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Da mesma maneira, é impossível ignorar que nem as formas da cultura erudita nem
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Contudo, nem todo homem se deslumbra e deleita, feito Humboldt, com a pletora
do ser tropical. Há entre os moralistas, como Nietzsche observa, um ódio à floresta
virgem e aos trópicos e uma necessidade de desacreditar a todo custo o "homem
tropical", seja como doença e degeneração do homem, seja como inferno e
automartírio próprio. Para tais moralistas, um país feito o Brasil -- em que não
apenas a natureza não-humana mas também a natureza humana e a cultura são
superabundantemente polimórficas -- não pode deixar de ser um escândalo.
Também para eles, o brasileiro é o mais desacreditado dos homens. Mas podemos
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nos perguntar, com o autor de "Além do Bem e do Mal", por que razão se há de
pensar dessa maneira. "A favor das `zonas temperadas'? A favor dos homens
temperados? Dos homens `morais'? Dos medíocres?"5 A favor de nossa
uniformização física ou moral, isto é, de nosso empobrecimento?
Semelhante país não quer ser descrito pelas metáforas orgânicas e, sobretudo,
vegetais, cujo protótipo é o famoso cedro de Herder, de raízes fincadas no solo
ancestral. 6 Originalmente uma elipse, a expressão "Brasil" funcionava como
metonímia do país que continha pau-brasil. Mas de maneira nenhuma deve o pau-
brasil ser tomado como metáfora do Brasil. Quando comparamos uma nação a uma
árvore, estamos enfatizando os aspectos concluídos e herdados da sua vida cultural.
É nesse sentido que Maurice Barrès, por exemplo, dizia: "Preciso que guardem em
minha árvore a cultura que lhe permita me sustentar tão alto a mim, fraca
folhinha".7 A folha brota do galho, que sai do tronco, que se sustenta pela raiz, que
se agarra no passado de que se alimenta.
Antes de tudo, "Brasil" remete a "brasa". É evidente que não devemos nem
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podemos prescindir da linguagem figurada, já que o seu emprego faz parte da ars
inveniendi e trata-se, aqui, da descoberta do Brasil, isto é, da inventio Brasilis.
Preferimos, contudo, um célebre tropo americano (americano ma non troppo, feito
tudo americano, pois foi Tocqueville, se não me engano, quem primeiro o
empregou) e dizemos que o Brasil é o verdadeiro melting pot, o crisol, que os
Estados Unidos não chegaram a ser, em que se dão tanto a promiscuidade quanto a
miscigenação das mais diversas culturas e raças -- americanas, européias,
africanas, asiáticas -- que modificam, relativizam, instrumentalizam e fecundam
umas as outras. O crisol, ao contrário da árvore, consiste no âmbito da mudança,
no lugar de fusão e separação, expansão e contração, composição e decomposição,
condensação e rarefação, onde nada jamais permanece o mesmo. Obviamente,
mesmo a metáfora do crisol não é inteiramente adequada pois, neste, diferentes
metais se fundem em uma única liga enquanto, no Brasil, o intercurso das diversas
raças e culturas resulta na multiplicação combinatória de códigos genéticos e
culturais. Talvez devêssemos, por isso, ter preferido a imagem de um laboratório.
O crisol, porém, tem a vantagem de poder funcionar como a representação
contemporânea de um caos hesiodicamente originário que consiste, por um lado,
em uma garganta vorazmente antropofágica, ou melhor, onívora, e, por outro, em
um útero eidopoético e cosmogônico, isto é, gerador de formas e mundos. Quando
chamamos o Brasil de "crisol", estamos, portanto, pondo o acento na produção
criativa de raça e cultura. É com um olhar retrospectivo que uma etnia se compara
a uma árvore e com um olhar prospectivo que se compara a um crisol.
Na verdade, a própria Europa nem sempre se encontrou tão longe deste último
quanto, à primeira vista, atualmente parece estar. Hoje esse continente se constitui
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O mestiço não deve ter a ilusão de que sua cultura autêntica seja diferente daquela
em que foi criado. O caráter acidental e contingente de sua configuração racial não
pode deixar de revelar-lhe o caráter igualmente acidental e contingente de toda
relação entre raça e cultura. Para ele, está na cara, de fato, algo que, de direito,
ninguém atualmente pode deixar de saber: que os racismos, nacionalismos e
fundamentalismos que hoje por todos os continentes tendem a se reafirmar com
virulência não passam, em última análise, de tentativas cínicas ou desesperadas de
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Assim, o brasileiro não pode ignorar que o crisol-Brasil existe somente enquanto
bojo de contatos, atritos e fusões culturais e raciais. Para ele, a afirmação da
acidentalidade, da contingência e da relatividade das identidades positivas e
particulares que entram em sua composição se dá como fundamento essencial,
necessário e absoluto de sua nacionalidade. Com isso, a cultura brasileira não pode
ser senão uma espécie de meta-cultura; a raça brasileira, meta-raça; e a nação
brasileira, meta-nação. Nesse sentido, a originalidade desse país -- um pouco feito
a singularidade do Ocidente, para Max Weber11 -- não deve ser buscada na
particularidade dele mas no seu modo de ser universal.
Isso porém significa que o Brasil não se realiza -- e menos ainda se apresenta como
exemplar -- senão enquanto radicaliza a afirmação americana da oportunidade
universal e da liberdade individual, isto é, da democracia. Nada pode ser mais
antitético ao mito propulsor do Brasil do que uma unidade baseada em opressão ou
exclusão de raças, castas, culturas, grupos ou indivíduos. Não liberaremos
plenamente a diversidade, o sincretismo e a criatividade que nos distinguem senão
na medida em que a lei e o Estado deixem de servir a grupos particulares e passem
a pertencer a todos, isto é, a ninguém em particular. O quanto nos encontramos
longe desse ponto é indicado, por exemplo, pelas estatísticas assombrosas 12 que
dizem que apenas 14% da população conseguem terminar o primeiro grau e apenas
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9% são educados até o final do segundo grau; que trezentos e oitenta mil crianças
morrem de fome a cada ano etc. Não é a toa que “Brazilification” consiste num
neologismo norte-americano que, inspirado na observação da crescente
concentração de renda no Brasil, significa a tendência, em uma sociedade
qualquer, a crescer o abismo entre os ricos e os pobres e, concomitantemente, a
desaparecer a classe média. 13 O paradoxo do Brasil está em, sendo capaz de
oferecer a prefiguração da solução de alguns problemas que poucos países
conseguem efetivamente enfrentar, não ter conseguido efetivamente enfrentar
alguns problemas que muitos outros países já resolveram total ou parcialmente.
1.Texto pronunciado na Literaturhaus de Frankfurt, por ocasião da Feira Internacional do Livro, em outubro de 1994.
2.HUMBOLDT, A. Vom Orinoco zum Amazonas. Wiesbaden: Brockhaus, 1958, p.68.
3.Cit. por BOTTING, D. Humbold. New York: Harper & Row, 1973, p.76.
4.ARISTÓTELES. “Metaphysica”. In: Aristotelis opera. Berlin: Walter de Gruyter, 1960, A980a28.
5.NIETZSCHE, F. Jenseits von Gut und Böse. Frankfurt: Fischer Bücherei, 1968, §197.
6.HERDER, J.G. Auch eine Philosophie der Geschichte zur Bildung der Menschheit, in Schriften, München: Wilhelm
Goldmann Verlag, 1960, p.36.
7.Cit. por FINKELKRAUT, A. A Derrota do Pensamento. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p.59.
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8.HEGEL, G.W.F. “Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte”. In: Werke in zwanzig Bänden Bd.12. Frankfurt:
Suhrkamp, 1970, p.278.
9.WEBER, M. Die protestantische Ethik I. Hamburg: Sibenstern Taschenbuch, 1973, p.9
10.NIETZSCHE, F. Op.cit., § 244.
11.WEBER, M. Op.cit..
12.BUARQUE, C. O Colapso da Modernidade Brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
13.COUPLAND, D. Generation X. New York: St. Martin Press, 1992.