dava de frente para um muro branco, com três
arames esticados como varal. Não havia vermelho nas paredes, e os livros
estavam guardados em gavetas e num velho guarda-roupas embutido, pois as
prateleiras não estavam por lá.
Também não havia gatos, nem persa nem vira-latas. Não havia miados
desesperados por detrás da porta para que alguém a abrisse. Também não havia
bolinhas de papel espalhadas pelo chão para que eles brincassem de cachorro,
trazendo-as de volta com a boca.
Não havia música em volume confortável, pois só corriam por fios de
fones de ouvido. Desse jeito a música perde a graça.
Os pôsteres, quadros, fotografias, bonecos, vinis e espelhos não
olhavam às costas de Rebeca, pois tudo o que havia ao redor eram paredes
brancas, pálidas, sem gosto, sem cheiro, sem história. Sem vozes! A simetria

| Rebeca
era tanta que faltava oxigênio. Não tinha a menor graça.
O útero vermelho deu lugar, forçosamente, àquelas paredes brancas
sem vida. E foi assim que nasceu Rebeca. Foi assim que ela deu a luz a si
mesma. Foi num ato de desespero e desrespeito por si mesma que sua vagina
se abriu e um coração cheio de amargura, dúvidas e necessidades foi parido.

― Ainda fujo. Não sei por que, mas ainda fujo. – pensava Rebeca.
Minha casa era um ninho de frustrações, mas, pelo menos em meu útero eu me
sentia segura, ainda viva. E agora, bom, agora estou aqui, nesse cubo descorado
e sem biografia. Eu preciso da noite, da obscuridade. Preciso de menos reflexo
para que meu pensamento brilhe. E esse lugar é claro demais. Tão claro que
ofusca meus olhos e meu pensamento. Não é possível poder raciocinar com
tanta luz ardendo as pupilas.
A dúvida gerou Rebeca como resposta.

Por que nascer? 213


Nasci por uma necessidade. Por mera necessidade. – dizia ela. Nasci
para modificar o ambiente; para torná-lo mais agradável. No entanto, fiz
universalmente o contrário. Vim ao mundo trazendo novas dúvidas, pondo os
jogadores em xeque. A necessidade da minha existência foi de melhorar; no
entanto, dificultei e retorci ainda mais as mentes.

Rebeca foi gerada a partir de uma idéia simples. E as idéias simples


surgem a todo instante. Porém, pouco damos atenção a elas. Mas, com Rebeca
foi diferente. Ela nasceu, e logo de cara se tornou mulher. Rebeca não nasceu
como todo ser humano. Na verdade, Rebeca nasceu velha, foi parida em pé.
Nasceu de salto alto, espartilho, de cinta-liga e meia-calça, batom vermelho nos
lábios e esmalte da mesma cor nas unhas. Sua função era questionar, perguntar,
indagar, idealizar novas oportunidades que possivelmente seriam realizadas
cedo ou tarde. Quanta dúvida. Ah!, quanta dúvida. Qual é a finalidade dessas
paredes brancas? E toda essa pose então, para quê?

Marco Buzetto |
― Talvez um dia eu volte ao meu útero vermelho. Porém, tantas vezes saí
dele, despercebida, cansada, que sinto vergonha de voltar. Seria uma boa idéia?
Seria uma boa idéia retornar ao ponto de onde tudo começou? – continuava ela
a perguntar. A vida é cheia de passado, e como todo bom passado, esse também
assusta. Penetra minha carne como uma estaca de gelo que me faz tremer só de
pensar em tudo pelo o que já passei, fora e dentro daquele lugar.

A dúvida de quem tem medo. Ou, o medo de quem tem dúvida. Um


parece andar ao lado com o outro. No entanto, o medo da dúvida corrói ainda
mais o ser. Ter dúvida sobre o que é bom ou não a fazer, e qual o momento mais
oportuno, por exemplo, é uma questão de coragem, de valentia total. Deve-se
estar convicto do passo adiante. Deve-se saber muito bem o que se quer. Do
contrário, o medo pela dúvida se sentará ao nosso lado na sarjeta.
É o pensamento profundo sobre a dúvida que nos mata. O que cura, o
que devolve a vida e o brilho nos olhos, é a convicção. A certeza de que se está
fazendo o certo, mesmo que seja ou pareça errado.
214 E Rebeca nasceu assim, com o medo e a dúvida estampados em sua
testa como um símbolo sagrado do que é ruim. Ela nasceu assim. Rebeca
nasceu para se perguntar a si mesma: “por que nascer e viver nesse mundo”?
Afinal, de quem estamos falando? De qual vida estamos falando? A vida de
quem estamos vivendo?
Tudo não passa de meros mecanismos de escape ou defesa. Mundos
paralelos; vidas paralelas, felizes; novos amigos que não estão à altura de
nossa amizade. Qual é a nossa realidade?

― Por isso me pergunto a todo instante: qual é a finalidade de estar


vivo?

Das Desculpas
Algo desaba, gera um pouco de hesitação em nossas almas gerando
dualidade em nossos sentimentos, gritamos por socorro freneticamente e

| Rebeca
deixamos tudo fugir do nosso controle.

― Em alguns casos precisamos capitular nossa vida. Pois, precisamos


organizar tudo o que fazemos. Isso é parte daquela reflexão sobre o si mesmo
que tanto abordei tempos atrás. – dizia Beca. É isso, Anna, que me faz falta.
― Organizar a vida? – perguntou a amiga.
― Não. – respondeu. Não sinto falta de organizar a vida. Na verdade,
sinto falta dela mesma. Sinto falta da vida.
― E por quê, Beca? Não está vivendo o bastante?
― As coisas mudam. Você bem o sabe. E assim como as coisas, os fatos,
as frases, as falas, minha vida também mudou. Lembra? Escolhi compreender
o que estava acontecendo, e compreendi que busco em outras pessoas as
respostas que satisfaçam minha alma. – continuava. Acredito que tenha sido aí
que as coisas mudaram de vez, e minha vida como eu a conhecia e com a qual
convivia foi jogada no bueiro, levada pela enxurrada. Porém, esse não deve ser
o melhor momento para pedir desculpas a mim mesma.
― Talvez seja o momento certo, Beca. – disse Anna. Talvez seja o 215
momento mais correto que um dia encontrou e nunca mais encontrará. Você
reconhece a si mesma e suas falhas ao longo do percurso. Você está olhando
para trás e vendo erros cometidos durante vários passos em sua vida. Deixou
de buscar respostas nos outros, e passou a encontrá-las ainda mais olhando
para dentro de seus olhos.
― Olhar menos para o outro e encarar mais o abismo que existe dentro
de mim foi um choque. Como naqueles sonhos que acreditamos estar caindo
em um poço sem conclusão. Porém, de olhos abertos e sem gritos abismados.
No entanto, o assombro da realidade é muito mais poderoso quando se está
acordado. – completava.
― Estes são pedidos de desculpas, Beca? Pedidos de desculpas a si
mesma não vão resolver seus problemas, caso você não tenha compreendido a
totalidade, a complexidade dos fatos.
― Tenho certeza que estou a um passo da compreensão dessa totalidade.
Ou a um passo, ou a uma bala de distância do fim. – dizia. Talvez a pouco mais
de um metro de corda adornando o pescoço. Pois, possivelmente, é isso o que

Marco Buzetto |
vai acontecer, caso eu me desculpe demais olhando no espelho.
― Criamos algo sobre nós mesmos, dividimos os fatos e acontecimentos
em cenas que não contemplam o raciocínio, e, em algum momento da vida,
temos de pedir desculpas. Isso faria de você uma ótima cristã. – brincou Anna,
quebrando a tensão daquele momento.
― Rufh... Uma ótima cristã. Claro. Pois é exatamente o que todos esses
coitados fazem: pedem desculpas o tempo todo para um ser imaginário que
nunca verão, por erros que nunca cometeram, tentando impressionar sabe-
se lá quem, fingindo ser felizes enquanto a hipocrisia morde e coça suas
bundas. – retrucou Rebeca, debochando ainda mais da afirmação jocosa de
sua amiga. Não, Anna. Isso nunca! Não há, além disso, motivo ou culpa, ou
demência o bastante em meu ser que me faça jogar a toalha à lona e me curvar
depressivamente a esse tipo de selvageria agonizante.
― Nossos pedidos de desculpas, a quem querem alcançar? – indagava
a amiga de longos cabelos dourados. Pelo o que entendo, quando pedimos
desculpas, essas não possuem a função de atingir diretamente àquele que está
216 nos ouvindo, mas sim, nós mesmos. Quando fazemos um pedido de desculpas,
estamos desculpando-nos a nós mesmos. Queremos convencer nosso
consciente que também somos passíveis de erros e perdões. No final, tudo não
passa de convencimento interno sobre o que realmente desejamos. Tentamos
convencer a nós mesmos enquanto enganamos o outro a nossa frente.
― Mas então, se isso é só o fim, para que as desculpas?

Da Futilidade
Durante toda essa minha vida medíocre conheci pessoas com as quais
não me dei bem, pessoas de quem não gostei; pessoas que odiei. Poucas vezes
conheci pessoas que me fizeram sorrir. Poucas vezes conheci alguém que me
agradasse; claro, talvez uma única vez tenha encontrado alguém a quem amei.
Porém, como sempre me pergunto: o que é o amor? Isso não faz a menor
diferença, pois nunca acreditei nesse sentimento.
Em todas as vezes, no entanto, por mais que, tecnicamente, eu sentisse

| Rebeca
“algo” por alguém, todos a minha volta possuíam um ingrediente em comum:
a futilidade. De alguma forma todos possuem esse “dom” dentro de si. Essa
é uma das mais valiosas capacidades do ser humano: ser fútil. Assim como a
ignorância. E quanto mais fútil for o indivíduo, melhor ele se destaca em seu
meio; maior se torna sua capacidade de atração voluntária.

Futilidade. Como os sinais da escola, ou o alguém tocando o badalo


avisando que já é hora de entrar, ou de sair; as crianças correndo, gritando,
batendo forte os pés no chão, brincando umas com o outras. Porém quando
se é criança, brincar, pular, correr, gritar... Tudo faz parte de uma só coisa:
ser inocente, ainda longe da realidade. Pois, quando se é crescido o
bastante para entender o mundo a nossa volta, a inocência cai por terra, e
tudo o que antes era festa, recreio e risada, se torna motivo para remédios,
antidepressivos, bebedeiras fora de hora... Choro, choro e mais choro. Talvez
quando nos tornamos adultos o choro faz mais sentido também. Não é mais
aquela lágrima de tristeza passageira, momentânea, por que não se ganhou
um presente desejado, ou por que se machucou correndo sem rumo e sem 217
cuidado. O choro do adulto é repleto de realidade; aquela realidade amarga,
triste, pesada. Aquela realidade que quer te matar não importa como, quando
ou onde. O choro da realidade quer apenas te botar para baixo, de costas colada
no chão, como se estivesse preso para sempre olhando para cima, para o céu,
e desejando o inalcançável. A realidade para além dos muros da escola, dos
gritos frenéticos das crianças é muito mais dolorosa. Perde-se a futilidade do
sofrimento infantil.

― Aquele que deixou de ser criança, e parou de tirar a soneca depois da


escola num sofá velho assistindo televisão, este perdeu sua inocência, e acordou
para um sono ainda pior, um sono inserido na realidade. A futilidade do adulto
é real. É uma futilidade que quer esconder a necessidade de se alcançar o céu.
A futilidade da criança quer mantê-lo inocente. A futilidade do adulto quer
mantê-lo ignorante. Eu olho as pessoas na rua, em seus empregos, dentro de
seus carros, em suas motos, pela janela de suas casas, e vejo apenas um tabuleiro
de futilidade ao qual estão debruçados, esperado o mistério, a próxima jogada

Marco Buzetto |
que lhes fará mentir ainda mais sobre seus sentimentos e necessidades. Sentem
também muito medo de buscar o aprendizado. Esse medo, porém, repleto de
preconceito. Pois, pelo senso comum, irritante é o inteligente. O simpático
é aquele que não possui cientificismo, ou o mínimo conhecimento fora dos
parâmetros da irrelevância. Por que ser feliz escondendo a infelicidade? –
expressava ela, a garota/mulher de lágrimas vaginais.

A futilidade é amiga da falsidade, amiga da ignorância, amiga do que


é irrelevante. É irmã da ignorância coletiva, e essa, por sua vez, baseada na
futilidade, falsifica a realidade, e faz o sorriso em convívio social se tornar choro
solitário. Aquele que gargalha durante o dia falsificando sua própria realidade,
soluça com lágrimas nos olhos deitado na cama durante a noite, abraçado ao
travesseiro. Pior ainda, quando se comove vendo cenas ou comerciais felizes
na televisão.

218 O Abismo é a Própria Realidade


― Minha última transa. É a última vez que me deito abrindo as pernas e
minha necessidade de questionar. Porém, preciso conhecer mais profundamente
meus próprios anseios. – dizia Rebeca. Você será a última pessoa de quem
provarei o orgasmo.
― Está muito confiante para alguém que se questiona o tempo todo, por
todos os motivos. Por que acha que terei orgasmos? – indagou.
― Não estou pensando que terá algum, ou esperando algum. Estou
dizendo que terá vários deles, um depois do outro, simetricamente, múltiplos,
perfeitos como o funcionamento de um relógio suíço; fortes, profundos e
marcantes como o estrondo de um trovão. – respondeu Rebeca. Você terá
vários orgasmos, mesmo que estes não saiam de sua vagina. A maioria deles,
pode ter certeza, você sentirá na consciência, na racionalidade, no aprendizado,
na intelectualidade. Seus orgasmos múltiplos serão cerebrais, e você irá gozar
sabedoria.
― Então me responda: por que tanto canibalismo sexual? Por que sentir

| Rebeca
meu púbis roçando em seus dentes e língua? – indagou. Não seria mais racional
termos essa conversa vestidas, de roupa, sentadas em uma mesa de bar?
― A racionalidade deve ser pura. O conhecimento deve ser absorvido
em sua totalidade. O corpo e a mente devem estar livres de velhos costumes,
livres de velhos preceitos, regras, morais, ditados e modelos ultrapassados que
foram adquiridos por osmose, sem a menor necessidade ou funcionalidade
real e positiva. – tornou Rebeca. Por isso estamos sem roupa. Tiramo-las para
despir também nossas mentes de preconceitos e paradigmas. Por isso o sexo
é necessário nessa ocasião: para transarmos de maneira plena e totalmente
satisfatória. Dessa vez quero minha satisfação. Dessa vez quero meu próprio
orgasmo.
― Para ambos? Digo: satisfatória para ambas as partes?
― Na verdade, não tenho resposta certa. Porém, você é minha grande
esperança. Não quero apenas me satisfazer. Quero satisfazer você do mesmo
modo, ao mesmo tempo. – sussurrou Rebeca.
― Tem certeza, Beca? Tem certeza que quer me conhecer dessa
maneira? E quanto ao abismo? 219
― O abismo é a própria realidade! Não se pode fugir dela, tampouco
fingir que não se está no fundo desse abismo grotesco. Um abismo grotesco
chamado realidade.
― Vamos, Beca, diga logo o que você quer. Pergunte de uma vez o que
pretende perguntar. Goze de uma vez por todas esse jorro de satisfação que
nunca aparece. – dizia. Por que ao mesmo tempo em que beija minha boca,
meu umbigo e minha vagina, você não sente também o mesmo prazer em seus
olhos? Por que não vejo esse desejo carnal e intelectual na opacidade do teu
olhar? Por que não vejo seu cérebro brilhando?
― Também já não sinto meus olhos brilharem. A verdade é que caí
no meu próprio abismo e não consigo mais sair dele. Minha realidade é dura
comigo. Tão dura quanto um pensamento ruim que não nos deixa em paz.
Minha realidade está fervilhando, derretendo meu cérebro, e nada posso fazer
a não ser esperar que ele escorra pelos meus ouvidos e nariz. Meus olhos
já não brilham, pois minhas lágrimas secaram e criaram uma blindagem
densa, obscura. E às vezes, de tão pesados que se tornam meus olhos por não

Marco Buzetto |
conseguirem chorar, curvo a cabeça para baixo, me fazendo parecer triste.
Porém, não é uma tristeza de momento. É aquela tristeza acumulada durante
toda a vida. Aquela tristeza que mentimos não sentir, tentando enganar a nós
mesmos.
― Você está no fundo do oceano, Beca. E toda água nele espreme
seu cérebro e seus pulmões. Por isso não consegue mais pensar, por isso não
consegue concluir a si mesma.
― Esse oceano se chama devoção, minha querida amiga. – respondeu.
E por mais que eu conheça seu corpo e o quanto ele têm a me ensinar, nunca
aprenderei a nadar... E mesmo que aprenda, eu não teria fôlego para encontrar
a superfície. Por mais que pareça próxima por conta da refração da luz.
― Sua devoção?
― Sim, minha devoção. Essa devoção que não me deixa dormir. Por
isso tenho de gastar tanta energia transando, bebendo, gozando, falando.
– respondeu Rebeca, enquanto acariciava uma vagina alheia junto a sua,
demonstrando um nível de afeto inimaginável em sua vida.
220 ― Mas, devota à quem?
― Devota aos meus desejos. Estes são meus paradigmas. Meu desejo
maior é de descobrir os segredos. Esta é minha sina, minha dependência,
minha cela que não possui chave. Meu pecado é questionar demais. E quando
não encontro solução, quando não encontro uma resposta concordante, definho
ainda mais, pois a falta de resposta me consome rápido; como carniceiros
comendo um animal podre, atropelado na estrada. De tanto negar a existência
de um, me tornei deus soberano de mim mesma. E tanta devoção e martírio
não ajudam. Tanta homenagem prestada em meu templo vulvário não faz as
dádivas caírem do céu. Pois meu corpo é um templo confuso.
― Enfim, você se reconheceu. – disse sua parceira improvável
enquanto lambia e dedilhava o clitóris de Beca em êxtase total. Finalmente
está encontrando suas próprias respostas.
― Sim. Meu corpo é um templo podre, e minha mente é um abismo
extremo, selvagem, sem final. – respondeu. O que posso fazer agora é tirar
o melhor proveito possível dessa substância uterina que escorre entre suas
pernas. Pois cada gota do seu gozo me faz, agora, enxergar mais longe, mais

| Rebeca
claramente. Começo provar um pouco da minha própria realidade; seu sabor
é agridoce. Pela primeira vez estou satisfeita com esse gosto em meus lábios.
Porém, não completamente satisfeita.
― Tenho orgasmos de felicidade, Beca. O sabor que você sente nos
lábios escorrendo minhas pernas abaixo é de alegria por você. – confessou a
parceira, enquanto gemia inebriada. Se eu soubesse que todo meu orgasmo lhe
faria bem, há muito tempo teria me deitado contigo.
― Talvez não fosse o momento, pois tudo tem hora exata. – respondeu
Beca, com os cabelos e todo o corpo suado, misturado a saliva de ambas as
bocas. Talvez, se tivéssemos essa conversa íntima em outro tempo, eu não
veria dentro do seu útero o rosto de tantos filósofos satisfeitos por estarem aí,
aquecidos, úmidos. Parece que os grandes mestres do conhecimento dançam
dentro da sua vagina, bêbados e felizes por conta de todo teu prazer.
― Você dormiu com todos e acordou ainda mais sozinha, minha amiga.
Você sabe o que quer, Beca. Sabe muito bem o que procura. – continuou. Está
atrás de seu maior medo. Você quer compreender esse pesadelo que não a
deixa dormir com tranquilidade. 221
― E você, Anna, não está sendo meu melhor veneno, a cura que nunca
imaginei? É da tua boca e do teu corpo, agora, que provo a alegria. Minha
satisfação finalmente veio até mim... Foi você quem a trouxe. Foi você, minha
amiga e amante, que soprou em minha boca e encheu meus pulmões de ar para
que eu nadasse até a superfície. Você é a resposta da pergunta que nunca me fiz.
Pois, jamais imaginei seu corpo por cima do meu, pingando orgasmos no meu
umbigo. Não tem como não ficar excitada com essa visão apelativamente sexy.
― Você está reagindo, Beca. E muito bem, diga-se de passagem. –
contemplava Anna à sua amiga íntima, e agora sexual. Faço isso por você, para
lhe tirar o sofrimento. Você está buscando novas experiências, e da maneira
certa. Talvez você precisasse disso: uma nova experiência, porém, com a
pessoa certa enrolada em seus lençóis.
― Sinto que sim, Anna. Você me revitaliza, me rejuvenesce. Até minha
pele parece gritar de felicidade, mais macia, assim como a sua. Você era minha
resposta. Minha resposta pessoal. Pois, por que me deitar com tantos ricos e
tantos mendigos e feder a podridão da humanidade, quando poderia muito bem

Marco Buzetto |
ter me despido na sua frente, e me masturbado olhando profundamente em
seus olhos?! – confessava ela.
― Então, será que é verdade? A felicidade está onde mesmo se espera?
– indagou Anna, com os olhos cheios de lágrimas alegres e satisfeitas. Sei que
você não está feliz por mim, por ter a mim entre suas pernas e braços. Sei que
você, na verdade, está alegre e satisfeita por ter conseguido me fazer sentir
aqueles orgasmos múltiplos de conhecimento de que tanto me falou. Pois, sei
que você os aproveitou muito melhor que eu. Meus orgasmos e gozos foram
apenas um pretexto para que você bebesse do meu ser, e sentisse os motivos
certos para fazer sua felicidade brotar.
― Sinto muito, mas você tem razão. Não estou transando com você
como pessoa. Mas sim, transo com um nível de conhecimento difícil de se
encontrar. E isso me satisfaz. Não é o corpo que me faz gozar e ter orgasmo, é a
mente, é o nível de capacidade cerebral. E você, Anna, minha doce, suculenta e
sábia filósofa, tornou minha degustação ainda mais prazerosa. Pois não é gozo
que sai da minha vagina, são raios de uma luz que reflete em nossos corpos
222 e contempla todo nosso ser. Um filho seu e meu nunca permaneceria o tempo
comum em nossos úteros, pois explodiria em uma supernova dando a vida aos
novos deuses do conhecimento. – concluiu Rebeca, com os olhos cheios de
lágrima, beijando carinhosa e agradavelmente a boca de quem verdadeiramente
lhe ensinou o que é o amor ao inesperado. A evolução do ser humano, minha
amiga, tal como a conhecemos, estaria bilhares de anos atrasada. Pois
daríamos a luz ao verdadeiro ser humano evoluído. Por que você, com seu
toque inigualável, seus lábios desejosos, o calor e o cheiro incompreensíveis
da sua pele úmida, suas palavras agridoces e todo os sentimentos saídos do seu
corpo até minha boca em forma de orgasmos e felicidade, você, Anna, você
me satisfez.

Da minha dependência
Grande parte da minha vida foi reservada a perguntar, questionar as
pessoas, procurar falhas, encontrar culpa nos outros, e tentar ensinar que

| Rebeca
tudo o que não presta, e também aquilo que é neutro, pode ser deixado de lado.
Procurei por tantos detalhes na vida dos outros que me esqueci de perguntar
sobre mim em vários momentos, muitos deles importantes.
Minha dependência é uma droga duvidosa, que tanto me ajuda, mas
muito me atrapalha. A dúvida, essa é minha dependência. Pois, de tanto
perguntar, de tanto duvidar, acabei perdendo a crença em praticamente tudo.
Não estou falando sobre as religiões, as rezas, o sobrenatural, as mitologias,
o folclore imposto, o tal deus que supostamente cuida dos seres humanos
em troca de idolatria. Estou falando das pessoas, a quem é necessário dar
um pouco de credibilidade. Porém, eu não. Não fiz isso. Fiz totalmente o
contrário. Por muito tempo dei as costas às pessoas, não somente na hora
do sexo, mas, em todos os momentos; a jocosidade, o deboche, a ironia e a
descrença estavam debruçadas em minhas respostas. De tanto dizer que o ser
humano não pode acreditar em um deus que subjuga, tornei-me esse próprio
deus e subjuguei o ser humano com muito mais violência, dizendo-o inferior.
Todas as vezes que estive em uma cama transando com pessoas
desconhecidas, foram momentos nos quais pude conhecer ainda mais a 223
essência do ser humano. Todos, absolutamente todos os que passaram por
mim foram escolhidos a delo, foram transas premeditadas que planejei com
pessoas que possuíam os piores dos problemas em suas vidas, e também
àqueles com as menores capacidades intelectuais possível. Fazendo isso,
cheguei muito próxima à podridão, às pessoas mais sujas e mal lavadas. No
entanto, quando eu transava também com aqueles que estavam banhados e
muitíssimo bem perfumados, fosse mulher ou homem, sentia também grande
quantidade de sujeira em suas mentes; sujeira tão pesada e grudenta que não
os deixam usar o raciocínio. Um negrume praticamente contagioso, que por
pouco não adentrou minha pele. De tanto dormir e acordar com pessoas sujas,
por várias vezes me tornei imunda também.

― Me perguntei: onde está a felicidade e o que a produz? – continuava


Rebeca a divagar. Me perguntei: onde está o amor e o que o produz? O que
faz as pessoas continuar suas vidas como se nenhum problema real existisse?
O que faz com que as pessoas continuem sorrindo mesmo em momentos de

Marco Buzetto |
tristeza e danação? E tudo o que encontrei foram fragmentos. Me perguntei por
que as pessoas não usam seu raciocínio para mudar suas vidas, já que reclamam
tanto. Me perguntei por que o ser humano não torna as coisas mais fáceis para
si e sua vida em sociedade. E novamente não encontrei resposta satisfatória.
Talvez uma única que seja: preguiça. Pois, pensar gasta muita energia.
Me deitei com trabalhadores, com empresários, com patrões do mais alto
escalão. Me deitei com políticos, secretários, chefes de gabinete, professores,
alunos, padres, freiras, pastores e aqueles filhos de pastores que tanto gostam
de sexo e coisas “erradas”, mas que frente a seus pais e comunidade fingem
santidade. Ah! esses garotos e garotas... Coitados. São prova viva de que não
existe julgamento divino. Do contrário, estariam todos no inferno antes de
completar a maioridade. Porém, nem mesmo neles encontrei resposta: talvez,
o instinto do pau duro, dos sentidos reprodutores à flor da pele; do cheiro de
esperma e feromônios emanando de seus poros. E as garotas então, não estão
um centímetro atrás. Suas vaginas são bolas de fogo instáveis, implorando para
que alguém as devore.
224
― Transei com mãe e filha e de nada me adiantou. Pois, apesar de ter
sido uma das maiores experiências da minha vida, em nada me favoreceu. Não
cresci, não evoluí. Apenas senti prazeres frívolos, apesar das duas terem sido
ótimas parceiras e pensadoras. Principalmente a mãe. Pois, a filha se encaixa
em um exemplo de vulcão em erupção orgasmático e instinto sexual aflorado;
mesmo já em sua maioridade.
Eu não acredito ter sido uma prostituta, por mais que alguns ou
todos digam que sim. Considero o que faço como um vício. Não o sexo. O
questionamento. Pois já provei que quando estou na cama não é o prazer
carnal que me define: é o modo de pensar, de agir, de indagar a realidade.
Apenas uso o sexo para me aproximar das pessoas. O sexo para mim é só uma
desculpa. Como abordar alguém falando filosoficamente, e esperar que este
não se afaste ou te ache chato ou estranho demais? Com o sexo fica muito mais
fácil. Depois que se está na cama, as pessoas se tornam passíveis ao diálogo...
Vulneráveis! Tudo fica mais fácil. Durante o sexo, todas as possibilidades se
tornam conquistas.

| Rebeca
― Em minha defesa, quero dizer que tudo o que fiz até aqui foi para
gerar no ser humano, em todos os que me conheceram, um pouco mais de
sabedoria. Tenho certeza que os que se deitaram comigo puderam sentir em
suas mentes um pouco mais de esperança em relação à suas vidas. Até o
mais incrédulo em minhas palavras há de convir que, em algum momento,
sua mente pôs-se a funcionar, e, no mínimo, pensou: “o que estou fazendo da
minha vida?”
Não foram o sexo ou as garrafas de Jack Daniel’s viradas no gargalo
que me fizeram feliz. Nada disso fez com que eu obtivesse respostas. Foi a fala
de cada indivíduo. Foi o martírio sobre a realidade de cada pessoa que conheci
que me fez sentir a humanidade ser sugada de seus corpos.
Já disse várias vezes que a sociedade cria o monstro. Na verdade, cria
também os cadáveres. É a própria vida que faz com que as pessoas definhem, se
esvaiam, morram de tédio ou de sofrimento por problemas que, infelizmente,
elas mesmas criam, sem os conseguir compreender – por pura falta de vontade
de usar a cabeça.
Se a vida não foi compreendida de maneira satisfatória, não serão os 225
goles largos e fartos que farão a realidade demonstrar algum sentido. Por mais
que se tente esconder, a frieza do sofrimento sempre voltará, como um círculo
eterno de infelicidade, esfregando em nossas caras todos os erros que jamais
serão superados. No meu caso, meus vícios são meus próprios fantasmas.
São eles que voltam para me assombrar todas as noites. Estão por toda parte.
Atrás das portas, nos quartos, debaixo da cama, dentro do meu travesseiro
sussurrando em meus ouvidos: “Essa é sua dependência. Você é uma viciada
medíocre, desprezível.”
Além de tudo isso, sou uma dependente de pessoas. Por mais que eu
as despreze, preciso delas para engrandecer minha existência. Deve ser algum
tipo de patologia. Pois, preciso que outros sejam inferiores, para que eu me
sinta superior. Para que eu sirva de exemplo. Talvez, infelizmente, essa seja
minha natureza. Porém, não vou morrer sem ter deixado minha marca. Não
vou desaparecer sob a terra sem ter deixado cicatrizes profundas na carne de
quem me conheceu.
Nunca em tanto tempo senti a finalidade necessária em mim mesma.

Marco Buzetto |
Devo estar preparada para meu próprio crepúsculo. Me refiro à minha
decadência mental, não à morte. Pois, meu cérebro parece cansado.

Acredito que a confusão de minha vida esteja bem clara nesse ponto.

Comemorar o fim
― Comemorar o fim quase nunca é uma boa coisa. No meu caso, o fim
em mim representa um ciclo de descobertas realizadas durante um processo de
profundos questionamentos sobre a realidade, não somente minha. Comemoro
sozinha minhas conquistas, pois nunca tive com quem me alegrar em momentos
ditos felizes. E, por mais que eu tivesse alguém especial ao meu lado, quase
nunca me dei conta de como seria interessante compartilhar meus sentimentos.
A garrafa de whiskey eu bebo sozinha, a de bordô também. Nada muito
ostensivo. Apenas mantendo a graduação alcoólica elevada no sangue. Por
226 quê? Medo. Talvez, até mesmo, receio em ser feliz demais. Afinal de contas, o
que acontece com quem escolhe ser infeliz, rancoroso, irado? Qual o problema
em se ter raiva e solidão no coração e na alma? Talvez, pelo visto, a solidão
demonstre as respostas certas.

― Estou aqui, deitada na cama com um litro de Jack numa sexta-feira


à noite, repleta de comemorações às quais não sinto felicidade. – continuava
Rebeca, sozinha. Talvez seja esse um dos segredos: a felicidade tem de ser
compartilhada. Ser feliz sozinho não é a felicidade propriamente dita. Por isso
estou aqui, comemorando isoladamente, sem ninguém em casa. E, a menos
que os gatos comecem a dançar embriagados, essa noite não terá festa. Minha
única companheira de verdade nessa noite é essa azia já esperada que não
me deixa em paz. Sinto que ficar bêbada sozinha nesse meu útero de paredes
vermelhas não faz mais sentido; não tem mais a menor graça. Na verdade, não
sei se um dia teve. Foi-se o tempo em que minha cama possuía consciência
de tantos fatos puros e alegres sobre mim, sobre este colchão velho. Tanta
felicidade cigana já jorrou sobre estes lençóis e travesseiro. Hoje, nada além

| Rebeca
de meu corpo repleto de lamentação.
...
― Devo ter perdido a capacidade de me localizar. Acho que perdi o
respeito pelo ser humano, o gosto pelo ser humano. Minhas conquistas parecem
banais demais para serem compartilhadas. Ou não? Será que tudo é motivo para
festa? Será que uma simples boa notícia pede música, vinho e demonstrações
humanas de carinho? Sinceramente, devo ter dormido demais, pois pareço ter
acordado diferente para o mundo. Os meus arredores já não me aceitam mais, e
eu a eles. Sinto também que eu mesma já não dou o valor necessário às minhas
glórias. Cheguei ao ponto em que não prefiro expressar o que sinto em relação
ao que consegui realizar. Tudo parece tão banal. Essa talvez seja uma das
grandes contradições de se estar além em um mundo que se apresenta aquém
de si mesmo. Já não dou importância a acontecimentos cotidianos, por mais
felizes que possam parecer. Para mim, são apenas acontecimentos; triviais.
No entanto, reconheço que esse é um sentimento que faz as pessoas felizes.
Minhas emoções parecem pequenas demais, por maiores que sejam.
Todos gostam de se sentir especiais. Não importa como, nem quando 227
ou onde. Todos gostam de se sentir especiais. Não importa o que as pessoas
realizem, pois, em suas cabeças este foi o melhor que conseguiram, e por isso
merecem os parabéns. E quando esse cumprimento vem das pessoas ao seu
arredor, das pessoas que as amam, então tudo parece ainda melhor. A conquista
torna-se uma glória quase divina, e a alegria se estampa no rosto e na alma de
quem a conseguiu.
Por motivos assim, comemorar se torna um ato social. Não é de
bom tom comemorar sozinho... Apesar de eu fazer exatamente assim. Pois,
minhas comemorações são sempre isoladas, e quase inexistentes. Porém, as
boas notícias sempre aparecem. Mesmo que não seja eu que as traga. Elas
sempre aparecem. As notícias ruins então, nem se fala. São mais rápidas que a
velocidade da luz.
Este é um dos meus maiores gostos: a contradição. Pois, contradigo
minhas próprias razões. O sim ou o não, para mim, fazem todo o sentido seja
em qual tempo for. Claro, o sim e o não andam juntos. E as boas notícias para
um podem não ser tão boas para outro. A comemoração para um, pode não

Marco Buzetto |
ser motivo o bastante para outro. Porém, boas ou ruins, não deixam de serem
comemorações.

― Na verdade, nesse momento, sinto desespero pela comemoração.


Preciso comemorar, não importa o quão banal seja meu motivo. Preciso
comemorar, não importa a trivialidade em minhas palavras. E sei que por mais
feliz, finalmente, que eu pareça, para outros minha comemoração não faz a
menor diferença. Talvez, uma comemoração medíocre. Talvez. Sem a menor
diferença. Talvez.
A comemoração, assim como o orgasmo, como o gozo durante o
sexo, representa o fim de um ciclo, de um processo lento e pesado, por mais
prazeroso e desejado que o seja.
Sendo assim, quero gozar sozinha, ter meus próprios orgasmos e gritar
ao máximo com o prazer de meus dedos.

228 Do Adeus
Ou, Do Amanhã
― As coisas mudam. Tudo está diferente do que era no início. As coisas
mudam, e eu estou aqui por isso. Eu, Rebeca, sinto-me completa agora. E fico
feliz pela mudança. Me conheci novamente. Nasci, cresci de maneira duvidosa,
me tornei garota e mulher e reencontrei a mim mesma várias e várias vezes,
muito tempo depois de já ter me conhecido.
Por vários caminhos eu andei, e sobre muitos deles não reconheci
meus passos. Minhas pegadas não pareciam mais com os pés que eu possuía
anteriormente. Talvez meus pés tenham crescido. Talvez meu corpo todo
tenha crescido junto. Porém, o que mais me orgulha foi o crescimento interno,
cerebral. Esse não deixa pegadas na areia, mas deixa marcas nas pessoas e no
tempo. E sei que, assim como as pegadas dos meus pés que cresceram, minha
consciência também deixou marcas ainda maiores por onde andou.

― Ainda tenho dúvidas. Talvez mais do que tinha antes. Porém, o que

| Rebeca
compreendi em todo meu caminho é que, por mais que não se compreenda,
a resposta é continuar perguntando. Desse jeito eu pude completar meu ser,
criar em mim uma nova figura que eu pudesse reconhecer, mesmo parecendo
totalmente diferente. Por mais que eu tenha mudado no decorrer de meu
caminho, mesmo assim ainda olho no espelho e reconheço minha face. Meu
sorriso também mudou. Porém, tornou-se maior, mais largo, mais real, de
orelha a orelha.
Não foi o álcool que mudou meu semblante. Não foi o sexo, os orgasmos
ou os gemidos altos de prazer com todos os que me deitei. Foi, na verdade,
meu engrandecimento. Como disse, cresci o bastante, e finalmente olhei para
baixo e vi minha própria cabeça. Finalmente alcancei o topo da montanha mais
alta, mais fria, com a visibilidade mais densa e difícil que jamais imaginei
escalar. Finalmente escalei e cheguei ao topo de mim mesma. Esse foi meu
maior desafio: compreender meu próprio ser. E essa, assim como alcançar a
compreensão, foi uma tarefa difícil, intensa, obscura e severamente dolorosa.
Porém, por conta de toda dificuldade que encontrei no caminho, meu orgulho
e felicidade se tornaram ainda maiores. 229
Conheci pessoas, conheci a vida de muitas delas aprofundadamente
e sequei a lágrima de seus olhos quando pareciam torrentes de sofrimento.
E esses fatos tristes, acontecidos e já superados, me deixaram ainda mais
satisfeitas, pois, fiz parte das mudanças positivas que tornaram essas pessoas
ainda mais capazes de aceitar e compreender suas próprias vidas. Pois, assim
como foi dito em algum ponto da minha vida, só é possível mudar os fatos
quando aceitamos o que aconteceu, o compreendemos e convivemos em
harmonia com os sentimentos; por piores que pareçam. Sejam bons ou ruins.
O sofrimento é o maior sábio e o melhor mestre. É com ele que
aprendemos os verdadeiros segredos e novos caminhos para seguir em frente.
Pois, não se pode dizer adeus, simplesmente. Melhor que isso, é dizer “está
superado”!

― As lembranças são nossas melhores amigas, aliadas durante todos


os passos já dados, e todos aqueles planejados. Nossa memória é aliada nos
passos que os pés darão mesmo ainda não estando calçados. É o preparo, a

Marco Buzetto |
compreensão do passado que torna o caminho sereno. O passado não pode ser
deixado para trás. Não pode ser esquecido. Não se pode querer esquecer o que
ficou para trás. Pois, os fatos acontecidos estão cravados, e não mudam. Porém,
nossa compreensão em relação a eles será sempre outra, sempre com outra
visão. Pois, nossa compreensão também muda de rumo. Teimar em esquecer é
sofrer ainda mais. Porém, sem aprendizado algum.

― Quero, assim, homenageando toda minha contradição, dizer adeus


a mim mesma. Quero ficar no passado, na memória, na lembrança daqueles
que me conheceram. E, se possível, continuar lhes ensinando os prazeres e as
necessidades do questionamento constante. Quero desesperadamente esquecer
a mim mesma, e dar adeus às minhas palavras, aos meus olhares, aos meus
prazeres, meus orgasmos. Mas, principalmente, dar adeus às minhas lágrimas.
Pois, quero chorar por novas tristezas, por todas aquelas que ainda não sofri. E
que nasça dentro de tantos outros uma nova Rebeca.

230 ― Não quero ser lembrada por tudo o que realizei. Quero ser lembrada
por ser eu mesma. Quero ser lembrada por ter sido Rebeca. Rebeca von
Weisheit, filha do meu próprio útero. Quero ser minha própria razão do meu
viver, e dar adeus a tudo o que conheço sobre mim, para que centenas de
outras Rebecas possam nascer de cada palavra que um dia pronunciei e ei de
pronunciar.

― Mas, e você? O que fará você se lembrar de Rebeca? Por que você
se lembraria de mim ou de si mesmo? – indagava ela, em sua questão final, em
seu último verdadeiro orgasmo e sorriso.
Ou melhor, por que se lembrariam de você?

O que diriam de você?

No final das contas, todos vão embora.


No final do dia, é tudo por alguém, não é verdade?
Tudo se resume assim, pura e simplesmente.

| Rebeca
Quando se abre os olhos durante a noite...
Tudo se resume nisso, se resume assim.
No final do dia, é tudo por alguém.
A vida se resume assim, pura e simplesmente.
Não importa o que digam sobre você ou sobre mim.
A essência é mesmo essa, é bastante simples.
Não importa o que digam sobre você.
Não importa o que digam sobre minhas paixões.
Não importa o que digam.

Quando se abre os olhos durante a noite... A Vida.


Um livro sobre Amor e Solidão.
Sobre Lágrimas e Paixão.
Um livro sobre Amor e Solidão.

... você acha mesmo que é o fim?


231

Marco Buzetto |
Agradecimentos

Luisa, minha mãe, e minha queridíssima irmã, Ana, por compreenderem mi-
nhas loucuras, minha estranha e amorosa família; meu irmão Ivo Panzer Gar-
bin, pelos momentos sobre duas rodas, “Gasolina, Whiskey e Rock ‘n’ Roll”,
nosso lema; Luiz Mozzambani Neto, escritor e amigo, e seu irmão Karlinhus
Mozzambani; o também escritor e amigo Kadu Lago, por ter me apoiado em
relação a este trabalho; a todos os amigos e amigas, por todos os minutos de
descontração, arrependimento, tristezas, solidão, lágrimas, transas, amores,
paixões e embriaguês.

A garota da capa pelas poses e posições excêntricas naquele agosto chuvoso


de 2005. Sem você, “Rebeca”, este livro nunca seria escrito (sou eternamente
grato a você, seja lá onde estiver, se estiver).
Stefania Gomes e Naiara Oliveira, pelas maravilhosas poses; Danilo de Paula,
232
pelas ótimas imagens; Felipe Cassavaro, produtor audiovisual, pelo registro e
teaser realizados para este livro; Marcelo Moraes, pelo espaço cedido para a
realização das imagens e trabalhos publicitários. Aos amigos da AGCIP, obri-
gado. A David Bowie, pela inspiração.

A todas as garotas/mulheres ocultadamente citadas nestas páginas: Àquele seu


sofá, pelas mais proibidas, perigosas e perseguidoras experiências. Por todas
as vezes que tive de dizer não, e tantas outras em que eu disse sim. Pelo sim-
ples fato de sua existência. Pelas aventuras sórdidas. Pelos momentos que nun-
ca aconteceram (talvez). Por todos os orgasmos, gozos, lágrimas, suor, odores,
saliva, sorrisos, lembranças, alegrias e tristezas; lençóis manchados; amores
passados; paixões experimentadas em seus braços, pernas, lábios, línguas, cor-
pos. À paranóia. Sem vocês, metade deste livro não existiria.

Ao Rock ‘n’ Roll, com certeza.


Ao Pensamento, muito obrigado, e adeus.

| Rebeca

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