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PARTE II

RESPONSABILIDADE ÉTICA E EFICÁCIA

Estamos dando início à segunda parte de nossa investigação. O que lerão na


seqüência é a sua introdução. Esta parte tem por objeto discursos diferentes dos examinados na
primeira parte. O critério, como já dissemos, para discriminá-los aqui, é o enunciador. Insistimos
que outros são cogitáveis: a natureza do que é dito, o auditório de enunciatários, a situação de
locução, etc. Mas este trabalho optou por estruturar suas três partes em função das
particularidades do enunciador dos discursos que se dispõe a pesquisar. Assim, na primeira parte,
a análise versou sobre discursos enunciados pelos próprios profissionais da mídia. Discursos
sobre seu fazer profissional. Nesta segunda parte, como já anunciado na introdução geral desta
tese, abordaremos os discursos — que também versam sobre o fazer do profissional da mídia —,
mas enunciados por agentes do campo acadêmico.

Até aqui observamos que o discurso moral do profissional da mídia sobre o


próprio trabalho põe em relevo a relação do que é dito com o real sobre o qual se diz.
Transparência e objetividade, para uns — indicando uma correspondência possível e exigível
entre real e relato; criação, para outros, denunciando o contrário, a falta de correspondência, dois
reais distintos, o anunciado e o anúncio. Nessa segunda parte, a análise proposta tem por objeto o
discurso de outros enunciadores: agentes do campo acadêmico. Enunciadores de outros
enunciados. Reflexões sobre o dever ser da mídia. Ditas deontológicas. Que não coincidem com
as analisadas na primeira parte.

Aqui, o critério de moralidade é outro. Não se trata mais de julgar a ação do


profissional pela eventual discrepância da sua mensagem em relação ao seu objeto. A referência
passa a ser o efeito. Aquilo que a mensagem faz advir no mundo que a recebe. No mundo sobre o
qual produz conseqüências. A operação que permite o juízo moral também muda. No discurso
dos profissionais qualquer discrepância entre o relato e o mundo relatado é indicativa de valor
moral negativo — em face de um imperativo de correspondência. Uma correspondência
esperada. Operação que se inverte para os publicitários. No discurso acadêmico, objeto desta
segunda parte, a atribuição de valor à conduta requer outra operação: a distância entre o efeito
esperado da mensagem — isto é, seus fins — e os efeitos efetivamente ensejados.

Eficácia, portanto. Critério maior da moral profissional da mídia, de acordo


com o olhar acadêmico. A produção midiática, para ser moralmente elogiável, deve acarretar
algumas conseqüências sociais específicas. Caso contrário, será condenável. No olhar

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acadêmico, a amplitude da discussão moral também se inverte em relação aos discursos
analisados na primeira parte.

De acordo com o discurso dos profissionais, o publicitário é cheio de moral,


seu campo de deliberação moral é muito mais amplo, graças à liberdade que tem para agir e
produzir, para criar, em suma. Criação potencialmente ilimitada. Francamente livre.
Possibilidade de fazer diferente. Condição maior de toda moralidade. Em contrapartida,
jornalistas e relações-públicas encontram-se agrilhoados, em face de um real que se espera
reproduzam, com neutralidade e imparcialidade. Falta-lhes a liberdade que sobra ao publicitário.

O discurso acadêmico, servindo-se de outro critério de moralidade e, portanto,


operando com outras variáveis para julgar, unge jornalistas e relações-públicas de uma ética
nobre, fundada em fins os mais auspiciosos para a vida em civilização. Os fins da ação
jornalística e do relações-públicas — relacionados ao bem comum, à informação, à
responsabilidade social, à democracia e ao civismo — são muito mais amplos do que os
esperados a partir da ação publicitária — relacionados ao consumo, à venda, ao lucro.

Essa inversão justifica o título das duas seções que esse texto introduz: de um
lado, a grande ética, para uma ação da qual depende o próprio espaço público, que é em grande
medida transformadora. De outro, uma pequena ética, de natureza privada e interessada, em
grande medida conservadora de uma distribuição injusta de todos os capitais.

Mas essa introdução, o leitor terá adivinhado, não se limita a apresentar suas
seções. Vamos falar de efeitos. De moral fundada neles. Nossa pretensão é oferecer subsídios
filosóficos que denunciem as origens e fundamentos dessa perspectiva. Esse discurso que
flagramos junto a professores e doutrinadores não é espontâneo. Tem âncora na filosofia moral.
Nos clássicos. Pretendemos aqui dialogar com eles. Sem nos servir dos comentadores
autorizados. Risco de quem está farto de pagar pedágio a certa doutrina consagrada e
compulsória. Se o momento é de libertação, peço licença para propor minha hexegese
livremente. Ao menos nessas introduções das partes. A meu ver, a principal contribuição deste
trabalho.

Como na introdução da primeira parte, o leitor tardará a encontrar os capítulos


propriamente relacionados com o objeto anunciado. Rogamos paciência. Reconhecemos a
desproporção. Menor nesta parte, é verdade. Estamos, todavia, convencidos de que essa análise
que proporemos dos clássicos será fundamental não só para nossos alunos, mas também para
todos aqueles que se interessam pelo tema. Interessados que, por enquanto, têm se mostrado
silentes e cautelosos. A filosofia moral que suporta esses discursos dos acadêmicos vem sendo
denominada conseqüencialista. Porque o valor moral da conduta não é encontrável nela mesma,
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mas nas conseqüências que acarreta. Dentre as propostas conseqüencialistas, a que mais oferece
reflexão de interesse para um hexegeta de discursos morais é o utilitarismo. Por isso, aqui vamos
nós. Arrancamos para 20 páginas de análise de autores ditos utilitaristas. Estou seguro de que
você, leitor, não se decepcionará.

Algumas reflexões de filosofia moral, propostas a partir do fim do século


XVIII, receberam a alcunha de utilitarismo. Essas reflexões ocupam lugar de destaque nas
filosofias morais contemporâneas mais importantes, de John Rawls, Amartya Sen, Bernard
Williams e Charles Taylor. Três autores são freqüentemente citados como estando na sua
origem: David Hume (1711–1776), Jeremy Bentham (1748–1832) e John Stuart Mill (1806–
1873). Este último já se serve desta apelação em Utilitarianism (1863) como título de uma de
suas importantes obras de sistematização.

A presença desses autores e de suas doutrinas neste trabalho se deve à


recorrente alusão de seus critérios no discurso moral contemporâneo do chamado senso comum.
Este último, observa Henry Sidgwick (1838–1900) em The methods of ethics, nem sempre é
utilitarista, mas reconhece que o princípio a ser aplicado em última instância é bem aquele da
utilidade. Mas a aludida presença se deve também, e sobretudo, à mesma recorrência nos
discursos dos profissionais que estamos analisando. Alusão que será explicitada proximamente.

Antecipamos, num primeiro momento, sua idéia central. Na seqüência


proponho inscrevê-la num singelo quadro histórico filosófico. Finalmente apresento e
desenvolvo seus principais argumentos, bem como as críticas mais repetidamente a ele
endereçadas. Eis o nosso plano para o utilitarismo.

Abordagem preliminar

Utilitarismo é termo derivado de útil. De utilidade. O que significa ser útil?


Identificar a utilidade de uma coisa é investigar fora dela, focar no resto, no outro, no que ela não
é. A utilidade de qualquer coisa nunca está nela própria. Em outros termos, o útil não
compreende em si mesmo sua própria norma e não pode se auto-instituir. Por isso, definir
qualquer objeto pela sua utilidade é defini-lo de fora, externamente. Se o leitor claudica na
compreensão, um exemplo pode ajudá-lo. Se nos perguntamos sobre a utilidade de um colírio,
respondemos que o mesmo é útil para limpar os olhos; a utilidade de uma aula, alargar o
repertório do aluno; a de um romance, entreter o leitor, conferir prestígio ao seu autor; a de uma
tese, permitir a intelecção do mundo, conferir um título de nobreza ao candidato. Ora, o olho em

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relação ao colírio, o repertório do aluno em relação à aula, o entretenimento do leitor em relação
ao romance, o título em relação à tese conservam algo em comum. A alteridade. A exterioridade.

Mas, então, em que medida esta exterioridade intrínseca ao conceito de


utilidade nos permite compreender a reflexão moral utilitarista? A resposta salta aos olhos
mesmo dos mais desavisados. A resposta utilitarista para a investigação moral sobre uma ação
não pode estar na própria ação. Naquilo que lhe é imanente. Em nenhum de seus aspectos
objetivos ou subjetivos. Nem na intenção do agente, nem na materialidade da conduta, no
deslocamento físico. Essa resposta sobre o acerto moral da ação reside em algum elemento outro.
Que lhe é externo. Em suma, na sua utilidade.

A definição de H. Sidgwick nos parece lapidar para essa primeira abordagem:


“Teoria ética segundo a qual a ação moralmente boa é a ação que promove o maior bem-estar
para o conjunto das pessoas”. Definição que compreende três proposições: primeiro, as ações são
julgadas certas ou erradas somente pela virtude de suas conseqüências. Nada mais importa.
Segundo, ao avaliar as conseqüências dessas ações, a única coisa que conta é a quantidade de
felicidade ou infelicidade que delas decorre. Todo o resto é irrelevante. Terceiro, a felicidade de
cada pessoa afetada pela ação, incluindo o próprio agente, tem o mesmo valor.

Essas assertivas introdutórias indicam um princípio moral fundamental. O


princípio da utilidade, proposto por Bentham: na deliberação entre condutas ou políticas sociais,
devemos optar pelas que acarretam melhores conseqüências para todos os envolvidos.

Por princípio de utilidade entende-se aquele princípio que aprova ou desaprova qualquer
ação, segundo a tendência a aumentar ou a diminuir a felicidade da pessoa cujo interesse
está em jogo, ou, a mesma coisa em outros termos, segundo a tendência que promove a
referida felicidade ou se opõe a esta.

J. S. Mill tem a mesma ambição fundadora. O princípio fundamental que


propõe é igualmente esclarecedor:

A convicção que aceita a utilidade ou o princípio da maior felicidade como o fundamento


da moral admite que as ações são corretas na proporção em que promovem a felicidade, e
erradas na medida em que produzem o contrário da felicidade.

Segundo esse princípio, a felicidade é o critério em função do qual podemos


afirmar que uma ação é moralmente correta (right), aceitável, elogiável ou incorreta (wrong).
Ser-lo-ão na medida em que constituírem meios adequados para esse fim. Assim, o utilitarismo
define a moralidade de um ato pela felicidade que dele advém. Idéias centrais que só ganharão
maior intelecção se confrontadas com outras, que lhes serviram de contexto.
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Herança histórica

A compreensão das reflexões ditas utilitaristas e de sua atualidade


argumentativa exige inscrevê-las no campo filosófico dos anos de sua emergência, como também
no contexto histórico mais geral daquele momento. Comecemos por este. O fim do século XVIII
e o século XIX caracterizaram-se pela consolidação do chamado Estado moderno. As revoluções
francesa e industrial, a queda do império napoleônico, as revoluções de 1848, o combate ao
sistema escravagista, a emergência da nova potência americana do além-mar e sua sangrenta
guerra civil são ocorrências históricas que guardam estreita relação com o surgimento,
repercussão e uso — legitimador de novas relações de poder — das propostas de filosofia moral
utilitaristas.

No que concerne à produção filosófica propriamente dita, a sistematização e


nomeação moderna do utilitarismo como corrente filosófica é tributária de algumas heranças
históricas que convém apontar. Reconhece-se com freqüência, nos bons tratados de história das
idéias ou da filosofia, o filósofo chinês Mo-tseu, rival de Confúcio — que viveu de 479 a.C. a
381 a.C. — como o primeiro filósofo utilitarista. Preocupava-se com ética e política. Defendia
alterações na vida política e nos hábitos de seus concidadãos.

Submetia as instituições e as ações políticas a um exame crítico a partir do


seguinte crivo: “Esta instituição, ou esta conduta, é vantajosa para o bem-estar global da
população?” (citado por Dirck Vorenkamp em “Another look at utilitarianism in Mo-Tzu's
thought”, no Journal of Chinese Philosopy, v. 19, 1992, p. 423-43). Se a resposta fosse positiva,
deveriam ser considerados bons. Se não, deveriam ser substituídos. Mo-tseu enfatizava que,
nesta análise, o critério deveria ser sempre o bem-estar de todos. Discriminava-se, assim,
daqueles que defendiam apenas o interesse de certos grupos, ou categorias.

Na origem grega da filosofia ocidental, Aristóteles (384–322 a.C.), na sua


Ethica Nicomachea (Ética a Nicômaco) elege a felicidade (eudaimonia) como bem supremo. O
bem em relação ao qual todos os demais são meramente instrumentais. A filosofia aristotélica é
teleológica, ou finalista. Dessa forma, tudo que é, é em função de um fim ou finalidade (thélos).
Não há ente sem finalidade que o singularize. A relação entre os entes e suas finalidades é para
Aristóteles uma relação de causalidade. A finalidade é causa do que é. Uma causa final. Dessa
forma, se nós, homens, somos, é porque há uma finalidade que nos dá causa.

Assim, ante a clássica reflexão grega sobre a vida que vale a pena ser vivida,
correlata ao próprio surgimento da filosofia moral, Aristóteles não abandonaria seu finalismo.

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Vivemos bem na medida em que agimos voltados para a finalidade que é a nossa. Para o thélos
que nos singulariza. Mister se faz descobri-lo. Descobrir o que já está posto. Dado que não nos é
facultado deliberar sobre o que nos dá causa. Mas como fazer? Onde estará a resposta sobre a
minha finalidade singular?

Tarefa difícil. Apetecível aos espíritos mais preparados. Dispomos de algumas


pistas: as finalidades estão em ordem (kósmos). Assim, a investigação sobre as finalidades das
coisas do mundo é indicativa da nossa. Por exclusão, por assim dizer. Nossa finalidade é
complementar de todas as outras. Como a última peça de um quebra-cabeça, na lição de Deleuze.
Pista desencorajadora. Fazem lembrar as das Minas do Rei Salomão. Recorramos a uma
segunda.

Somos, nós homens, entes singulares. Mas somos todos homens. O que aponta
para uma tangência no ser que deve corresponder a outra no thélos. Assim, podemos concluir
que nossas finalidades, além de serem singulares, devem ter algo em comum. Esse ponto de
tangência é, segundo Aristóteles, a eudaimonia. Todos os thélos de entes humanos devem
compreendê-la. Caso contrário, decorrem de uma apreciação equivocada. Assim, talvez não
saibamos com precisão qual o nosso thélos específico, causa do nosso ente. Mas sabemos que
deve compreender a eudaimonia, a felicidade.

Esse bem supremo só pode ser entendido, para o filósofo estagirita, à luz da
natureza política do homem. Isto é, em relação com outros homens. Fica, assim, descartada
qualquer reflexão estritamente individualista da eudaimonia aristotélica. Mais do que isso:
destaca o prazer como fundamento de qualquer reflexão eudaimônica, ainda que sem confundir
ambos os conceitos. Assim,

Admitimos comumente que o ato da visão é perfeito em qualquer momento de sua duração
— isto porque não precisa de nenhum complemento superveniente para conferir-lhe
acabamento formal. Ora, esta parece ser a natureza do prazer: este é, com efeito, um todo.
Não encontraríamos um prazer cuja prolongação no tempo conduzisse sua forma à
perfeição. [...] O prazer está entre essas coisas que são perfeitas de uma só vez.
(ARISTÓTELES, 1940).

Também a ética epicuriana pode ser apontada como uma origem remota do
pensamento filosófico utilitário. Epicuro (341–270 a. C.), em suas cartas, denuncia o prazer
como o bem em função do qual fazemos todas as coisas. O próprio Mill, no capítulo 2 do
Utilitarianism, reconhece a herança:

Aqueles que estão um pouco a par da questão sabem bem; de Epicuro a Bentham, todos os
autores que defenderam a doutrina da utilidade designaram por esta palavra, não alguma

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coisa que devesse ser oposta ao prazer, mas o próprio prazer e ao mesmo tempo a ausência
de dor.

Epicuro propõe, na Carta a Meneceu (parág. 127-8), uma classificação dos


desejos, reproduzida em Diógenes Laércio (Vida, 268), que sugere outra classificação
correspondente: a dos prazeres. Vamos encontrar essa mesma preocupação em discriminar bons
e maus prazeres na moral utilitarista moderna. Nessa Carta, Epicuro distingue os desejos vãos
dos naturais. Dentre os naturais, separa os que são simplesmente naturais dos necessários.
Dentre esses últimos, alguns são necessários à felicidade, outros à saúde do corpo e outros ainda
à vida. Há nessa classificação uma pretensão de justificativa moral das ações em função do tipo
de desejo que a enseja.

O cálculo epicurista dos prazeres e o conceito de vantajoso ou de útil que ele


compreende é inteiramente condicionado pela idéia de felicidade que engaja o todo da vida, ou a
vida considerada como um todo. Assim, as conseqüências das ações, a partir das quais
poderemos julgá-las moralmente, deverão ser entendidas no âmbito temporal mais amplo
possível.

Avançando em direção ao utilitarismo dito clássico, vamos encontrar no


Iluminismo autores que fazem apelo — mais ou menos explicitamente — ao bem-estar geral
como critério de moralidade. Dois desses autores, com preocupações muito distintas, merecem
destaque: Condorcet e Voltaire. O primeiro com o seu Sur l'admission des femmes au droit de
cité defende, já no fim do século XVIII, os direitos políticos das mulheres. Refuta no texto,
pacientemente, os argumentos contrários. Sustenta que sendo o bem comum de todos o critério
moral em razão do qual se pode definir uma responsabilidade política, é normal que todos
possam deliberar sobre as coisas da pólis.

Já Voltaire nos propõe que:

Ponha dois homens sobre a terra; eles só chamarão de bom, virtuoso e justo aquilo que for
bom para ambos. Ponha quatro: só haverá comportamento virtuoso naquilo que convier aos
quatro. E se um dos quatro comer a refeição de seu companheiro, será agredido. Morto.
Promoverá o levante dos demais. Isso que eu digo desses quatro homens, é preciso dizer de
todo o universo.

Eis um inventário pobre das origens do pensamento utilitarista. Para que não
creiam ter, essa doutrina, surgida na Inglaterra do século XVIII, como sustentam muitos
enganadores manualistas. A partir daqui, enfrentaremos o pensamento dos mais notoriamente

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associados a essa corrente de filosofia moral. Com seus pontos comuns, mas, para desespero do
comentador, com muitas discrepâncias.

Principais aspectos da doutrina

As reflexões filosóficas dos autores ditos utilitaristas são bastante discrepantes.


Agrupá-las sob a mesma alcunha implica concessões. Julgamos que o agrupamento é bem-vindo
do ponto de vista didático por apresentarem, a despeito dessas singularidades, pontos em comum
relevantes para a filosofia moral.

Em primeiro lugar, todos os autores citados propõem uma moral


conseqüencialista. Denomina-se assim toda reflexão que no lugar de valorar uma conduta
humana por ela mesma, usa como critério de valoração suas conseqüências, ou efeitos. Observe-
se que o utilitarismo não é a única filosofia moral conseqüencialista. O egoísmo moral e o
pragmatismo, por exemplo, também o são.

Em segundo lugar, as reflexões utilitaristas inscrevem-se numa moral finalista.


Sobre os primeiros degraus desse finalismo, já destacamos a herança aristotélica da doutrina em
tela. Assim, dentre as conseqüências ou efeitos da ação a ser deliberada ou valorada, servem
como critério aquelas que dizem respeito a uma suposta finalidade do agente. Assim, nossos
objetivos ou fins mais imediatos só se legitimam por outros, menos imediatos, só alcançáveis a
partir daqueles. Estabelece-se, assim, uma pirâmide ordenada de finalidades. Os fins supremos,
cuja legitimidade não é demonstrável, justificam em cascata todos os demais. Assim, como
observa Mill em Utilitarianism:

As questões relativas aos fins supremos não comportam prova direta. Para provar que uma
coisa é boa, é preciso necessariamente mostrar que esta coisa é o meio para alcançar uma
outra, cujo valor admitimos sem prova. Provamos que a arte médica é boa porque busca a
saúde. Mas será possível demonstrar que a saúde ela mesma é boa? A arte musical é boa
porque, entre outras razões, causa prazer. Mas que prova fornecer para demonstrar a
bondade do prazer? Desta forma, se fornecemos uma fórmula de ação ampla que
compreende todas as coisas boas por elas mesmas, e que todas as outras coisas só serão
boas como meios para estas e não como fins, esta fórmula pode ser aceita ou rejeitada, mas
não provada, no sentido ordinário do termo.

Assim, reza a boa tradição utilitarista que apresentamos singularidades. Mas o


fundamento da moral utilitarista está naquilo que nos une. Nos aspectos comuns da utilidade.
Naquele ponto de tangência eudaimônico sobre o qual discorremos em nosso resgate histórico. O
texto de W. Godwin (1756–1836) no seu clássico Enquiry concerning political justice and its
influence on modern morals and happiness, é indicativo dessa tendência.

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Os seres humanos têm infinitamente mais semelhanças entre eles que diferenças. [...] Só há
um estado ideal para o homem. Trata-se de uma qualidade das mais honrosas. Que
produzirá num espírito bem constituído e saudável a maior satisfação. Todo o resto é
desviação e erro. Uma doença que deve se curada e não encorajada. Este bem último e mais
desejável é, de um lado, o prazer sensual e de outro o prazer intelectual.

Em terceiro lugar, os autores utilitaristas apresentam todos, com ênfases


distintas, uma postura subversiva. Denunciam as instituições e as ações políticas de suas épocas.
Propõem, portanto, com maior ou menor força verdadeiras reformas sociais. Essa inclinação
utilitarista para a mudança é nítida neste inspirado trecho de Political writings, de Mary
Wollstonecraft (1759–1797).

Quem ousaria supor que há tanta felicidade sobre o globo quanto poderia haver? Que há
tanta virtude cívica que a razão poderia nutrir, se esta possuísse toda a força que poderia
possuir. Se déssemos à voz da natureza a possibilidade de se expressar claramente do fundo
do coração, e se os direitos naturais e inalienáveis dos seres humanos fossem reconhecidos
em toda a sua força; se o mérito autêntico, fruto da virtude, não fosse suplantado pelo
mérito falso, permitindo aos homens construir sua felicidade sobre a miséria de seus
semelhantes; se os homens se pautassem mais pela razão e menos pela opinião [...]

Que tipo de mudança defendiam os utilitaristas, como Godwin, Wollstonecraft,


Bentham, James Mill e seu filho John Stuart Mill? Propunham mudanças na moral em vigor.
Seus expoentes se preocuparam em resolver problemas morais em vez de simplesmente refletir
sobre eles. Empenharam-se em descobrir um novo procedimento de deliberação moral. Por isso,
esmeraram-se em encontrar um princípio único que fundasse toda a sua reflexão moral.
Retirando-a das divagações estéreis sobre os valores e aproximando-a das decisões políticas por
intermédio das quais a dor pudesse ser diminuída e o prazer aumentado. Nesse sentido, os
utilitaristas reaproximam, na modernidade, a filosofia moral da filosofia política, separadas
desde Aristóteles. A maximização da felicidade tinha para eles um sentido bem concreto. Isso
inspirou movimentos reformistas, muitos dos quais tiveram significativo êxito.

Dessa forma, foram propostas alterações em toda a organização da sociedade e


junto às instituições políticas. Wollstonecraft, depois de fazer a sua Defesa dos direitos do
homem, propôs uma Defesa dos direitos da mulher. Defendia a educação para todos, o acesso
irrestrito a todas as profissões e o direito de voto das mulheres. Godwin, filósofo engajado, cujos
romances tiveram grande sucesso, é considerado um dos pais do anarquismo. Em Enquiry
concerning political justice (1793), sustentava a extinção gradual do Estado, o Estado moderno
tal como o conhecemos ainda hoje, e da propriedade privada.

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Bentham não ficava devendo em engajamento a esses antecessores. Defendia,
por seu turno, de forma dispersa em toda a sua obra, a criação de uma organização internacional
que assegurasse a paz mundial, a emancipação das colônias, a criação de um tribunal
internacional regulador das disputas entre as nações, a criação de uma fraternidade dos Estados
europeus, o desarmamento, a melhora das condições de vida nas prisões, a limitação do uso da
pena de morte, a proibição das punições corporais nas escolas, programas de trabalhos públicos
em períodos de grande desemprego, prevenção de crueldades contra animais, políticas públicas
de saúde, com grandes investimentos em pesquisas científicas e a criação da caderneta de
poupança. Saliente-se que o ponto de tangência dos utilitaristas não está no detalhe de cada
proposição. Mas na preocupação genérica em mudar a sociedade em nome de um bem comum.

Na mesma linha de transformação, os chamados socialistas utópicos


elaboraram planos detalhados de sociedades futuras que correspondiam ao ideal do maior bem-
estar comum. Dentre eles citamos Henri de Saint-Simon, Charles Fourier, Victor Considérant,
Robert Owen e Étienne Cabet. Alguns desses chegaram a implantar concretamente as
instituições concebidas. Assim Robert Owen (1771–1858) abriu, com o apoio econômico de
Bentham, uma manufatura que hoje denominaríamos alternativa. Com limitação do trabalho
infantil e escola no próprio local.

Podemos supor as reais condições de trabalho da época considerando as


reivindicações de Owen durante a campanha de 1815 para modificar as leis que regulavam o
trabalho na indústria. Propunha proibir a contratação de crianças com menos de 10 anos e limitar
a duração da jornada de trabalho para crianças entre 10 e 18 anos a dez horas e meia. Propostas
vitoriosas naquele momento de luta. Observemos, no entanto, que o utilitarismo, embora
transformador, nunca se apresentou como uma proposta de transformação radical das estruturas
sociais. Eis o paradoxo. Todo utilitarista, ainda que inconformado, propunha grandes mudanças
nas já estabelecidas estruturas sociais. Eis um quarto traço comum: o reformismo moderado. Isto
é, a moderação.

Assim, em quarto lugar, a moderação parece unir as distintas correntes


utilitaristas. Mais do que converter o homem, o utilitarismo pretende expressá-lo no que tem de
melhor. Sem violentar tendências dominantes. Por isso se apresenta como um egoísmo ilustrado,
ao observar que, na maioria dos casos, o interesse próprio coincide com o interesse geral.

Em quinto lugar, as reflexões utilitaristas, como qualquer outra proposta


conseqüencialista, nos indicam que nenhuma ação tem valor moral por ela mesma. Não há,
portanto, valor imanente à ação. Que o exame da conduta em si é insuficiente para a deliberação
moral ou sua valoração a posteriori. Em suma, que uma mesma ação poderá merecer valores

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opostos se forem opostas as conseqüências por elas acarretadas. Por isso, dizemos que em toda
reflexão conseqüencialista, o valor moral da conduta é relativo ao efeito por ela produzido.

Daí a associação freqüente e pertinente entre o conseqüencialismo e o


relativismo. Ao afirmar que o valor moral da conduta é relativo ao efeito, estamos sentenciando,
a contrario sensu, que esse mesmo valor não pode ser entendido absolutamente. Ou, em
definitivo, que ele nunca é absoluto. Que depende de variáveis que transcendem à própria ação
para ser atribuído. Assistimos, assim, a um deslocamento do critério da moralidade. A uma
mudança nas variáveis da operação deliberativa.

Se numa moral do tipo platônica a deliberação pressupõe o contraste entre a


conduta imaginada e uma hipotética conduta virtuosa — definida num mundo ideal, toda
proposta conseqüencialista, e o utilitarismo não escapa, exige um outro contraste: entre as
conseqüências presumidas da ação, ou das ações cogitadas, e as conseqüências também ideais. A
boa utilidade. É essa comparação entre o que se presume advirá da conduta e o que idealmente
deve advir de qualquer conduta que permitirá a deliberação moral.

Para os pensadores utilitaristas, qual conseqüência, ou finalidade, poderá


justificar uma conduta qualquer? Que efeitos uma ação deverá acarretar para ser considerada
boa? Eis uma quinta semelhança entre os autores. A resposta, genericamente comum a esses
pensadores, é a felicidade do maior número. A melhor conduta é a que fizer advir maior
felicidade ao maior número de envolvidos ou afetados por ela. Entenda-se pelo maior número a
todos aqueles que tiverem sua trajetória afetiva direta ou indiretamente redirecionada por conta
da conduta, objeto de valoração.

Decorre do exposto que as reflexões morais utilitaristas, a despeito do uso


corriqueiro do termo, não são egoístas. Afinal, a felicidade — critério da valoração moral — não
é a do agente, ou só a do agente, mas a de todos os afetados. “O ideal utilitarista é a felicidade
geral e não a felicidade pessoal. Insisto nesse ponto porque sem ele não se faria uma idéia justa
da utilidade ou da felicidade considerada como a regra diretiva a conduta humana” (MILL, p.
56).

A utilidade é, assim, associada não apenas à conservação de si, ou da própria


potência (Espinosa), nem à busca de segurança pelo medo da morte violenta (Hobbes), mas ao
princípio de uma felicidade para todos, ou ao menos para o maior número. No processo
deliberativo, o agente deverá sopesar, dentre as condutas cogitadas, a que promoverá maior saldo
de felicidade coletiva. Cada afetado, e o próprio agente é um deles, deve ser considerado de
forma equivalente.

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Bentham propõe, assim, uma metáfora que se consagrou: a do termômetro
moral. Seu uso visa a mensuração do bem-estar comum. Seu funcionamento é baseado no
princípio da consideração igual dos interesses. Eis o sentido da sua célebre advertência, “Cada
um deve contar por um, e somente por um”. Isso significa que todos são respeitados e
considerados igualmente, pouco importando o sexo, a cor da pele, o país de origem, a nobreza
familiar, idade ou riqueza.

Dessa forma, a felicidade do agente é uma variável a ser considerada em meio


à felicidade de todos os demais afetados. Eis um ponto sensível desse utilitarismo de Bentham e
Mill. Afinal, no balanço das conseqüências da ação, quatro são as possibilidades: na primeira, a
ação enseja a felicidade do maior número e também do agente. Este caso não implica nenhuma
dificuldade de avaliação moral; na segunda, a ação enseja a tristeza do maior número e também
do agente. Também não há aqui maiores dificuldades.

Na terceira, a ação enseja a felicidade do agente, mas a tristeza do maior


número. Condenada pelos utilitaristas, mas aplaudida pelos egoístas morais. Na quarta, a ação
produz tristeza para seu agente e alegria para o maior número. Esse caso é o que mais nos
interessa. Revela com clareza a sutileza da moral utilitarista. Denuncia o grande equívoco do
entendimento comum de suas propostas. Uma proposta que condena seu agente a agir na
contramão de seus apetites. No caso de eles não coincidirem com o interesse da maioria. Eis o
ponto nevrálgico. Alvo dos ataques materialistas. Como poderíamos agir na contramão da
própria potência? Seria preciso que tivéssemos em nós uma soberania deliberativa em face das
orquestrações do corpo. Algo, portanto, que transcendesse à materialidade corporal e suas
inclinações. Hipótese que inscreve o utilitarismo junto a toda produção idealista.

E essa anulação do próprio desejo se faria em nome de uma suposta felicidade


do maior número. Uma felicidade apenas suposta, no caso de deliberação para agir. A tal
felicidade surge como critério no mínimo impreciso, talvez até enigmático, para atender às
necessidades dessa deliberação, ou mesmo de simples atribuição de valor às condutas humanas.
O que essa expressão queria dizer concretamente? Eis a raiz das divergências entre os autores
utilitaristas.

Pontos divergentes

As tentativas de conferir precisão a esse critério ultragenérico denunciam as


muitas vertentes que reivindicaram a alcunha utilitarista. Distinguimos três grandes fases de
soluções filosóficas para o problema em tela. A primeira corresponde ao utilitarismo que

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poderíamos denominar clássico, na falta de termo mais heurístico. Para os autores aqui
perfilados, Bentham, Mill e Sidwick, o critério da felicidade só poderia ganhar alguma precisão
pelo viés do hedonismo. Isto é, felicidade é prazer. Ou ausência de dor. Uma palavra sobre o
hedonismo parece recomendável. No fechamento desses parênteses, prometo advertir, com
algum estardalhaço, o leitor que tenha se deixado embalar. Afinal, é do utilitarismo que estamos
falando.

Definiu-se prazer como estado afetivo agradável. Decorrente da satisfação de


um desejo ou de uma inclinação do corpo. Do exercício harmonioso de uma atividade. E como a
existência é sempre ativa — porque nunca deixamos de agir —, também o prazer potencialmente
pode sê-lo. A preocupação com o prazer remonta aos clássicos. Já destacamos que na Ética a
Nicômaco o prazer é apresentado como intimamente associado à natureza humana. Que sendo a
razão e o desejo os dois atributos pelos quais definimos o que nos é natural, o homem persegue o
prazer e o inclui na trama da felicidade. Que não existem pessoas indiferentes em face do prazer.
Porque essa indiferença não é humana. Mas antes ainda das lições de Aristóteles, Platão põe nas
palavras de Calicles — sofista que dialoga com Sócrates no diálogo Górgias, o primeiro
programa hedonista da filosofia ocidental.

O que é por natureza bonito e justo é o que, com toda sinceridade, vou dizer-te: aquele que
quiser viver bem deve deixar que seus desejos alcancem a maior intensidade. Não reprimi-
los. Mas esforçar-se com inteligência para satisfazê-los e saciá-los, por maiores que sejam.
O problema é que, como isso não está ao alcance da maioria, surgem as censuras daqueles
que por vergonha desejam ocultar sua própria impotência e afirmam que a intemperança é
vergonhosa, enaltecendo a moderação e a justiça por sua falta de hombridade. Porque para
aqueles que nasceram filhos de reis, ou têm a possibilidade de alcançar uma magistratura,
tirania ou domínio, poderá haver algo mais vergonhoso do que a moderação e a justiça?
Aqueles que podem desfrutar de suas vantagens sem que ninguém os impeça, porque
haveriam de obedecer à lei e à razão e à censura da maioria dos homens? [...] Assim, a
verdade é que a boa vida, a intemperança e a libertinagem, quando podem ser realizadas
impunemente, constituem a virtude e a felicidade. Todo o resto, todas essas convenções
humanas contrárias à natureza são coisas sem valor algum.

Como se percebe ao longo da leitura dessa consagrada passagem, o hedonismo


nasce combativo. Seu primeiro manifesto denuncia a impotência dos que não o aceitam. Essa
postura belicosa, como vimos, conservou-se até o utilitarismo. Mas combativo em face de quem?
Quando Aristóteles admite que a razão e o desejo são os dois atributos pelos quais se reconhece a
natureza humana, acrescenta que esses nem sempre estão de acordo. Aponta para “essa guerra
interior da razão contra as paixões”, como propõe Pascal. De acordo com seus Pensamentos,
aqueles que quiseram viver em paz formaram duas escolas. Uns quiseram renunciar às paixões e
ser como deuses. Outros preferiram renunciar à razão e viver como bestas. Sem que nem os
primeiros nem os segundos tenham logrado seu intento.

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Abro parênteses nesse instante, porque o desabafo de Calicles faz pensar no
filme A sociedade dos poetas mortos. O hedonismo é seu pano de fundo. A trama se desenrola
num colégio americano de grande prestígio. A política docente de Keating, carismático
professor, e seus efeitos pedagógicos constituem o eixo central da obra. O efeito desejado é
ensinar literatura ensejando afetos distintos dos outros cursos: de monotonia e enfado. Viver com
intensidade, viver o instante, parece ser o recado que acompanha as aulas. Resgatar o velho
Carpe Diem de Horácio. “Aproveitem o momento, rapazes — recomenda Keating com
entusiasmo —, lutem para que vossa vida seja extraordinária, para que ninguém alcance a morte
e descubra não ter vivido.”

O efeito sobre os alunos é impactante. Difícil não lembrar de Zaratustra. O


contraste com as outras aulas no colégio reforça a singularidade da proposta em questão. Mas,
nessa interação vigorosa, um dos alunos se suicida. Coibido pelos pais a lançar-se em atividades
voltadas à literatura e ao teatro, decide abreviar a existência. Afinal, se o constrangimento
imposto pela autoridade paterna era indiscutível, a vida que o mesmo determinava não valeria a
pena ser vivida. O desenlace gerou polêmica entre receptores e na agenda de discussões
determinada pelo filme. Os discursos, mais ou menos autorizados, de pedagogos, críticos,
psicólogos sobre a trama denunciaram uma dupla causa para a ocorrência nefasta: o pai
autoritário e o professor irresponsável. Afinal, crítica número um ao hedonismo, viver o instante
não significa absolutizá-lo. Fim de parênteses. Retomo a reflexão.

O que prescreve, portanto, o princípio supremo da moralidade utilitarista é


maximizar o prazer e minimizar a dor de todos os afetados por nossas ações. A deliberação
moral assume, assim, a forma de um cálculo hedonista. Tarefa trabalhosa para quem não tira
nunca férias da existência prática. Em primeiro lugar, é preciso delimitar o universo de afetados.
Na seqüência, antecipar os efeitos prazerosos e dolorosos de todas as condutas aventadas.
Perguntamo-nos se essas iniciativas permitem identificar a boa conduta, a melhor conduta ou a
menos nociva. Resta a dificuldade de aferir e comparar esses efeitos.

Neste ponto discrepam os utilitaristas clássicos, ou hedonistas. Para Bentham


esse cálculo só é possível se desconsideradas todas as singularidades qualitativas dos prazeres.
Pela adoção, portanto, de critérios puramente quantitativos: intensidade, duração, certeza,
proximidade, fecundidade, pureza e extensão. Só assim seria possível compará-los. Identificar a
conseqüência mais prazerosa ou a menos dolorosa, sempre considerando com equidade todos os
afetados, para identificar de uma vez a conduta que lhe daria causa, solucionando, assim, a
deliberação moral.

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Nessa verdadeira aritmética dos prazeres proposta por Bentham, é preciso que
essas sensações presumidas, decorrentes das ações cogitadas pelo agente em deliberação, sejam
somáveis, isto é, sejam pertencentes à mesma espécie. Isso permitiria o uso de uma unidade
mensurativa, de um padrão quantificador. Inversamente, a consideração de prazeres radicalmente
singulares — interpretações do corpo aos efeitos produzidos por outros corpos em encontros
também radicalmente singulares, numa trajetória existencial que nunca se repete — ou mesmo
de prazeres de espécies diferentes tornaria toda comparação absurda, inviabilizando, assim, o
processo deliberativo.

Já para Mill, os prazeres apresentam diferenças qualitativas que devem ser


levadas em conta no cálculo utilitarista. Propõe uma categorização dos prazeres: aqueles
derivados do exercício de nossas faculdades intelectuais ou estéticas são superiores, mais
valiosos e distintos dos prazeres inferiores, que compartilhamos com os demais animais. Mill
recusa, portanto, reduzir o bem-estar ao prazer quantitativo e introduz a idéia de prazeres mais
elevados (more valuable) que outros. “Se na avaliação de todas as outras coisas, consideramos
tanto a qualidade quanto a quantidade, seria absurdo admitir que na estimação dos prazeres
levássemos em conta tão somente a quantidade” (MILL, p. 51).

Essa superioridade de certos prazeres sobre outros decorre de serem aqueles


mais estáveis, mais seguros, menos custosos, etc. Concluímos que, para Mill, essa superioridade
advém mais de vantagens que lhes são extrínsecas do que de suas próprias essências. Em outras
palavras, não é propriamente em razão dos atributos dessa ou daquela sensação ou estado mental
que os prazeres podem ser considerados superiores a outros. Mas em função das condições
materiais de acesso aos mesmos.

Interpretamos que, para Mill, os prazeres que decorrem do uso das faculdades
intelectivas são mais garantidos, menos inesperados, menos dependentes de variáveis que não
controlamos. Dessa forma, não é o que sentimos que é superior. Essa superioridade advém da
maior certeza que temos de antecipar esse tipo de sensação a partir da antecipação de certos
encontros com o mundo que demandam o uso dessas faculdades.

Essa distinção entre prazeres superiores e inferiores só se justifica por incidir


no processo de deliberação moral. Dessa forma, as ações que ensejam efeitos de prazer superior
são moralmente mais valiosas do que aquelas que ensejam prazeres inferiores, encontráveis em
toda a animalidade. Mas que essas últimas ainda são preferíveis a outras, que ensejam dor.

Na seqüência desse utilitarismo clássico de viés hedonista, uma segunda fase se


inaugura com os Principia Ethica de G. R. Moore, em 1903. Porque nomear é fazer existir e ser
nomeado é ser aceito num jogo de posições cujos sentido e valor são sempre reflexivos, uns em
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relação aos outros. As reflexões de Moore também recebem uma marca: utilitarismo ideal.
Incorpora-se como coadjuvante nesta corrente H. Rashdall.

A doutrina Moore apresenta, em relação ao já exposto, duas rupturas: em


primeiro lugar, frente ao hedonismo, defende que o prazer não é a única experiência humana de
valor. Também são valiosos o conhecimento, a experiência estética e os relacionamentos entre as
pessoas, independentemente do prazer que produzam. Donde se conclui que o prazer deixa de ser
entendido como o único ingrediente da felicidade. Em segundo lugar, sustenta que a conduta
moral não se reduz à promoção da felicidade humana. Isto é, que esta última deixa de ser critério
último de utilidade da ação a ser valorada. Deixa também de ser critério único de deliberação
moral. Para Moore nem tudo que é valioso nos faz feliz.

Pode-se ver na obra de Moore o resultado do que havia tentado Mill a fim de
escapar ao simplismo da aritmética dos prazeres de Bentham. Mas Moore não estava seguro de
que Mill tenha conseguido tornar coerente sua classificação qualitativa dos prazeres com seu
engajamento oficial em favor da maximização como critério moral. Assim, Moore rejeita o
hedonismo e pretende que o valor do prazer dependa do que o causa. Afirma que existe uma
variedade irredutível nos gêneros de conseqüências, todos dotados de um valor intrínseco. Dessa
forma, ainda que uma ação boa seja aquela que maximiza esse valor intrínseco, não existe
nenhum princípio único que permita categorizar esses valores. O que impede todo cálculo,
mesmo em tese, de qual linha de conduta deve ou não maximizá-lo.

Fiel ao conseqüencialismo, sustenta que temos de conhecer o valor das


conseqüências de todas as linhas de conduta que se oferecem a nós para identificarmos a boa, a
melhor. Acrescenta que nos é impossível obter tal conhecimento do futuro. Encontramo-nos
impossibilitados de identificar as boas ou más ações. “Não temos jamais razão para supor que
uma ação constitua nosso dever” (MOORE, 1903, p. 199). Acusação cética que não gera
paralisia moral definitiva.

Para Moore, sempre dispomos, graças a uma experiência de moralidade


convencional, de uma hipótese sobre o que é justo ou não. Dispomos, em suma, de certo saber
prático, incorporado ao longo de certa trajetória no mundo social que freqüentamos. Saber
prático que nos permite antecipar o que é ou não dizível, factível, realizável sem a necessidade
de um cálculo estratégico custo x benefício consciente e racional. Em geral, essa experiência nos
assegura que o respeito às regras morais é vantajoso, pelo menos a curto prazo. Afinal, essa
adesão às regras é “indispensável para que se realize em grau considerável a existência de tudo o
que pode ser considerado bom em si” (MOORE, 1903, p. 207).

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Moore apresenta-se, assim, como um defensor da moralidade do senso comum.
Faz da socialização moral mais cotidiana o centro de sua reflexão sobre o dever ser. Seu
ceticismo em relação à impossibilidade de identificar as ocorrências do futuro e seus valores
dirige suas reflexões para como as pessoas efetivamente deliberam apesar das escassas
referências para isso. Sugere que somos dotados de uma intuição que nos faculta elaborar
julgamentos a propósito do valor das conseqüências das ações.

Essa preocupação de Moore com a socialização, inédita entre os utilitaristas,


nos remete a algumas ponderações. O pertencimento a certo universo social implica o
reconhecimento implícito de certas regras, de certos agentes e de certos troféus, em torno dos
quais o jogo social próprio àquele universo se desenvolve. O valor desse troféu é implícito aos
jogadores do jogo, constituindo-se, assim, em condição de pertencimento. Chamamos de illusio a
essa obviedade do valor do troféu aos olhos de quem luta por ele. Ora, isso que é vivido como
evidência na illusio parece ilusório para quem não participa dessa evidência, porque não
participa do jogo, não pertence ao universo de agentes que joga.

Os saberes procuram identificar essa influência que os jogos sociais exercem


sobre os agentes em socialização. Admitamos que o pertencimento — ou a eventual defecção —
não decorre de simples decisão de consciência. Os agentes bem ajustados ao jogo são possuídos
por ele. Tanto mais possuídos quanto melhor o compreendem. Estar possuído pelo jogo é ser
dotado daquilo que podemos chamar de sentido do jogo. Posicionamo-nos — não sabemos bem
por quê — lá aonde a bola vai cair. Antecipamos a jogada. Encontramo-nos com o capital
específico no momento justo. Sabemos antecipadamente por onde vai passar.

Ora, como reduzir essa relação prática entre agentes e espaços de ação à visão
utilitarista — e a illusio ao interesse utilitário? Ora, o utilitarismo toma os agentes como movidos
por ações conscientes. Como se cogitassem sobre os objetivos de sua ação e agissem de maneira
a obter o máximo de eficácia com o menor custo. Ora, a essa redução ao cálculo consciente,
oponho a cumplicidade ontológica entre o habitus e as estruturas objetivas do universo social a
que pertencem. Entre os agentes do campo e o mundo social há uma cumplicidade que escapa a
cálculos conscientes. Uma cumplicidade que denominaremos infraconsciente. Que não se
objetiva em discursos. Os agentes sociais que têm o sentido do jogo, que incorporam uma cadeia
de esquemas práticos de percepção e de apreciação que funcionam como princípios de visão e de
di-visão do mundo, não colocam como fins os objetivos de suas práticas.

Dessa maneira, a intuição a que se refere Moore se aproxima bastante dessas


antecipações, induções práticas fundadas na experiência anterior. Prerrogativas que não são
atribuídas a um sujeito puro, a uma consciência transcendental universal. Pelo contrário. Forjam-

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se na socialização. Numa certa intersubjetividade. Entre pessoas de carne e osso. Que se afetam.
Que ensejam, por isso, o tal sentido do jogo. O jogo na pele. A percepção do futuro do jogo dada
pelo senso histórico do jogo. O mau jogador está fora do tempo. Como na primeira aula de
aeróbica. Enquanto que o bom jogador tem incorporadas as tendências dos deslocamentos do
mundo jogado.

As críticas ao intuicionismo de Moore marcam o surgimento de uma terceira


fase do utilitarismo, que podemos batizar de utilitarismo de preferência. Pode-se descrever o
bem-estar, seguindo Bentham, como sendo o estado mental que experimentamos por ocasião da
satisfação de determinadas escolhas e que nos leva a buscar determinados objetos. Em face dessa
definição da utilidade como estado mental, Nozick (Anarchy, State and Utopia, 1974, p. 42-5)
apresenta a seguinte crítica: se uma máquina nos possibilitasse passar o resto da vida inertes
sentindo ininterruptamente os estados mais agradáveis que nos fosse possível imaginar, não seria
essa a existência ideal aos olhos de um utilitarismo hedonista? Afinal, nossa ação só afetaria a
nós mesmos. E estaríamos obtendo o máximo de felicidade, porque afetados pelo máximo de
prazer.

Por recusar o prazer como critério último de moralidade, o utilitarismo


contemporâneo, sobretudo por meio das reflexões de J. Harsanyi e Paul Singer (Ética prática),
na contramão de Bentham e Mill, definem a utilidade menos pelo estado mental desencadeado
pela ação e mais pela satisfação de certas preferências, que se supõe correspondam ao bem-estar
do indivíduo.

Outro ponto que opõe autores utilitaristas é o objeto último da reflexão moral.
Assim, o modelo conseqüencialista da justificação deverá ser aplicado a toda ação singularmente
considerada ou às normas que as regulam. Enquanto os partidários do utilitarismo de atos
sustentam que só o cálculo das conseqüências totais de cada ação a ser efetivamente deliberada
permitirá identificar da sua correção, os que defendem o utilitarismo de regras advogam que a
ação correta será sempre aquela que respeita a norma cuja observância generalizada produz
conseqüências melhores do que a observância generalizada de qualquer outra norma aplicável ao
caso.

Sendo a norma uma generalização de experiências anteriores, com as quais a


nova situação apresenta alguma analogia, podem-se prover — não calcular diretamente — as
conseqüências de um ato possível. Com este fim, devem-se tomar em consideração os resultados
anteriores da aplicação da norma numa situação análoga precedente, assim como os fatores
peculiares da nova situação. Isso significa que, ao determinar os efeitos de um ato possível e ao

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estabelecer assim o que se deve fazer, não se pode prescindir da norma que se julga mais
adequada.

As limitações e dificuldades do utilitarismo do ato levaram filósofos morais


contemporâneos, como R. Nozick e M. Novak, a aceitar a importância da norma. Devemos,
assim, agir de acordo com a norma cuja aplicação garanta o maior bem para o maior número, no
sentido deste ou daquele universo ou campo social, de comunidade ou da sociedade inteira. A
existência de uma norma dispensa o cálculo casuísta. A boa ação para exigir a escolha da norma
cuja aplicação acarrete as melhores conseqüências para o maior número.

Mas novas dificuldades aparecem. Comecemos pela dificuldade de adequação


entre o máximo bem e o maior número. Porque nem sempre o que beneficia o maior número de
pessoas pode ser facilmente entendido como o maior bem possivelmente acarretado pela ação.
Na hipótese de cogitarmos sobre a aplicação de duas normas ao mesmo caso concreto, a
aplicação da primeira acarretaria um bem maior do que a da segunda. Entretanto, o número de
pessoas beneficiadas seria inferior. Aqui, o maior bem para um número inferior de pessoas se
contrapõe ao menor bem para um maior número.

O leitor, cuja existência sempre suponho, ao escrever uma tese, clama por um
exemplo. Há uma demanda social inequívoca por notícias. A produção destas últimas obedece a
rigorosos critérios de noticiabilidade. Esses, por sua vez, são identificados em sofisticadas
sondagens. Sobre o que o leitor quer ler. Assim, a notícia é o relato de um mundo que se supõe
deseja ser conhecido. Logo, se as notícias privilegiam condutas humanas ilícitas, escatológicas e
canalhas, supomos que seja essa a tendência de demanda de seus consumidores. Essas notícias,
portanto, atendem ao maior número. Ensejam a sua felicidade.

Ora, imaginemos a situação de um repórter. Em plena produção da notícia,


depara-se com meros indícios de uma conduta aviltante. Como o patrocínio de orgias infantis por
donos de escola. Eis o dilema: oferecer como notícia aquilo que é mero indício e ensejar o
gáudio dos ávidos pelo grotesco. Ou cautelosamente esperar que os concorrentes o façam?
Lembra-se das aulas de ética? O utilitarismo sempre foi seu forte. Agir de maneira a ensejar a
felicidade do maior número. Afinal, a eventual tristeza dos donos da escola estará para sempre
justificada nos critérios massivos de qualquer ação pelos meios.

Para pôr fim a esta introdução sobre o utilitarismo, pano de fundo sobre
qualquer incursão sobre os efeitos como critério de moralidade, propomos duas questões —
centrais no discurso do desenvolvimento sustentável — que encontram suas raízes no mais
clássico pensamento utilitarista e recorrentes nos discursos dos responsáveis pela comunicação

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das empresas: a consideração dos animais e das gerações futuras no cálculo deliberativo da
conduta moral.

Os animais e o bem comum

Na identificação da melhor conseqüência, condição de identificação da melhor


conduta que lhe dá causa, devemos ou não incluir o bem-estar dos animais? Os utilitaristas,
desde os clássicos até os contemporâneos, defendem que sim. Isto é, que devemos, em toda
deliberação moral em que animais forem afetados pelas ações humanas, que sejam levados em
consideração seus prazeres e sofrimentos. Solução coincidente com certo senso comum. Afinal,
quanto mais um animal nos parece capaz de experimentar prazeres e sofrimentos, mais
importância lhes acordamos em nossas considerações morais. Assim, nesse senso comum a
morte do cão e da barata não se equivalem.

Em famoso trecho da Introduction to the principles of morals and legislation,


Bentham defende os animais e associa nossa atitude em relação a eles a outras formas de
discriminação.

Os animais [...] são relegados à classe das coisas [...]. Haverá uma razão pela qual
deveríamos tolerar que os façamos sofrer? Não que eu saiba. Haverá razões pelas quais não
deveríamos tolerar que sofram? Sim, muitas. A uma certa época, e lamento acreditar que
em muitos lugar ainda é assim, a lei colocava uma grande parte da humanidade, que
denominávamos escravos, exatamente no mesmo plano que colocamos as raças inferiores e
animais hoje na Inglaterra. Virá o dia, talvez, em que o resto da criação animal poderá
adquirir seus direitos, dos quais eles jamais poderiam ter sido privados se a tirania não
existisse.

O fato de estarem de acordo sobre considerar o animal nas deliberações morais


não significa que concordem sobre a importância ou o peso que esses afetos não humanos devem
ter nas nossas ponderações. R. Nozick, em Anarchy, state and utopia, pergunta: “Existem limites
ao que podemos fazer aos animais? Os animais têm puramente o status moral de objetos?” É a
Bentham que ele se remete. Ao Bentham que citamos, incapaz de ver uma razão sequer que nos
autorizasse a atormentar os animais. Que sustentava que a questão não é se os animais podem
raciocinar ou se podem falar, e sim se podem sofrer. Nozick não quer ser mal-entendido. Não
gostaria que pensassem que segundo ele deve-se dar o mesmo valor moral aos animais que às
pessoas. Seu escopo é o de discutir a questão da diferença entre homens e animais. De delimitar
o mapa dos direitos destes últimos. Propõe reflexão sobre a caça. Pergunta-se se é justo perseguir
e matar animais por puro divertimento. E se comer animais não for necessário ao homem? Nesse
caso, o prazer de comer animais estaria “nos prazeres do paladar, nas delícias do gosto, na
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variedade dos sabores”. Ora, “esses prazeres [...] superam no querer o valor moral que se deve
dar à vida e aos sofrimentos dos animais?

Gerações futuras e o bem comum

Na deliberação moral, no cálculo do maior bem-estar, devemos considerar


apenas as pessoas que já existem? Se, de acordo com essa lógica conseqüencialista dos
julgamentos morais, devemos levar em consideração as conseqüências possíveis de um ato junto
a pessoas que circulam geográfica, social e economicamente distantes do seu agente, por que não
ter de levar em consideração as conseqüências possíveis desse ato junto às gerações futuras?
Tratar-se-ia, segundo H. Sidgwick, de uma forma de parcialidade, de uma discriminação em
relação àqueles que só se discriminam de nós por terem nascido mais tarde. Dessa forma, o valor
moral da fabricação de um produto que produziria danos às gerações futuras equivaleria à
fabricação de um produto que produz o mesmo dano em seres humanos hoje.

Na ótica utilitarista, a reflexão moral sobre questões envolvendo energia


nuclear, estocagem de dejetos perigosos, preservação de lugares naturais, exploração de recursos
não renováveis, déficits orçamentários dos governos. Resulta disso não somente o dever moral
de evitar certas pesquisas científicas, mas o de levar a cabo outras. A avaliação das
conseqüências das ações sobre gerações futuras não é tarefa fácil. A diversidade de variáveis
torna a reflexão complexa. Talvez incompatível com a necessidade imperativa de agir para
existir. Não podemos saber exatamente quais serão as necessidades humanas no ano 5000.
Ignoramos as epidemias que colocarão em risco o homem nos próximos séculos. Portanto, só
podemos ignorar quais pesquisas são as adequadas para evitar mais eficazmente tais epidemias
cujos atributos e alcance ignoramos.

De fato, os defensores do utilitarismo são freqüentemente questionados com


reflexões do tipo: não temos tempo, antes de agir, para calcular e avaliar os efeitos de uma linha
de conduta sobre a felicidade geral. A dificuldade de cálculo aumenta quando consideramos o
bem-estar dos mais distantes, no espaço e também nos tempos vindouros. A resposta utilitarista
para essa dificuldade de antecipação das conseqüências na deliberação moral é resumida em
frase consagrada de Mill: “A esta objeção podemos responder que tivemos muito tempo, já que
tivemos um tempo igual a todo o passado da espécie humana” (Utilitarianism, p. 77).

As regras da moral corrente, para Mill, nasceram das experiências seculares da


humanidade em matéria de felicidade. Os homens aprenderam, durante esse tempo, a conhecer

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pela experiência os efeitos a alcançar (tendencies) de seus atos. É dessa experiência que depende
toda a prudência e toda a moralidade da vida.

Falamos como se o começo dessa série de experiências tivesse sido diferido até o momento
atual. E como si, quando um homem se sente tentado a tocar a propriedade ou a vida de
outrem, ele devesse começar a se perguntar pela primeira vez se o assassinato ou o roubo
são prejudiciais à felicidade humana. Mesmo que fosse esse o caso, a resposta estaria fácil,
ao seu alcance. [...] Seria engraçado supor que os homens, depois de se concordarem sobre
a utilidade como pedra de toque da moralidade, não chegassem a um acordo sobre o que é
útil. Que não tomassem nenhuma medida para que essas coisas úteis fossem inculcadas
desde a juventude e fortificadas pelas leis da opinião (Utilitarianism, p. 78).

Em outras palavras, temos a responsabilidade por um patrimônio que nos foi


legado por gerações passadas e influenciará as futuras. Somos herdeiros de um saber prático que
nos permite deliberar não só em função do que estimamos causará a felicidade hoje, mas também
a futura. Aliás, fazemos juízos morais sobre as gerações que nos precederam. Freqüentemente
esses juízos são desfavoráveis porque consideramos que nossos antepassados deliberaram agir de
forma a não levar em consideração a felicidade dos que vivemos hoje. A rigor, todo juízo moral
da história é feito a partir do presente. Mesmo quando avaliamos que determinada conduta foi
nefasta para os contemporâneos do agente, julgamos em função de um olhar que é o nosso, o da
contemporaneidade.

Questões atuais para as quais algum dos autores utilitaristas costuma servir de
suporte. Questões sobre as quais o comunicador se manifesta. Questões objetos de doutrina.
Objeto de reflexão docente. Objeto de um discurso acadêmico que passamos a analisar nesta
parte deste trabalho. Conforme já antecipamos, duas seções estruturam esta análise: na Seção 3
do trabalho, propomos a análise de um discurso acadêmico que destaca a grande ética do agir do
jornalista. Uma ética conseqüencialista preocupada com o maior número. Com o bem comum.
Uma ética utilitarista, no seu sentido clássico. Na Seção 4, uma pequena ética, para um agir
publicitário e do RP. Menos nobre. Mais privado. Mais interessado. Voltado ao lucro. Que não é
egoísta porque o benefício é do cliente. Não do próprio agente. Mas que também não considera o
maior número. A não ser como instrumento. Como fim intermediário. O agir publicitário e do
RP.

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