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o- CONSUMIDORES E CIDADÃOS
O conflitos multlculturols

~ da globolizoção

\I)
O

Néstor Gordo Condini

UFRJ
Reitor Paulo Alcantasa Gomes
Yice-reltor José Henrique Vilhena de Paiva
Coordenadora do Forum
de Ciência ~ Cultura Myrian Dauelsberg

EDITORA UFRJ
Diretora Heloisa Buarque de Hollanda
Editora-assistente Lucia Canedo
Coordenadora de produção .Ana Carreiro
-;.

Conselho Editorial Heloisa Buarque de Holianda (Presidente),


Carlos Lessa, Fernando Lobo Carneiro, Editora UFRJ
Flora Süssekind, Gilberto Velho, .Rio de Janeiro
Masgarida de Souza Neves.
1996

--
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i, o consumo serve
~. .

.'
I. ~
~ .' para pensar'

UMA ZONA PRopiCIA para comprovar que o senso


comum não coincide com o bom senso é o consumo.
N a linguagem corriqueira, consumir costuma ser
associado a gastos inúteis e compulsões irracionais:
Esta desqualificação moral e intelectual se apóia em
outros lugares comuns sobre a onipotência dos meios
de massa, que incitariam as massas a se lançarem
irrefletidamente sobre os bens.
Ainda há quem justifique a pobreza alegando
que as pessoas compram televisores. videocassetes
e carros enquanto lhes falta casa própria. Como se
explica que famílias que não têm o que comer e vestir
durante o ano, quando chega o Natal dissipam o pouco
a mais que ganharam em festas e presentes? Será que
os adeptos da comunicação de massa não se dão conta
de que os noticiários mentem e as telenovelas distor- .
cem a vida real?
Mais do que dar respostas a estas perguntas ..
pode-se discutir a maneira como estão formuladas. Hoje
vemos os processos de consumo como algo mais com-
plexo do que a relação entre meios manipuladores e
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!la"jSIPMiitiGiMi6IWi&DUWé92'
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consumido •.•.•
s e cidadãos o consumo serve paro pe~sor

dóceis audiências. Sabe-se que um bom número de linhas de interpretação e assinalar os seus possíveis
estudos sobre comunicação de massa tem mostrado que pontos de confluência, com o objetivo de participar de
! .-
a hegemonia cultural não se realiza mediante ações' uma conceitualização global do consumo onde possam
verticais, onde os dominadores capturariam os recep- ser incluídos os processos de comunicação e recepção
tores: entre uns e outros se reconhecem mediadores de bens simbólicos,
como a família, o bairro e o grupo de trabalho.ê Nessas Proponho partir de uma definição: o consumo
~ análises deixou-se também de conceber os vínculos entre' é o conjunto de processos socioculturais em que se
I

r- aqueles que emitem as mensagens e aqueles que as realizam a apropriação e. os usos dos produtos. Esta
;" .
recebem corno relações, unicamente, de dominação. A caracterização ajuda a enxergar os atos pelos quais

íi'L-: comunicação não é eficaz se não inclui também inte-


rações de colaboração e transação entre uns e outros.
consumimos como algo mais do que simples exercícios
de gostos, caprichos e compras irrefletidas, segundo
~
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,~ a". Para avançar nesta linha é necessário situar os os julgamentos moralistas, ou atitudes individuais,
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processos comunicacionais em um quadro conceitual tal como costumam ser explorados pelas pesquisas

I~i
,

mais amplo, que pode surgir das teorias e investiga- de mercado.


ções sobre o consumo. O que significa consumir? Qual Na perspectiva desta _definição, o consumo é
.. é a razão ~ para os produtores e para os consumi- compreendido sobretudo pela sua racionalidade eco-
dores - que faz com que o consumo se expanda e se nômica. Estudos de diversas correntes consideram o

IV r·."

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.

.
52
renove incessantemente?

Rumo a uma teoria


consumo como um momento do ciclo de produção e
reprodução social: é o lugar em que se completa o
processo iniciado com a geração de produtos, onde se
multidisciplinar
realiza a expansão do capital e se reproduz a força de
Não é fácil responder a estas perguntas. Ainda trabalho. Sob este enfoque, não são as necessidades
que as pesquisas sobre o consumo tenham se multipli- ou os gostos individuais que determinam o que, como
,':-
('

,~.
" cado nos últimos anos, reproduzem a segrnentação e e quem consome. O modo como se planifica a distri-
--~ desconexão existente entre as ciências.sociais. Temos buição dos bens depende das grandes estruturas de
teorias econômicas, sociológicas, psicanalíticas, psicos- administraçãodo capital. Ao se organizar para prover
sociais eantropol6gicas sobre o .que ocorre quando alimento, habitação, transporte e diversão aos: mem--
\,' '
consumimos; 'há teorias literárias sobre -a recepção c bros deurna sociedade, o si~tema econômico "pensa"
~;.' ':

t' teorias estéticas sobre a fortuna crítica das obras ar- como reproduzir a força de trabalho e aumentar a
tísticas. Mas não existe uma teoria sociocultural do lucratividade dos produtos. Podemos não estar de acor-
consumo. Tentarei reunir nestas notas as principais do com a estratégia, com a seleção de quem consumirá
!

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co;"sumidores e cidadõos , o consumo sorve pora pensar

mais ou menos, mas é inegável que as ofertas e bens consumidores são evidências de como o consumo é
e a indução publicitária de sua compra não são atos pensado desde os setores populares. Se alguma vez
arbitrários. esta questão foi território de decisões mais ou menos
No entanto, a racionalidade de tipo macrossocial, unilaterais, hoje é um espaço de interação, onde os
definida pelos grandes agentes econômicos, não é a produtores e emissores não só devem seduzir os des-
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única que modela o consumo. Os estudos marxistas tinatários, mas também justificar-se racionalmente.
sobre o consumo e sobre a primeira etapa da comuni- Percebe-se também a importância política do
"
"
cação de massa (de 1950 a 1970) superestimaram a consumo quando vemos políticos que detiveram a hiper-
capacidade de determinação das empresas em relação inflação na Argentina, no Brasil e no México centra-
aos usuários e às audiências.! Uma teoria mais com- rem sua estratégia de consumo na ameaça de que uma
plexa sobre a interação entre produtores e consu- mudança de orientação econômica afetaria aqueles que.
midores, entre emissores e receptores, tal como a de- se endividaram comprando a prazo carros ou apare-
senvolvem algumas correntes da antropologia e da lhos eletrodomésticos. "Se não querem que a inflação
sociologia urbana, revela que no consumo se manifesta volte, aumentem as taxas de juros e não consigam
também uma racionalidade sôciopolittca interativa. "
.- <:" .-:
continuar pagando o que compraram, devem votar em
• • <.

Quando vemos a proliferação de objetos ,e demarcas, mim novamente",' diz Carlos Menem ao tentar a re-
'de redes de comunicação e de acesso ao consumo, a eleição para a Presidência da Argentina. Uma fórmula
partir da perspectiva dos movimentos de consumidores empregada na campanha eleitoral "o voto-prestação"
54 e de suas demandas, percebemos que as regras - exibe a cumplicidade que existe hoje entre consumo
móveis - da distinção entre os grupos, da expansão e cidadania.
educacional e das inovações tecnol6gicas e da moda Uma terceira linha de trabalhos, os que estudam
também intervêm nestes' processos. O consumo, diz o consumo como lugar de diferenciação e distinção
'.."
':0_.
.. Manuel CasteIls, é um lugar onde os conflitos entre e
entre as classes os grupos, tem chamado a atenção
, .
;,.:'

classes, originados pela desigual participação na estru- para os aspectos simb6licos e estéticos da raciona-
tura produtiva, ganham continuidadeatravés da distri- /idade consumidora. Existe uma lógica na construção
buição e apropriação dos bens.' 'Consumir é participar dos signos de status e nas maneiras de cornunicã-los.
, de. um cenário de disputas por aquilo que asocie- Os_textos de Pie~~ Bourdieu, ~rjun Appaduraí eStuart
, dadeproduz e pelos modos deusã-lo. A importância " .Ewen, entre' Outros, mostram que 'nas sociedades con-
.:....
que às 'd'emandas pelo aumento do consumo e pelo temporâneas boa parte da racionalidade das relações
salário indireto adquirem nos conflitos sindicais e a sociais se constr6i, mais do que na luta pelos meios
reflexão crítica desenvolvida pelos agrupamentos de de produção, da disputa pela apropriação dos meios
consumidores e cid'odõos o consumo sorve poro p e n so r

de distinção sirnbólica.! Há uma coerência entre os lu- Há uma raciona/idade


gares onde os membros de uma classe e até de uma pós-moderna?
fração de classe se aiimentam, estudam, habitam, pas-
Algumas correntes do pensamento pós-moderno
. ; sam as férias, naquilo que lêem e desfrutam, em como
têm chamado a atenção em uma direção oposta à que
~:: . ~ se informam e no que transmitem aos outros. Essa
',I·: estamos sugerindo - sobre a disseminação do sentido,
!; ~: .:~
: ~ coerência emerge quando a visão socioantropol6gica a dispersão dos signos e a dificuldade de estabelecer
;
:

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~.
busca compreender em conjunto a tais cenários. A
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c6digos estáveis e compartilhados. Os cenários do con-
16gica que rege a apropriação dos bens enquanto sumo são invocados por esses autores como lugares
objetos de distinção não é a da satisfação de neces- onde se manifesta com maior evidência a crise da racio-
sidades, mas sim a da escassez desses bens e da im- nalidade moderna e seus efeitos sobre alguns princípios
possibilidade de que outros os possuam. que haviam regido o desenvolvimento cultural.
Contudo, nessas pesquisas costuma-se ver os Sem dúvida, Jean François Lyotard acerta quan-
comportamentos de consumo como se s6 servissem para do identifica o esgotamento dos paradigmas que or-
dividir. Mas se os membros de uma sociedade não com- . ganizavam .a racionalidade hist6rica moderna. Mas a
partilhassem os sentidos dos bens, se estes s6 fossem . queda decerta~ narrativas onicornpreensivas não pode
compreensíveis à elite. ou à maioria que os utiliza, não implicar um desaparecimento do global como hori-
serviri~~ como instrumentos de diferenciação. Um carro zonte. A crítica pós-moderna serviu para repensar as
importado ou um computador com novas funções dis- formas de organização compacta do social instauradas
tinguem os seus poucos proprietários na medida que 5:
pela modernidade (as nações, as classes etc.). É legíti-
quem não pode possuí-Ios conhece o seu significado mo levar esse questionamento até a exaltação de uma
sociocultural. Inversamente, um artesanato ou uma suposta desordem pós-moderna, uma dispersão dos
festa indígena cujo sentido mítico é propriedade dos sujeitos que teria sua manifestação exemplar na liber-
que pertencem à etnia que os gerou - se tomam ele- dade dos mercados? É curioso que nesses tempos de
mentos de distinção ou discriminação na medida que concentração planetária em volta do controle do mer-
outros setores da mesma sociedade se interessam por cado as celebrações acríticas da disseminação indivi-
elas e entendem em algum nível seu significado. Logo, dual e a visão das sociedades como coexistência errá-
devemos admitir que no consumo se constr6i parte da _ '. tica de' impulsos e des'ejos alcance~ tantoprestígio.
racionalidade inte,grativa e comunícatíva Be-umo . Surpreende também que o pensamento pós-
sociedade. moderno seja sobretudo feito de reflexões filos6ficas,
inclusive quando se trata de objetos tão concretos quan-
to o desenho arquitetônico, a organização da indústria
consumidores e cidadãos

cultural e das interações sociais. Quando se trata


de comprovar hipóteses em pesquisas empíricas, ob-
r o consumo serve poro pensar

preservam. Quanto mais custosos sejam esses bens,


mais forte será o investimento afetivo e a ritualizàção
servamos que nenhuma sociedade e nenhum grupo que fixa os significados a eles associados. Por isso,
suportam por muito tempo a irrupção errática dos eles definem muitos dos bens que são consumidos co-
desejos, nem a conseqüente incerteza de significados. mo "acessórios rituais", e vêem o consumo como um
Em outras palavras, precisamos pensar, ordenar aquilo processo ritual cuja função primária consiste em "dar
que desejamos. sentido ao fluxo rudimentar dos acontecimentos".'
É proveitoso invocar aqui alguns estudos antro- Certas condutas ansiosas e obsessivas de con-
pológicos sobre rituais e relacionã-los às perguntas que sumo podem ter origem numa insatisfação profunda,
iniciaram este artigo sobre a suposta irracionalidade segundo analisam muitos psicólogos. Mas em um sen-
dos consumidores. Como diferenciar as formas de gasto tido mais radical, o consumo se liga, de outro modo,
que contribuem para a reprodução de uma sociedade, com a insatisfação que o fluxo errático dos signifi-
daquelas que a dissipam e desagregam? O "desper- .cados engendra: Comprar objetos, pendurá-I os ou dis-
dício" do dinheiro no consumopopular é uma auto- tribuí-los pela casa, assínalar-lhes um lugar em. uma
. sabotagem dos pobres, simples mostra de sua incapa- ordem, atribuir-lhes funções na comunicação com os
cidade de se organizar para progredir? outros, são os recursos para se pensar o próprio corpo,
Encontro uma chave para responder a estas per- a instável ordem social e as interações incertas com os
guntas na freqüência com que esses gastos suntuosos, demais. Consumir é tornar mais inteligível um mundo
"dispendiosos", se associam a rituais e celebrações. onde o sólido se evapora. Por isso, além de serem úteis
5
Não só porque uma data ou o aniversário do santo para a expansão do mercado e a reprodução da força
padroeiro justifiquem moral ou religiosamente o gasto, de trabalho, para nos distinguirmos dos demais e nos
mas também porque neles ocorre algo através do qual comunicarmos com eles,· como afirmam Douglas e
a sociedade busca se organizar racionalmente. Isherwood, "as mercadorias servem para pensar".'
Por meio dos rituais, dizem Mary Douglas e É neste jogo entre desejos e estruturas que as
Baron Isherwood, os grupos selecionam. e fixam ~ mercadorias e o consumo servem também para orde-
graças a acordos coletivos -:-05 significados que re- .nar politicamente cada sociedade. O consumo é um
gulam a sua vida. Os rituais servem para "conter o processo em que os desejos se transformam em de-
curso d?s significados" e tornar explícitas as defini- mandas e em atos socialmente regulados. Por que arte-
ções públicas do que o consenso geral julga valioso. sãos indígenas ou comerciantes populares que enrique-
Os rituais eficazes são os que utilizam objetos mate- cem pela repercussão afortunada de seu trabalho, por
riais para estabelecer o sentido e as práticas que os que tantos políticos e líderes sindicais que acumulam
consumidores e cidadãos
o consumo servo para pensar

dinheiro por meio da corrupção continuam vivendo em


político das elites. O gosto dos setores hegemônicos
bairros populares, controlam seus gastos e tentam "não
tem esta função de "funil", a partir do qual vão sendo
aparecer"? Porque acham mais interessante continuar
selecionadas as ofertas exteriores e fornecendo mo-
pertencendo a seus grupos originários (e às vezes pre-
delo~ político-culturais para administrar ,as tensões
cisam disso para manter seu poder) do que exercer a entre o próprio e o alheio.
ostentação a que a sua prosperidade os impulsiona.
Nos estudos sobre consumo cultural no México'
O estudo de Alfred Gell sobre os muria gondos
que mencionarei mais adiante, descobrimos. que a falta
da índias propõe uma linha sutil para explicar este
de interesse de setores populares em exposições de arte,
papel regulador do consumo. Os muria que, graças às
teatro ou cinema experimentais não se deve apenas,
mudanças da economia tribal durante o último século,
ao fraco capital simbólico de que dispõe para apreciar'
ficaram mais ricos do que seus vizinhos, mantêm um'
estas mensagens, mas também à fidelidade com os
estilo simples de vida que Appadurai, invertendo a
grupos em que se insere. Dentro da cidade, são seus
expressão de Veblen, chama de "avareza conspicua
• "'. contextos familiares, de bairro e de trabalho, os que
Gastam em bens com certa prodigalidade, mas com a
controlam a homogeneidade do consumo, os desvios
condição. de que representem valores compartilhados,
,. ; nos gostos e nos gastos .. Numa escala mais ampla,' o
quenãoalterema homogeneidade suntuosa.
que' se entende como cultura nacional continua ser-
. Como observei em povos indígenas do México, vindo de contexto para seleção do exógeno.
a introdução de objetos exteriores modernos é aceita
desde que possam ser assimilados pela lógica comuni- Comunidades fransnacionais 61
tária. O crescimento da renda, a expansão e variedade de consumidores
das' ofertas de mercado, assim como a capacidade téc-
..•. . ~ Contudo, estas comunidades de pertencimento e
e
nica para se apropriarem dos novos bens e mensagens,
controle estão se reestruturando. A que conjunto a
graças ao acesso a níveis de educação mais elevados,
participação numa sociedade construfda predominan-
não bastam para fazer com que os membros de um
temente pelos processos de globalizados de consumo
grupo se atirem sobre as novidades. 9Aesejo de pos-
nos faz pertencer? Vivemos um tempo de fraturas e he-
suir "o novo" não atua como algo irracional ou inde-
. terogeneidade, de segrnentações dentro d~ cada nação .
pendente da cultura coletiva a. que se pertence.' .'
edecomunicações fluídas com asordenstra~snacio':
.Aindá em situações plenamente modernas,' o
nais da informação, da moda e do saber. Em meio a
consumo nã~ é algo "privado, atomizado e passivo",
esta heterogeneidade encontramos códigos que nos uni-
sustenta Appadurai, mas sim "eminentemente social,
ficam, ou que ao menos permitem que nos entendamos.
correlativo e ativo", subordinado a um certo controle
Mas esses códigos compartilhados são cada vez menos
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consumidores e cidedãos
o consumo serve pare penser

os da etnia, da classe ou da nação em que nascemos. populares, nos artesãos camponeses que adaptam seus
Essas velhas unidades, na medida que subsistem, pa- saberes arcaicos para interagir com turistas, nos tra-
recem se reformular como pactos móveis de leitura balhadores que se viram para adaptar sua cultura ope-
dos bens e das mensagens. Uma nação, por exemplo,
rária às novas tecnologias, 'mantendo suas crenças
a esta altura é pouco definida pelos limites territoriais -
antigas e locais. Várias décadas de construção de sírn-
ou por sua história política. Sobrevive melhor .corno
bolos transnacionais criaram o que Re~ato Ortiz de-'
uma comunidade hermenêutica de consumidores, cujos
nomina uma "cultura internacional-popular", com uma
hábitos tradicionais fazem com que se relacione de um
memória coletiva feita com fragmentos de diferentes
modo peculiar com os objetos e a informação circulante
nações." Sem deixar de estar inscritos na memória
nas redes internacionais. Ao mesmo tempo encontra-
nacional, os consumidores populares são capazes de
mos comunidades internacionais de consumidores - já
ler as citações de um imaginário multilocalizado que
mencionamos as de jovens e de telespectadores ~ que '.:' a televisão a publicidade reúnem: os ídolos do cine-
é

dão sentido de pertencimento quando se diluem as


ma hollywoodiano e da música pop, os logotiposçle
lealdades nacionais.
jeans e cartões de crédito, os her6is do esporte de vários
, Corno Os acordos entreprodutores, instituições, -,..
paísese os do próprio que jogam em outro compõem
mercados e receptores - que constituem e renovam os um repertório de signos constantemente disponível.
pactos de leitura periodicamente - se fazem através Marilyn Monroe e os animais jurássicos, Che Guevara
dessas redes internacionais, o setor hegemônico de ....
'.'

e a queda do muro, o refrigerante mais bebido no mun-


uma nação tem mais afinidades com aquele de outra do e Tiny Toon podem ser citados ou insinuados por 6
do que com os setores subalternos da própria. Há vinte qualquer desenhista de publicidade internacional con-
anos os seguidores da teoria da dependência reagiam fiando em que sua mensagem terá sentido ainda para
.-,:,
diante das primeiras manifestações deste processo acu- aqueles que nunca saíram do seu país.
sando a burguesia de falta de fidelidade aos interesses
É preciso, pois; averiguar, como se reestruturam
nacionais. E, naturalmente, o caráter nacional dos in-
as identidades e as alianças quando a comunidade na-
teresses era definido a partir de tradições "autênticas"
cional se debilita, quando a participação segmentada
do povo. Hoje sabemos que essa autentic,idade é ilusó-
no consumo --,- que se toma o principal procedimento
ria, pois o sentido "próprio" de um repertório de objetos
, de identificação '~solidariza -as elites de cada país
éarbitradamehtedelimitâdo e reinterpretado em pro-
através de um circuito transnacional, e, de outro lado,
cessos hist6ricos híbridos. Mas, além disso, a mistura
os setores populares? Ao estudar o consumo cultural
de ingrédientes de origem "autóctone" e "estrangeira" no ,México 11, descobrimos que a separação entre ,gru-
é percebida, de forma análoga, no consumo dos setores pos hegemônicos e subalternos já não se apresenta
consumidoras e cidadãos,
o consumo serve poro pensar

principalmente como oposição entre o nativo e o im- máxima rentabilidade dos bens de massa, gerando a
portado, ou entre o tradicional e o moderno, mas como concentração da cultura que confere a capacidade de
adesão diferencial a subsistemas culturais de diversa decisão em elites selecionadas, exclui as maiorias das
complexidade e capacidade de inovação: enquanto al- correntes mais criativas da cultura contemporânea. Não
guns escutam Santana, Sting e Carlos Fuentes, outros :.: é a estrutura do meio (televisão, rádio ou vídeo) a
preferem Julio Iglesias, Alejandra Guzmán e as teleno- causa do achatamento cultural e da desativação polí-
velas venezuelanas. tica: as possibilidades de interação e de promover a
Esta cisão não se produz unicamente no con- reflexão crítica destes instrumentos têm sido muitas
sumo ligado ao entretenimento. Segmenta também os :'J " vezes demonstradas, ainda que em microexperiências
L r

:.~. :-
setores sociais em relação aos bens estratégicos neces-· de baixa eficácia para as massas. Ta~poucó deve-se
sários para que se situem no mundo contemporâneo e atribuir apenas à diminuição da vida pública e ao retiro
sejam capazes de tomar decisões. Ao mesmo tempo em familiar da cultura eletrônica a domicílio a explicação
que o processo de modernização tecnológica da in- do desinteresse pela política: não obstante, esta trans-
.
, ~
dústria e dos serviços exige mão-de-obra mais qualifi- ':;.
s', . formação das relações entre o público e o privado no
'.!-',
..;~
cada cresce a evasão escolar, limitando-se o acesso
. t '. . COnsumo cultural.co~idiano representa uma mudança
dos setores médios (e, obviamente, das maioriaspo- ~: :
básica das condições em que deverá se exercer um
pulares) à informação mais nova. O conhecimento dos
r,"
"
novo tipo de responsabilidade cívica.
dados e dos instrumentos que habilitam ao trabalho Se o consumo tornou-se um lugar' onde fre-
autônomo ou criativo se reduz aos que podem as- , qüentemente é difícil pensar, é pela liberação do seu 6
sinar serviços de informática e redes exclusivas de te- cenário ao jogo pretensamente livre, ou. seja, feroz,
levisão (antena parabólica, TV a cabo, estações trans- entre as forças do mercado. Para que se possa articu-
missoras de canais metropolitanos). Para o resto das lar o consumo com um exercício refletido da cidadania,
pessoas, se oferece um modelo de comunicação de ~
t· : é necessário que se reúnam ao menos estes requisitos:
massa, concentrado em grandes monopólios, que se #.. a) uma oferta vasta e diversificada de bens e mensa-
nutre da programação standard norte-americana, além
gens representativos da variedade internacional dos
de produtos repeti tivos, de entretenimento light, gera- mercados, de acesso fácil e equitativo para as maio-
dos em cada país. " " " rias; blinformação multidirecional e confiável a respeito
" Colcca-se.vpois, dé outra maneira .a crítica ao 'da qualidade dos produtos, cujo controle seja efetiva-
consumo como lugar irrefletido e de gastos inúteis. O mente exercido por parte dos consumidores, capazes
que ocorre é que a reorganização transnacional dos de refutar as pretensões e seduções da propaganda; c)
sistemas simbólicos, feita sob as regras neoliberais de participação democrática dos principais setores da
;
'".
n·p a

i· :
I i. consumidores e cidodaos
I·'
o consumo servo poro pensor
~(.
sociedade civil nas decisões de ordem material, simbó-
~ apenas uma delas. Nós homens intercambiamos obje-
,. :

lica, jurídica e política em que se organizam os


t· tos para satisfazer necessidades que fixamos cultural-
consumos: desde o controle de qualidade dos alimentos
mente, para integrarmo-nos com outros e para nos dis-
até as concessões de freqüências radiais e ·televisivas, tinguirmos de longe, para realizar desejos e para pensar
t·,·
'$"' •..
~..J desde o julgamento dos especuladores que escondem nossa situação no mundo, para controlar o fluxo errático
produtos de primeira necessidade até os que adrni-
dos desejos e dar-lhe constância ou segurança em ins-
nistram informações estratégicas para a tomada de tituições e rituais. Dentro desta multiplicidade de ações
decisões. e interações, os objetos têm uma vida complicada. Em
Estas ações, políticas, pelas quais os consu- certa fase são apenas "candidatos a mercadorias=P,
..... midores ascendem à condição de cidadãos, implicam em outra passam por uma etapa propriamente mer-
numa concepção do mercado não como simples lugar cantil e em seguida podem perder essa característica
'.?. de troca de mercadorias, mas como parte de interações
.':. e ganhar outra. Um exemplo: as máscaras feitas por
socioculturais mais complexas. Da mesma maneira, o indígenas para uma cerimônia, logo vendidas a um
consumo é visto não como a mera possessão individual consumidor moderno e finalmente instaladas em apar-
'. de objetos isolados mascomo a apropriação coletiva, ·tamentos Urbanos ou museus, aonde se esquece seu
em rei ações de solidariedade e distinção com outros, valor econômico. Outro: uma canção produzida por
{~.

de bens que proporcionam satisfações biológicas e sim- motivações puramente estéticas logo alcança uma re-
.bélicas, que servem para enviar e receber mensagens. percussão massiva e lucros como disco, e, finalmente,
As teorias. sobre o consumo evocadas neste capítulo apropriada e modificada por um movimento político,
mostram, ao serem lidas de forma complementar, que se toma um recurso de identificação e mobilização
o valo~ mercantil não é alguma coisa contida natura- coletivas. Estas biografias cambiantes das coisas e
lisiícamente nos objetos, mas é resultante das interações das mensagens nos levam a pensar no caráter mer-
socioculturais em que os homens os usam. O caráter cantil dos bens como oportunidades e riscos de seu de-
abstrato dos intercâmbios mercantis, acentuado agora sempenho. Podemos atuar como consumidores nos si-
pela distância espacial e tecnológica entre produtores tuando somente em UJTl dos processos de ínteração -
e consumidores, levou a crer na autonomia das merca- . o que o mercado regula - e também podemos exercer
,dórias e no caráter ínexorãvel, alheio aos Objetos; das como 'Cidadãos uma reflexão' e uma experimentação
leis objetivas que regulariam os vínculos entre oferta mais ampla que leve em conta as múltiplas poten-
e demanda. O conf~onto das sociedades modernas com cialidades dos objetos, que aproveite seu "virtuosísmo
as "arcaicas" permite ver que em todas as sociedades serniótico'"! nos variados contextos em que as coisas
os bens exercem muitas funções, e que a mercantil é nos permitem encontrar com as pessoas.
i- f'\.;"J"

. :
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i·.;
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;;: :
, '.
: consumidores e cidadãos
o consumo serve poro pensar

Propor estas questões implica recolocar a ques-


Notas
tão do público. O descrédito dos Estados como admi-
nistradores de áreas básicas da produção e infor- . 1. Este capítulo é uma reelaboração ampliada do
mação, assim como a não-credibilidade dos partidos artigo que, com o mesmo título, publiquei na revista Di6-
(incluídos os de oposição), diminuiu os espaços onde logos de ia Comunicaci6n, Lima, n. 30, jun.l1991.

o interesse público podia se fazer presente, onde deve 2. Ver, entre outras, as obras de LULL, James (ed.).
ser limitada e arbitrada a luta-de outro modo selva- World Families Watch Television, Newbury-California:
gem - entre os poderes mercantis privados. Começam Sage, 1988; de BARBERO,Jésus Martín. De los medias a ias
mediaciones. México': Gustavo Gilí,: 1987; e de OROZCO
a surgir em alguns países - através da figura do
Gui11ermo (compilador). Hablan los televide~tes. ESludiO:
ombudsman, de comissões de direitos humanos de ins-
de recepciân en varios paises. México: Universidad
tituições e periódicos independentes - instâncias não-
Iberoamericana, 1992.
governamentais e apartidárias que permitem desem-
3. Um exemplo: os textos de TERRAIL, Jean-Pierre,
baraçar a necessidade de fazer valer o público face à
PRETECEI!-LE,Desmond, GREVET, Patrice.Necesidades y con-
decadência das burocracias' estatais, Algunsconsumi-
~umo. México: Grijalbo, 1977. .' .
dores querem ser cidadãos.
4. CASTElLS, Manuel. La Cuestiôn urbana. México:
Depois da década perdida para a América La-
Siglo XXI, 1974; apêndice à segunda edição.
tina, que foi a dos oitenta, durante a qual os Estados
cederam o controle da economia material e simbólica 5. BOURDIEU,Pierre. La Disrinci6n. Madrid: Taurus,
1988; ApPADURAl,Arjun (ed.). La Vida social de Ias cosas.
às empresas, está claro aonde a privatização sem limi-
México: Grijalbo, 1991; EWEN, Stuart. Todas Ias imâgenes 6S
tes conduz: descapitalização nacional, subconsumo das
.del consumismo. México: Grijalbo-CNCA, 1991. .
maiorias, desemprego, empobrecimento da oferta cul-
tural. Só através da reconquista criativa dos espaços 6. DOUGtAs, Mary, ISHERWOOD,Baron. El Mundo de
los bienes. Hacia una antropología dei consumo. México:
públicos, do interesse pelo público, o consumo po-
Grijalbo-CNCA, 1990. p. 80.
derá ser um lugar de valor cognitivo, útil para pensar
7. Idem, p. 77.
e agir significativa e renovadoramente na vida social.
Vincular o consumo com a cidadania requer ensaiar 8.. GEi.L. Alfred. Los Recién !legados ál mundo d~
. um reposicionamento do mercado na sociedade, tentar . los bienes:' el consumo entre Tos gondos muria:-'In:
a reconq~ista imaginativa dos espaços públicos, do ApPADURAl, A. Op. cit., p. 143-175.
.'
;~... interesse pelo público. Assim o consumo se mostrará 9. APPADURAI,A. Op.cit., p. 47.
como um lugar de valor cognitivo, útil para pensar e 10. ORTIZ, Renato. Op. cit., capo IV.
atuar significativa e renovadoramente, na vida social.

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