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Giovana Girardi
Os quatro séculos da
ciência
moderna
18 unespciência .:. setembro de 2009
Ilustrações: Pepe Casals
E
m 1609, talvez entre uma aula e que para gerar conhecimento é preciso ob-
outra na Universidade de Pádua, servar, experimentar, calcular e raciocinar.
o então professor de matemática Não foi pouca coisa. Ao promover a busca
Galileu Galilei (1564-1642) resolveu olhar da verdade sobre os fenômenos naturais,
para o céu. De posse de uns “óculos es- contrariou, em plena Inquisição, o geocen-
peciais”, aperfeiçoados por ele mesmo a trismo de Cláudio Ptolomeu (87-151 d.C.)
partir de um instrumento recém-inventado e a noção de éter de Aristóteles (384-322
por holandeses, ele viu a Lua de um modo a.C.), defendidos pela Igreja. Escapou de
como ninguém jamais tinha visto. Desco- ser queimado vivo, como Giordano Bru-
briu também que havia no espaço muito no (1548-1600), que defendia concepções
mais estrelas do que se podia imaginar e semelhantes, mas teve de abjurar em pú-
que Júpiter tinha seus próprios satélites. blico sua crença de que a Terra gira em
Observações que renderam as provas de torno do Sol e amargar o resto da vida em
que o mundo não gira em torno da Terra prisão domiciliar. Diz a lenda que após a
e acabaram por desenhar um novo capí- negação teria se lamentado baixinho com
tulo na história do conhecimento humano. a frase mais famosa atribuída a ele: “Eppur
Nascia ali, há 400 anos, a ciência moderna. si muove” (mas ela se move).
Efeméride à parte, a data é um mote pa- Essas foram as primeiras descobertas
Data celebrada ra refletir sobre o que representou aquele que enfatizaram que compete ao homem
neste ano marca momento para a história da humanidade, o a construção de seu conhecimento. Na
as primeiras papel que a ciência passou a desempenhar filosofia, essa convicção também toma-
observações a partir disso e o que ela representa hoje. va corpo com o racionalismo do francês
de Galileu ao Longe de marcar só a comprovação do René Descartes (1596-1650) e o empiris-
telescópio, a quebra heliocentrismo, proposto décadas antes por mo do inglês Francis Bacon (1561-1626).
do paradigma Nicolau Copérnico (1473-1543), o evento “Com a ciência dos modernos, a autori-
geocêntrico e comemorado neste ano recorda um mo- dade do conhecimento passa dos livros,
principalmente a mento de ruptura com a visão de mun- das escrituras, para a construção a partir
mudança radical do vigente. Galileu se recusou a aceitar a dos resultados da intervenção no mundo”,
da visão do mundo autoridade da religião sobre a natureza, explica o físico Fernando Dagnoni Prado,
vigente até então o saber revelado pela tradição. Defendeu da Unesp de Rio Claro.
“Antes, por razões diversas – filosóficas como ele evoluiu à condenação, é preciso
para os gregos, religiosas para os medievais voltar para 1609 e 1610, quando publi-
–, não havia por que intervir na nature- A partir das observações cou seu primeiro livro sobre o assunto,
za. Para os modernos, isso foi tanto lícito com a luneta, Galileu o Sidereus nuncius (O Mensageiro das Es-
quanto necessário e defensável.” mostrou que era possível trelas). Ali ele registrou suas primeiras
enxergar além dos nossos
“O evento das observações telescópi- observações feitas com a luneta.
sentidos por meio de objetos
cas marca o nascimento do observador produzidos pela razão O que ele viu, ou deduziu racionalmente
científico moderno, uma vez que mudou com seu telescópio, como ele o chamava,
as fronteiras entre o visível e o invisível”, foi a existência de crateras na Lua, estrelas
comenta Pablo Rubén Mariconda, profes- invisíveis a olho nu, quatro satélites giran-
sor de filosofia da ciência da USP e um do em torno de Júpiter, manchas solares e,
dos maiores especialistas em Galileu no posteriormente, as fases de Vênus. A ideia
Brasil. É dele a tradução para o português de que haveria crateras na Lua choca-se
de uma das principais obras do italiano, o promovendo. Neste livro, “uma obra de diretamente com a visão defendida pela
Diálogo sobre dois máximos sistemas do combate”, como define Mariconda, ironiza escolástica de que o céu era perfeito, assim
mundo ptolomaico e copernicano, publi- por meio de uma fala de seu personagem como a existência de outro corpo no espa-
cado em 1632, cerca de um ano antes de fictício Salviati: “Temos no nosso século ço que possa ser o centro do movimento
ser condenado. “A partir das observações, acontecimentos e observações novas e de de uma outra coisa. Para Vênus ter fases,
Galileu mostrou que era possível ver o que tal alcance que não tenho dúvida de que como a nossa Lua, a única explicação é
não estava acessível aos nossos sentidos a se Aristóteles vivesse em nossa época, que o planeta gira em torno do Sol.
partir de objetos produzidos pela razão.” mudaria de opinião”. “Se a Lua tem montanhas, ela não é uma
É provável que o próprio Galileu já ti- Nesse ponto, entretanto, o litígio com a esfera perfeita. Além disso, é da mesma
vesse essa noção sobre o salto que estava Igreja já estava avançado. Para entender matéria da Terra, de modo que não se-
dentro de outro, para o centro continuar O homem perdeu seu o florentino não mais poderia falar sobre
sendo a Terra. Foi criando mecanismos pedestal no Universo, heliocentrismo. “Aí começa todo o drama
para salvar, sem física nenhuma.” mas se conscientizou de Galileu porque eppur si muove, não era
Já no primeiro conjunto de observações como o único ser capaz possível pensar de outro jeito”, conta Ma-
de Galileu está implícita toda a discussão de compreender a riconda. Para o astrônomo, naquele mo-
da liberdade científica, de que é possível natureza e dominá-la mento o embate era claro: não se podia
romper com as concepções tradicionais empenhar artigos de fé em assuntos de
quando se usa a matemática para descobrir razão. “Esse é o ponto do nascimento da
as leis naturais, as regularidades segundo ciência moderna, a separação entre ciência
as quais acontecem os fenômenos. “A in- e fé, entre fato e valor. A ciência determina
tervenção não é mais feita para enganar fatos, e esses fatos, em princípio, servem
a natureza. O controle é feito justamente um texto duro, de difícil penetração mes- para todos os homens; portanto são neu-
porque se sabe como ela funciona”, com- mo para os astrônomos da época, explica tros do ponto de vista do valor. Se a Terra
plementa o filósofo da USP. Mariconda. “A questão com Galileu não era se move ou não, isso não tem nada a ver
O que Galileu propunha, portanto, ia só científica, mas afetava a concepção do com ser protestante ou católico, vai nas-
muito além da ideia de que a Terra não mundo de uma maneira arrasadora para cer a questão da autonomia da ciência, a
é o centro do Universo. Copérnico havia toda a cultura antropocentrista e antropo- liberdade que a razão tem de estabelecer,
proposto isso em 1543 com o lançamento centrada que vinha desde a Antiguidade. independente de teologia, da moral, etc,
do livro De revolutionibus (As revoluções A Bíblia dizia que tudo foi criado para as verdades naturais.”
dos corpos celestes) pouco antes de mor- servir ao homem, e com Galileu isso esta- Publicou o Diálogo em uma tentativa
rer, e a obra, durante todo esse período, va sendo, vamos dizer assim, espoliado.” clara de fazer rever a condenação de 1616,
tinha passado meio ao largo das restrições Em 1616, então, o livro de Copérnico foi mas não conseguiu. Acabou ele próprio
católicas. Muito provavelmente porque era colocado no índex de obras proibidas, e sendo julgado e preso. Por ironia, o ho-
momentos que acabaram abrindo espaço rou problemas. Segundo ele, a partir do
para o ressurgimento do misticismo. Ela momento em que a humanidade passou
Ao longo dos séculos,
mesma já começa a mudar de cara. Se os a ciência chegou a a esperar que a ciência lhe desse todas as
anos 1900 foram o século da física, este alcançar uma posição de respostas, ganhou espaço o cientificismo,
será da biologia, afirma Othon Winter verdade absoluta, mas mas a reação foi proporcional quando se
com conhecimento de causa. “Já vemos hoje enfrenta o desafio viu que ela também deixa expectativas.
muitos físicos migrando para a biofísica. de se tornar menos “Pontes que caíram, o Titanic que afun-
Astronomia indo para a astrobiologia. comercial e mais pública dou. Tudo isso conduziu a uma melhor
É uma migração natural.” Mas para os aproximação da realidade, mas a noção
pesquisadores ouvidos por Unesp Ciên- de nossa pequenez acaba promovendo um
cia, os desafios atuais passam por um apelo por algo maior, que dê respostas. O
reposicionamento do papel da ciência misticismo ressuscita com os insatisfeitos
em relação à humanidade. buscando outras certezas.”
“Com a consolidação da ciência, surgiu se ciência precisa ser financiada e foi se O pesquisador acredita que a descon-
a suposição de que ela serve para todos, ligando ao sistema de produção, há, por- fiança provém do próprio cientificista. “Ao
então não tem problema moral”, comenta tanto, interesses envolvidos. O desenvol- proclamar a ciência como verdade abso-
Mariconda. “Mas hoje sabemos que não vimento mostrou que ela não é totalmente luta acaba impedindo uma aproximação
é bem assim, porque gradativamente ela neutra. E os interesses têm sim implicações mais real. Ainda hoje temos a corrente
foi se tornando mais complexa, passou a morais, sociais, no domínio dos valores.” positivista. O poder social trocando de
precisar de financiamento. Da lunetinha Para Renato Rocha Lieber, engenheiro mãos, do eclesiástico para o acadêmico”,
do Galileu, que só usou tubinhos e dois de Unesp de Guaratinguetá e especialista diz. “O homem que crê na fé absoluta é
pedacinhos de vidro para fazê-la, ao Hub- nas relações entre ciência, incerteza, risco o mesmo que acredita na ciência abso-
ble, quanto não se gastou?”, questiona. “E e catástrofes, o excesso de confiança ge- luta, pois para ele a decisão é externa a