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Christophe Dejours2
PREÂMBULO
Este texto não tem por objetivo trazer conhecimentos novos (nem mesmo um
ponto de vista novo) sobre as questões de Psicopatologia do Trabalho3 levantadas no
Japão pelo novo modelo de produção. A discussão aberta na França sobre os processos
psíquicos mobilizados pelos trabalhadores (para enfrentarem as dificuldades ligadas à
organização do trabalho) apóiam-se, como se sabe, na teoria psíquica do sujeito. Ora,
esta teoria depende, até prova em contrário, do contexto sócio-histórico ocidental. A
literatura japonesa em psicopatologia não nos leva a pensar que a teoria sobre a qual
nos baseamos aqui tenha valor operacional no contexto daquele país.
Por outro lado, por não dispor de nenhuma pesquisa pessoal de campo sobre o
trabalho no Japão, só tenho conhecimento da situação real através de dados de segunda
mão, quer dizer, de trabalhos sobre o Japão publicados por outros autores. Estes
1
In: Helena Hirata (org.), Sobre o “Modelo” Japonês. São Paulo, EDUSP, 1995 (publicado na França em
1993). Nota do Coordenador do Grupo de Pesquisa (NC).
2
Trata-se do autor mais destacado da abordagem em Psicologia que se denomina, a partir dos anos 90,
“Psicodinâmica do Trabalho”. Diversos de seus livros foram já publicados no Brasil, dentre os quais: A
loucura do trabalho, São Paulo, Oboré, 1987 (publicado na França em 1980, no Brasil pela primeira vez
em 1987, já com diversas reedições) e O fator humano, São Paulo, Ed. Fundação Getúlio Vargas, 1997
(publicado na França em 1995). NC.
3
A partir de 1993, na nova edição ampliada (Travail: usure mentale – Nouvelle édition augmentée: De
la psychopathologie à la psychodynamique du travail. Paris, Bayard Eds. 1993. Obra ainda não
publicada no Brasil) do livro Travail: Usure mentale: essai de psychopathologie du travail (publicado
em 1987 sob o título A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho), em seu “Adendo
Teórico” (traduzido e publicado em livro no Brasil em uma de coletânea de textos de Dejours –
Christophe Dejours: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. Rio de janeiro/Brasília, Ed.
Fiocruz/ Paralelo 15, 2004. Desde ali Dejours propõe uma nova denominação para a abordagem de seu
grupo, a partir de então: Psicodinâmica do Trabalho (que incorporaria em seu interior os estudos acerca
de Psicopatologia do Trabalho). NC.
últimos, ademais, são mais pesquisadores de ciências sociais do que especialistas em
psicologia.
Portanto não é o caso de trazer aqui um julgamento sobre as práticas de trabalho
realizadas pelos japoneses, que, aliás, talvez não tenham muito o que fazer com as
meditações do psicopatologista do trabalho.
Em compensação, o sistema japonês de produção é alvo, na França, de acirradas
discussões, às vezes seguidas por ações, no campo da organização do trabalho e da
administração. Ora, tais ações já provocam efeitos concretos sobre a vida comum dos
trabalhadores, e é a propósito disso que o psicopatologista francês é interpelado muitas
vezes por engenheiros, organizadorcs do trabalho, conceptores, médicos e organizações
sindicais.
Para o pesquisador que, partindo da clínica do trabalho, esforça-se em analisar a
relação subjetiva com a tarefa, e que às vezes tem a impressão – talvez ilusória? – de
captar seus processos e suas dinâmicas, tão insólitas quanto fascinantes, certamente as
pesquisas sobre o funcionamento do sistema japonês registradas pelos pesquisadores
em ciências sociais têm o efeito de uma bomba.
A primeira impressão é de estar diante de um enigma: de que maneira a
subjetividade dos trabalhadores é solicitada na empresa japonesa?
A segunda impressão é mais uma reação de perplexidade não isenta de angústia:
haverá algum lugar, no funcionamento do sistema japonês de produção, para o jogo
desta subjetividade à qual o ocidental se apega tanto?
Sem temer a repetição, que vale como uma advertência ao leitor, não pretendo
elucidar aqui o enigma nem dissipar a perplexidade ansiosa que acabo de mencionar.
Trata-se sobretudo de levantar questões e talvez mesmo de aprofundá-las, no
intuito de encaminhá-las de volta aos pesquisadores e especialistas do modelo japonês
(e de suas aplicações no mundo), que tiveram a audácia ou a temeridade de questionar
este modelo quanto a suas implicações psicológicas, e mesmo quanto a seus efeitos
sobre a saúde mental dos trabalhadores.
Para justificar as questões que serão aqui enunciadas, começaria expondo o
estado da reflexão em Psicopatologia do Trabalho sobre a “inteligência criadora” no
trabalho: concepção da mobilização psíquica que difere consideravelmente das teorias
clássicas da motivação4.
4
A crítica à noção de motivação em Psicologia, está presente desde o começo na obra de Dejours, como
pode-se encontrar em um texto publicado na França em 1982, contido em uma coletânea de textos de
INTRODUÇÃO
contribuição da escola dejouriana à análise da relação prazer, sofrimento e trabalho. São Paulo, Atlas,
1993. NC.
confiabilidade; e estudos referentes a qualidade do trabalho efetuado pelos operadores –
os estudos sobre o fator humano.
Nesta literatura, é comum considerar o fator humano a partir de uma perspectiva
pejorativa: falha humana, erro humano, inconsciência humana, negligência humana,
distração, inconsequência, incompetência etc. são termos e expressões que permeiam o
discurso dos especialistas.
De acordo com esta concepção do fator humano, a luta pela confiabilidade está
prioritariamente voltada para objetivos técnicos: melhoria dos circuitos de
retrocontrole, multiplicação dos dispositivos técnicos de segurança, substituição dos
homens, sempre que isto for viável, por automatismos supostamente mais confiáveis. O
pensamento subjacente a tal concepção da confiabilidade consiste portanto em tentar,
sempre que possível, desembaraçar-se dos homens, os causadores de problemas.
Diversos autores, há alguns anos, vêm criticando esta concepção da confiabilidade
(Reasomi, 1989; de Keyser, 1989; Llory, 1990). Na Psicopatologia do Trabalho, as
coisas tomaram o rumo oposto, em função dos dados empíricos coletados em estudos
de campo, que não corroboravam absolutamente a concepção pejorativa do fator
humano (Dejours, 1980). Mostrou-se, ao contrário, a propósito das indústrias químicas,
como, sob o efeito do medo, os operários engendravam artifícios, graças aos quais eles
preveniam certos incidentes e otimizavam o funcionamento do processo. Mais tarde, a
propósito dos operários de construção civil e de obras públicas, demonstrou-se que, em
matéria de segurança das pessoas no trabalho, tudo se passava da mesma forma que em
matéria de segurança das instalações: os próprios operários inventam, elaboram e
tramitem uns aos outros os procedimentos mediante os quais eles evitam certos
acidentes de trabalho, procedimentos estes que não lhes haviam sido ensinados nem
durante a sua formação nem pela supervisão. Trata-se dos “savoir-faire5 de prudência”
(Cru, 1983). Pouco depois, o mesmo autor mostrava como o controle dos riscos de
acidentes implica o coletivo e passa pelas práticas de linguagem específicas que não só
reflete um saber comum, como também contribuem para constituí-lo e para construí-lo
(Cru, 1984).
E em todos esses savoir-faire de prudência — exatamente da mesma forma que em
relação aos savoir-faire em geral e “artifícios de ofício” — que eu gostaria de
5
Em uma tradução literal: saber-fazer. NC.
encaminhar a discussão sobre a confiabilidade e a confiabilização dos trabalhadores,
levantada pelo funcionamento do sistema de produção japonês.
INTELIGÊNCIA ARDILOSA
CARACTERÍSTICAS META PSICOLÓGICAS
6
Este, como outros negritos no corpo do texto, foram por nós introduzidos, para efeitos didáticos. NC.
primazia da percepção, coloca a inteligência prática, tanto em seu desencadear quanto
em sua intencionalidade, numa temporalidade atual que somente a Fenomenologia
permite captar e comentar (Merleau-Ponty, 1976; Schutz, 1987).
Esta dimensão corpórea da inteligência prática é importante ser considerada, na
medida em que ela implica um funcionamento que se distingue fundamentalmente do
raciocínio lógico. É a desestabilização do corpo total, em sua relação com a situação,
que desencadeia, inicia e acompanha o exercício desta inteligência prática. Por isso,
esta inteligência é fundamentalmente uma inteligência do corpo. Tal assertiva repousa
em uma discussão metapsicológica, da qual faremos apenas menção neste trabalho a
título de referência (Dejours, 1986; Rosenfield, 1989:79).
Independentemente de seu desencadear, o alvo intencional do ato de consciência,
que orienta em seguida a ação, confere à inteligência uma direção e objetivos que serão,
mais uma vez, conduzidos pelo corpo e pela percepção. Neste processo, que incita o
operário a agir sobre a organização de seu trabalho, os dados técnicos e científicos são
muitas vezes utilizados dentro de uma temporalidade inversa daquela de um raciocínio
científico ou experimental. A partir dos dados perceptivos, o operário esboça muito
rapidamente uma interpretação, um diagnóstico ou uma medida corretiva, e só interroga
a técnica depois da atitude tomada, para verificar, operacionalizar e universalizar a
tentativa que lhe foi sugerida pela intuição alimentada e dirigida por suas percepções.
Esta dimensão corporal da inteligência é que se mobiliza primeiro quando os
operadores se esforçam por corrigir o funcionamento de uma linha de produção, e
mesmo introduzir nela verdadeiras inovações. Envolvimento do corpo por conta de uma
inteligência prática, que acarreta êxitos, obtidos não sem uma ocasional insolência em
relação aos conhecimentos e ao raciocínio tecnocientíficos, que geralmente se
acreditam serem indissociáveis da ordem da máquina. Assim, pode-se observar que
diversos operadores ignoram a maior parte dos conhecimentos fundamentais de
informática e matemática, mas se mostram capazes de intervir com eficácia sobre a
programação, e até ou mesmo aperfeiçoam os programas. Os desempenhos desta
inteligência prática são menos limitados do que em geral acreditamos.
O exemplo a seguir foi tirado de um levantamento realizado em uma indústria de
petroquímica: os operadores que supervisionam as instalações na sala de controle, nas
fases de funcionamento em regime de ritmo normal, têm o hábito de jogar scrabble. Tal
prática insólita em um local de trabalho onde a vigilância deveria ser constante inquieta
os próprios operários e suscita uma espécie de culpa. Eles escondem esta prática
comum liberando rapidamente a mesa de jogo quando ouvem um chefe se aproximar da
sala de controle do processo.
Os chefes, por sua vez, estão a par desta prática de jogo scrabble durante as horas
de trabalho, que desaprovam e tentam proibir, sem no entanto recorrer a sanções.
Em Psicopatologia do Trabalho, há um princípio fundamental de investigação e de
análise: toda conduta, mesmo que pareça aberrante ou absurda, tem sempre um sentido
e uma razão de ser. Sobretudo quando esta conduta possui uma certa estabilidade na
vida comum de trabalho..., até prova em contrário. A idéia que orienta a investigação
consiste portanto em procurar aquilo que, apesar da vivência subjetiva de culpa dos
operários, poderia iniciar e estabilizar a prática do jogo de scrabble na sala de controle.
As reuniões de trabalho com o coletivo, em que operadores e pesquisadores trocam
idéias, proporcionaram os seguintes resultados: quando o processo funciona com uma
certa estabilidade e quando ele é bem regulado, os operários se aborrecem. Tal situação
de inatividade os irrita, os aborrece, e, com o tempo, faz com que eles sejam dominados
pela angústia.
Ao jogarem scrabble, eles encontram, perto das mesas de controle, uma ocupação
que proporciona certo convívio, e então se acalmam. Mas ao fazerem isso, eles também
fazem muito mais do que parece. O jogo de scrabble exige ás vezes tempo e reflexão
entre as jogadas, o que permite a um ou a outro se levantar, voltar um momento para as
mesas de controle e proceder ao aperfeiçoamento de uma regulagem de vazão ou de
pressão. Depois ele retoma seu lugar na mesa de jogo. De vez em quando, portanto, um
jogador deixa a mesa e intervém no processo. De fato, durante todo o tempo do jogo
eles “escutam” o processo. Escutam o barulho, as vibrações, os alarmes periódicos, o
ronronar das instalações. Se então sobrevém, neste ruído de fundo do qual o corpo está
impregnado, um ruído anormal, uma vibração de frequência mais baixa..., o corpo
reage e o operário se levanta. Desse modo os operários auscultam, enquanto jogam, o
funcionamento das instalações.
Ora, tal auscultação é algo delicado. Só se torna possível no caso de operários muito
bem treinados, com uma grande experiência da sala de controle. Esta supervisão
auditiva não lhes foi ensinada. Não é objeto de nenhuma instrução de uso. Mas, no
dizer dos operários, ela é bastante eficaz. Todos dela participam, com um talento
variável, diga-se de passagem. Isto não se explica. É aprendido através do contato com
os operários mais antigos.
Foi assim que os operários elaboraram um “artifício’’, um “truque’’, afim de
controlar com eficácia o processo. Ora, o envolvimento do corpo nesta auscultação do
processo é penoso. Se o operário se põe a escutar ativamente, de forma reflexiva,
concentrando-se no ruído, ele não conseguirá mais ouvi-lo. Ou ele não ouve mais nada,
ou todos os ruídos se tornam suspeitos; ele acaba se perdendo e fica dominado pela
angústia. Não consegue mais se servir de suas percepções. O regime de produção em
ritmo normal exige, de certo modo, que o operário se descontraia, que ele se coloque
em estado de repouso relativo. Então conseguirá entrar em acordo física e
sensorialmente com o processo, podendo localizar sem hesitação as anomalias que se
apresentarem.
Neste contexto, compreende-se, afinal de contas, que a prática do scrabble é
“genial”! É ao scrabble que eles se dedicam, e não ao jogo do bisca, por exemplo,
muito mais freqüente entre os operários na França. De fato, fala-se muito durante o
jogo de bisca, e se faz muito barulho. No scrabble, ao contrário, se faz silêncio. Por
romper o tédio e acabar com a angústia, o jogo de scrabble refina o desempenho
sensorial. O jogo concilia a busca de conforto com a eficácia técnica.
A descoberta do jogo de scrabble como regulador do comportamento durante o
controle do processo, não provém de qualquer cálculo teórico ou estratégia racional.
Trata-se de uma descoberta empírica, cheia de engenhosidades, cuja legitimidade só é
demonstrada por uma eficiência prática.
Os pontos sobre os quais convém ainda insistir são, primeiro, o lugar que ocupa o
corpo inteiro numa tarefa que se descreve erradamente como estritamente intelectual, e
depois a preeminência temporal da prática sobre a consciência, e a elucidação da
(função do jogo de scrabble como) “artifício técnico’’. Daí o interesse em desmontar
sua lógica interna. Pois, depois de elucidado, o jogo de scrabble pode ser tolerado sem
reservas tanto pelos próprios operários, agora liberados de sua culpa, quanto pela
supervisão, tranquilizada em relação a essa prática insólita.
De modo mais geral, este manejo da inteligência desorienta o sábio e permanece
desconhecido por parte dos executivos e engenheiros. A menos, quem sabe, que se
trate de uma negação proposital? É fácil provar que os próprios engenheiros e
executivos utilizam amplamente este recurso. E isso vale também para os sábios, até
nos melhores laboratórios de pesquisa experimental, onde parte das descobertas passa
por manipulações e ajustes empíricos, os quais sabemos perfeitamente serem
provenientes mais de artifícios, “receitas culinárias” , do que de uma lógica racional
positiva (ver: A importância dos meios e métodos nos protocolos experimentais e
publicações científicas).
O envolvimento do corpo, ainda que este seja criador da própria inteligência
prática, não implica a ausência do pensamento. Mas seu uso desempenha um papel
importante na forma das modelizações práticas e representações metafóricas do
funcionamento técnico, que os operadores harmonizam naturalmente com o diapasão
do corpo humano. Um bom exemplo disso foi revelado no estudo a respeito do meio
encontrado pelos pedreiros para controlar os riscos ligados às manobras de transporte
dos blocos de pedra (Cru, 1984), Da mesma forma, isso poderia ser exemplificado no
caso de se dirigir um automóvel, cuja precisão é devida, em grande parte, ao
envolvimento do corpo na inteligência prática, e não à cálculos ou à aplicação rigorosa
das instruções de uso do veículo. Pode-se verificar que isso vale igualmente no caso de
se dirigir um caminhão ou pilotar um avião, mesmo sendo este ultimo tecnicamente
sofisticado.
Após este esboço dos recursos da inteligência prática com suas características
psíquicas gerais (metapsicológicas e, em particular, psicoeconômicas), devemos
examinar como, de maneira concreta, ela toma forma e se expressa na situação.
Significa que devemos abordar suas características em nível psicodinâmico.
As formas concretas de que se reveste a inteligência dependem do contexto e de
seus dois componentes: o contexto sincrônico, ou seja, a organização do trabalho e as
relações sociais de trabalho no momento presente, de um lado; o contexto diacrônico,
ou seja, a história do sujeito e a maneira pela qual o contexto sincrônico (situação atual
de trabalho) têm lugar em relação ao passado do sujeito. Pois não há sujeito sem
história singular, e, quando diante de uma situação, o sujeito a experimenta, a
interpreta, reage a ela e eventualmente procura transformá-la, em função do sentido que
tal situação adquire na própria evolução de sua biografia.
Já assinalamos, no inicio deste texto, que na mobilização da inteligência criadora o
sofrimento do sujeito intervém de maneira determinante. Sofrimento este que
justamente responde de maneira inevitável ao distanciamento experimentado pelo
sujeito entre contexto sincrônico e contexto diacrônico, entre situação real de trabalho e
expectativa ou esperança que o sujeito construiu por causa do passado e com as quais
ele aborda esta situação real de trabalho.
A análise da articulação entre organização da personalidade e organização do
trabalho não pode excluir uma referência privilegiada à clínica psicanalítica. De fato; é
no campo desta experiência clínica que se pode compreender melhor a amplitude das
implicações do passado do sujeito sobre sua conduta atual.
A epistemofilia: mais tarde, logo que atinge a idade de falar, a criança se preocupa em
compreender o que se passa nesta “terra incógnita” (zona de fragilidade psíquica),
onde, cada vez que a criança penetra (voluntária OU desgraçadamente), viverá a
experiência dolorosa da angústia, da solidão, do abandono, e mesmo da rejeição por
seus pais. O que preocupa tanto seus pais, que nesta zona ela não pode mais se sentir
amadas por eles? Assim, a angústia, o sofrimento e as preocupações fundamentais de
seus pais tornam-se um enigma que a criança carregará consigo durante toda a sua vida
adulta, Este enigma vai originar uma curiosidade jamais satisfeita, um desejo de saber e
um desejo de compreender, periodicamente reativados pelas conjunturas materiais e
morais cuja forma faz lembrar as preocupações dos pais. A esta curiosidade dá-se em
psicanálise o nome de epistemofilia. A criança construirá desse modo, passo a passo
com o seu desenvolvimento cognitivo, uma série de teorias infantis que se sucederão
sem contudo se substituirem uma a outra. A criança de outrora continuará, assim, a
ocupar certas posições no espaço psíquico do futuro adulto.
O jogo: bem cedo, a criança procura encenar seu desejo de compreender e suas teorias
explicativas. Para tanto, utiliza o jogo (Winnicott, 1975): um convite, dirigido aos pais,
para que representem num teatro intermediário, imaginário e humorístico (logo, menos
ameaçador do que o terreno movediço inicial), seu sofrimento transformado em peça
teatral. Inesgotável, insaciável, a atividade lúdica é uma forma importante de
experimentação das teorias infantis.
OBSERVAÇÕES
7
O autor faz referência a um texto originalmente apresentado em 1987, no Seminário Interdisciplinar de
Psicopatologia do Trabalho, posteriormente publicado no Brasil em livro de Helena Hirata: Nova divisão
sexual do trabalho? São Paulo, Boitempo, 2002. NC.
COMPONENTES SUBJETIVOS DA COOPERAÇÃO
Não se trata aqui de formular uma avaliação qualquer, mas de propor alguns
questionamentos suscitados pelos trabalhos sociológicos sobre o modelo japonês.
No exercício da inteligência ardilosa, o equilíbrio incessante entre visibilidade e
segredo, entre singular e coletivo, entre legalidade e trapaça, revela-se crucial. No
modelo de funcionamento japonês, parece que se insiste maciçamente na visibilidade,
na transparência, ao ponto de o segredo individual, e sobretudo coletivo, poder ser
banido, o kanban, os círculos de qualidade, às vezes provocam o temor de que a
transparência não seja somente uma regra (ou um princípio) — logo, que ela possa ser
transgredida, caso necessário —, mas que seja coercitiva.
Pode-se temer que a transparência se desvie imperceptivelmente de seu curso, em
direção à vigilância generalizada e à desapropriação, em nome da razão cívica ou da
razão da empresa.
8
O autor faz referência àqueles que desenvolvem uma abordagem fundada na Psicossomática. NC.
Desse modo, o que no início do próprio exercício da inteligência ardilosa é movido
pela busca da identidade correria o risco de se desencaminhar no sentido de uma
autonomia reduzida e de um controle hierarquizado – o que significaria evidentemente
uma reabertura trágica em direção à alienação.
Isso pode provocar certa inquietação, quando se pensa no impacto das práticas
japonesas sobre o espaço privado. Não só a autonomia das relações sociais de trabalho
parece reduzida, como também a vida extraprofissional, por sua vez, estritamente
controlada pela utilização do tempo a serviço da empresa: férias mais raras, mobilidade
dos trabalhadores pelo país, longa jornada de trabalho (uma vez que se contabiliza o
tempo consagrado aos círculos de controle de qualidade), e assim por diante... levam a
uma redução drástica e a uma sujeição impressionante, para o operário francês, da vida
familiar, da vida conjugal, da vida com as crianças etc. Sem uma enfeudação rigorosa
das mulheres, dificilmente se compreenderia o funcionamento do sistema no Japão.
Qual será então o preço pago indiretamente pela família, para assegurar a eficácia
daquele que trabalha? Já se sabe na França como as coerções organizacionais, e as
estratégias defensivas que elas desencadeiam, causam impacto negativo sobre a saúde
mental e física das crianças. Como será isso no Japão? Já se verificou que a saúde das
famílias não sofre as conseqüências desta relação com a organização do trabalho?
De saída, é toda a liberdade do espaço privado que seria posta em questão, enquanto
globalmente a obediência, a qual, como vimos antes, é às vezes benéfica para o registro
da identidade, se desvirtuaria, transformando-se em submissão, quando então
novamente o processo de conquista da identidade seria neutralizado. Ademais, pode-se
interrogar acerca das consequências de um alinhamento tão radical do espaço privado
na organização do trabalho, ou seja, de um sistema que não estaria em condições de
equilibrar o investimento humano no trabalho pelo exercício da liberdade privada.
As conseqüências poderiam se captalizar pelo desgaste não controlado dos corpos e
dos recursos pulsionais, capaz de desencadear doenças somáticas e psíquicas. Elas
também poderiam acarretar, por fim, uma inversão dos desempenhos, e neste caso
desgaste e esgotamento levariam finalmente a um declínio da qualidade e da
produtividade. Este não parece ser o caso atualmente do Japão. Há, portanto,
provavelmente um meio de regulação. Mas não sabemos qual.
Assim mesmo, pode-se ficar perplexo diante da maneira pela qual os operários
japoneses se empenham na empresa. Sobretudo diante da aceitação da seleção
psicológica e social no momento da contratação. Em termos econômicos, sabe-se que a
aceitação desta seleção se relaciona com as vantagens materiais derivadas do fato de se
pertencer à empresa, e de serem com isso eliminados os riscos inerentes à condição de
excluídos das grandes empresas.
Mas o psicopatologista não pode ficar nisso, pois as investigações realizadas neste
campo na França sugerem que a solidariedade de uns diante da discriminação ou
exclusão de outros não é somente passiva. Muitas vezes ela se desdobra, sobretudo
quando oficializada e consciente, em um movimento psíquico que vai muito mais
longe. As pessoas não se regozijam apenas por terem pessoalmente escapado da
adversidade, muitas vezes se regozijam com a infelicidade dos outros (Legendre, 1976),
e isso tanto mais acentuadamente quanto mais se reduzir a distância entre privilegiados
e excluídos, como se o gozo do poder compensasse a erosão das vantagens materiais.
Esta mobilização em favor da discriminação é psicológica e politicamente proble-
mática. A obediência que se converte em submissão dá margem a uma colaboração que
reintroduz a iniqüidade intencional e representa uma ameaça indireta, o que foi
analisado anteriormente a propósito da ética e da construção das regras. Ameaça que
corre o risco de afetar tanto os atos da vida cívica comum quanto os que se desenrolam
no espaço da empresa.
São estas as interrogações que se podem formular sobre a perenidade do modelo
japonês que, embora manipule com bastante precisão e eficácia os recursos subjetivos
da identidade para solicitar a inteligência criativa do trabalho, ao mesmo tempo suscita
algumas questões espinhosas para o psicopatologista.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS