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Cleudemar Alves Fernandes

Marisa Martins Gama-Khalil


José António Alves Junior
(Orgs.)

Análise do discurso na literatura:


rios turvos de margens indefinidas

Editora Claraluz

2009
SUMARIO
Coordenação Editorial
APRESENTAÇÃO 05
Editora Claraluz
Cleudemar Alves FERNANDES
Impressão e Acabamento
ANÁLISE DO DISCURSO NA LITERATURA: RIOS
Prol Gráfica TURVOS DE MARGENS INDEFINIDAS 08
Cleudemar Alves FERNANDES
Conselho Editorial
Francisco Paulo da Silva (UERN) SUJEITO E IDENTIDADE EM O FANTASMA DE LUÍS
Isadora Valencise Gregolin (UFSCar) BUÑUEL 26
Maria do Rosário Gregolin (LTNESP)
Diana Pereira Coelho de MESQUITA
Nilton Milanez (UESB)
Pedro Navarro(UEM)
ANÁLISE DO DISCURSO LITERÁRIO:
Ficha Catalográfica elaborada pela Seção de Tratamento da Informação da Biblioteca DELIMITAÇÕES 46
"Prof. Achille Bassi"- Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação - 1CMC/USP Fernanda MUSSALIM

DISCURSO, HISTÓRIA E MEMÓRIA EM ACORDA


Análise do discurso na literatura: rios turvos de margens indefinidas AMOR: A CONSTRUÇÃO DOS SENTIDOS 54
Organizadores Cleudemar Alves Fernandes, Marisa Martins Gama- Franciele Magalhães CROSARA
Khalil, José António Alves Junior.
São Carlos: Claraluz, 2009. 304 p. ASSIM FALAVA ZARATUSTRA, DE NIETZSCHE: O
BATIMENTO DA DISCURSIVIDADE LITERÁRIA E A
CONSTITUIÇÃO DA DISCURSIVIDADE FILOSÓFICA 71
ISBN 978-85-88638-41-9 Guilherme Figueira BORGES

QUANDO PROSA VIRA POEMA: ALGUMAS


1. Literatura. 2. Análise do discurso. 3. Foucault, Michel. IMPLICAÇÕES SOBRE MÍDIUM E GÊNERO 82
I. Fernandes, Cleudemar Alves, org. II. Gama-Khalil, Marisa Martins, org. III. Heloisa Mara MENDES
Alves Júnior, José António, org.

AUTORIA E ESCRITA: O EFEITO-SUJEITO NAS


MEMÓRIAS DE ROSA AMBRÓSIO 98
Ismael Ferreira ROSA
Editora Claraluz Ltda.
R. Rafael A.S.Vidal, 1217 O SUJEITO E SUAS CONFISSÕES EM O CADERNO
São Carlos-SP (l 6) 33748332 ROSA DE LORI LAMBY, DE HILDA HILST 115
Jaciane Martins FERREIRA
www.editoraclaraluz.com.br
CLARO: UMA HISTÓRIA DE DISPERSÕES 132
Janaina de Jesus SANTOS
LOUCURA: CONSTRUÇÃO HISTÓRICA E
DISCURSIVA 144
Jaquelinne Alves FERNANDES

PANÓPTICO DA DISCURSIVIDADE LITERÁRIA Apresentação


João Bôsco Cabral dos SANTOS 160

O CONCEITO DE ENTRELUGAR NA ANÁLISE Um galo sozinho não tece a manhã:


DO DISCURSO: ESPAÇO SÓCIO-DISCURSIVO DE ele precisará sempre de outros galos.
CONSTRUÇÃO DA SUBJETIVIDADE 176 De um que apanhe esse grito que ele
José António ALVES JÚNIOR e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes e
A LOUCURA EM (M)ACHADO, PENSANDO EM o lance a outro; e de outros galos que
FOUCAULT: NAU OU "NAUFRÁGIO"? 194 com muitos outros galos se cruzem os
Jucelén Moraes CARDOSO fios de sol de seus gritos de galo, para
que a manhã, desde uma teia ténue, se vá
A DECENTRALIZAÇÃO DO SUJEITO "CIPRIANO tecendo, entre todos os galos.
ALGOR" EM A CAVERNA, DE JOSÉ SARAMAGO 215
Karina Luiza de Freitas ASSUNÇÃO E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
O DISCURSO LITERÁRIO COMO DISCURSO se entretendendo para todos, no toldo
CONSTITUINTE 231 (a manhã) que plana livre de armação. A
Kelen RODRIGUES manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.
O AUTOR NA ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA:
APLICAÇÕES E IMPLICAÇÕES 243 Tecendo a Manhã
Lucas Martins Gama KHALIL João Cabral de Melo Neto

O SILÊNCIO EM VIDAS SECAS 257


Málter Dias RAMOS

VEREDAS POSSÍVEIS DOS ESTUDOS DISCURSIVOS


SOBRE A LITERATURA: AS VOZES DE MICHEL ecer... produzir fios que serão lançados e apanhados por outros
FOUCAULT E MIKHAIL BAKHTIN NOS CAMPOS DA que também os lançarão... E que com muitos outros se
AD E DA TEORIA LITERÁRIA 272
Marisa Martins GAMA-KHALIL
entrecruzem os fios-gritos de sol para que a manhã, desde uma
teia ténue, se vá tecendo entre todos e formando um tecido que se
O ACONTECIMENTO EPIFÂNICO NO CONTO eleva. Tomamos esses versos de João Cabral de Melo Neto como o
"GRANDE GEDEÃO", DE GUIMARÃES ROSA 298 que melhor caracteriza os trabalhos (fios - tecidos) reunidos neste
Thyago Madeira FRANÇA livro. Como canta o poema, são apenas manhãs os textos aqui
Ivi FURLONI reunidos, manhãs que pretendem o dia e o esperam plenas de sol.
meio do qual Austregésilo Carrano Bueno (Austry) constitui-se
LOUCURA: CONSTRUÇÃO como sujeito discursivo, contando suas passagens pêlos hospícios
de Curitiba e Rio de Janeiro. Em 1974, com dezessete anos, era tido
HISTÓRICA E DISCURSIVA como um jovem rebelde, usuário de maconha, embora não fosse
considerado um viciado. Em sua busca por emoções e por
Jaquelinne Alves FERNANDES liberdade, cometia rebeldias, como pichar muros, usar brincos e
jaquelinnefer@hotmail.com cabelos compridos, sendo sempre incompreendido pela família e,
principalmente, pelo pai. A falta de entendimento entre eles
Detesto tanto seguir como conduzir. conduz a uma completa ausência de diálogo, e o medo de perder o
Obedecer? Não! E governar, nunca! controle sobre o filho faz com que o pai se torne autoritário e
Aquele que não é terrível para si, não inacessível.
incute terror a ninguém, Numa dada situação, o pai de Austry encontrou uma
E só aquele que inspira terror pode "trouxinha de maconha" em sua jaqueta, o que foi suficiente para
comandar os outros. deflagrar toda a tragédia familiar que viveriam dali em diante.
Já detesto guiar-me a mim próprio! Estarrecido, a alternativa que o pai buscou para resolver tal
Gosto, como os animais das florestas e dos problema foi, sem nenhuma conversa prévia, internar o filho, à
mares, força, em um hospital psiquiátrico de sua cidade, para
De me perder durante um bom tempo,
desintoxicação. Inserido no hospício, convivendo com "loucos que
Acocorar-me, sonhando, em desertos
defecavam e urinavam por toda parte" (CARRANO, 2004, p. 27) e
encantadores,
De me chamar a mim mesmo, por fim, de
com enfermeiros "sádicos", "ameaçadores", Austry, um sujeito-
longe,
adolescente, vai sendo levado a inscrever-se na posição de louco,
E de me seduzir a mim mesmo. devido às condições a que está submetido no interior daquela
(Nietzsche) repartição.
Após o período de "tratamento", Austry havia se tornado
um sujeito abobalhado, sem vontade própria, incapaz de se
concentrar, com o organismo intoxicado por substâncias químicas
(remédios diversos). Havia efetivamente ocupado o lugar do louco,
constituindo-se identitariamente como um deles, uma vez que os
Neste texto, faremos, inicialmente, uma breve sujeitos são recrutados e produzidos, conforme Woodward (2007),
apresentação de O canto dos malditos, livro tomado como nosso não apenas no nível do consciente, mas também no nível do
corpus de análise; em seguida, apresentaremos os pressupostos inconsciente. Nesse sentido, suas vontades não são consideradas,
teóricos da Análise do Discurso em que nos fundamentaremos e é levado a inscrever-se em lugares que não gostaria de ocupar.
para o estudo proposto, e, então, procederemos à análise da Austry não assume a identidade de louco por vontade própria, sofre
loucura como objeto discursivo e a constituição identitária do um ato de tirania, não tendo sido examinado por médico algum,
louco na obra em epígrafe. nem mesmo no momento da internação.
O canto dos malditos é um relato autobiográfico por Quando saiu da clínica, Austry já não tinha condições de
conviver no meio social que o cercava. Foi levado, então, pela
família, de volta ao sanatório. Em termos discursivos, diríamos que
l Livro que deu origem ao filme Bicho de sete cabeças, que foi exibido entre isso ocorreu porque o sujeito-adolescente já ocupava um
fevereiro e abril de 2000, na cidade de São Paulo, apresentado em inúmeros fes-
tivais e recebeu importantes prémios.
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lugar na ordem discursiva do hospício e não conseguia mais o livro foi impedido de circular por dois anos.
conviver com os sujeitos ditos normais. Esse foi o percurso que o Tomando o relato de Austregésilo como corpus para análise,
levou a constituir-se como louco, inserindo-se nesta posição- buscaremos, com base em Foucault (2004), analisar o
sujeito. Foi internado em várias instituições psiquiátricas, sempre funcionamento das superfícies primeiros de emergência do objeto
tendo todos os seus direitos desrespeitados, até que, em uma loucura (a família e o grupo social próximo); as instâncias de
busca desesperada de livrar-se do sofrimento que lhe era imposto, delimitação desse objeto (especificamente a medicina); e as suas
tentou se matar, o que fez com que a família o retirasse, grades de especificação (a alma, o corpo, a vida e a história dos
definitivamente, do sanatório. indivíduos - de Austregésilo, no caso - e os jogos de correlações
O nome O canto dos malditos foi dado a esse relato por neuropsicológicas). Assim, propomo-nos a analisar alguns
haver, no interior do hospício, um local onde os loucos crónicos - enunciados, com o intuito de verificar a constituição discursiva do
aqueles que, supostamente, não mais sairiam da condição de objeto loucura e a construção identitária do sujeito-louco. Para
sujeito-louco - eram esquecidos. Interditados dentro da própria tanto, buscaremos analisar e fazer operacionalizar, no corpus em
instituição, os crónicos mantinham-se amontoados no "canto dos estudo, o conceito foucaultiano de "formação dos objetos"e, por
malditos"- um pequeno espaço no pátio do manicômio no qual se acreditamos, juntamente com Foucault (1995), que a partir dessa
agrupavam, brigando por tocos de cigarros, defecando e urinando, prática discursiva de constituição do objeto, há uma prática de
sem condições mínimas de higiene e valorização humana. objetivação do sujeito, propomo-nos, também, a verificar o efeito-
Comportavam-se como verdadeiros "lixos humanos" (BAUMAN, sujeito que dela emerge, observando as construções identitárias
2005, p. 47), coisifkados, amontoados como peças inúteis. Não que levam Austry a assumir a identidade de louco, no momento em
recebiam nenhum tipo de tratamento médico, a não ser as drogas que se torna um interno do manicômio, visto que, conforme
e calmantes que serviam para impedir que "dessem trabalho"aos Foucault (2003, p. 8), "as práticas sociais podem chegar a engendrar
enfermeiros e que se matassem brigando por pontas de cigarros. O domínios de saber que não somente fazem aparecer novos objetos,
"canto dos malditos" era o lugar do sofrimento, da dor e, sobretudo, novos conceitos, novas técnicas, mas também fazem nascer
da falta de atenção e do silêncio. Contudo, a nosso ver, esse formas totalmente novas de sujeitos".
espaço físico instaura discursividades. Nosso referencial teórico fundamentar-se-á, portanto,
O relato autobiográfico foi escrito anos após sua última nos estudos de Michel Foucault, mais especificamente em A
internação, com o objetivo de explicitar e denunciar a tragédia arqueologia do saber, e, no que concerne à constituição
vivenciada, a partir da qual se constituiu como sujeito-louco, identitária, ressaltaremos a pertinência, aos estudos em Análise do
sendo submetido aos maus tratamentos em diversas instituições Discurso, de teóricos da sociologia, mais especificamente de
representativas do sistema psiquiátrico brasileiro. A primeira versão Woodward (2007), com o objetivo de demonstrar que a inserção
dessa obra foi censurada, pois continha o nome de médicos do em uma dada posição-sujeito implica assumir uma dada identidade.
Sanatório Bom Retiro2, de Curitiba, no qual Austry foi internado pela A seguir, apresentaremos algumas das noções que sustentam
primeira vez. Um desses médicos, que era também o diretor do nossa hipótese e percurso de análise.
manicômio, entrou com um processo pedindo que o livro fosse
impedido de circular e ainda uma indenização por danos morais. A Formação Discursiva dos Objetos
Ganhou o processo em primeira instância, e, assim,
Nesta seção, centrar-nos-emos em um dos níveis de
2 O Hospital Espírita de Psiquiatria Bom Retiro foi proposto em 1920, contudo so- constituição da formação discursiva, a saber, o da formação dos
mente em 1945 ocorreu sua inauguração, no dia 31 de março. Em 1946 é dado início ao objetos. Para analisar essa formação, Foucault (2004) toma como
seu funcionamento, tendo como Diretor Clínico o Dr. Alo Guimarães - médico responsável exemplo a psicopatologia, a partir do século XIX, detendo-se em
pelo tratamento de Austry -, e como Diretor Administrativo o Dr. Abibe Isfer, perma-i u apenas dois dos signos que se apresentam nesse corte temporal:
vendo ninhos no cargo até o ano de 1981.
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o surgimento, no início do século, de um novo modo de exclusão e reagrupamos, classificamos, derivamos, uma das outras, as
inserção do louco no hospital psiquiátrico; e a "possibilidade de se diferentes loucuras como objeto do discurso psiquiátrico"
percorrer de volta a fieira de certas noções atuais, enquanto se (FOUCAULT, 2004, p. 47).
quisermos seguir mais acima o fio do tempo, perdemos logo as Entretanto, essa descrição apresentada é ainda insuficiente,
pistas, os fios se emaranham" (FOUCAULT, 2004, p. 45). segundo Foucault, para analisar a formação dos objetos, por dois
A partir disso, Foucault coloca as seguintes questões a motivos. O primeiro diz respeito ao fato de as instâncias de
respeito da formação dos objetos: "Pode-se submeter à regra a que delimitação ou as formas de especificação descritas não
seu aparecimento estava submetido? Segundo que sistema esses fornecerem objetos que o discurso da psicopatologia só teria de
objetos puderam se justapor e se suceder? Qual foi seu regime de relacionar, classificar e recobrir de uma trama de palavras e frases.
existência enquanto objetos de discurso?" (2004, p. 46). Assim, não são as famílias que determinam os loucos, não é a
Para responder a essas questões, o autor, tomando como jurisprudência que denuncia à medicina um delito paranóico, pois
exemplo a psicopatologia, propõe: o discurso é "inteiramente diferente do lugar que vem depositar e
a) destacar as características de sua emergência, se superpor objetos que teriam sido instaurados anteriormente"
mostrando onde os objetos discursivos - como por exemplo a (FOUCAULT, 2004, p. 48). O segundo motivo é o fato de a
loucura - podem surgir, para que possam ser designadas e enumeração feita anteriormente demarcar vários planos de
analisadas a partir de suas diferenças individuais, grau de diferenciação em que os objetos do discurso podem aparecer. Qual
racionalização, códigos conceituais e tipos de teoria, que a relação existente entre eles? Que conjunto é circunscrito dessa
atribuíram à categoria de doença, alienação, psicose ou neurose, maneira? Como falar de um sistema de formação a partir de
etc. De acordo com Foucault (2004, p. 46), essas "superfícies de determinações heterogéneas?
emergência não são as mesmas nas diferentes sociedades, nas Para responder a essas questões, delimita-se ainda mais o
diferentes épocas e nas diferentes formas de discurso". Para ele, é exemplo utilizado, pois, no domínio que a psicopatologia ocupou
provável que elas fossem constituídas pela família, pelo grupo no século XIX, vemos aparecer uma série de registros ligados à
social próximo, pelo ambiente de trabalho, pelo grupo religioso, delinquência, o que não se trata, contudo, da descoberta feita por
pela arte, pela sexualidade ou pela penalidade. São nesses campos de um psiquiatra, de uma semelhança entre a conduta criminosa e a
diferenciação e descontinuidade, afirma o autor, que o discurso patologia - e essa é uma revelação de certos sinais clássicos da
alienação em certos delinquentes. Não seria pertinente também
psiquiátrico encontra a possibilidade de limitar seu domínio, de
atribuir o aparecimento desses objetos a características da
definir seus dizeres, atribuindo-lhes sfafus de objeto.
sociedade burguesa do século XIX, pois os processos que ocorreram
b) descrever instâncias de delimitação, que o autor
nessa sociedade não puderam formar, por si mesmos, objetos para
considera que sejam: a medicina (que se tornou uma instância
o discurso psiquiátrico.
superior, que nomeia e instaura a loucura como objeto); a justiça
Se, em uma determinada época de nossa sociedade, a
penal (com suas definições: da irresponsabilidade, das conduta transgressora deu lugar a toda uma série de objetos de
circunstâncias atenuantes, e com o uso de noções como a de crime saber, é pelo fato de o discurso psiquiátrico ter dado lugar a um
passional, etc.); a autoridade religiosa (estabelecendo como conjunto de relações determinadas, que, "atuando no discurso
instância a separação entre o místico e o patológico, o espiritual do psiquiátrico, permitiram a formação de todo um conjunto de
corporal, etc.); a crítica literária e artística (que não trata a obra objetos diversos" (FOUCAULT, 2004, p. 49) - como os planos de
como um objeto que deve ser julgado, mas sim como uma especificação; as decisões de instância médica e as decisões de
linguagem que deve ser interpretada). instância psiquiátrica; a relação constituída entre o filtro
c) analisar as grades de especificação, que são os psiquiátrico e o filtro judiciário; a relação entre as normas
sistemas segundo os quais "separamos, opomos, associamos, familiares, sexuais e o quadro patológico; as relações entre a
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restrição no meio hospitalar e a restrição punitiva na prisão. Assim, ao contrário, busca-se fazê-lo surgir na complexidade que lhe é
própria, renunciando as coisas, despresentificando-as,
o discurso psiquiátrico, no século XIX, caracteriza-se não por substituindo o enigma das coisas anteriores ao discurso pela
objetos privilegiados, mas pela maneira pela qual forma seus formação regular dos objetos que apenas nele se determinam e se
objetos, de resto muito dispersos. Essa formação é assegurada delimitam. Definindo, assim, esses objetos sem referência ao fundo
por um conjunto de relações estabelecidas entre instâncias de das coisas, relacionando-os "ao conjunto de regras que permitem
emergência, de delimitação e de especificação. Diremos, pois, formá-los como objetos de um discurso e que constituem, assim,
que uma formação discursiva se define (pelo menos quanto a suas condições de aparecimento histórico" (FOUCAULT, 2004, p.
seus objetos) se puder estabelecer um conjunto semelhante, 53).
se se puder mostrar como qualquer objeto do discurso em Nesse tipo de análise, as palavras estão tão ausentes quanto
questão aí encontra seu lugar, e sua lei de aparecimento, se às coisas. O que se tem é um objeto que é constituído pelo
puder mostrar que ele pode dar origem, simultânea ou discurso, tal como podemos ouvi-lo ou podemos lê-lo sob a forma
sucessivamente, a objetos que se excluem, sem que ele de texto. O discurso não é uma estreita superfície de contato, ou
próprio tenha de se modificar. (FOUCAULT, 2004, p. 49-50) de confronto entre realidade e língua, uma vez que analisamos os
próprios discursos, dos quais emergem um conjunto de práticas e de
Para que apareça um objeto de discurso, as condições regras próprias, as quais definem o regime dos objetos. Sendo
históricas "para que dele se possa dizer alguma coisa e para que assim, o discurso são práticas que formam sistematicamente os
dele várias pessoas possam dizer coisas diferentes" (FOUCAULT, objetos de que falam, designando as coisas.
2004, p. 50) são numerosas e importantes, o que significa que "não
se pode falar de qualquer coisa em qualquer época, não é fácil Constituição Identitária
dizer alguma coisa nova, não basta abrir os olhos, prestar atenção,
ou tomar consciência para que novos objetos logo se iluminem" Pensaremos, neste momento, no conceito de identidade
(FOUCAULT, 2004, p. 50). Os objetos existem sob as condições apontado por Woodward (2007). A identidade é um conceito
positivas de um conjunto complexo de relações, as quais são complexo e que está em constante movência e deslocamento. A
estabelecidas no meio social e não estão presentes no objeto, mas constituição identitária se dá por práticas que produzem
sim no que lhe permite aparecer, justapondo-se a outros objetos, significado e envolvem relações de poder, "incluindo o poder para
situando-se em relação a eles, definindo suas diferenças, sua definir quem é incluído e quem é excluído" (WOODWARD, 2007, p
heterogeneidade, colocando-se em um campo de exterioridade. 17). Nesse sentido, a identidade é moldada pelo sistema
Estamos tratando aqui do que Foucauit denomina relação sociocultural no qual o sujeito se insere. Esse sistema também é
discursiva, que não é interna ao discurso, não se liga a conceitos responsável por impor uma ou outra identidade a cada sujeito.
ou a palavras, estão no limite do discurso, e não caracterizam a Atentemo-nos, ainda, para o fato de que não se deve negar
língua que o discurso usa, mas o discurso enquanto prática, pois que a identidade tenha um passado, mas é preciso "reconhecer
na tentativa de procurar a unidade do discurso nos próprios que, ao reivindicá-la, nós a reconstruímos e que, além disso, o
objetos, encontrou-se "um conjunto de regras que são imanentes a passado sofre constantes modificações" (WOODWARD, 2007, p. 28),
uma prática e a definem em sua especificidade" (FOUCAULT, 2004, dependendo do olhar que se lança sobre ele. Assim como a
p. 53). identidade não é fixa e o passado não é fixo, os significados
Nessa perspectiva, não se busca neutralizar o discurso; também não o são, de forma que há sempre uma nova perspectiva
acerca dosfatos, dos discursos e dos posicionamentos dos sujeitos.
Esses deslocamentos são reflexos das movências que ocorrem no
interior da sociedade, uma vez que "não têm um núcleo ou centro
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determinado que produza identidades fixas, mas, em vez disso, Louco: sujeito constituído enquanto objeto de discurso
uma pluralidade de centros" (WOODWARD, 2007, p. 29), que são
produtores de identidades cambiantes, plurais. Os sujeitos são A partir do pressuposto foucaultiano de que a loucura é um
posicionados - e também se posicionam - de acordo com os objeto constituído discursivamente, procederemos à análise da
"contextos" nos quais se inserem e interagem. obra O canto dos malditos para mostrar o funcionamento de tal
A identidade é um importante fator de mobilização política, pressuposto e mostrar também como a constituição desse objeto
pois, assim como os discursos são separados, selecionados e recai sobre uma objetivação de um sujeito como louco.
segregados no interior da sociedade, o mesmo ocorre com as
identidades, as quais serão responsáveis por indicar se um sujeito Fragmento 1
pertence a um grupo de favorecidos, de oprimidos ou até - Eletrochoque. Choque, meu irmão!
marginalizados. Contudo, há uma impossibilidade de se pensar - Já ouvi falar nesse troço, mas isso ai é pra louco...
essa separação a partir de uma divisão de classes, a divisão vai - E o que você acha que somos? Esse filho de uma cadela vive
muito além disso, discriminando, por exemplo, a razão da com a maquininha de eletrochoque na mão. Acho que ele até
desrazão: "A política de identidade tem a ver com o recrutamento dorme com ela.
de sujeitos por meio do processo de formação de identidades. - Mas eu não sou louco.
Esse processo se dá tanto pelo apelo às identidades hegemónicas -Tá aqui dentro! Pra todo mundo lá fora você não passa de um
quanto pela resistência dos 'novos movimentos sociais', ao colocar louco... Isso aqui é um hospício, cara. (p. 59-60)
em jogo identidades que não têm sido reconhecidas, que têm sido
mantidas 'fora da história' ou que têm ocupado espaços às O fragmento acima é parte de um diálogo entre Austry e
margens da sociedade" (WOODWARD, 2007, p. 40). Rogério, ambos internos do Sanatório Bom Retiro, em Curitiba.
Nessa perspectiva, a construção identitária se dá pela Austry, recém chegado ao manicômio, não se encontrava
marcação da diferença, que ocorre tanto por meio de sistemas submetido aos elementos dessa instituição, ou seja, ainda não
simbólicos, quanto por meio de formas de exclusão social. havia se constituído como louco, e nem tão pouco sido submetido
Portanto, a identidade depende da diferença para ser constituída, às práticas medicinais. Tinha, então, a esperança de que, após a
diferença que é estabelecida por sistemas classificatórios: "Um avaliação médica, conseguiria sair daquele lugar. Rogério, por
sistema classificatório aplica um princípio de diferença a uma outro lado, interno reincidente e no hospício há muito tempo,
população de uma forma tal que seja capaz de dividi-la (e a todas conhecia as práticas e os tratamentos aos quais estavam
as suas características) em ao menos dois grupos opostos - nós/ submetidos. Demonstra um saber sobre essa instituição, na qual os
eles; eu/ outro". (WOODWARD, 2007, p. 40). A diferença é o que sujeitos são tratados da maneira mais desumana que se possa
separa as identidades, diferenciando-as, estabelecendo uma imaginar, como, por exemplo, com eletrochoque, utilizado para
oposição entre "nós" e "eles". reativar a mente dos loucos, tentando "trazê-los de volta à
Pensando o descentramento das constituições identitárias, realidade".
ocupar uma posição-sujeito não é uma questão de livre escolha Podemos observar que, nos dizeres de Rogério, aparece
pessoal e consciente: "somos, na verdade, recrutados para aquela um saber sobre a maneira como a sociedade vê o hospício e o
posiçãoao reconhecê-la por meiode um sistema de representação. louco, e, também, sobre as regras de formação discursiva às quais
O investimento que dela fazemos é, igualmente, um elemento estão submetidos na repartição em que estão inseridos. Nesse
central desse processo. Os sujeitos são, também, recrutados e sentido, os dizeres de Rogério se inscrevem na formação discursiva
produzidos" (WOODWARD, 2007, p. 41), nos contextos sociais em do manicômio, onde convive com loucos e enfermeiros, constituindo
que se inserem. sua identidade a partir dessas relações.
152 153
A unidade dos discursos sobre a loucura não estaria fundada contexto, o do hospital psiquiátrico, e ali ele acaba se inserindo. É
na existência do objeto 'loucura', ou na constituição de um nesse campo de diferenciação e descontinuidade que o discurso
único horizonte de objetividade; seria esse o jogo das regras psiquiátrico encontra a possibilidade de limitar seu domínio, de
que tornam possível, durante um período dado o definir seus dizeres, atribuindo à loucura status de objeto
aparecimento dos objetos: objetos que são recortados por discursivo. Assim, a medicina, como instância delimitadora, se
medidas de discriminação e de repressão, objetos que se tornou uma instituição revestida de poder, que nomeia e instaura a
diferenciam na prática cotidiana, na jurisprudência, na
loucura como objeto.
casuística religiosa, no diagnóstico dos médicos, objetos que
A inserção de Austry na posição de sujeito louco será
se manifestam em descrições patológicas, objetos que são
assegurada por um conjunto de relações estabelecidas entre
instâncias de emergência, de delimitação e de especificação. Essa
limitados por códigos ou receitas de medicação, de tratamento,
posição discursiva se define e se constitui estabelecendo um
de cuidados (FOUCAULT, 2004, p.37).
conjunto semelhante de discursos (sujeitos loucos e enfermeiros)
que aí encontram seu lugar e sua lei de aparecimento, conforme
O espaço da instituição manicomial é limitado, é o
podemos evidenciar nos seguintes enunciados:"- Já ouvi falar
ambiente em que se dá a exclusão, a inserção e também a
nesse troço, mas isso ai é pra louco.../ - E o que você acha que
constituição do louco, uma vez que é o único contexto no qual seu
somos?".
discurso se insere. Nessa perspectiva, são as condições de
A inserção nessa posição-sujeito se dá por um embate e
produção que determinam o jogo das regras que tornam possível enfrentamento de discursos sucessivos, que se constituem e se
o aparecimento do objeto loucura, que é recortado por medidas de excluem, modificando-se acerca do mesmo objeto discursivo, no
discriminação e de repressão, diferenciando-se da prática caso em questão, a loucura. No excerto em análise isso aparece
cotidiana. Convém ressaltar que observamos nosso corpus, claramente nos discursos contraditórios de Austry e Rogério, uma
levando em consideração a constituição histórica do objeto vez que o segundo está inserido naquela posição discursiva e é
loucura, conforme proposto por Foucault (2004), contudo nos conhecedor das práticas discursivas sobre quem está ali inserido, e
atemos a observar a emergência discursiva desse objeto, no o primeiro refuta esses enunciados que não lhe são constitutivos.
diálogo entre Austry e Rogério. Assim, a loucura é um objeto que "Já ouvi falar nesse troço, mas isso aí é pra louco...";
se manifesta numa descrição patológica, sendo limitado por observando, ainda, esse enunciado, podemos perceber que os
códigos ou receitas de medicação, de tratamento, de cuidados. objetos constituem-se sob um conjunto complexo de relações, as
Austry e Rogério encontram-se submetidos àquelas condições de quais são estabelecidas no meio social e não estão presentes no
produção, conforme podemos apreender da afirmação de Rogério: objeto, mas sim no que lhe permite aparecer. Austry não se via
"Tá aqui dentro! Pra todo mundo lá fora você não passa de um como louco, apesar de deter algum saber sobre os tratamentos aos
louco... Isso aqui é um hospício, cara". quais os loucos eram submetidos, contudo todo o conhecimento
Rogério encontra-se inserido na ordem discursiva acerca da que tinha sobre a loucura não era constitutivo de si mesmo, não se
loucura, enquanto Austry, ainda não se inseriu no contexto do identificava com um louco, a loucura lhe era exterior, estava no
hospital psiquiátrico. Nessa perspectiva, tratamos de dois campo da exterioridade, distante, não lhe era constitutiva.
contextos inteiramente formados que se atravessam, constituindo Rogério, por sua vez, não busca neutralizar seu discurso; ao
uma nova posição-sujeito dos internos que ali se encontram, uma contrário disso, busca fazê-lo surgir na complexidade que lhe é
vez que não se identificam mais em espaço algum, situam-se em própria, mostrando a posição-sujeito na qual se insere. Contrapõe-
um entre-lugar, pois não se identificam com os loucos, mas também se ao discurso de Austry, que busca uma
não conseguem conviver com os "ditos normais". regularização/normalização do objeto loucura, que é constituído
Em O canto dos malditos, as superfícies primeiras da
inserção do discurso do sujeito enquanto louco são constituídas
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pela família, que levam o sujeito discursivo para aquele novo
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historicamente, determinando-se como exterior a ele. Assim, se não é ouvido, é interditado, impedido de se inserir nas práticas
delimita a emergência discursiva desse objeto histórico no discursivas dos sujeitos-normais.
fragmento em análise, ou seja, é na contradição dos discursos que "Você tá sonhando. O meu caso pra eles é o mesmo que o
lhe são constitutivos, relacionado ao conjunto de regras que seu..." Há nesse enunciado a representação de um sistema
permitem formá-lo como objeto de um discurso heterogéneo - simbólico, a partir do qual a identidade é construída de maneira
"Mas eu não sou louco./Pra todo mundo lá fora você não passa de relacional, uma vez que depende de algo exterior a ele, ou seja,
um louco..." -, constituído numa rede de formações discursivas. depende de aspectos sociais, de outras identidades, que, embora
Nessa perspectiva, é possível perceber, no fragmento em diferenciadas, oferecem condições para o sujeito estabelecer a sua
questão, o funcionamento do pressuposto foucaultiano de que a própria identidade. Essa diferença é sustentada pêlos processos de
loucura é um objeto que é constituído pêlos discursos, que, por exclusão, o sujeito, no hospício, não pode ser normal, é louco e "a
sua vez, se contradizem e se cruzam. Observamos, no recorte louco, ninguém dá ouvidos". O sujeito-louco tem sua identidade
analisado, a emergência de um conjunto de práticas discursivas marcada simbolicamente e constituída por meio da exclusão/
com regras próprias, as quais definem o regime do objeto loucura. interdição de seus discursos.
Sendo assim, os discursos dos sujeitos em questão formam, Conforme Foucault (2006), é a interdição que revela a ligação
sistematicamente, o objeto de que falam, designando-o. do discurso com o desejo e o poder, pois não se tem o direito de
Continuando a análise acerca da constituição do objeto dizer tudo, não se pode falar de tudo e em qualquer circunstância
loucura a partir de práticas discursivas, faz-se necessário e também não se pode dizer qualquer coisa. Nesse sentido, o
observarmos também o efeito-sujeito que emerge dessas práticas. discurso do louco é interditado - "Nós não temos nem esse
Observaremos a constituição desse sujeito-louco no excerto a direito..." - , pois sua voz não é ouvida, seus gritos e murmúrios são
seguir. silenciados, apagados, destituídos de valor. Então, a interdição
revela a ligação do discurso com o desejo e o poder. Além disso,
Fragmento 2 deve-se ressaltar que a interdição está sempre presente nos
- Você tá sonhando. O meu caso pra eles é o mesmo que o discursos que, por mais que aparentem ser "bem pouca coisa", as
seu, somos os dois viciados! Ninguém escuta você, você é um interdições que o atingem revelam sua ligação com o desejo e com
viciado e está enlouquecendo por falta de drogas. Isso é o que o poder, desvelando o lugar que cada sujeito tem o "direito" de
representa sua figura para eles e a sua família. Você tá doente, ocupar.
ficando louco e... a louco, ninguém dá ouvidos! Nós não No recorte em análise, podemos evidenciar que o louco é
temos nem esse direito. Se você se matar para que o ouçam, aquele cujo discurso é impedido de circular: suas palavras são
irão dizer que se matou porque tava louco... (p. 72) consideradas nulas, seus desejos são menosprezados. Há, então,
uma prática de subjetivação que se desvela a partir de um domínio
Este segundo fragmento recortado do corpus é uma de memória. Conforme Foucault (2004, p.64), domínio de memória
enunciação de Rogério, na qual, contrapõe-se a afirmativa de "trata-se dos enunciados que não são mais nem admitidos nem
Austry acerca das diferenças entre os dois sujeitos - "Mas o seu discutidos, que não definem mais, consequentemente, nem um
caso é outro, você é realmente viciado" (p.72) -, marcando corpo de verdades nem um domínio de validade, mas em relação
simbolicamente a identidade do louco, a qual é constitutiva de ao qual se estabelecem laços de filiação, génese, formação,
sua própria identidade. Percebe-se que essa marcação simbólica é continuidade e descontinuidade histórica".
um meio pelo qual se atribuem sentidos às práticas e relações Em seu discurso, Rogério revela saberes sociais acerca do
sociais, responsáveis por determinar a inserção ou exclusão de um sujeito-louco, retomando uma memória social, constituindo um
sujeito em uma dada "ordem do discurso". Nesse sentido, o louco é efeito-sujeito que, a partir de suas experiências no interior do
excluído das práticas sociais, não tem direito a voz, hospital psiquiátrico e das experiências anteriores a esse espaço,
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constitui sua subjetividade. em uma rede de formações discursivas, que se atravessam, se
Podemos mencionar também um dispositivo de poder, que cruzam, se deslocam. Nessa perspectiva a identidade não é fixa,
está no interior de um campo de historicidade, que insere o sujeito está sempre em movência, uma vez que emerge por meio de
em uma dada posição - no caso em questão, na posição do louco. embates e contradições. Nos excertos analisados, percebemos as
Ao ser interditado, o sujeito-louco é destituído de poder, seus vozes de dois sujeitos, que se contradizem, se opõem, pois
saberes sobre si mesmo não são considerados, subtraem dele as Rogério se identifica e detém um saber sobre as práticas discursivas
relações de força que se estabelecem enquanto saberes; há uma no hospital psiquiátrico; entretanto, Austry não se insere nesse
exclusão de seus dizeres e de corpos, que são amontoados em espaço e refuta os dizeres de Rogério acerca do que é ser louco.
manicômios, livrando, assim, a sociedade "normal" do mal estar de Assim, a construção identitária desses dois sujeitos é
seu convívio. simbolicamente marcada pelas práticas de subjetivação em que
Os procedimentos de exclusão são historicamente estão inseridos.
constituídos e carregados de poder, dispositivo que separa o que é Em nosso percurso de análise, tratamos também da
verdadeiro do que é falso. Essa separação se dá a partir de uma vontade de verdade como um princípio que se apoia sobre um
posição do sujeito. Portanto, a verdade é relativa a uma posição suporte - família - e uma distribuição institucional - manicômio -,
sujeito, e aquele discurso que fere o princípio norteador dessa exercendo sobre os outros discursos uma pressão, um poder de
verdade é excluído, por isso o louco não tem espaço no social, pois coerção. Tentamos, então, descrever e analisar as formas como a
seus discursos ferem os princípios que determinam a "verdade". Os verdade acerca da loucura é produzida no corpus em questão e as
enunciados de um sujeito, inscrito em um dado lugar social, são
formas de controle que emergem dessa produção. Pudemos
responsáveis por essa separação e, no estudo em questão, tomamos
constatar que o sujeito-louco é aquele que tem seu discurso
como responsáveis pela imposição de uma dada verdade - a de que
impedido de circular, aquele que é destituído de seus desejos,
um sujeito é ou não louco - a família e a instituição manicomial.
saberes e poderes.
Considerações Finais
Referências
Partimos do pressuposto foucaultiano de que os objetos,
BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.
dos quais tratam os dispositivos de saber e poder, são
historicamente construídos nas/pelas práticas discursivas para CARRANO, Austregésilo. O canto dos malditos. Rio de Janeiro: Rocco, 2004.
analisarmos os fragmentos recortados do corpus de estudo.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Layola, 2006.
Buscamos, então, verificar o funcionamento das superfícies
primeiras de emergência do objeto loucura, suas instâncias de FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense
delimitação e as suas grades de especificaçâo. Contudo, Universitária, 2004.
percebemos a impossibilidade de nos centrarmos em práticas FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU
discursivas sem verificarmos o efeito-sujeito que delas emerge. Editora. 2003.
Pensando nisso, fizemos a análise de dois fragmentos: no primeiro,
nos detivemos na constituição discursiva do objeto loucura. No FOUCAULT, Michel. O sujeito e poder. In: DREYFUS, Hubert; RABINOW, Paul.
segundo, verificamos a constituição identitária desse sujeito- Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da
louco, a qual se dá a partir de práticas de subjetivação, que são hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. 231-249.
estabelecidas por um domínio de memória. WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e
O sujeito discursivo constitui-se devido a sua inserção conceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e diferença: a perspectiva
dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes. 2007, p. 7-72.
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