You are on page 1of 156

contos | poesias | fotografias

Roberto Requião
Governador do Estado do Paraná

Maria Marta Renner Weber Lunardon


Secretária de Estado da Administração e da Previdência
Presidente do Conselho Superior da Escola de Governo do Paraná

Regina Gubert
Diretora Geral

Sônia Maria Fedri Schober


Diretora de Departamento de Recursos Humanos

Marli Aparecida Jacober Pasqualin


Gerente Executiva da Escola de Governo
2009
Curitiba,
contos | poesias | fotografias
Dados internacionais de catalogação na publicação
Bibliotecária responsável: Mara Rejane Vicente Teixeira

Concurso Estadual de Contos e Poesias e


Fotografias dos Servidores Públicos do Estado
do Paraná (1. : 2009 : Curitiba, PR)
Programa Servir com arte : trabalhos
premiados. - Curitiba : Secretaria de Estado da
Administração e da Previdência, 2009.
147 p. : il. ; 21 cm.

1. Contos brasileiros – Coletânea. 2. Poesia


brasileira – Coletânea. 3. Fotografia – Coletânea.
I. Título.
CDD ( 22ª ed.)
B869.8
Dedicamos este livro a todos os participantes deste concurso

Diretora do Departamento de Recursos Humanos


Gerente Executiva da Escola do Governo
sumário
Prefácio. Menções Honrosas
15
“A velhinha e os ladrões pé de chinelo”
Apresentação. Claudio Roza
19 47
“Amores mórbidos”
Comentários da comissão julgadora. Luciana Marquesa Silva
23 49

Contos. “As roupas no varal”


Cleusi Betenheuser
1º lugar - “Dona do tempo”. 51
Maria Cristina H. Lacerda
32 “Galos e homens”
Mauro Marcolino Carneiro
2º lugar - “Thomas”. 55
Rita de Cassia Simões Martelini
33 “Inventário”
Edmilson Rodrigues da Silva
3º lugar - “Os olhos do porco” 61
Raymundo Honorato Nogueira
41 “O despertador”
Everton Ribeiro
65

“O peixe de Magrarida”
Paulo Martins
71

“Segunda-feira”
Rafael Henrique Caneparo
75

“Solidão”
Silvia Montanari
77
“Pedra de Espia” Poesias
Hamilton Bonatto
81 1º lugar - “Dom Quixote”
Luiz Carlos Salami
“Rastros da cidade” 104
Rodrigo Schmidt
97 2ºlugar - “Palavras de verdade”
Jane Maria Sprenger Bodnar
“Refletindo” 107
Valter Cardoso
99 3º lugar - “Lápis”
Mário Sérgio de Mello
108
Menções Honrosas “Rolinha”
Cláudio José de Almeida Mello
“Amor efêmero” 123
Juliano Grus
109 “Sigamos cigano”
Maria do Rocio Novaes P. Ferreira
“Blackout” 124
Orlando Pinheiro
110 “Urbe”
Marcel da Cruz Fernandes da Conceição
“Era outra vez, uma menina” 126
Nelci Peripolli Godinho
111

“Imagem humana”
André Alves Pereira
114

“Noite e poesia”
Helaine Giraldeli Balla
116

“Nuvem”
Arlete Gomes de Souza
118

“Perjúrio”
Nelci Mello Tomadon
119

“Queria”
Rosemeire Tânia Ferreira
120

“Rastro de estrelas”
Hamilton Fernandes Filho
121
Fotografias Menções Honrosas

1º lugar - “Ubá” “Amanhecer”


Celso Lück Junior Marcos Lucio da Silva
130 133

2º lugar - “Cenas Paranaenses” “Bravo Trabalhador Paranaense


Jandira Tolin agradecendo por mais um dia de
131 Trabalho”
Julio Cezar Val Carnieri
3º lugar - “Baía de Paranaguá em 134
trânsito”
Marcelo Conor Kawase “Campo de soja colhida”
132 Sandro Amaral
135

“Clássico e Moderno”
Arnaldo E. Alves
136

“Descanso”
Liciane Kupiosz
137

“Descendo o Nhundiaquara”
Carlos Eduardo
138

“Energia”
Adriano César Buzzato
139

“Igreja São Miguel Arcanjo”


Cleidiane de Miranda
140
“Iguaçu das borboletas” “Queda e Elevação”
Fabiana Mafessoni Marion Teuber Stautt
141 150

“Ilha das Peças - Maré baixa no trapiche” “Sabor de Paraná”


Rita de Cássia da Maia Franciely Menezes Almeida
142 151

“Inspiração Divina” “Vista do ponto culminante do Estado do


Ana Maria Martins Lopes Paraná”
143 Alessandra Tathiana Villa Lopardo
152
“Manhã de inverno”
Douglas Gomes Daronco “Vida de pescador”
144 Felipe de Moura Vieira
153
“Nascer do Sol em ponta de Ubá”
Ana Maria Tozin
145

“Outono Paranaense”
Cláudio Roberto Dalla Stella
146

“Paranaense lutador”
Washington Martins
147

“Pinheiros do Paraná”
Jorge Luiz Rizzi Galerani
148

“Preservação e vida”
Yeda Ostan
149
prefácio
O programa Servir com Arte é uma oportunidade para os servidores, pois integra um conjunto
de realizações da Secretaria de Estado da Administração e da Previdência com foco no desenvolvimento
humano do Governo do Paraná.
A fertilidade intelectual e literária não pode ser considerada uma surpresa, já que nos escaminhos
de nossa alma habita, em muitos casos de forma latente, uma ou mais características voltadas para a arte.
Representação expressa, a arte clarifica a relação do homem para com ele próprio, por meio de imagens
visuais, auditivas e outras. De forma consciente ou inconsciente, também dirige a natureza psicológica e
psíquica do ser humano e, portanto sua relação para com mundo.
A arte é a representação da individualidade e do pensar, projeta para o coletivo a forma como se
interpreta as suas experiências da vida, por meio da expressão artística é que o individuo se localiza no
tempo e no espaço.
É importante entendermos que, a oportunidade oferecida pelo “Programa Servir com Arte”, pode
permitir que os corações dos nossos artistas servidores ultrapassem a fronteiras das tarefas cotidianas e
possam se manifestar livremente na arte de reinventar a vida.

Marise Martins Brassanini

O programa Servir com Arte é uma oportunidade para os servidores, pois integra um conjunto
de realizações da Secretaria de Estado da Administração e da Previdência com foco no desenvolvimento
humano do Governo do Paraná.
A fertilidade intelectual e literária não pode ser considerada uma surpresa, já que nos escaminhos
de nossa alma habita, em muitos casos de forma latente, uma ou mais características voltadas para a arte.
Representação expressa, a arte clarifica a relação do homem para com ele próprio, por meio de imagens
visuais, auditivas e outras. De forma consciente ou inconsciente, também dirige a natureza psicológica e
psíquica do ser humano e, portanto sua relação para com mundo.
A arte é a representação da individualidade e do pensar, projeta para o coletivo a forma como se
interpreta as suas experiências da vida, por meio da expressão artística é que o individuo se localiza no
tempo e no espaço.
É importante entendermos que, a oportunidade oferecida pelo “Programa Servir com Arte”, pode
permitir que os corações dos nossos artistas servidores ultrapassem a fronteiras das tarefas cotidianas e
possam se manifestar livremente na arte de reinventar a vida.

Sônia Maria Fredi Schober


Diretora do Departamento de Recursos Humanos

Prefácio · 17
apresentação
Mais que um concurso

É muito gratificante observar que o conjunto do funcionalismo tem respondido às ações de


capacitação e valorização que o Governo do Paraná, por meio da rede da Escola de Governo, tem
promovido.
O Servir com Arte é uma das iniciativas, recente, que demonstra ter despertado o interesse, o
engajamento dos servidores.
Tivemos, agora em 2009, a segunda – e como a primeira, exitosa - edição do evento. Um evento
que não se resume a um concurso cultural. A premiação, claro, é um atrativo, mas o Servir com Arte vem
cumprindo a missão de se tornar um incentivo à manifestação artística, à reflexão, à criatividade – que
todos nós temos, às vezes aflorada, às vezes adormecida.
Os parabéns aos contemplados e aos demais participantes; um muito obrigada à Secretaria da
Cultura, à Caixa Econômica Federal, à Paraná Educativa e à Fundação de Apoio ao Desenvolvimento da
Universidade Estadual de Londrina (Fauel), por serem parceiros nessa ação!

Maria Marta Renner Weber Lunardon


Secretária de Estado da Administração e da Previdência

É com grande prazer que a Secretaria de Estado da Cultura anuncia a publicação do livro com os
vencedores da segunda edição do Concurso Servir com Arte.
Este livro é o instrumento final de um processo cultural de estímulo a produção e surgimento de
novos talentos na literatura paranaense. Começa com as inscrições dos nossos servidores públicos - poetas
e escritores talentosos e, muitas vezes, ainda desconhecidos. Segue com a avaliação da obra por um júri
competente. E finaliza com o poema ou o conto ao encontro do seu leitor.
Ou seja, Servir com Arte é mais que um concurso. É, para todos nós, um enredo emocionante
com início, meio e final feliz.
Boa leitura a todos!

Vera Maria Haj Mussi Augusto


Secretária de Estado da Cultura

Apresentação · 21
Situo-me entre as pessoas que se emocionam, acreditam, valorizam e principalmente apóiam a
arte em suas mais variadas manifestações culturais.
Senti-me orgulhosa quando o Projeto Servir com Arte deixou de ser embrionário e ganhou vida,
impulsionado por inúmeros servidores que consciente ou não colaboraram para com esse nascimento
enviando seus trabalhos.
Hoje posso dizer: enfim, nasceu o Servir com Arte. Começou pequeno. Em seu primeiro ano o
Projeto contemplava duas categorias. Ainda no início sabíamos do potencial, mas ter total consciência de
volume e aceitação era muito difícil de se mensurar. Mas enfim, nasceu o Servir com Arte. Como uma
criança foi ganhando forma, força e hoje estamos em sua segunda edição de muitas que ainda virão.
O sucesso desse Programa não se deve a uma coordenação competente ou a uma equipe especial.
O sucesso se dá em cada linha escrita, em cada vírgula, em cada frase, em cada poesia ou num click
especial, materiais que muitas vezes ficam meses e meses dentro de gavetas para somente mais tarde serem
valorizados.
Nossa busca por talentos dentro dos quadros do serviço público estadual não terminou. Há
muito material para ser publicado e a cada dia novos são produzidos. Por isso estou certa da continuidade
desse Projeto, pois acredito que ir em busca de talentos no quadro de servidores é uma descoberta que vai
além das funções do cotidiano de cada servidor desta forma podemos ver em outras dimensões o quanto
o Servidor/cidadão desenvolve a sua plenitude como pessoa, servem a sociedade aprendem a desenvolver
no seu trabalho o Servir com Arte.

Marli Jacobber Pasqualim


Gerente da Escola Executiva de Governo
comentários
da comissão
julgadora
Afirmei, certa ocasião, que o escritor costura palavras, retalhos colhidos no baú dos devaneios, e
faz, do texto, agasalho das esperanças.
Seja poeta ou prosador, está sempre unindo palavras soltas, anônimas, enquanto sufocadas na
multidão que desfila, disciplinadamente, no dicionário. De repente, a palavra é escolhida, selecionada,
distinguida pela imaginação do escritor, cria vida própria, personalidade, e vem estabelecer parceria
criativa, formando desenhos na tapeçaria do sonho.
Aliás, Affonso Romano de Sant’Anna diz isso mesmo, em conto publicado no livro “Que Presente te Dar”
(pág. 209, Editora Expressão e Cultura, Coleção Páginas Amarelas, Vol. 40):
“elas (as palavras) não podem ficar por aí, desprezadas no amorfo dicionário; têm que ser desfrutadas,
expor seu belo corpo à luz do nosso prazer”.
Certamente por reconhecer essa possibilidade de recursos ilimitados, Paulo Venturelli também se
manifesta, dizendo:
“... as palavras são massa para modelação de instantes.” (“Composições para meus amigos”, pág.
59).
Em prosa ou verso, cada participante deste segundo concurso “Servir com Arte” acalentou sonhos,
imaginou a obra, modelou percepções, manuseou símbolos e, finalmente, pôde observar o resultado da
tessitura. Por isso, com ou sem premiação, pode acalentar a certeza de que seu trabalho é o seu manto
pessoal, único, exclusivo, que poderá aquecer novos sonhos e despertar mais inspiração para outros
desafios.
Adélia Maria Woellner
Poetisa e Escritora

A arte é por excelência uma atividade que acontece nos altos degraus de nossa mente. O uso da
palavra para a montagem de uma escultura estética é das artes a mais difícil, mas também a que mais
realiza o esteta mais sensível.
Tomar contato com a criação literária de servidores dos mais diferentes rincões do Paraná, já é,
por si só, uma atividade prazerosa. Contudo, posso dizer que a leitura de centenas de poesias e contos me
deixou feliz e esperançoso sobre a literatura paranaense e brasileira. Um concurso como este escancara
para todos nós o fato inegável que estamos vivendo momentos de exuberância criativa no seio dos nossos
servidores que sabem como ninguém, na sua atividade, diária abrir lacunas para “servir com arte”.

Airo Zamoner
Escritor e Editor

Comentários da Comissão Julgadora · 25


É louvável a iniciativa da Escola de Governo de estimular a cultura, em especial a literatura, entre
os funcionários estaduais, mostrando que, além do trabalho cotidiano, há uma brecha para a criação e a
vivência da arte. Essa valorização da sensibilidade e do senso estético contribui para a integralização do
ser humano, mesmo que ele viva numa sociedade em que, muitas vezes, duvidamos seja um ambiente
propício ao desenvolvimento da imaginação e do senso estético.
Foi possível verificar essa prática estética nos textos analisados. Embora nem todos pudessem exibir
uma qualidade apreciável, deve-se valorizar a intenção de escrever algo que superasse o texto informativo
e burocrático. No entanto, nem sempre a boa intenção resulta em um texto literário. A comissão verificou
que muitos textos denunciavam a falta de leitura e conhecimento de literatura. Outros apresentaram
dificuldades de realização na linguagem – matéria-prima indispensável da literatura – por isso contos e
poemas ficaram em nível precário.
A leitura dos originais comprovou que, para muitos, a poesia reside na expressão sentimental.
Foram muitas dores, pássaros e choramingas que não constroem um bom texto, mesmo que sirvam de
válvula de escape emocional. Com os contos, ocorreu uma profusão de narrativas mal construídas sobre
enredos fracos e péssima construção de personagens.
Ao final dos trabalhos, porém, alguns textos sobressaíram com qualidade textual, de pensamento,
de elaboração estética. Foram os premiados. Sempre com distinção porque ultrapassaram a média dos
originais apresentados e analisados.
Acredito que a iniciativa deva continuar para manter estimulados os verdadeiros escritores. Para
os demais, resta tentar novamente escrever , escrever, escrever. E concorrer.

Marta Morais da Costa


Professora e Pesquisadora Sênior da UFPR


Neste imenso cenário, que é o Paraná, multiplicam-se cenas ao infinito. Mas essa cenas não
passam desapercebidas aos olhares dos servidores do Estado.
O concurso de fotografia proporciona uma dupla oportunidade: a dos servidores fotógrafos
exporem sua arte e a de, nós outros, apreciarmos uma boa arte.
Hoje em dia, com os equipamentos de captação de imagens mais acessíveis, quase todos
podem se dizer fotógrafos. Mas o olhar fotográfico requer um maior apuro técnico e estético, um
pouco mais de estudo muita intuição e dedicação. Tudo isto eu percebi e vi na maioria das fotografias
que foram inscritas e enviadas. Em muitas se percebe a limitação da máquina fotográfica e de

26 · Comentários da Comissão Julgadora


conhecimento técnico. Mesmo assim, o que transparece é o olhar fotográfico. A percepção de que
os momentos únicos, mesmo os universais, acontecem aqui no Paraná e são vistos pelos nossos
servidores fotógrafos. Eles têm olhar e nos proporcionaram o prazer de compartilhar sua arte.

Alberto Melnechuky
Fotojornalista, Fotógrafo profissional e Amante da fotografia

Participar de um evento como este e ter a opotunidade de mostrar juntamente com outros
servidores que existe entre eles um número de funcionários que tem talento e criatividade.
Na condição de fotojornalista ha mais de trinta anos, e sempre exercendo a atividade profissional,
fico realmente contente em ver que em nosso estado, o Governo do Estado se dispõe por meio desta
Coordenaçao da Escola de Governo, a realizar com maestria um concurso específico; de fotografia e
literatura, visando unicamente: descobrir e permear esses talentos - estimular e apoiar a participação de
forma igual e qualitativa.
Em muitas das imagens que a Comissao Julgadora, na qual estive analisando, pessoalmente - tive
o cuidado de buscar (selecionar) o diferente, o nao óbvio, o que me pareceu coerente e de alguma maneira
remetesse ao tema proposto: Cenas Paranaenses.
Alguns devem estar se perguntando que “cenas paranaenses” sao essas? A meu ver o que foi
selecionado, vai ao encontro de um resultado harmônico e simples.
Onde, muitas imagens bem definem esse ser e viver no Paraná.
O calendário e esta publicação é perene - personifica o “olhar” e o momento de prosa e poesia de
cada autor em sua individualidade. Justifica o motivo para o qual se propôs o “Concurso de Fotografia “ e
esperando que o Governo mantenha essas açoes de incentivo à criatividade de seus muitos colaboradores,
verdadeiros artistas anônimos.
Muito me honrou participar desta Comissao do “Projeto Servir com Arte - Fotografia” e ficar em
contato com a produção de gente por todo este nosso Paraná.
Parabéns a todos que participaram.

Alice Varajão
Fotojornalista
Professora de Fotografia Teoria e
Técnica da UniBrasil e Pós Graduada
em Língua Portuguesa PUC PR

Comentários da Comissão Julgadora · 27


A fotografia no início era uma atividade que somente os mais abastados podiam usufruir.
Equipamentos caros e insumos raros faziam com que a atividade fosso pouco difundida. Por muito
tempo, para expressar-se através da fotografia, além de talento, era necessário pertencer a uma familia
abastada. Os tempo foi passando e ela foi se tornando cada vez mais acessivel e acabou incorporando-se
em nossas vidas revelando grandes fotógrafos. Finalmente surgiu arrasadora a fotografia digital e com ela, a
democracia total. Esse concurso é a prova desse movimento: Centenas de pessoas comuns munidas de suas
câmeras digitais amadoras ou não, pouco importando qual o equipamento utilizado. O que realmente
importa é o olhar, e esse concurso deu a grande chance de muitos mostrar seu talento, revelado no belo
livro que estamos tendo o prazer de folhear.

Pedro Nossol
Designer e Fotógrafo

28 · Comentários da Comissão Julgadora


contos
“Dona do Tempo”
Resolvi largar o medo para trás, dentro da mala, em qualquer
lugar...
1° lugar Tirei da bolsa o caderno, o lápis e a borracha: material
Maria Cristina H. Lacerda reservado, sempre à mão ( como me foi ensinado) caso surgisse o desejo
Secretaria de Estado e de escrever.
Saúde Resolvi fazer o tempo andar mais depressa.
Curitiba Foi nisso que deu...
O ônibus chegaria às cinco horas da manhã. Para não acordar
minha amiga tão cedo, no dia do seu aniversário, disse que chegaria às
seis.
Viagem tranquila, em dia de semana, estrada vazia: chegamos
às quatro e quinze!
Grudei na poltrona. Não querida descer. Mas a placa lá, bem
grande:
“ARARANGUÁ”. Fiz de conta que não sabia onde estava. Afinal eram
quatro horas da manhã! Devo estar enganada, ainda com sono, pensei.
A porta do ônibus se abriu. Uma voz bem forte e animada –
de quem iniciava a jornada de trabalho – falou em alto e bom som:
ARARANGUÁ! Não havia mais dúvidas.
Era aquele mesmo o meu destino. Fui obrigada a descer.
O motorista viu o susto estampado no meu rosto quando saí
do ônibus e entrei no silêncio e no vazio daquele lugar. Gentilmente me
levou até o guichê, falou com o funcionário – o único naquele horário
– voltando logo para sua atividade.
Fiquei em pé paralisada, com a aparente tranquilidade de quem
iria permanecer ali por pouco tempo. A quem queria enganar?
Algumas possibilidades vieram à minha cabeça: pegar um táxi
e viajar 30 quilômetros até a cidade onde ficaria hospedada? Ligar para
a amiga e tirá-la da cama? Ir de ônibus? Nenhuma das alternativas.
Olhei para um lado: um morador de rua dormia num banco
enrolado em mil e um trapos. Alguns homens andavam de um lado para
outro: ladrões à espreita de suas vítimas? Trabalhadores indo cedo para
o serviço? Ou seres perdidos no tempo como eu ?

Contos · 31
No vidro da lanchonete – toda rodoviária tem uma – um
“Jesus Te Ama” fazia sua silenciosa pregação. Na televisão, uma comédia
grotesca.
Frio da madrugada.
Um relógio que não anda.
Sentei agarrada na bolsa, apreensiva ainda. Agora somos eu e
dois cachorros magricelas, enrolados em suas próprias tripas, dormindo
sobre um tapete de rodoviária.
Tive que rir sozinha diante dessa cena...
Olhei para o relógio: quatro e trinta e oito! é a última vez que
olho para o Relógio, pensei.
Acabou a comédia, veio a Luluzinha, outros desenhos, Teleaula:
meio ambiente, inglês...
Continuo mergulhada em meus pensamentos. A bolsa agora
está jogada na cadeira ao lado. Não há mais perigo algum.
O frio insiste em nos visitar.
Sonho com uma xícara de café com leite bem quente.
São seis horas da manhã.
Fiquei dona do tempo.
A cidade começa a acordar.
Sinto-me em casa.

32 · Contos
“Thomas”
Paranaguá, agosto de 2006. Domingo. Chove. É manhã de
inverno e folheio um livro que jamais terminarei de ler. Poucas coisas eu
2° lugar trouxe comigo, quando deixei a Áustria, há alguns anos; entre elas, o livro
Rita de Cassia Simões que agora releio. Pensava em começar vida nova, sem reminiscências.
Martelini Bobagem. Certas coisas subsistem. Dobra o sino da igrejinha e os meus
Secretaria de Estado da olhos procuram o relógio, como se o passar do tempo me importasse
Educação de verdade. Da sacada, vejo os barcos que se desenham quase já
Cambé imperceptíveis no horizonte embaçado.
Volto ao livro. Escrito em alemão, está meio amarelado e um
pouco marcado pelo ato da releitura, mas não destruído. “Encontro”,
esse é o título. A capa traz a imagem da Ópera de Viena, com seus
contornos dourados, saída de um cartão-postal. Nunca soube ao certo
a relação dessa imagem com o livro, mas sei que ela me agrada. As
páginas são de folhas simples, em papel-jornal, numa bonita edição.
Fecho o livro, cuidadosamente, e caminho pela Ferdinandstrasse, como
em outros tempos.
Era uma rua calma, onde as badalações da capital da música
clássica não importunavam os amantes do silêncio. Vivendo ali por
alguns anos, jamais presenciei algo que me trouxesse dissabores. Lembro-
me que, numa tarde de primavera, voltando da universidade, notei que
novos vizinhos se mudavam. A mobília era bem antiga, talvez de séculos
passados, e também bem pouca. Mãe e filho, ele paraplégico, esperavam
aquele descarregar infinito das coisas menores, contidas em várias caixas
de papelão. A cena do garoto louro, de olhos azuis ligeiramente puxados
e mãos pendentes, naquela cadeira de rodas, me fixou onde eu estava. Já
não via a mudança e o vai-e-vem dos entregadores, quando, de repente,
sua mãe, num gesto simpático, acenou para mim, trazendo-me de
volta.
Chamava-se Marie e aparentava uns quarenta anos. Era viúva,
de origem eslava, e procurava se restabelecer com o filho único numa
cidade grande, onde não faltassem bons médicos. Thomas tinha vinte
anos e desde os quatro havia perdido o movimento das pernas, devido a

Contos · 33
uma doença rara que, aos poucos, ia lhe atrofiando os demais membros.
As mãos pouco se movimentavam e isso o tornava dependente de sua
mãe para quase tudo. Ela não se queixava e jamais perdia a esperança de
vê-lo curado.

34 · Contos
Aproximei-me de Thomas e abaixei-me diante dele. Tinha
uma beleza indefinida; uma mistura de seriedade e tristeza, uns olhos
que falavam. Thomas era feito de olhos. Sorri e lhe toquei as mãos, me
apresentando. Seu rosto permaneceu imóvel e receei o estar aborrecendo.
A mãe logo me explicou que seu filho sempre reagia assim diante de
estranhos e que raramente tivera amigos. As pessoas se aproximavam
dele com atitude de pena e isso o irritava profundamente, assim, preferia,
muitas vezes, a solidão. Ele jamais sorria; as poucas palavras que dele
ouvi naquele dia eram monossílabos desarticulados e sem doçura, como
se falar lhe fosse insuportável.
No outro dia, fui convidada para o primeiro almoço na casa
nova, mas recusei, temendo incomodar os novos vizinhos. Não faltariam
oportunidades, pensei. E, por mais de uma semana, ainda que sem vê-
los, não me esqueci completamente daqueles olhos; mesmo mergulhada
em estudos e nas publicações quinzenais para o Kurier sobre literatura
alemã, eu pensava em Thomas. Entre um rabisco e outro que eu traçava
para o jornal, às vezes, sentada à escrivaninha, eu fechava os olhos e
o via andando de bicicleta e se divertindo com os outros rapazes da
vizinhança. Como seria, se pudesse andar?
Nas semanas seguintes, notei que, sempre ao voltar dos meus
passeios matutinos, o encontrava tomando sol, em sua cadeira, ora
observando os transeuntes ora com os olhos voltados para o chão. Às
vezes, o cumprimentava de longe e ficava esperando um sinal, sem
esperança. Thomas jamais respondia, e fixava o olhar em um ponto,
demonstrando uma indiferença que não estava nele, eu sabia. Um dia,
conversando com Marie, soube que ele sempre lhe pedia para levá-lo ao
jardim, às onze horas. Ela o atendia, ainda que isso a preocupasse, pois
ele não queria sua companhia enquanto lá permanecia. Era exatamente
a hora em que eu retornava, depois de uma agradável caminhada pelo
bosque.
Poucos dias depois, resolvi não sair para caminhar. Era uma
bela manhã de março ensolarada; a Ferdinandstrasse exalava perfume
de jasmim e as hortênsias contornavam os quintais com várias cores. Da
janela do meu quarto, observei os movimentos de Thomas. Onze horas.

Contos · 35
Lá estava ele em sua cadeira e, com um leve gesto de cabeça, pedi para
que a mãe o deixasse sozinho. Em atitude angustiada, ela levava as mãos
unidas à boca e fazia algumas recomendações, mas Thomas parecia não
ouvi-la. Assim que a vi sair, desci ao jardim.
Tento agora me recordar de como os abordei... Aqueles olhos!
Sentei-me no banco do jardim, bem de frente com a cadeira de Thomas
e, por uns instantes, não trocamos palavra. O que dizer para um garoto
condenado a viver daquele modo? O que poderia lhe interessar? Mas
ainda assim, arrisquei:
_ “Sempre toma sol nesse horário?”
Ele mexeu com a cabeça, indicando que sim, mas sem me dirigir
o olhar. Percebi que suas mãos eram bonitas, com unhas bem feitas e
nem um sinal de hematoma. Sempre se vestia com camisas brancas e
calças escuras, e trazia os cabelos escovados com apuro. Notava-se ali
o carinho e a dedicação de Marie, contrastando com a maneira ríspida
de Thomas a tratar, como a lhe dar ordens ou culpá-la por seu estado.
Um pequeno movimento de Thomas e um livro deslizou por detrás de
sua cabeça, que era onde ele o mantinha, provavelmente, quando não o
estava lendo. Ele o segurou entre as mãos, com os olhos sempre fixos no
chão, e perguntou:
_ “Já leu Dostoievski?” E abriu uma página sinalizada com um
marcador.
Eu já havia lido alguns romances russos, inclusive o que Thomas
tinha entre as mãos, O Idiota, e comentei:
_ “Tenho lido muita teoria e poucas obras. Isso não é bom.
Preciso revisitar alguns clássicos, dizem que a releitura é essencial”.
Uma coisa me intrigava: como um menino, em semelhante
situação, poderia se interessar por leituras tão complexas? Falamos
sobre livros por quase uma hora e, às vezes, ele se demorava concluindo
uma frase; as palavras lhe saíam com muita dificuldade. No entanto,
a intelectualidade de Thomas sobressaía-se. Parecia-me que ele sempre
estivera lendo. Impressionava-me sua paixão pelos clássicos, quando me
recomendava os “livros imortais” que, segundo ele, “ninguém deveria
morrer sem ler”. E acrescentava:

36 · Contos
- “Não há como fugir dos clássicos... De uma forma ou outra,
são eles a referência que temos para buscar as demais leituras. Quando
lemos um autor desconhecido, nosso sistema de comparações tende a
encontrar referenciais para aquela fala. Um cânone não se firma do
nada, é preciso critérios. Se uma obra é reeditada, com o passar dos
séculos, é porque algo há nela que sobrevive; que despreza as constantes
mutações da espécie e a efemeridade dos costumes; que se impõe e
requer seu espaço; que precisa ser transmitido, de geração a geração,
como se fosse uma lei de Deus para os homens. Um clássico é um porto
seguro, um manual de boa literatura”.
Seus olhos saíam do chão e buscavam um ponto qualquer,
como se precisassem descansar depois de tanto tempo fixados no mesmo
lugar. Tudo nele parecia começar pelo olhar. Era inquestionável a beleza
daqueles olhos azuis, felinamente puxados.
Desde a chegada de Thomas, aquelas manhãs de primavera
eram dedicadas às nossas conversas literárias, em frente ao jardim,
na volta da caminhada. Ele já havia lido Guimarães Rosa, um de
seus autores estrangeiros preferidos, mas muitas coisas haviam ficado
obscuras, em certas passagens de Grande Sertão: Veredas, por exemplo.
A tradução de Günter Grass era excelente, segundo ele, mas ainda faltava
compreender num sentido amplo os neologismos criados por Rosa,
comprometidos pela tradução. Essa doce tarefa nos rendia semanas!
Sem interromper, ele observava a minha explicação, registrando cada
detalhe em seu pensamento. Ainda guardo na memória sua opinião
sobre as traduções... Eram boas, quase sempre, mas nada havia como ler
as obras em suas línguas-mãe, carregada de sentimentos e regionalismos
cujo entendimento só pertencia a um nativo, em sua totalidade. Thomas
planejava aprender português e adentrar o universo roseano, que ele
tanto exaltava.
Em um desses dias primaveris, ele me revelou que não sentia
inveja daqueles que podiam andar, pois, ao menos ali, naquela cadeira
de rodas, podia ler sem parar; sem se preocupar com outros afazeres
cotidianos. Foi então que me contou sobre sua outra atividade: ao
anoitecer, ditava a sua mãe umas linhas contendo os pensamentos

Contos · 37
que lhe vinham à mente, enquanto conversávamos no jardim. Falava
com firmeza; jamais se emocionava e, ainda que não usasse palavras
ásperas, sempre trazia uma angústia reprimida ao suspirar, como se fosse
indiferente aos acontecimentos, à vida fora dos livros.
Nessa mesma época, precisei me afastar de Viena por dois ou
três meses. Pela universidade, faríamos uma excursão a várias cidades
importantes, entre elas, Estrasburgo, onde visitaríamos a casa em que
Goethe vivera. Na verdade, tratava-se de uma extensão das aulas do
curso de Literatura que eu frequentava; um trabalho de conclusão
de curso. Em Frankfurt, por exemplo, editaríamos a primeira revista
literária da Universidade de Viena, composta em solo alemão. Thomas
entendeu o meu projeto e me abraçou forte, desejando-me boa sorte e
boa viagem; ele sabia que, ao voltar, muitas coisas eu lhe contaria e isso
mitigava a tristeza, ao nos despedir.
A chuva diminui e o canto ainda tímido dos pássaros desafia
os trovões distantes. Paranaguá silencia. Abro o livro que tenho entre
as mãos, numa página tantas vezes relida: “Ela me dizia coisas antes
por mim inimagináveis sobre o estilo roseano de escrever. Compreendi
então que até aquele momento não tinha lido Grande Sertão: Veredas,
mas apenas o percorrido, como se percorre uma estrada, sem saber aonde
ir. Desde então, eu quis relê-lo. Relê-lo para encontrá-la”. Fecho o livro.
Há cinco anos releio essas linhas tão bem traçadas e carinhosamente
dedicadas.
Nos primeiros dias de minha ausência, havíamos nos comunicado
por e-mail, escritos por Marie; ou então eu ligava pedindo notícias
dele. Thomas jamais falava ao telefone. Depois de algumas semanas,
notei que as respostas não chegavam e as ligações eram atendidas pela
secretária eletrônica. Imaginei que estivessem viajando em busca de
novos tratamentos e, por um tempo, não entrei em contato.
Meses depois, na volta da Alemanha, não encontrei Thomas
em sua cadeira, em frente ao jardim, como supus que me esperaria. Não
havia ninguém em sua casa e nas janelas já não se viam as cortinas. Subi
ao meu quarto e, ao abrir a porta, encontrei muitas correspondências
espalhadas pelo chão. Entre faturas, postais e extratos bancários,

38 · Contos
havia uma carta de Marie. Thomas havia falecido no início do verão,
algumas semanas antes do meu retorno. Ele estivera internado devido
a uma insuficiência respiratória e, dois dias antes da alta médica, tivera
complicações e não resistira.
Junto à carta, um embrulho. Um volume único de um livro
postumamente publicado. Como sabem, trata-se do livro que tenho em
mãos agora, ao escrever.

Contos · 39
40 · Contos
“Os olhos do porco”
“Não é possível recompor o passado no seu estado de
pureza, pois as lembranças sempre veem corrompidas
3° lugar com outras vivências.” (Balão Cativo)
Raymundo Honorato
Nogueira “Há dessas reminiscências que não descansam...” (M.
Secretaria de Estado da de Assis)
Educação
Jacarezinho Chegara o dia de matar o porco. __ Então, a gente acordava-se
mais cedo, espreguiçava-se borralheiro e corria assanhado pra fora.
Recordo que nesses dias ninguém parava quieto, um rebuliço!
Minha mãe punha-se então a varrer o terreiro enquanto nós
ficávamos daninhando ao redor e imaginando o porco: a barrigada do
porco, as “fissura” do porco, os pés do porco, o focinho do porco, o rabo
do porco, os olhos do porco, latas nevadas de banha, varais de linguiças
espalhados pela casa, uma “carnaria” dependurada...!
Mas a hora do porco morrer não chegava, e me vinha então
aquela gastura...
__ Quietos, seus bocós, parecem que nunca comeram carne
na vida!!!
É que a gente queria ver logo o toucinho espocar fervendo no
tacho, o couro pururucando feito pipoca nos dentes, ossos estralando
nos dedos, estrelejando pelos quatro cantos do terreiro.
__ Quietos!
E a gente cochichando prazenteiro, bulindo uns com os outros,
cutucando-se, de línguas xeretas por detrás das paredes, suspirando,
tensos, em incontidos solilóquios, salivando... Olhinhos cúpidos,
mordendo e roendo as unhas.
No tempo do seu avô...
E minha mãe punha-se então a falar do seu tempo, de como se
comiam os porcos naqueles longes vividos.
Naqueles idos, ela dizia, a gente comia a carne do porco com
ora-pro-nobis, com serralha, com angu, com quiabo, com tutu...

Contos · 41
E eu, espoleta, repetia a sua memória me escorregando de rastro
e rimando garboso pelo assoalho da casa:
Com farinha
Com batatas
Com feijão...
(... com alegria, com inocência, com esperança, com
sofreguidão!)
Sim, e ela continuava na cozinha falando do seu tempo,
preparando réstias de palhas secas, areando latinhas vazias, macetando
o alho num pilãozinho de pau, falando sozinha, lembrava dos filhos
ausentes, das “meninas” empregadas, dos parentes falecidos. E a gente
escutando aquilo impaciente, de água na boca, imaginando... Às vezes,
me vinha uma vontade explosiva de rir, uma coceira, uma ânsia de
gritar!
__ Quietos!!!
Era uma conspiração, uma comoção: - a morte do porco -
comentada, sonhada, esperada, contada ali nos dez dedinhos das mãos.
(Com farinha, com batatas...)
Lembro-me de que nesses dias o sol amanhecia lindo!... A
natureza lá fora se despertava parecendo assim muito mais clara, bem
mais intensa; tudo assim muito mais verde. Os morros arvoravam-se
diferentes, muito mais iluminados!
Deveras, nessas manhãs, pairava no céu certa transcendência.
Aquilo era mesmo um dia de guarda, mais que um São João, que um
natal! Não havia roça, não havia escola... O feriado era nacional! - O dia
da morte do porco.
E a claridade ia ali os poucos subindo e descendo as ladeiras,
cintilando risonha pelos gramados, tomando conta daqueles trilhos
orvalhados, irradiando aqueles humildezinhos cercados. _ E a gente
irreverente, de olhos arregalados no terreiro, esperando o porco,
“pelando” por ver chegar a hora, a hora “sagrada.” Mas a hora do porco
morrer não chegava...
E eu me coçando todo, bicho carpinteiro, arrastando-me
outra vez de costas pelo assoalho, exibindo-me fogueta, abestalhado,
assobiando e volvendo os meus olhos para um telhado vazio.

42 · Contos
E aí então a mãe me chamava com um grito e mandava eu
escrever (botar) pra ela numa folha de papel pautado os ingredientes do
dia (O que a gente depois deveria ir buscar lá na venda para o preparo
do porco).
Recordo que eu punha-me então principesco, todo ancho de
cotovelos fincados à mesa, e com um lápis preto (bem apontado), ia
traçando as letras no papel, ia fazendo ali uns arabescos... uns floreios
demorados... Ah, eu deslizava os dedos liricamente sobre aquelas linhas.
_ A lista das compras! _ Éramos, pois, naquele Paraná distante e perdido,
rainhas e reis: monarcas de um império invejável, inexpugnável! - O
porco.
Em seguida, eu saía dali aos pinotes e voava de aleluias pro
terreiro, e lá então saltava feito um saci num pé só, fazia diabólicas
piruetas, me alvoroçava abobado num cavalinho de bambu, urinava
indecente nos olheiros das formigas, tripudiava no barro, tacava
“bolotada” nos outros, me rolava dentro de um balaio de milho, corria
exibido pelos cafezais, cantarolava à beira do poço...
__ Quietos, seus bocós, parecem que nunca comeram carne
na vida!!! - “pito” que eu ali nem ligava e retrucava com uma pontinha
de língua ranheta, hã-ã! _ Afinal, não era o dia de matar o porco?!
Sim, nestes dias, os humores da gente mudavam, as pessoas
ganhavam um novo rosto, uma cara nova, um novo tom, um semblante
diferente, até a pele da gente parecia ganhar naquelas horas uma nova
cor; e falávamos muito mais do que o habitual. Ah, eu me lembro...........
eu me lembro................................................ Eu lia esta ansiedade nos
olhos das pessoas, nos olhos daqueles colonos arremendados e sofridos,
nos olhos da minha mãe, nos fúlgidos olhos da minha mãe! - Olhos
anormais - vivazes - Olhos cuja luz só hoje agora me alcança. Olhos
com os quais naquele tempo eu ainda não via!
__ Quietos, seus bocós, parecem que nunca comeram carne
na vida!!!
E então, crianças maltrapilhas apareciam sorrateiras até o
nosso terreiro. E ali, em silêncio, elas ficavam. Entretinham-se mudas,
pensativas... à roda do chiqueiro. Algumas, empoleiravam-se tristonhas

Contos · 43
nos arames das cercas, olhinhos inquietos... Pareciam procurar ali
qualquer coisa, quem sabe algum brinquedo (!) Olhares perdidos... _
Fingiam! Sim, elas fingiam! (Os olhos não mentem!) Olhos assim nunca
me enganaram! Pois quantas vezes eu também...
Ah! Naquele tempo eu sentia de longe o cheiro dos porcos,
suas entranhas, aquelas vísceras viscosas lavadas na água da bica com o
sumo ácido do limão e espetadas depois aleatoriamente pelos pregos nas
paredes. Toucinho salgado espalhado pelos esteios da casa. Chouriços
enroscadinhos em varais de arames. Tripas secas, enfumaçadas, parecendo
cobras azuladiças escorrendo-se suculentas pelos caibros do telhado.
Pelancas cruas respingando-se pelas gretas das ripas, engordurando
frestas e vigas...
(...)
Agora, era a filha da vizinha quem chegava lá em casa. A
italianinha vinha à nossa porta (com aqueles olhos azuis!) com um
bebezinho birrento no colo. E ela “plantava-se” bem ao pé da escada,
olhares evasivos... Recordo que ela ficava ali o tempo todo como se...
Como se ela também de nada soubesse! Como se ela também de nada
precisasse! - Fingia. Aquela italianinha também de fato fingia!
E lá no fundo do chiqueiro estava o porco indiferente,
empapuçado, “olhos cegos de banha” comendo a sua última ração de
farelo de arroz.
Logo o seu Januário viria e, como num ritual religioso, daria
bom dia a todos, olharia solene pro sol, coçaria lento a cabeça, arregaçaria
as mangas da camisa e tomaria vagarosamente a direção do chiqueiro.
Então, alguém ajuntaria as palhas secas e, Oh!
E os grunhidos finais do porco. _ Deus! Eram gritos aflitos,
exasperados, horríveis, guinchos esganiçados que ecoavam alarmando
toda colônia; enquanto uma cachorrada encarniçada ficava em volta
daquilo latindo esfomeada e babando uma gosma nojenta, querendo
abocanhar o animal ainda vivo! _ Um animal abalado, estremecido,
agora de olhos esbugalhados, esguichando um jato macabro de sangue
nas mãos do Januário, um sangue vermelho e quente que escorria.
E o porco ia ali então lentamente se apagando, apagando de vez
os sentidos, fechando pungentemente os olhos. _ Uns olhos doloridos...

44 · Contos
Uns olhos sem brilhos... Os olhos de um animal inocente que morria. _
Olhos autênticos, olhos verdadeiros.
E era a mais pura alegria!

Contos · 45
“A velhinha e os ladrões pés de chinelo”
Acendesse a luz, os ladrões, pés de chinelo, fugiriam, na certa.
Feriadão prolongado, a casa no escuro. Os bandidinhos
Menção Honrosa testaram. Várias vezes, três a quatro horas da madrugada, acionaram a
Claudio Rozza campainha. Ora, viajaram todos.
Secretaria de Estado da A velhinha, temerosa, nem respirava. Malditos! Por todos os
Fazenda anjos, vão embora! Pularam o muro para dentro do terreno.
Curitiba A velhinha assistia à movimentação lá fora, protegida pela
cortina. De fora, os marginais tentavam olhar para dentro. Tudo
escuro.
Foram para trás da casa. Pegaram o botijão de gás. Levantaram
sobre o muro, e foram embora. Graças a Deus.
Voltaram. Apertaram a campainha. A velhinha, quieta. A
tortura continuava. Olharam pela janela, novamente. A velhinha fez
barulho com a cadeira. Nada. Não escutaram do lado de fora. Um metro
de distância os separava. Os bandidos e a velhinha olharam-se nos olhos.
Só a velhinha soube.
Os rapazes, ladrões pés de chinelo, levaram a bicicleta velha.
Mais valor sentimental que de verdade.
Só a dor da impotência foi maior do que a do próprio medo.
Todavia, valente, colocou folha de urtiga na campainha. Rezou
em português, latim e italiano, como em todos os dias.
Quando veio a tempestade, jogou contra ela um punhado
de sal. Choveu muito, relampejou e trovejou. A velhinha, medrosa,
encolheu-se debaixo das cobertas.
Os ladrões não voltaram mais. Mandou levantar o muro, colocar
porta de grade e um telefone novo na cabeceira da cama. Ladrão, tem
que matar. Não pode sobrar nenhum.
Medrosa, enfrentou sozinha os ladrões.
Tivesse acendido uma vezinha só a luz, e eles teriam ido embora.
Não quis dizer que tinha gente em casa. Ficou com medo de denunciar
a sua presença solitária.
Não se queixou à polícia, nem ao bispo, sequer à vizinha. Só a
Deus, em português, italiano e latim, para não haver dúvida. Em uma

Contos · 47
das línguas, Ele entenderia. Devota, ela rezava as velhas orações, sem
saber se era italiano ou latim, muito menos o significado das palavras.
Solta a língua, ao narrar, pela décima vez, suas aventuras à
vizinha, sentia, novamente, o mesmo sentimento de impotência, e o
medo igual.
Levantava cedo, ainda que após noites mal dormidas. Às sete
da manhã, já limpo o céu de anil, o primeiro raiozinho de sol pediu
licença, estendeu-se, comprido, no chão da cozinha, e acariciou os pés
da velhinha, que sentiu o seu calor.
Rapidinha, no esforço de se movimentar, toc, toc, toc,
bengalinha na mão direita, correu a olhar o botãozinho da flor. Será
que já abriu? Ainda não, mas lá de dentro, uma pétala vermelha tentava
espiar. Amanhã, a flor acorda de vez.
O gatinho, manhoso, rom-rom, esfregou-se nas suas pernas.
Saia, gato, vai me fazer tropeçar. Miau. Já tomou o seu leitinho?
Breves instantes, esqueceu, deletou o pesadelo da noite. Pesadelo
mesmo? Não. Tudo aconteceu de verdade. Cadeado arrebentado,
levaram o botijão e a bicicleta. Miseráveis, ainda derrubaram o vasinho
da violeta.

48 · Contos
“Amores mórbidos”
Júnior já não era mais o mesmo. Chegava em casa tarde, depois
de mais um estafante dia no escritório. Cris lia um livro no quarto.
Menção Honrosa Ele já não a via como antes, mal se olhavam. No trabalho, as
Luciana Marquesa Silva colegas despertavam nele interesses nunca experimentados. E Cris lia
Tribunal de Justiça um livro no quarto, envolvida pelo perfume de rosas que podia ser
Londrina sentido por qualquer pessoa que passasse pela janela, sempre aberta.
No café, os olhos de Júnior acompanhavam o andar elegante
das ninfetas que desfilavam pesados casacos de pele, vã proteção contra
o rigoroso inverno daquele ano. E Cris lia um livro no quarto, envolvida
pelo perfume de rosas que pairava no ar.
Júnior notou também que até a vizinhança parecia diferente,
principalmente depois que se mudara, para o sobrado da rua, há
duas semanas, aquela loura que viera estudar medicina numa famosa
universidade da cidade. E Cris lia o livro no quarto, ainda envolvida
pelo perfume de rosas.
Enfim, após anos de convivência, Júnior admitiu que aquela
decisão parecia inevitável. Ao anoitecer, ele chegou em casa, foi ao
quarto, e, numa mala velha, colocou a calça jeans preferida, algumas
camisas e a velha jaqueta de couro. Fitando languidamente o livro
aninhado ao colo de Cris, saiu, deixando para trás uma história. Júnior
estava virando mais uma página.
No dia seguinte, a polícia entrou no quarto e encontrou Cris
petrificada pela ação do tempo. Ela estava sentada na cama, com um
exemplar do livro Dom Casmurro no colo. Agora, o forte odor do
perfume de rosas espalhava-se por toda casa. Ela jazia ali há dois anos.

Contos · 49
50 · Contos
“As roupas no varal”
Nos varais, as roupas
pairam serenas ao olhar da brisa,
Menção Honrosa no ar tranquilo da tarde...
Cleusi Betenheuser
Secretaria de Estado da Há movimentos vivendo essas roupas,
Educação do Paraná gestos de humanos,
Castro abandonadas no aconchego do sol.
Elas bailam sem desejar,
na própria ausência de si mesmas.

E assim se vê,
por toda a visita da tarde...

Gárgulas entre os gritos das crianças,


debatem-se indefesas
por entre as brincadeiras.
(Parecem sangrar
sobre as próprias sombras.)

Humildes, silenciosas,
elas se deixam...
pois sabem que depois
caminharão por entre as ruas,
preenchidas de humanos.
Aquecendo-os,
tornando-os tão belos
quanto esta tarde.

Por isso,
ainda que solitárias,
quietas, esquecidas,
as roupas se sentem totais.

Contos · 51
O peso da mão sobre o ombro do menino despertou-o de sua
distância.
_ Vítor - o pai estava dizendo suavemente - está na hora.
Vamos.
O menino se deteve, queria permanecer à janela, contemplando
sua primavera.
_ O que tem lá? - perguntou o pai, intrigado, procurando à sua
frente mais do que a chuva sobre o quintal.
_ Olha, pai. - O menino mostrou o papel que estava em suas
mãos desde a manhã. - Foi a mãe que escreveu, ontem, no hospital.
O homem leu as primeiras palavras e logo seu rosto expressou
um sorriso.
_ Lindo, né, pai? - disse o menino, concordando.
_ Engraçado! - disse o pai, após alguns instantes. E suspirou
num riso rápido. _ Tua mãe não perdia mesmo o bom humor...
Vítor estranhou.
_ Não, pai. Não é uma poesia engraçada. Não é uma poesia pra
se rir. É uma poesia pra se ter esperança, foi o que a mãe me explicou.
O homem sentiu-se confuso. Devolveu rápido o papel. Tornou
a envolver o braço no ombro do menino.
_ Vamos. Todo mundo está esperando.
“Todo mundo está esperando”, repetia o menino, enquanto
caminhava ao lado do pai. “Uma poesia pra se ter esperança...”
Quando, porém, ele chegou perto da mãe, e o fizeram colocar
sua mão sobre as mãos endurecidas dela, o menino recuou estarrecido.
Seus olhos não a reconheciam. Aquele corpo não veria tardes
de primavera, nem ao menos teria alguma brisa para sequer embalar-
lhe gestos de humanos. O corpo dela não mais caminharia por entre as
ruas.
Os adultos não conseguiram conter a agilidade do menino.
Logo ele estava no quintal, sob a chuva fria. Fria como o corpo da
mãe.
Mas o calor, o calor que ele sentira no último abraço de sua
mãe, esse calor não vinha do corpo dela. Vinha de um amor que ainda
aquecia o peito do menino.

52 · Contos
Ele sentia. Ele sabia. Esse amor ia permanecer como a primavera
que ele viu através da janela, por entre a chuva daquela tarde.

Contos · 53
54 · Contos
“Galos e homens”
I – Insônia, crianças na cama

Menção Honrosa ... Acordar no meio da noite. Vira... Vira. O sono não vem.
Mauro Marcolino Carneiro Cama para quatro. O maior, menor, ela, ele. Pensamentos que vagueiam:
Secretaria de Estado da a tarefa do dia, trabalho. Levantar. Levantar? Já? Nem amanheceu ainda.
Educação Mas o que fazer na cama? Dormir. O sono não vem, ela dorme, crianças
Ponta Grossa na cama. Ao longe, canto de galo. Um tem dois o outro quatro. Culpa de
quem? O cheiro, a segurança. Ela não os amamenta mais. A segurança é
para eles ou ela? Ele inseguro. Levanta.
Final de abril. O frio começa a dar a cara. Sente falta do fogão a lenha
de infância. Fogão a gás é frio, pensa. Poderia acender a lareira. Não faz.
A chaleira está cheia. Liga o fogão, coloca a chaleira. Antes folheava um
jornal, agora liga o computador: bolsas asiáticas caem, o PIB brasileiro
ficou menor, no mundo diminuiu o fluxo de turistas... Culpa da febre
suína. Avançamos tanto em muitas áreas, mas no básico não saímos do
lugar. A água ferve.
- Porcaria, não serve pro mate.
Prepara a cuia enquanto espera esfriar um pouco a água. Um galo
canta mais perto. Toma a primeira cuia. Sorve todo o líquido até fazer
barulho. Não amanheceu. Pode ser que chova. Desliga o computador.
O cachorro late, percebeu sua presença. Abre a porta. Está frio. Desce
as escadas, chega a garagem. O cachorro pula a seu redor esperando a
ração do dia. Coloca na vasilha. Esfomeado entorna a comida. Abre
a barrica, pega o milho. Ao chegar perto do galinheiro as galinhas
fazem um alvoroço, se bicam, se pisoteiam. As mais territorialistas são
as galinhas com filhotes. A balbúrdia toma conta. Elas bicam todas
as aves que se aproximam da comida. Enquanto tocam um, outra se
aproveita para beliscar o petisco. O único respeitado é o galo. Ele é o
único que tem permissão para frequentar todos os ambientes sem ser
importunado pelos outros. É uma algazarra que o delicia. Distrai-se por
um longo tempo com a cena. Inicia um chuvisco. Fecha a porta do
galinheiro. Antes de entrar dá uma olhada nas plantas. Está precisando

Contos · 55
transplantar algumas. Entra na cozinha. Pega o mate frio. Coloca a água
para esquentar novamente... Agora a chuva é mais forte. Volta para o
quarto. Todos dormindo. Só ele fora da cama. Espaço exíguo. O cenário
não comporta mais um. Pega o mais velho no colo, o coloca no berço.
Tenta pegar o mais novo, acorda, chora, procura o aconchego da mãe.
Ela sem acordar, num ato atávico o abraça. O pequeno fecha os olhos e
volta a dormir. O que fazer? Ouve o chio da água, volta apressado pra
cozinha.

II – Café, notícias

Coloca o pó no coador. A água quente desce, borbulhando,


cobrindo o pó. Pela janela observa que a água do lado de fora bate com
força no vidro. Liga o rádio: bolsas asiáticas caem, terremoto no Chile,
o governo da Tanzânia está por um fio, morre mais três no México pela
gripe suína, cresce o desemprego no Brasil.
_ Estes caras sobrevivem da desgraça alheia. Amplificam o
problema. - resmunga para si mesmo.
Desliga o rádio, coloca um CD. A música toma conta do
ambiente. Sorve um gole de café. No quarto não há movimento.
Encontra uma revista. Folheia. A data é antiga, mas as notícias são
novas: o mundo capitalista caminha para a insolvência, se não houver
controle do capital, pelo estado; a bolha imobiliária pode estourar a
qualquer momento...
Coloca mais um gole de café. O tempo não passa. Ninguém
levanta. O CD acaba. O galo canta. Levanta, caminha até o quarto.
Todos dormindo. Se a bolha estourar? Volta, senta, toma mais um café.
Troca o CD.

III – Chuva, sono

A chuva que agora cai é tranquila, calma. O sono vem. O rádio


é ligado. A gripe suína agora não é mais. Não se explicaram bem se
a gripe não é mais gripe ou se não é mais suína. A informação para

56 · Contos
desinformação. A música, a chuva, o sono. Sobe a escada, entra no
quarto, todos dormem. Deita, tenta conciliar o sono. Uma perna é
jogada sobre sua barriga. Sente um braço em seu peito. Vira. A perna
fica descoberta. Levanta. Definitivamente não há como ficar em quatro
nessa cama. Desce. Na janela da cozinha observa a chuva. Os pingos
caem batendo nos vidros formando um pequeno riozinho até desaguar
na calçada. Os olhos já não conseguem ficar abertos. Numa última
tentativa bebe mais um gole de café. Abre a porta e sai. Observa as
galinhas. São três poedeiras: duas negras e uma avermelhada. São cinco
caipiras, sendo que duas estão com pintinhos; e dois galos. Conta e
reconta as cabeças de aves. Lembra que logo o plantel vai aumentar.
Fez uma chocadeira caseira com restos de isopor, madeira, plástico, fios
e lâmpada. Está entrando do décimo dia de choco. Os cuidados são
extremos: manter a temperatura, virar os ovos três vezes ao dia, não
deixar secar a água. É agradável passar os dias esperando o nascimento.
Ao nascerem serão trinta e oito aves. A chuva aperta. Volta para dentro
da casa. Refaz as contas. Dois perus não entraram na conta, então serão
quarenta.
O sono volta. Deita no sofá. A música do rádio. O sono
vem...

IV – Crianças, galinhas

Sente uma dor no dedão do pé. Acorda assustado. Olha para


baixo. O pequeno deu uma risada espalhafatosa. Tinha acabado de dar
uma mordida em um dedo que estava para fora do cobertor. Como ficar
brabo perante um rostinho bonito e levado?
_ Bom dia pra você também!
Levanta e o pega no colo. Brinca rolando no chão. Vai para a
cozinha com o pequeno. Encontra o maior e a mulher tomando café.
_ Bom dia, bom dia!
_ Levantou cedo hoje (observa a esposa).
_ É. Tinha muita coisa para deixar em dia.
_ No feriado?

Contos · 57
O maior quer colo. Aconchegado, espreguiça.
_ Há dia melhor para por o trabalho em dia? Tomar chimarrão.
Alimentar as galinhas. Por comida pros cachorros. Ver a chuva...
_ Que divertido (diz a esposa, com um sorriso no canto dos
lábios).
Deixa o filho na cadeira. Pega um copo de café. Observa.
_ Não tem como dormir em quatro na cama.
_ Eles não dormem no berço. Já tentei... (interrompe)
_ Sei, sei. Mas temos que fazer alguma coisa.
Olha para fora, a chuva deu uma trégua. Vai até a porta. As
crianças o seguem. A mãe repreende:
_ Não saiam. Está chovendo.
As crianças fazem cara de choro.
_ Venham. A chuva já parou. Vamos ver as galinhas.
_ Não deixe que sujem os pés. Avisa a mãe.
Saem todos em direção ao galinheiro. As crianças correndo na
frente.
_ Não corram. Cuidado. Vão cair.
As galinhas se alvoroçam com a chegada das crianças. É uma
correria e cacarejar que enchem o ambiente. Ao chegar acalma as
crianças. As galinhas se aquietam. Os pintinhos correm pra lá e pra cá.
As crianças correm pra lá e pra cá. As galinhas atendendo os pintinhos,
bicando um aqui outro ali. O galo bicava um pintinho aqui, afasta
outro ali. Quando os pintinhos se afastam há um cortejamento de suas
mães. O galo cisca afastando os filhotes mais resistentes. Algumas mães
protestam, cacarejando. O galo continua com seu intento. Uma das
galinhas cede ao assédio. As crianças espantam o galo. A chuva reinicia
com pingos pequenos. Pega nas mãos dos pequenos. Saindo observa o
galo reiniciar sua corte.

V – Táticas, planejamento

A tarde estava preguiçosa. O tempo parava. As horas não corriam.


O pensamento estacionava. Dormir, descansar... O que fazer? A cama não

58 · Contos
cabia quatro. O galo espantava os pintinhos. As galinhas protestavam. Os
pintinhos não cediam. Insônia. Quatro numa cama. Dois tem que sair.
O que fazer? O galo espanta os pintos. A galinha não cedia.
O galo não terá problemas com os filhos da chocadeira. Mas se
uma galinha resolver adotar os filhotinhos? Vai ser um problemão. São
vinte e quatro. Mas são só dois. Se colocar um colchão no chão do quarto?
Ele dorme no colchão e ela na cama, assim devagar os pequenos deixarão
de dormir com os dois. Aos poucos passarão a dormir sozinhos.
Pega o colchão do quarto menor e arrasta até o quarto principal.
Encosta no guarda-roupa.
_ Para que isso? Pergunta a mulher.
_ É para o galo.
_ Galo?! que galo?
_ Não tem galo nenhum.
_ Você disse. Vai trazer galo para dormir aqui?
_ Não é nada disso. É para as crianças.
_ As crianças já dormem na cama. Você não está falando coisa
com coisa.
Se o galo tentava... As galinhas resistiam... Milhões de anos de
evolução... Quem sabe daria certo?

VI – Colchão, evolução

À noite só eram observadas as ruas molhadas. A chuva foi


embora. As galinhas dormiam. As crianças descobriram o colchão no
quarto e faziam grande algazarra sobre ele. Iam da cama para o colchão.
A mãe ralhava:
_ Vão se machucar. Cuidado. Não empurra o outro.
Só ficava observando. O plano daria certo. Essa ludicidade está
familiarizando os três: criança, criança, colchão.
_ Hora de dormir. Disse ele.
_ Escovar os dentes. Disse ela.
As crianças correndo.
O colchão arrumado, esperando para ser deitado. Ela deita no

Contos · 59
colchão. Ele na cama. O mais velho deita com o pai. O mais novo, com
a mãe. A luz é apagada. O galo canta. O pequeno chora. Vai deitar com
ele. O galo canta. O pequeno chora. Deita com ela. Ela deita na cama.
Ele deita no colchão. O galo canta. Os dois com ela, ele só no colchão.
É desconfortável. Vira pra um lado, vira pro outro.
Silêncio no quarto. Ela dorme, eles dormem. O galo canta.
Levanta, desce as escadas. Fica um tempo pensando. O galo
afastou os pintinhos? Sobe as escadas. Silêncio total no quarto. Os três
dormindo. Chega à beira da cama, afasta o mais velho, se aconchega
do lado. Antes de dormir sente um pé acossando sua barriga, um braço
sobre seu rosto... Houve o galo cantar pela última vez naquela noite...
Milhões de anos de evolução...

60 · Contos
“Inventário”
Abriu uma gaveta, procurou incansável uma caneta ou
lápis, revirou todo quarto até encontrar. Seus olhos brilhavam de
Menção Honrosa contentamento, de posse, agora, do lápis. Sentou-se na cama, pegou
Edmilson Rodrigues da o caderno, ergueu-o na altura dos olhos. Anote! – disse ele com a voz
Silva estremecida de quem já não tem controle sobre seus atos e pensamentos.
Secretaria de Estado da Abriu o caderno e começou fazer suas anotações:
Educação do Paraná Olho, neste momento, para a parede do meu quarto. Existem
Kaloré inúmeros objetos pendurados. Os pregos martelados ao léu despedaçaram
pedaços dela. Penduraram então retratos, alguns de pessoas, várias, que
eu não conheço. Olho agora pra um desses quadros e o que vejo não me
atrai nem um pouco. Um velho de cabelos grisalhos olhando pra mim e
sorrindo. Vejo saindo de sua boca apenas uma palavra. Ouço o desenho
dessa palavra e sei que nunca me deixará.
Existem mais quadros, todos eles com molduras extravagantes,
umas de madeira, outras de metal, uma de madeira com cantoneiras de
metal dourado e outro prateado. O espelho também está pendurado. O
espelho é misterioso, pois mostra tudo aquilo que agora preciso anotar.
Tudo o que quero está dentro do espelho e não consigo alcançar. Preciso
descrever e ser exato. Não gosto do espelho. Sinto inveja dele. Ele tem
tudo e eu nada.
À minha direita, outra parede do quarto. Há uma grande
janela. E mais pregos batidos enfeitando o que ainda resta do reboco. A
janela é enorme, mas eu nunca abro. Prefiro deixar que se abra sozinha.
Eu exercito meus pensamentos pensando o que há através dela. Não
tem cortina minha janela e não dá pra lugar nenhum. Lá fora sei que
tudo é vago. Minha janela é um espelho que nunca me refletiu. Fica
fechada sempre. Seus vidros estão todos embaçados e eu acho melhor
assim. A poeira amarelada já toma conta de todos os espaços vazios. Não
posso ver através dos vidros. Vejo. Mas o que vejo não é nítido e assim
me interesso pelas coisas que não posso distinguir claramente. Não há
paisagem através deles. Não há perspectivas que levem a me interessar
pela apreciação pura e simples do que não faz parte de mim. Prefiro
apenas imaginar e anotar.

Contos · 61
Na parede oposta à da janela está meu guarda-roupa. Duas portas
e quatro gavetas apenas. Pintado de branco. Embaçado. Encardido.
Puxadores de metal nas gavetas e portas, daqueles parecidos com alças de
caixão. Há atrás daquelas tão horrendas portas, que abri muito, durante
muito tempo de minha vida, um vazio que finalmente consegui vencer.
Vazio que esconde o excesso de coisas que me eram importantes. Não
há mais nada. Antes de começar escrever, abri pela última vez aquelas
famigeradas portas. Nas gavetas também não há mais nada. Há muito
tempo que ali não tem mais nada. Nem meias, nem ceroulas, nem nada.
Olhando daqui, posso ver que existe algum objeto debaixo dele, mas
não é nada com que deva me preocupar nesse momento. Somente quero
escrever.
Do lado esquerdo do guarda roupa fica a porta, que dá pro
corredor, que vai parar na sala, que por sua vez encontra a porta que dá
para o mundo. Prefiro meu quarto. A porta fica fechada. Sempre.
Do lado direito do guarda-roupa fica o que sobra da parede, com
mais alguns pregos maltratando, com os mesmos objetivos, o reboco.
Em alguns deles estão penduradas roupas, sacolas, bolsas. As roupas
penduradas ali estão todas sujas, pois já não as lavo há muito tempo.
Nas sacolas, posso ver daqui, estão todas guardadas, seguramente, de
mim mesmo, objetos que já não uso mais. Não me lembro exatamente
quais são, mas sei que os coloquei lá. Lâmina de barbear, sapatos, pentes,
escova de dente, meias, relógios, anéis, óculos ... tudo ali, na segurança
das sacolas penduradas nos pregos pregados em minha maltrapilha
parede.
Na última parede, onde me encontro agora sentado na minha
cama, fica a cama. Minha eterna e única companheira de uma vida que
achei que nunca chegaria ao fim. Minha cama foi e é muito firme. Feita
de madeira nobre, vermelha. Muitos colchões passaram por ela sem que
ao menos afrouxasse os encaixes. Aqui eu durmo.
Dormi muitas noites que não merecem ao menos serem
lembradas. Passei também inúmeras noites acordado olhando apenas
pro meu quarto, e ele, acordado como eu, sempre me compreendia.
Entendia minhas razões. Nesta parede também há pregos, mas não há

62 · Contos
nada pendurado. Usei todos os outros das outras paredes. Eles foram
mais que suficientes pra eu fazer a pendurança dos trecos e coisas que já
foram meus. Agora não mais, pertencem a ninguém.
Pregos e paredes donos de mim. Espelho que guarda a vida que
um dia existiu nesse quarto. Quadros e retratos que mostram verdades
que não são minhas. Guarda-roupa me dizendo neste momento, com
suas portas e gavetas, que eu vivi inutilmente. Mas não acredito muito
nele. Sei que minha vida agora se esgota, mas sei também que tudo o
que fiz teve um sentido. Teve sentido. Anoto e isso me traz conforto.
Minha vida na ponta deste lápis. Resto de esforço pra deixar algo além
de um quarto.
Despontado como este lápis, me entrego finalmente ao que
esperei e busquei minha vida inteira. Minha cama e colchão, meu
caixão. Meu quarto, meu túmulo.

Contos · 63
“O despertador”
Estava caminhando ofegante pelo atraso. Mal observava o
caminho na pressa de chegar logo ao trabalho, era a terceira vez em
Menção Honrosa cinco dias que seu despertador não a acordava no horário. Enquanto
Everton Ribeiro corria, pensava numa desculpa para dar ao chefe balbuciando:
Secretaria de Estado da _ Se eu falar de novo do despertador, ele não vai acreditar.
Educação do Paraná Hoje, ainda, o problema era pior, pois além dos constantes
Colombo atrasos, uma reunião com o responsável pela matriz começaria
pontualmente às oitos horas. Além do mais, não conseguia esquecer da
forma categórica como o chefe se despediu dela na tarde anterior:
_ Amanhã às oito horas, dona Leda. Compre outro despertador,
pois a desculpa na mesma semana, pela terceira vez, não vai colar
amanhã.
Corria pelas quadras. Se tivesse realmente comprado outro
despertador como o chefe havia recomendado não estaria passando pelos
mesmos apuros neste dia. Quando olhava o relógio, mais aumentava
seu desespero, eram oito e trinta e cinco e sabia que dessa vez a desculpa
não poderia ser a mesma. Já imaginava a repreensão que sofreria por
parte do chefe e dos colegas:
_ O despertador quebrou de novo, dona Leda? Ou será que a
noite foi tão boa que nem o sino da catedral te acordaria hoje?
Começariam a rir em tom de deboche e ela ficaria ouvindo
piadinhas o dia todo. O pior seria o constrangimento diante do gerente da
matriz. E se ela fosse despedida? Dobrou o último quarteirão e irrompeu
a porta do edifício. Nem um bom dia à recepcionista deu tempo, senão
perderia o elevador que ainda estava no térreo. O elevador chega ao
quarto andar, corre ao escritório trôpega, eram oito e quarenta, corre à
sala de reuniões sem nem observar os demais no escritório. Abriu a porta,
entrou devagar para não atrapalhar o andamento, mas foi inevitável,
todos a olharam com censura, principalmente o chefe com sua cara de
poucos amigos como que querendo dizer que eles precisariam ter uma
conversinha depois. Sentou-se à mesa, calada, sorriu amareladamente
para uma amiga íntima e começou a acompanhar os encaminhamentos.

Contos · 65
A pauta já estava no penúltimo tópico, por isso percebeu que não
demoraria para ser questionada a respeito dos relatórios de vendas. O
gerente falava que a edição da revista precisava encontrar um diferencial
para que a queda de vendas fosse combatida:
_ Quem apresentará os relatórios de vendas dos últimos
meses?
Era a vez de Leda. Todos a olham como que esperando sua
manifestação, fulminando-a. Como estava atrasada, provavelmente
pensavam que havia ficado de última hora preparando seus relatórios.
Pensou em pedir desculpas pelo atraso, mas se falasse a verdade, de que
seu despertador não havia tocado, seria ridicularizada. Preferiu iniciar
de uma vez a comunicação dos resultados para não ficar mais nervosa
do que já estava.
_ Bom dia a todos. De acordo com os gráficos que realizei
neste mês para melhor visualização das vendas, percebe-se uma queda
gradual e muito significativa da venda da revista de janeiro para cá.
Em dezembro, havíamos vendido mais de um milhão de exemplares,
enquanto em maio, conseguimos atingir a marca de apenas trezentos
mil exemplares.
O comunicado agitou os ânimos da equipe. Todos sabiam que
em época de crise, um desfalque nas vendas, desta proporção, significava
corte de pessoal. Intervindo no burburinho, o gerente da matriz coloca
às claras:
_ Uma diminuição tão chocante nas vendas prevê corte de gastos.
Cabe à equipe tomar uma atitude se quiserem continuar integrando o
quadro de funcionários da editora. Vocês teem exatamente vinte dias
para colocar nas bancas uma revista que recupere a marca que atingimos
no ano passado.
O gerente havia sido, realmente, categórico. A preocupação no
escritório foi instaurada e o assunto entre os colegas nem havia como ser
outro. Leda limitava-se a acenar com a cabeça quando era questionada
sobre o que fazer. Não sabia. Havia estudado Jornalismo, pois sonhava
com o dia em que seria reconhecida pelo seu trabalho, visitar países,
levar notícias a todas as classes, todos os indivíduos. Fazia o retrospecto
de seus desejos e ficava totalmente apavorada diante de sua realização
profissional: limitou-se a trabalhar numa editora de uma revista de
fofocas, que nada acrescentava ao seu leitor. O que ela estava fazendo?
Saiu do escritório quarenta minutos após seu horário, para
compensar o atraso. Já estava ficando acostumada em sair à noitinha
do trabalho. Nesse dia, decidiu não ir direto pra casa, estava pensativa.
Sabia que se o corte de pessoal fosse feito, ela seria uma das cotadas,
não se dedicava mais ao trabalho, até seu despertador parecia estar
compactuando com seu desgosto, já que deixara de funcionar. Sabia
que amanhã seria pressionada pelo chefe a produzir notícias exclusivas,
notícias as quais ela não fazia a menor questão de contar. Caminhava
sem rumo, levada pela angústia e pelo medo de ser demitida, tinha
dívidas e não podia correr o risco de ficar desempregada. Avistou os
luminosos do cinema há algumas quadras e pensou consigo mesma:
– Nossa! Há décadas não vou ao cinema, ou melhor, há décadas
sequer assisto a um filme.
Decidiu entrar para ver o que havia em cartaz. De repente
encontrou um filme interessante e espairecer um pouco diante de tantas
turbulências a faria se sentir melhor, ao menos. Entrou no cinema
encantada. Nem reconhecia mais o espaço, todo arrojado, com novo
design. Comprou o ingresso para a sessão mais próxima, nem se deu
ao trabalho de descobrir o gênero do filme, só sabia que se chamava
O Despertar. Depois que comprou, pensou que poderia ser aqueles
dramas que faz você chorar do começo ao fim e que não faria nada bem,
para ela, neste momento. Mas não era. Leda se divertiu do começo ao
fim do filme, dava gargalhadas que a fazia sentir dores na musculatura
facial, até seu riso estava enferrujado. O enredo do filme tratava de uma
comédia sobre os constantes atrasos de funcionários de uma empresa,
até o momento que a chefia toma uma atitude para aumentar a auto-
estima da equipe.
Leda saiu feliz do filme, mas voltou à vida real. Como queria
que as coisas do filme pudessem acontecer de verdade, mas a vida real
nunca é tão simples. Estava dando uma volta no shopping quando
avistou uma vitrine que dizia “Desperte-se nas férias”. Era uma agência

Contos · 67
de turismo e, como ficou curiosa, entrou para conhecer os pacotes. Os
valores realmente eram muito bons. Lembrava-se que nunca havia ido
ao exterior por sempre achar fora de seu orçamento e agora era uma
chance: reservou as passagens e, decidida, conversaria com o chefe no
dia seguinte, afinal tinha quinze dias de férias vencidas há quase dois
anos. Durante tanto tempo preocupou-se em saber notícias quentes da
vida pessoal dos outros e pouco se preocupou com a sua própria. Sentiu-
se gélida.
Conseguiu chegar às oito no escritório naquele dia. Todos até
acharam estranha tamanha pontualidade de Leda:
_ Nossa! Será que ela caiu da cama com o despertador novo? –
ouviu um burburinho de longe, mas nem perdeu seu tempo em relutar.
Seu foco era a conversa com o chefe.
Deixou sua bolsa na mesa e dirigiu-se à sala do chefe ansiosa.
Ele estava lá, parecia que lhe aguardava. Bateu na porta, acenou, ele fez
um sinal para que ela entrasse.
_ Bom dia, dona Leda! Chegou no horário hoje? Finalmente
compreendeu que temos pouquíssimo tempo para reerguemos nossa
revista? – fala o chefe com certa ironia.
_ Bom dia, senhor Roberto. Cheguei no horário porque
precisava lhe fazer uma comunicação antes de iniciar as atividades
do dia. Quero a concessão dos meus quinze dias de férias a partir de
amanhã – Leda retruca objetivamente.
_ Você quer tirar férias nas condições em que estamos na
editora? Isso é um absurdo!
_ Absurdo é eu querer reerguer uma revista sabendo que quem
não consegue se levantar sou eu mesma. Além do mais, terei cinco dias
no retorno das férias para tentar. Você pode comunicar o Financeiro
para mim? – sai da sala com ar de vitória. Que bom que aquelas palavras
apareceram naquele momento. Hoje faria seu trabalho ansiosa para
embarcar amanhã.
Quinze dias na Europa. Leda achava que seria apenas um
sonho, mas agora era verdade. Conheceu Lisboa, Madri, Veneza, Roma,
Paris, Berlim, durante tantos dias respirou arte, cultura, história, vida.

68 · Contos
Viveu! Agora se sentia mais viva, mais informada, mais proprietária de
conhecimento. Voltou para o Brasil, cheia de si, renovada.
Chegou pela manhã no escritório, no dia seguinte, nem eram
oito horas ainda. Descarregou sua máquina fotográfica, fez algumas
anotações, cumprimentou os colegas animadamente. O chefe ainda não
tinha chegado. Gostaria de marcar uma reunião, mas precisava de sua
presença. Ele chegou quase às nove horas. Pediu desculpas à equipe, mas
Leda não tinha sido observada por ele, mas escutou quando cochichou
para uma colega sua:
_ Acredita que meu despertador não funcionou hoje?
Leda se aproximou, um súbito constrangimento subiu à tez
rosada do chefe. Havia censurado tanto a funcionária para constatar que
era possível se atrasar pela falha do despertador. Meio envergonhado,
perguntou:
_ Dona Leda, como foi a viagem? Chegou cedo pelo visto
hoje.
_ Foi ótima, fiquei satisfeita. Sim, cheguei cedo e já consegui
fazer alguns relatórios para nossa nova edição. Por que não falar da
gente?
Todos entreolharam-se. Parecia que Leda havia adivinhado
que nada havia sido feito na sua ausência. Tudo incorria na mesma
formatação de reportagem de fofoca repetida em todas as outras revistas
da categoria. Entregou as fotografias ao chefe com as legendas e alguns
rascunhos, certa de que seria um sucesso. Seria a reportagem de capa.
_ Gostaria que o senhor olhasse e dissesse o que acha. Essa é
minha contribuição para a nova edição. Afinal, as pessoas querem saber
mais sobre si mesmas. Ah, e outra coisa: trouxe esse folder para o senhor,
da agência de turismo, caso continue tendo problemas com atrasos. Só
para que o senhor saiba, eu encontrei meu novo despertador.
Naturalmente, Leda dirige-se à mesa, senta-se ao computador, e
começa a digitar o editorial da nova revista. De repente, toca seu telefone,
algo que não acontecia há certo tempo. Atende, com segurança:
_ Bom dia, Leda. Em que posso ajudar?
_ Alô, senhorita Leda? Aqui é Carlos, o gerente da matriz,

Contos · 69
soube de suas idéias para nossa nova edição. Podemos jantar hoje para
conversarmos?
_ Olá, senhor Carlos. Certamente podemos conversar sim, será
um prazer. Até mais tarde – Leda fica atônita, mas logo constata seu
grande trunfo.
_ Pelo visto, o que não vão me faltar daqui pra frente serão
despertadores. E não são dos reloginhos que eu estou falando – caiu
numa gargalhada compulsiva como no dia que assistiu ao filme no
cinema. Todos no escritório a observavam perplexos, como que querendo
entender a razão de tanta alegria. Já estavam acostumados em apenas
figurar na história de outros protagonistas.

70 · Contos
“O peixe de magrarida”
“Não basta dirigir-se ao rio com a intenção
de pescar peixes; é preciso levar também a rede.”
Menção Honrosa Provérbio chinês
Paulo Martins
Tribunal de Justiça do Na aldeia era aquela gozação em cima da pobre Magrarida,
Estado do Paraná miúda de carnes e farta de espinhas. Para se ter ideia da criatura, e não
Apucarana gastar a justiça em vão, dir-se-ia que sua cintura poderia ser medida a
dedos de camaleão. Se Magrarida magra era, magra ficou.
Desditava a moça do nome em sua corruptela. Não havia
então de ser Margarida? Margarida fosse, mais estofada seria. Mas se
a natureza, capenga de um lado privou-a de carnes, serviu-a de outra
banda, pois eis que singrava em seu peito o doce mel da poesia. Rimava
rimando, brincava brincando. Fina no corpo, fina no verbo.
Por conta da secura enraizou hábito de haver-se solitária, longe
nos ausentes. Pelos campos perambulava e não dava prosa, versejando
misérias e amores, catando gavelas de suspiros. Sucedia que, quanto
mais versejava, menos a vida versava nela mesma. E ia rimando desejo
com ausência.
Magrarida, mantida sob severas vistas pelo pai, não nem tinha
consciência de si. Sentia apenas que seu coração saía dela a ausentar-
se do corpo, em busca de si mesma nas palavras lavradas em dor de
amor. Metade dela era poesia, o restante um assim indecifrável bordejar
esperança. O amor que paria em fecunda poesia não gerava paixão de
homem em seu fino corpo.
Ainda refém-nascida, Magrarida foi desamparida pela mãe, que
abalou alhures com um açougueiro, e desbotava os dias cricrizando com
poesia o pai, Sr. Benevisto, enquanto o amor não vinha. Esperava fisgar
peixe grande com o anzol da poesia. E sofria, esforsuando-se para ser
amada.
Mas, porém, todavia, entretanto. Eis que naqueles campos
raiou um moço formoso. E Magrarida o viu, embora ele não tenha visto
Magrarida. Pelo menos não a vira como ela queria ser vista. Assim mesmo

Contos · 71
o coração de Magrarida abriu fervura de amor, o olho relampiscando de
urgência. E foi o bastante para bulir com seu sentimento, amanteigando
a polpa do seu coração. O nome dele era DoisBerto Peixoto e isso
calhava bem com o dela, pois de modo que não era apenas ela a ter
nome inominado. E com justeza o laço requisitou as duas pontas para
se fechar: ingrato por ingrato o nome de um juntava ao do outro num
só ato, no pulo do gato. Sem distrato, o cerne do trato.
Eis que Magrarida sentia que na primavera da alma desabrochava
a flor do amor. Faltou chão, faltou ar, sobrou paixão.
Caso é que DoisBerto deixou cair pelo caminho uma réstia
de esperança, que Magrarida colheu num buquê. Falando com ela, dia
desses, chamou-a de coisa fina. Que magra, que nada, ela era mesmo um
biscoito fino, que ele não temia os espinhos, nem as espinhas, mas o belo
da rosa, ou da Magrarida. O convexo do olho dela rebrilhou de tontura,
e a boca descosturou num sorriso. Entonteceu toda a magra Magrarida,
que quedou-se pálida de amor. E ela resolveu zelar de DoisBerto, aquele
seu peixe fisgado. Pois assim estava o espírito da moça: em estado final
de pescaria.
É verdade que perguntou ao seu peixe porque seu nome era
assim.
_ Acontece - disse ele - que meu pai é o ZeroBerto e meu
irmão primogênito chama-se UmBerto. No natural da lógica o próximo
rebento seria DoisBerto, e cá estou para dar seguimento à família.
Embora a coisa entre os amantes estivesse mais indo que
ficando, aos grampos e tamancos, dia veio que coisa misteriosa sucedeu:
deram conta a Magrarida que DoisBerto estava com a cabeça enfiada
dentro da água do rio com os pés apontando para as estrelas.
_ Começou começado quando isso?
_ Venha ver, Magrarida, que ‘isso’ é coisa dormida de ontem.
Magrarida viu e desviu. Custava crer que DoisBerto se prestasse
a tamanho disparate. Gritou todos os verbos e adjetivos, mas nem bulha.
Aquele predicado par de pernas assim ficou, dia que dia. Não descia
nem subia, não andava nem desandava.
Alguém sugeriu que fossem de bote acudir o estranho náufrago,
que aquilo era coisa de espanto. Magrarida embargou a pretensão.

72 · Contos
_ E se o navegar do bote afundar e afogar de vez meu peixe na água?
_ Se afundar, que afunde.
Magrarida protestou, ameaçou suicidar a vida.
_ Olha que me apincho rio abaixo.
Mais não disse.
O caso é que juntou gente na borda do rio, para ver o estranho
peixe, uns já chegando com cara de saída e outros saindo com cara de
chegada, todos zunzunando em parolices. Quando o céu pichou-se de
grafite já pela tarde, a caterva foi raleando na borda do rio, a ponto de
restar apenas Magrarida na sua beira. Sem eira nem beira.
No breu, Magrarida ficou vagalumeando entre a cruz e o
sacristão. E tonteando a caixa das ideias, quis achar que uma das pernas
do peixe se tinha ido. Abotoou e desabotoou os olhos. Espiou e era
fato. Ficou apenas uma delas, como haste de esperança. Tremexeu
todo seu coração míope, e a poetisa senhora ficou do amarelo pálido
de defunto morto. No céu rolaram trovões secos, trovão sem chuva,
chuva sem água. No grave das horas da noite, entretantemente, deu
de faiscar chuva e chover raios, ribombar relâmpagos e riscar trovões,
mas Magrarida não chovia nem deschovia. Nada via, DoisBerto queria.
Coisa é que o sarilhar da chuva barrigou o rio, que subiu muito bem
subido. Desandou.
Quando o dia acordou, já Magrarida desacordava. Estava
encharquilhada pela chuvarada. Nem pôde ver que a outra perna havia
sido consumida pela água. De modo que ao tomar corpo de si ela pensou
que tivesse os olhos engripados e rapinados pela miragem. Na planura
do rio nem não se via sinal de DoisBerto. Decerto já estava no soalho do
rio. E Magrarida morreu pela vez primeira, de desgosto.
Magrarida mais Magrarida ficou, colou pele com osso, sobrando
saliente apenas as bolas dos olhos. Veio família, sacerdote e polícia, para
dialogar e noitelogar, mas Magrarida abriu questão: ou revejo DoisBerto
ou me dano em solidão. Morro de morte morrida. E morreu pela
segunda vez, de solidão.
Até Zeca Faz-de-Conta Zeca, andrajoso pedinte, deu sua
faminta opinião: “vê se ao menos come um peixe, Magrarida, para
continuar a vigília. Se não, tu morre.”

Contos · 73
Magrarida palavreou que já tinha mesmo morrido antes de
morrer, de modo que não seria surpresa. “Morrer de verdade mesmo a
gente morre por de dentro”. E dizia: DoisBerto há-de voltar! E chorava
do caso ao ocaso. E morreu pela terceira vez. De amor.
Passa o tempo, fica o esquecimento. Magrarida tanto tempo
esperou que o tempo restou congelado no tempo. Um dia, quando
todos já a chamavam com nome e sobrenome de malouca, no meio
do rio surgiu a ponta de um dedo, mais unha que dedo, com ar de
quem convida para passeio, coisa bastante para Magrarida pinchar-se
de mente e dente dentro da água. Agarrou o desditoso dedo e, com o
dedo em riste, apaixonadando, navegou para a linha onde o céu encosta
na terra e nunca mais ninguém a viu. Decerto morreu pela quarta vez,
totalmente apeixonada. E não tinha mais espinhas na cara, mas no lugar
da coluna, peixote que tornara-se.

Essa é a história que Lolita conta na aldeia de pescadores


quando os homens reclamam que não
chove mais amor como chovia antanho.
Amores são muitos, DoisBerto é que é um só.

74 · Contos
“Segunda-feira”
Acabo de chegar do meu estúpido trabalho cansada,
moída; enfim, sem nenhuma vontade até para pensar. Despejo
Menção Honrosa minha bolsa no sofá e como uma morta-viva me arrasto pela
Rafael Henrique Caneparo casa. Andei sem rumo até que o avistei, estático sobre a mesa
Secretaria Especial para da cozinha. Atraída pelo seu cheiro fui em sua direção. No
Assuntos Estratégicos - caminho pensei: "Como seria ter a vida dele? Com certeza não
CELEPAR teria de trabalhar!" acabo rindo da tamanha besteira produzida
Curitiba pela minha mente. Novamente sou invadida pelo seu cheiro,
que vai me dominando a cada passo. Acendo a luz, sua tez
dourada reflete-a tão maravilhosamente. Sou tomada pela
felicidade, é como se os deuses me presenteassem com esta
visão esplêndida. Por um momento fico só contemplando-o,
mas logo tenho a necessidade de sentir o seu corpo.
Então, delicadamente o toco, minhas mãos tremem, a
imagem do doutor Aristíades invade meus pensamentos com
o dedo em riste e gritando "Profana! Tocaste-o!". Recuo por
medo, mas agora é tarde; minhas mãos clamam pelo seu corpo
e quando percebo já estou acariciando sua massa macia. A fera
interior extasiada pelos sentidos do tato e do olfato assume o
controle e manda atacá-lo. Aperto-o com força animalesca e ele
jorra em mim seu líquido grosso. Ofegante, não me contenho
mais, lambo o líquido escorrido pelo corpo seguindo até sua
fonte. O gosto salgado inunda minha boca, "eu tenho que
degustá-lo por inteiro".
Os lábios encontram a massa e ao contrário do que
imaginava não sinto culpa, sinto prazer. Me entrego às minhas
necessidades, a sensação é ótima! Um grito libertário explode
da minha alma "Dane-se, doutor!!". Como um animal faminto
cravo meus dentes em seu corpo macio, rasgando-o com
violência. Saboreio o pedaço e só quando já está em minhas
entranhas percebo o que fiz.

Contos · 75
Desabo no chão derrotada pelos meus instintos;
deformado pela dentada ele ainda está inerte em minhas mãos.
Olho-o e já que não posso mais voltar atrás dou-lhe outra
dentada. Agora vou comer até o final, se bem que eu preferia
um sanduíche com pão integral e sem tanta mostarda.
Lá se foi o meu regime, mas sempre haverá outra
segunda-feira.

76 · Contos
“Solidão”
O que me resta é observar um bocado de gente perdida num
mar de asfalto e cimento e desejar ser um deles. Exalo um aroma
Menção Honrosa interiorano que às vezes causa saudade, mas quase sempre revolta.
Silvia Montanari Sou casada, tenho dois filhos. Gosto da minha família e procuro protegê-
Companhia de la, mas preciso de espaço, de tempo, de silêncio. Na minha casa não
Saneamento do Paraná encontro nada disso. Dizem que faço drama por motivos fúteis. Dói
Curitiba tanto isso. Por que todos se acham no direito de interferir até naquilo
que tenho de mais íntimo?
Sou casada, tenho dois filhos, meu marido é homem bom,
mas não sabe conversar sobre nada que não envolva a sua profissão. É
eletricista, passa horas falando sobre: quadro de comandos, corrente,
tensão... Depois só lembro que fiquei dizendo é! Nossa! Ram, ram!
Os garotos querem ser meus donos, o que me salva é que
passam a tarde na escola e fico livre para andar, observar, sonhar e me
livrar do manheêêê, que usam sempre antes de reclamar um do outro e
pedir, pedir. Será que filho é só isso? Estou me sentindo culpada. Não
devia ter colocado nenhuma vida neste mundo. Agora o que devo
fazer? Deixá-los com o pai? Deixar o pai e levá-los comigo? Manter a
família unida? A vontade de abandoná-los se esvai quando me abraçam,
acho tão gostoso, parece que o coração vai explodir de tanto amor.
Os afazeres da casa negligencio. Se as meias dos meus homens
estão furadas, as zorbas sem elástico, as calças sem barras, as camisas sem
botões, faço uma trouxa e jogo tudo fora. Meu marido outro dia quase
teve um colapso quando procurou cuecas e não achou. Disse que por
minha culpa estamos falidos, que esbanjo tudo, que não arrumo nada
e que, nem que trabalhe vinte e quatro horas vamos construir alguma
coisa. Fiz de conta que não ouvi e falei numa promoção de meias
e cuecas das Lojas Americanas. Aproveitei e pedi que comprasse,
ou me desse dinheiro, para comprar também para os meninos. Ele
saiu batendo a porta. Os meninos me olharam acusadoramente.
Perguntei se queriam bolo de laranja. Como não responderam, fui ler.
Logo os dois começaram a gritar e se estapear, e como não dei atenção,

Contos · 77
se jogaram no meu colo fazendo o livro cair. Acariciei-os, e como não
paravam de chorar, mandei que fossem chorar no quarto. Que mania
que criança tem de ficar choramingando no ouvido da gente!
A minha mãe disse que Deus me dá tudo de mão beijada e
que não sei agradecer, só exigir. Por minha culpa seu genro e netos
vivem desmazelados e a casa deles uma imundícia. Perguntou-me
se não tinha vergonha e quando falei que importante era eu estar limpa e
cheirosa e que eles eram bem grandinhos para se cuidarem, esconjurou.
Depois prometeu mandar a empregada duas vezes na semana para fazer
a faxina. Mesmo convicta de que não era aquele tipo de ajuda que
precisava, estava me dilacerando e ela preocupada com a casa. Depois
que saiu me arrependi de ter sido grosseira. Sou mesmo uma megera,
preciso mudar.
Visitei um endocrinologista. Aproveitei para falar da depressão,
da vontade de nada. Ele mandou fazer exames de hormônios e
receitou antidepressivo. Quando passei na farmácia achei o preço
exorbitante, joguei a receita e o pedido de exames.
É melhor não comentar que fui ao médico, vão achar que devia
ter procurado um psiquiatra, ninguém admite que sofra de solidão
uma mulher casada. Mas não estou preocupada com o que os outros
pensam, a minha auto-estima é que está baixa.
Ontem estava chovendo e quando isso acontece sinto-me
prisioneira, é muito triste passar a tarde sozinha, principalmente
quando não se tem ânimo para fazer nada. Leio, ando de um lado
para outro, como, assisto televisão. Às vezes faço tudo ao mesmo
tempo e sinto que de um momento para outro posso me decompor. É
tão mórbido isso, mas é a verdade. Para mudar a rotina fui ao cinema.
Vi um homem que não sai da minha cabeça. No saguão estávamos
sós, insistiu em olhar, mas não consegui encará-lo, estava inibida, e
para disfarçar, fingi olhar os cartazes. Senti o calor do corpo dele, tão
próximo chegou. A minha vontade era voltar-me e abraçá-lo, mas fiquei
com medo que interpretasse errado. Sou rançosa de moralismo, mesmo
que tivesse nascido no século XIX seria ultrapassada.
Quase todas as noites brigo com o almoço e ingiro água
compulsivamente. Fosse só o distúrbio gástrico! Não estou legal,

78 · Contos
procuro a salvação e não sei como me proteger; temo ser devorada
por essa inquietação. Olho para meu marido e tenho vontade de
acordá-lo para falar tudo que sinto, mas desisto, não vai entender nada
mesmo e já deu vários sinais de que credita a mim o fracasso do nosso
casamento.
Tornei-me uma personagem forte e pungente e ofusquei
aquelas que viviam dentro e ajudavam a suportar o cotidiano. Estou
só, sou muro de lamentações e isso faz mal, muito mau, principalmente
porque sou arrimo meu e é tão mais fácil abandonar os outros.

Contos · 79
80 · Contos
“Pedra de espia”
Um

Menção Honrosa Quando alguém gritou “tainha, tainha ...” formou-se um grande
Hamilton Bonatto furdunço na praia. Era gente correndo para todo lado. As crianças iam de
Secretaria Estadual de casa em casa gritando: “olha o cerco ... tainha, tainha”. Era o “arrastão”.
Obras Públicas O grito que vinha lá da pedra mais alta era do “espia”. De lá
Curitiba ele ficava para ver se os cardumes de tainha estavam chegando. Coisa de
especialista. O espia via o cardume chegando através de uma mancha
escura no mar. Todos tentavam ver, mas poucos conseguiam. E como
ele, ninguém. Era um “farejador” de peixe.
Era uma figura impressionante, magro como um “pau-de-vira-
tripa”. Devido a sua magreza, os amigos o chamavam de “Cambira”,
nome dado ao peixe seco ao sol. Onde estava em poucos minutos se
fazia uma roda. Ninguém sabia contar anedotas como ele.
Ao seu grito de “tainha” todos obedeciam, sabiam de sua
experiência. E Cambira tinha orgulho de dizer; “meu corpo está aqui na
pedra, mas meus dois olhos estão debaixo d’água do mar”. E era verdade!
Não havia tainha que passasse despercebida por ele. “Só se a tainha for
invisível”, ironizava ele.
Fiquei impressionado como tanta gente corria depois do grito e
dos assovios do Cambira.
Cheguei mais perto por pura curiosidade, depois corri chamar
papai que ainda desmanchava as malas da viagem, acabávamos de chegar,
era mês de junho.
Papai apontou para o Cambira, tentando entender o que
aquele homem estava tanto a gesticular lá de cima da pedra. Parecia um
maestro: cabelos longos, despenteados, “tipo profeta”, na frente calvo,
testa bronzeada e brilhante, de gente que não sai do sol. Havia uma
elegância nos gestos que coordenavam o arrastão, numa autoridade
invejável, sabia a sinfonia de cor. As roupas não eram de maestro, calça
dobrada até as canelas, camisas sem botões, amarradas na altura do
umbigo, nos pés, sandálias alpargatas.

Contos · 81
Conforme seus gestos, todo mundo se movimentava na praia.
Não tinha uma batuta, mas um chapéu velho de palha, cujos movimentos,
compreendidos por todos que estavam lá, faziam parte da orquestra
que se apresentava. Eu e meu pai éramos espectadores. Gostávamos
da “música”, mas não entendíamos os gestuais do maestro. De repente
Cambira fez um movimento maior e os pescadores empurraram suas
canoas para a água, buscando o local indicado pelo maestro, para fazer
o “cerco” à tainha. Começava o arrastão!
As canoas e os pescadores desenvolviam um balé. Em cada batel,
quatro ou cinco homens. Cercavam os cardumes de peixe, orientados
pelo espia e agora pelo “dono da rede”, o Teodoro Apolinário, jovem
forte, com uma liderança sobre os demais que não precisavam além de
um olhar para seguir suas orientações. Enquanto Teodoro conduzia as
canoas arrastando o cardume para a praia, os demais pescadores, de pé
na água, cercavam pelo lado oposto, para os cardumes caírem na rede.
Aquela rede tinha umas 300 braças, 500 a 600 metros.
Pela alegria de todos a pesca foi boa. Uns diziam 4000 tainhas,
outros 5000, outros que não passava de 3500, e alguns chegaram a
estimar 6000. Teodoro Apolinário, com olhar de especialista, virou para
o Cambira, e decretou ... “5000”. O espia, com olhar de magistrado,
confirmou: “... umas cinco mil, se mais ou menos, muito pouco”. Pronto,
a contagem estava feita. Independentemente de quanto cada um havia
estimado, o que prevalecia era a “contagem” do dono da pesca, o
Teodoro Apolinário. Esse era o costume, era a lei. O dono da pesca
dividiu o monte de tainhas em três menores, e a olho, ficou com uma
das partes. O restante dividiu entre todos os demais pescadores, dando
uma parcela maior para os donos das canoas e para o Cambira, uma um
pouco menor para os camaradas que estavam nas canoas e uma parcela
um pouco ainda menor para aqueles que colaboraram cercando a rede
pela praia a pé. Ninguém ficou sem o seu quinhão. Eu e meu pai que
fomos junto e ajudamos no cerco, ganhamos o nosso! Papai disse que
não era preciso, que não deu nenhum trabalho. Seu Teodoro Apolinário,
como fez com todos, jogou o quinhão de tainha aos pés de papai e disse:
todo mundo que trabalha é merecedor. Parou um pouco, olhou-me nos

82 · Contos
olhos como se dissesse que o quinhão também era meu, e continuou a
dividir com os demais ajudantes.
Teodoro Apolinário reservou um quinhão para o Mané Bagre
que estava de adoecido na cama. Ninguém reclamou, ao contrário,
acharam bem lembrado.
Cada um foi saindo com seu quinhão. A praia aos poucos foi
se aquietando, parecia que nada daquilo tinha acontecido. Não fosse
o barulho da criançada que ficou na praia como eu, seria só o som do
mar.
A maioria dos pescadores vendia seu quinhão para um homem,
que ficava no combro da praia. Era o Gercino, que comprava peixe e
camarão dos pescadores e vendia na Capital. Pagava cinquenta centavos
o quilo e vendia por vinte cruzeiros para os hotéis da capital. Dizia:
- Se quiser cinquenta, pega, senão deixa os peixes apodrecerem e
virarem comida de urubu.
Era 1945. Eu com doze anos. Havia muitas crianças de minha
idade, mas eu não conhecia ninguém, até que uma menina, de mesma
idade se aproximou, e sem sequer perguntar naquele momento o meu
nome, de onde vim ... nada, chamou para brincar com todos. Aí começa
minha história.

Dois

Brincamos na areia, andamos em direção às canoas na praia,


sobre as estivas.
“Ia, é assim que todos me chamam. Você também pode me chamar
de Ia”. Assim que Maria se apresentou quando perguntei o seu nome. Se
eu quis saber o nome da minha recém conhecida, ela, por sua vez, quis
saber tudo sobre minha vida. Menininha curiosa estava ali!
Seu jeito já dizia tudo. Olhos negros, vivos, curiosos. Seu olhar
penetrava os meus, ela não queria saber apenas o que eu estava dizendo,
mas o que eu estava pensando. A cada resposta, nova pergunta, e outras,
e outras ... Interessante é que não me incomodava, mas me divertia
e tranquilizava, pois recém chegando já tinha alguém para conversar.

Contos · 83
Gostava da reação dela às minhas respostas: quando ria, gargalhava;
quando se entristecia, chorava; quando se admirava, arregalava os olhos.
Nunca meios sentimentos. Terminava de gargalhar dizia: conta mais; e
aí?! O que aconteceu depois? Sempre buscando mais detalhes. Muitas
vezes, olhava pra cima e dizia: essa eu queria ver! Eu queria estar lá!
Ia era Filha do Teodoro Apolinário, gostava de saber sobre tudo,
e quando eu perguntava algo sobre ela, geralmente respondia com outra
pergunta, e quando eu via, estava contando um pouco mais sobre mim,
sob os mesmos olhos arregalados.
-Tudo bem, seu Cambira? Ia cumprimentou o espia com
reverência.
-Bom. Disse Cambira – Pesca boa!
Cambira era agricultor, como a maioria das pessoas que estavam no
arrastão, durante o tempo da pesca da tainha vinha até a Vila dos
Pescadores, quando morava num rancho de palha na areia da praia,
para ajudar na pesca e faturar seu quinhão. Casa rústica e provisória,
feita de tábua, coberta de palha, porta amarrada, chão de areia forrado
com esteira de palha. Acostumou a ficar só, pois a malária o viuvou
cedo. De nada adiantou sua mulher tomar chá de quina e nem mesmo a
“atibrina” que o Serviço Nacional da Malária distribuía. Veio o calafrio
e a febre, até que morreu com dores nos rins, no pulmão, até perder os
sentidos.
-E você rapazinho, de onde vem? Cambira perguntou, e
continuou: - Chegue-se!
Logo vi, outro curioso. Parece que naquela Vila de Pescadores
só havia curiosos.
Fomos chegando mais perto do barraco e sentamos nos bancos
de madeira, usados para entralhar redes. Não era só o Cambira curioso
sobre mim. Ia, aproveitava o momento e fazia mais perguntas. Os dois
combinavam muito. Parecia que faziam uma entrevista comigo. Eu, feliz
da vida com os amigos, contei que morava na Capital, que minha mãe
falecera e que meu pai era pedreiro que veio morar na Vila para fazer a
casa de um banhista.

84 · Contos
Da Capital queriam saber tudo. Quanto mais eu contava, mais
perguntas vinham, uma após outra. Até que aproveitei um momento de
silêncio e perguntei:
-Como você enxerga as tainhas?
-A gente acostuma. Disse ele com a autoridade de um
profissional.- Esse segredo já contei pra Ia, mas “te” conto também: Não é
só enxergar, é sentir que elas veem. Primeiro a gente tem que saber quando
elas podem vir, depois algo avisa a gente que elas estão por perto. O espia
tem que acreditar no que sente, senão não vê. Os outros não conseguem ver
a mancha dos cardumes porque só veem com os olhos. Quando o assunto é
tainha, os olhos sozinhos são cegos. Parou um pouco, olhou para o mar e
completou: - Mas isso não é só com tainha, em tudo, geralmente, os olhos
pouco enxergam! Seu olhar se perdeu no horizonte, como se estivesse
vendo um grande filme naqueles poucos segundos em que olhava para
o infinito do mar.
Perguntei pensando que iria receber uma resposta positiva:
-Deve ser interessante enxergar mais que os outros, não Cambira?
-Que nada menino, seria bom se eu enxergasse só tainha, mas há
coisas que é feliz quem não consegue ver. Esse sofre menos. Ia não deixou
passar:
-Não entendi. Então não é bom ser espia?
-Ser espia de tainha é bom, mas a gente acostuma tanto a ver o que
os outros não veem, que acaba sendo espia da vida, de tudo que acontece.
E quem enxerga mais, reclama mais, conhece as pessoas mais por dentro,
sabe quem é bom, mas também conhece quem não é. Sofre mais! Conhece
a traição, a maldade, a vigarice. É duro conhecer as pessoas que logram os
outros. Lá daquela pedra - Continuou ele apontando para a Pedra de
Espia – De lá eu vejo mais do que eu gostaria.
-Eu tenho tanto a vontade de saber espiar as tainhas e de lá
comandar todo mundo aqui em baixo, fazer igual você, Cambira, com
o movimento do chapéu de palha todos te obedecem, fazem o que você
orienta.
-Pois é, menina, fazem o que oriento porque teem interesse. Não
é o movimento do meu chapéu que interessa a eles, mas é a tainha que vai

Contos · 85
encher suas panças. Sei porque de lá vejo tudo. E quando venho cá embaixo,
vejo os olhos deles. Isso me dói, antes não enxergasse isto.
Tudo era novidade, estava aflito para saber como as coisas
funcionavam, perguntei:
-O que as pessoas farão com todo o peixe de hoje, é muita tainha
pra comer?!
-Esse é o problema. Disse Cambira com certa tristeza nos olhos
– A gente se lasca pra pescar, o Teodoro se arrebenta pra ter a rede, tralhar,
chumbar, nós é que fazemos tudo, aí vem esse tal de Gercino, lá de não sei
onde, e paga uma miséria pelas tainhas. Bem pensando, ele vende é nosso
sangue e nosso suor. Melhor seria não saber disso!
Ia prestava atenção. Tinha pena, mas ao mesmo tempo admirava
aquela figura franzina, que sabia mais que os outros. Realmente, Cambira
era um espia da vida. Depois de um silêncio, ela pediu:
-Você me ensina a ser espia, Cambira?
-Não queira ver mais que os outros, menina, pois vai ver, além de
tainha, muita podridão. Não queira conhecer essa gente por dentro.
-E não tem pra quem vender os peixes por um preço melhor?
Perguntei.
-Ter tem, menino, mas esse povo é frouxo. Tem medo do Gercino.
Um dia talvez nós daremos um jeito nisso! Disse decidido.
-Você me ensina a ser espia Cambira? Insistiu Ia.
-Nunca vi uma mulher ser espia, muito menos menina igual a tu,
nem cresceu ainda.
-Se homem aprende, mulher também pode. Retrucou Ia, sem
desistir.
-Tá bom, eu ensino alguma coisa a vocês. Mas só vou ensinar a ver
tainha, o resto é com vocês.- Vencido disse Cambira.
Nisso papai chegou, preocupado comigo e fomos embora.
Comemos a tainha assada na brasa por meu pai, que improvisou uma
churrasqueira, mas não sem antes que eu recebesse um sermão, dizendo
para eu não ir longe, não falar com desconhecidos, porque eu não sabia
enxergar as maldades da vida. Você não aprendeu ainda a ver o que está
dentro das pessoas.

86 · Contos
Ouvindo papai percebi que eu queria enxergar mais, sentir
mais. Assim como Ia, eu também queria, na verdade, ser espia, tal qual
Cambira.

Três

Daquele dia em diante, eu e Ia chegávamos da escola e íamos até


a pedra de espia encontrar Cambira para que nos ensinasse sua arte. Era
muito divertido, pois além de ensinar, contava muitos causos: estórias
de pesca, de brigas, de festas, de fandangos, e tantas outras que um dia
ainda vou contar. Ele contava e ria de nossos risos.
Até que no final do mês, o tempo da tainha acabou, Cambira
pegou o caminho do pique e foi para casa, lidar com a agricultura, sua
verdadeira ocupação. Voltava até a Vila para comprar mantimentos, rever
as pessoas, inclusive Teodoro.
Finalmente chegou maio. Os agricultores voltaram para seus
barracos à beira da praia para nova temporada de tainha. Cambira
também, sempre magro feito um peixe seco.
Naquela feita as aulas foram práticas. Cambira esperava para ver
se conseguíamos avistar o cardume de tainha antes dele. Eu tinha muita
dificuldade, já Ia pelo contrário. O maestro dizia que eu precisava sentir a
tainha vindo, não bastava ver, tinha que sentir. Agora acompanhávamos
os cercos lá da pedra de espia. Víamos os movimentos das canoas, das
pessoas, o cardume chegando e indo de encontro às redes. Assistíamos
o concerto ao lado do maestro. Vontade de pegar a batuta e comandar a
orquestra, mas isso era só para o Cambira. Se bem que Ia, imitava cada
um dos seus gestos. Cada vez que o cerco dava certo era uma alegria para
nós na pedra de espia. Ia sentia como se ela é que houvesse sido a espia,
e não Cambira, tamanho o entusiasmo com o aprendizado.
Passaram os meses de maio e junho. Aprendemos muito, não só
sobre tainhas, mas sobre todo tipo de pesca, sobre a Vila dos Pescadores,
aquela gente, suas dores, suas alegrias, todos os seus sentimentos.
Infelizmente, o tempo da tainha se encerrava. Era 28 de junho
de 1946. Haveria um último arrastão, o melhor do ano, segundo

Contos · 87
Cambira, de quem tiramos um pouco da solidão de espia, daquele que
enxerga além, que possui dentro de si o sentimento da Vila.
Amanheceu, fui até a praia; a Vila dos Pescadores estava alegre;
as crianças de roupa domingueira. Era o dia da Festa de São Pedro, o
padroeiro dos pescadores.
O vento sul, forte, anunciava chuva; o rebojo não tardaria, por
isso a procissão não seria por mar, mas pela praia, das canoas até a Igreja.
Durante a procissão vi Cambira, e como não podia deixar de ser, como
bom espia, circulava seu olhar, observando tudo. Parou na porta da igreja,
donde podia ver todos os movimentos, olhar as pessoas. Encontrei Ia na
Igreja e tratamos de cuidar do que o maestro fazia. Fixava o olhar de
um lado, parecia desaprovar algo de outro. Em cada canto uma reação
diferente. Observou todos os lados, e como já tivesse terminado sua
análise, parou seus olhos no crucifixo e então sorria muito. Parecia que
ambos, ele e o Cristo, riam da mesma coisa, pura cumplicidade; um
último olhar para o altar e saiu em direção ao matinho que existia entre
a praia brava e a praia dos pescadores, perto da Vila.
Eu e a Ia esperamos terminar a missa e fomos direto para a
praia. Não foi difícil encontrar Cambira, sentado na pedra de espia,
olhando o infinito. Fomos ao seu encontro.
-Oi Cambira, que está fazendo aí? Tá todo mundo na festa, agora
é que vão sair o churrasco, a tainha recheada, o frango assado, e você aqui!
Perguntei-lhe.
-Sabe quem deu a carne pro churrasco? Perguntou Cambira
sabendo que não sabíamos a resposta. E ele mesmo respondeu: Gercino,
o que tira nosso sangue e suor com uma mão e com a outra agrada pra que
a gente se engane que não doeu. Primeiro suga, depois quer mostrar que faz
bem pra gente. Canalha! As tainhas eu como, mas essa carne não!
Ele via o que os outros nem sequer imaginavam: via a exploração do
atravessador, a ganância, a inconsciência dos pescadores. A essa altura
Cambira discursava pra nós:
- Essa gente não entende que sem nós esses Gercino não é ninguém.
Ele nem sabe subir numa canoa. Não reagem, parece que são escravos dele.
- Mas Cambira – Disse eu – Como é que eles vão saber? Quem ensina pra
eles?

88 · Contos
- Tenho ensinado sempre, eles não escutam. E não é só no tempo da
tainha, é com qualquer peixe, com camarão sete barba, pistola, o rosa. Só
muda a pesca, a exploração é a mesma. Nós pescamos, nos danamos, e ele nos
explora.
- Se você aprendeu os outros também podem aprender. Disse Ia. -E
se a gente conversar com todo mundo? E se a gente ajudar você a convencer
os outros? Completou Ia empolgada.
- Vocês são umas crianças, como poderiam ajudar? Quem daria
ouvido a vocês? Indagou Cambira, com voz de desânimo, porém com
olhos de esperanças.
- Papai! Disse Ia. – Primeiro convencemos papai, depois a gente
vai vendo o que faz. Conversamos com as crianças e elas com seus pais, até
convencermos a todos.
-Já falei uma vez com Teodoro, mas só eu e ele não adianta,
teríamos que convencer os outros.
- Então, vamos pra festa, comer uma tainha e conversar com
as pessoas. Você procura papai, enquanto nós vamos conversando com as
crianças.
- Gostei!. Disse Cambira. Vamos pra festa!
Ao chegarmos no pátio ao lado da igreja, eu e Ia de um lado,
conversando com as crianças e os jovens, e Cambira, de outro, conversava
com os outros pescadores. Teodoro não estava na festa. Nós até que
conseguíamos explicar as coisas, se bem que a maioria das crianças não
entendia muito do que estávamos falando. Mas quando Cambira falava,
com seu entusiasmo, os olhos dos pescadores brilhavam. É verdade que
alguns o chamavam de louco e demonstravam medo do Gercino e dos
homens que o acompanhavam. Ele era contagiante!
Quando Cambira chegava perto de uma roda de pescadores, em
seguida chegava alguém do grupo de Gercino e, com olhar ameaçador,
fazia com que a roda espalhasse.
Depois que Cambira falou com todo mundo que pôde, Gercino
mandou chamá-lo:
-Senta aí, Cambira, vamos, tomar uma cerveja com a gente.
Cambira, desconfiado, puxou a cadeira de palha, virou o

Contos · 89
encosto para frente, pegou o copo, e ficou esperando que Gercino tinha
para lhe dizer:
-Meu grande amigo Cambira. – Disse Gercino – O que está
acontecendo que “tu” anda colocando coisas na cabeça dessa gente?
- Cada cabeça uma sentença. Falou o maestro.
-Vamos deixar disso. Vamos nos entender.”Tu” fica quieto, deixa de
colocar minhoca na cabeça do pessoal que “tu” só tem a ganhar comigo. Diz
o preço do teu silêncio e toma mais uma cerveja com a gente. Disse Gercino,
como se já tivesse tudo acertado.
Sem dizer palavra, Cambira olhou nos olhos do atravessador, arrastou
a cadeira, virou de costas e saiu.
-“Tu” é louco, vai perder esta chance? Não tem onde cair morto, pra
que tanto orgulho?
Não havia quem não deduzisse que tipo de conversa havia
acontecido ali, até porque todos ouviram as últimas palavras de
Gercino.
Cambira se afastou, foi até a barraca de bebida, pediu uma
cerveja, tomou o primeiro copo num gole apenas, encheu o copo de
novo, parou, com um olhar triste que era só dele, e como se estivesse na
pedra de espia, fez seu olhar correr de canto a canto da festa, parando
em cada grupo de pessoas.
Depois de um grande silêncio após a saída de Cambira, Gercino
gritou:
- Traz cerveja pra todo mundo e põe na minha conta, e Viva São
Pedro!
Era cerveja aos montes. Os pescadores que estavam na festa
gritavam muito: “Viva São Pedro”. Com Gercino e seus homens,
gritavam, bebiam e comiam.
Ia foi triste e pensativa para casa, mas não baixou a cabeça, ao
contrário, antes de ir espiou grupo por grupo. Então, fui até onde papai
estava e fiquei escutando as pessoas, uma gente muito boa. Os pescadores
conversavam com papai como velhos amigos. Seu Mané Bagre, que não
perderia a festa por doença alguma, contava o dia que Teodoro salvou
em sua canoa seis gringos de uma só vez na puxada de um lagamar.

90 · Contos
Todos tinham orgulho do Teodoro.
Enquanto papai escutava e ria, olhava curioso para Gercino e
os seus. De repente, deu um tapa nas minhas costas e chamou pra ir
pra casa. Reclamei que queria ver os fogos, mas ele insistiu, disse que
veríamos de casa, e lembrou que a chuva viria, o que aconteceu.
No outro dia a notícia chegou cedo na praia: Durante o foguetório,
antes do aguaceiro cair, Gercino e seus homens foram até a casa de
Cambira, o espancaram, chutaram sua barriga, pisaram em suas costas,
cuspiram em seu rosto, arrastaram-no pelos cabelos, tiraram-lhe a roupa
e o jogaram na beira do mar. Seus gritos de dor se misturavam com os
dos pescadores que estavam na festa e com o barulho dos fogos. Gercino,
antes de sair gritava a alguns centímetros da orelha de Cambira:
- Eu ofereci pra “tu” ser meu amigo, mas “tu” é teimoso, tem que
apanhar pra aprender! Quanto mais “tu” falar, mais tentar por essa gente
contra mim,mais tu vai apanhar.
Mané Bagre encontrou Cambira ainda de madrugada, na areia da
praia, encharcado de mar, de chuva e de sangue.

Quatro

Ia foi até minha casa cedo para me chamar para ver Cambira. Ela
soube ainda de madrugada, pois como sempre, o primeiro a ser avisado
foi o Teodoro.
Cambira estava em seu barraco, com as roupas ainda sujas de
sangue, mas conseguia falar e até a andar, com muita dificuldade. A mãe
de Ia é que foi atendê-lo, fazer curativos, levar ervas e benzer, pois era a
benzedeira mais conhecida da Vila.
Teodoro estava indignado, falava, praguejava, chegava a babar de
nervoso:
- Além de ser explorador é um bandido esse estropício!
Depois de terem tratado Cambira, saíram. As pessoas passavam,
perguntavam como estava o espia, ofereciam serviços e iam para casa. O
povo da Vila dos Pescadores era muito solidário. Eu e Ia ficamos mais
um pouco, mas o maestro não queria conversa.

Contos · 91
A nossa tristeza era igual a de todos. Na praia só se ouvia o barulho
do mar. Fomos embora, mas combinamos que à tarde voltaríamos para
ver como estava Cambira. E, assim, voltamos à casa dele, com Teodoro,
sua mulher, papai e outras pessoas, éramos nove ao todo. Como não
o encontramos, fomos à pedra de espia. Estava lá. Vendo-o, Teodoro
gritou:
- Que desânimo é este, homem! Se ele quer briga, vai ter. Nós vamos
mostrar com quantos paus se faz uma canoa!
- Não estou desanimado, Estou pensando como convencer nossa gente
a não ser enganada.
- Pois nós estamos aqui pra fazer isso contigo. Disse decidido Teodoro,
e continuou: - Nós vamos sair daqui de dois em dois e vamos de casa em
casa para conversar com o pessoal. Eles têm que escutar a gente.
-Se a gente não vender os peixes pro Gercino, o que vamos fazer com
eles, deixar apodrecer? Perguntou Mané Bagre.
Cambira expôs o que havia pensado como solução:
- E se a gente juntar todo peixe e camarão que nós pegarmos e só
vender se eles pagarem o preço justo? Se ele não comprar de um não compra
de ninguém. Ele precisa do nosso peixe, senão não tem o que vender.
- E se ele comprar na outra Vila? Retrucou Mané Bagre.
-A gente seca o peixe e vende pros banhistas. Tem melhor preço que o
peixe fresco. Fazemos isso pelo menos até arrumarmos outro comprador pro
nosso peixe e nosso camarão. Alguém há de querer. O Gercino não é o único
que compra peixe e vende.
Papai entrou na conversa. Todo mundo parou para ouvi-lo falar:
-Eu acho que ao invés de vender para alguém que vai revender, melhor
vender diretamente para os hotéis da Capital. Vocês venderão por um preço
muito melhor, e os hotéis poderão comprar mais barato. Bom para ambas as
partes.
-Aqui quase ninguém foi até a Capital, como vamos fazer isso?
Perguntou Teodoro.
-Eu posso ajudar, nasci lá e conheço muita gente. Arrematou papai.
O entusiasmo foi grande. Teodoro e Cambira organizaram o que
deveria ser falado nas casas, organizaram as duplas e todos saíram. Assim

92 · Contos
que iam convencendo as pessoas, o grupo ia aumentando, pois sempre
convidavam as que iam sendo convencidas a acompanhar o grupo.
Salvo uns poucos, que por medo não foram juntos, criou-se uma grande
corrente. A Vila dos Pescadores nunca mais seria a mesma.
Depois das visitas, os pescadores ainda conversaram e sonharam
até o fim da tarde com os planos traçados na pedra de espia. Alguém
lembrou que estava quase na hora de começar o fandango que encerrava
a festa de São Pedro.

Cinco

Toda a Vila foi à casa de Teodoro para o fandango, os violeiros


começaram agradecendo os donos da casa com a chamarrita da louvação,
as violas, os violinos, a rabeca e o adufo, muito bem “temperados”,
ninguém ficou nos bancos.
Daquele momento em diante era só festa, o que valia era a
tamanqueada, as marcas valsadas, as marcas bailadas. Depois da
chamarrita de louvação veio a chamarrita de oito, a meia canja, o
dondom, o passeado, a estrela, e dá-lhe festa. De vez em quando um ou
outro folgadeiro dava uma parada para secar a camisa suada, se esquentar
na fogueira, tomar um quentão, comer um doce de goma, e provar um
pouco da gemada com vinho.
O povo estava muito alegre. Sabia que no outro dia faria a
grande pesca do ano, era só esperar Cambira gritar e fazer o cerco. Havia
certeza no trabalho de Cambira e no sucesso da pesca. As tainhas que
iriam pegar seriam secas e feitas cambiras (peixe seco) para aguentar o
resto do ano, para os dias em que a pesca fosse fracassada. O peixe seco
é que garantia que ninguém passaria fome o resto do ano. A habilidade
do maestro era tão importante quanto as redes de Teodoro. Sem os dois
não havia tainha e haveria fome. Não era à toa que entre uma música e
outra gritavam, além de Viva São Pedro, Viva Teodoro! Viva Cambira!
Lá pelas cinco da manhã, ainda escuro, Cambira despediu-se
de todos e saiu. Quando chegava perto de seu barraco, estavam a sua

Contos · 93
espera Gercino e seus homens, e desta vez foram muito mais violentos,
bateram muito mais, humilharam muito mais, quebraram seus dentes,
os ossos de um de seus braços, e os ossos de suas duas pernas. Que dor
sentia aquele homem magro. Ossos era quase tudo que tinha em seu
corpo, e estavam quebrados.
- Se “tu” sobreviver desta, da próxima vez “tu” morre. Disse
Gercino com o pé sobre o rosto seco e humilhado de Cambira.
Quando encontraram Cambira ele estava quase morto.
Trataram suas feridas, colocaram talas à força em seu braço e nas suas
pernas. Desmaiou mais que uma vez. Enquanto Teodoro ajudava sua
mulher no tratamento, Cambira falou baixo:
- Está dando certo. Gercino sabe que se nós estivermos juntos eles
não têm peixe.
Não foi desta vez que mataram Cambira, mas alijaram a Vila. O
cardume de tainha poderia chegar a qualquer momento e não havia quem
pudesse espiar, não por falta de vontade, mas por desconhecimento. Um
ou outro ia até a pedra de espia, mas não conseguia enxergar nada. Era
um total desânimo na praia. Como sobreviver o resto do ano? Sem o
espia só iriam conseguir pegar tainha para uns dias, à tarrafa.
O silêncio na praia era fúnebre e o desânimo estampado em
cada pessoa daquela Vila. Cambira não podia mexer mais que os olhos
e, um pouco, a boca para cochichar alguma coisa. O cercavam como
que num velório. A esperança de tainha estava na cama, quebrada, sem
a mínima condição de ajudá-los.
Quando já não havia a menor ilusão de que conseguiriam fazer
o cerco de tainha, se ouviu uma voz fina, feminina, gritando de cima
da pedra de espia com um chapéu na mão: “tainha, tainha ...” Era uma
menina, magra, de olhos negros, agitava aquele chapéu como uma
maestrina agita sua batuta. Havia aprendido com Cambira a coordenar
com uma certa elegância nos gestos. Ninguém parou para pensar quem
seria, ninguém sequer indagou se seria verdade o que estava acontecendo.
Todos a obedeciam. Cada um foi tomando sua posição, uns pegavam as
redes, outros as canoas, as crianças saíram correndo avisar os poucos que
não estavam na praia. Da pedra de espia Ia coordenava o arrastão com

94 · Contos
a mesma autoridade invejável de Cambira, como se também soubesse
toda a sinfonia de cor.
Foi o melhor arrastão de todos os tempos. Teodoro estava
surpreso e orgulhoso pelo que Ia havia feito. Repartiu os quinhões como
de costume. A certa altura olhou para Ia para dar seu quinhão de espia:
- Esse quinhão é do Cambira. – Disse Ia.
Como ninguém vendeu seu quinhão ao Gercino, irado no
combro, Teodoro reuniu todos os pescadores e propôs:
- Essa tainha de hoje é pra secar no sol, mas no ano que vem nós
não vamos mais vender pra atravessador nenhum, vamos juntar tudo que
pescarmos e vender direto na capital. Com o dinheiro que juntarmos vamos
comprar mais redes e distribuir o peixe em quinhões iguais.
A Vila dos Pescadores nunca mais foi a mesma! Eu vivi para ver,
e vi do alto da pedra de espia a Vila se tornar uma cidade. Esta história
não acaba aqui. Ainda contarei.

Contos · 95
“Rastros da cidade”
Quando viu o Sol refletido no Olho foi como se visse a imagem
do vitral da igreja que sua mãe o levava. Firmou-se na bengala. Um
Menção Honrosa turbilhão de vozes falavam ao mesmo tempo.
Rodrigo Schmidt Passou pela Assembleia e avistou o Palácio Iguaçu. Entrou na
Secretaria Especial Cândido de Abreu. No lugar das construções atuais via sobrepostas
de Relações com a as diversas que já existiram. Quantas e quantas vezes havia passado
Comunidade por ali em direção ao Colégio Estadual. Estava tudo diferente, mas
Curitiba incrivelmente igual.
Olhando para cima esbarrou em uma moça. Reparou nas
roupas. Essa saia, esse bordado. Há muito tempo que não via essa forma
de se vestir. Lembrou-se de suas mulheres, das mulheres do mundo.
Das paixões correspondidas, das que não correspondeu e das que não
foi correspondido. Onde estariam todas as pessoas de sua juventude. O
que teriam feito. Estariam vivas. Casaram-se, tiveram filhos. Indagações
sem respostas. Algumas delas agora entravam nas lojas, caminhavam
apressadamente. Outras a passos despreocupados, como tarde de
domingo de matinê na XV.
Os carros também pareciam ter saído de museus. Mas estavam
ali funcionando, vindo do Passeio misturados com os modelos de hoje.
E vinham também carroças dos colonos europeus de Curitiba carregadas
de abóboras e batatas.
No shopping entravam carregamentos de ferro, funcionários
em seus trajes fumaceados, mas tinham também executivos, estudantes,
todos andando juntos com uma naturalidade inexplicável. Não entendia
o que acontecia. De repente imaginou-se louco. Só ele estaria vendo
isso. Como se tivesse em uma peça em que todos estavam seguindo seus
papéis e só ele ali perplexo e alienado.
Na esquina da Inácio, um casal. O rapaz convocado para o
front consolava a namorada. O casamento, os preparativos tinham
que esperar o retorno. O que antes parecia distante, um improvável
chamamento, de repente tornara-se realidade. Em três semanas estaria
viajando. A flor, o anel, o compromisso, tudo que aconteceu naquela

Contos · 97
tarde repetia-se e, ele era espectador de sua história. Agora, velho, viu-
se dizendo as mesmas palavras. Escutando os soluços. Enxugando as
lágrimas de uma face inclinada, resignada. Viu seus filhos correndo em
direção ao Passeio. Sua mulher arrumando-lhes as roupas. A gritaria
juvenil ecoando do colégio.
Sentou-se no banco da praça. Endireitou-se. As duas mãos
apoiaram-se na bengala. As pombas de um lado para outro corriam
atrás de pipocas perdidas e jogadas. Fechou os olhos, escutou o avião
sobrevoando a cidade. As arrancadas das motos ao abrir do sinaleiro.
Deslumbrou também o silêncio da cidade em dia de feriado, a véspera
de carnaval, as luzes do natal. O som dos desfiles, as bandeirinhas se
agitando. A cidade em dias dos jogos da seleção.
De repente os sons foram embora. Sentiu o frio da cidade em
dias de inverno, o vento cortando, rachando o lábio, endurecendo a
mão. Abriu os olhos. Era noite. Não conseguia distinguir há quanto
tempo estivera ali. Se desde aquele dia, há meses ou anos. Mas tivera a
certeza de que a cidade havia vivido ele.

98 · Contos
“Refletindo”
Quando só, sentia-me soberano de todas as coisas inanimadas
que povoavam minha casa. Porém, em determinados momentos, o
Menção Honrosa termo inanimado não correspondia à situação e, um dos objetos que
Valter Cardoso mais reforçava essa ideia estava à minha frente naquele momento. Nas
Secretaria de Assuntos suas funções primordiais, de imitar perfeitamente minha imagem, meus
Estratégicos - CELEPAR movimentos e o cenário ao fundo, despertavam motivos de deslumbre.
Curitiba Olho a olho, ombro a ombro e rotações sincronizadas. Além disso, havia
vida nele, pois era um antigo espelho temporizado de três botões.
Ganhei-o de meu pai ao completar meus primeiros anos. Para
manipular o artefato, segui as instruções que ele me passou. Pareciam
complicadas para a época, mas hoje fazem parte de um ritual:
“Faça uma careta e conte até dez, mas não mexa a boca ou a
cabeça”.
Repetia agora a careta que fiz quando criança, com a cabeça na
mesma posição. Os dez segundos na minha infância pareciam muito
longos, principalmente porque eu não tinha a exata noção de tempo.
Fingia que estava brincando de estátua.
De forma contrária à minha imobilidade, o espelho ganhava
vida. Como resultado da primeira parte do ritual realizada com sucesso,
emergiu da moldura um botão de pressão do lado esquerdo. Não, não
havia qualquer indício de que ali ou em qualquer outra parte da moldura
houvesse algum botão escondido. Sem perder tempo continuei com o
ritual:
“Faça agora uma cara feliz e conte até dez, mas não mexa a boca
ou a cabeça. Durante este tempo, fique apertando o botão com uma das
mãos”.
Esta parte, no início, me confundia, ora pelas palavras escolhidas
pelo meu pai, outra porque felicidade lembrava alegria e risos, o que
dificultava a imobilidade. Com o passar do tempo, ficava ainda mais
difícil repetir a expressão feliz que se tem quando criança. Deixava de
ser um ritual para tornar-se um desafio, trazendo lembranças de dias
melhores e piores.

Contos · 99
Ao surgir o botão do lado direito, o passado dava lugar ao
presente, confirmando a correta execução da segunda parte do ritual, e,
lembrando-me de continuar com a última sequência de instruções:
“Dessa vez, fique sério e conte até dez, mas não mexa a boca ou a
cabeça. Não esqueça de apertar os dois botões, durante este tempo!”.
Assim como nas duas primeiras partes, na terceira também
obtive êxito. A revelação do terceiro e último botão permitiu que as
funcionalidades estivessem ao meu dispor novamente. Com o tempo,
descobri que o ritual não poderia ser repetido por outras pessoas,
somente por mim. No espelho havia um dispositivo de reconhecimento
facial, configurado para o meu rosto, que também previa meu
envelhecimento.
Quando uma criança ganha um brinquedo, ele é explorado à
exaustão, sendo depois deixado de lado. Comigo foi diferente. Era o
tipo de presente que passaria o futuro comigo. Após muita insistência,
descobri a funcionalidade do botão esquerdo e do porquê do nome
temporizado.
Ao pressionar o botão esquerdo por dez segundos, o espelho
começava a gravar as imagens e depois repeti-las, como em um filme,
pelo mesmo intervalo de tempo. Pressionei o botão em questão, fechei
os olhos e fiz algumas caretas e gestos. Ao abri-los e liberando o botão,
pude contemplar-me e, apesar do papel de bobo, fiquei impressionado
com o resultado. Como que por intuição, deixei o botão pressionado, e
fiquei de costas para ele, agachando e subindo pelo intervalo de tempo.
Outra novidade, já sabia como ver minhas costas e nuca.
Ganhando confiança, usava o efeito do botão esquerdo para
ver o que tinha do outro lado das janelas altas. Sabia também o que
acontecia em algum corredor sem precisar entrar nele. Como o espelho
era fino, às vezes passava na fresta das portas. Eu me sentia a criança
mais poderosa do mundo.
Algum tempo depois descobri a funcionalidade do botão direito.
Ao mantê-lo pressionado por dez segundos ele gravava em memória o
último “filme” obtido pelo botão esquerdo. Essa memória era limitada,
mantinha somente seis pequenos momentos da minha vida. Ao gravar
um sétimo momento, ele imediatamente apagaria o mais antigo.

100 · Contos
Assim como um nativo da Ilha de Vera Cruz uma vez nomeou
um espelho simples de “dois eu”, eu chamava o meu de “muitos eu”.
Hoje, sempre repasso os seis momentos escolhidos para guardar na
memória. O primeiro, quando tinha o espelho há pouco tempo, ainda
banguela e mostrando meu corpo franzino de frente e de costas. O
segundo, de terno, adolescente e com o cabelo penteado ainda molhado,
me preparando para um evento importante. O terceiro, novamente de
terno, mas dessa vez por um motivo mais triste, a passagem de um ente
querido.
As imagens quatro, cinco e seis apareciam e sempre traziam
lembranças fortes, como mudanças físicas, comportamentais e de
pensamento. De uma pequena espinha a uma cicatriz. Do cabelo
comprido à calvície precipitada. Os trajes, os locais ao fundo mostrando
que o mundo mudava, mas eu ainda era o personagem principal da
minha história.
Perdia horas com o meu brinquedo de infância, usado para
aumentar e - por que não? - multiplicar dimensões. Como uma extensão
do meu corpo, aumentando minha imagem através de um caleidoscópio
de emoções. Sempre concordando e repetindo meus movimentos e
sentimentos. Mostrando-me que, em uma orientação ocidental, pode-
se adquirir a destreza de ser sinistro.
Apesar de meus reflexos diminuírem com a idade, o do espelho
sempre imitou perfeitamente as minhas imperfeições. Com a virtual
virtude de mostrar a simetria desfigurada sem hipocrisia. Minha imagem
seria então meu complemento, onde o verso e o inverso se aplicam com
o mesmo sentido de frases palíndromas.
Quanto ao botão central, descobri recentemente que serviria
para configurar o dispositivo de reconhecimento facial. Com o auxílio
dos outros botões, poderia apagar as minhas memórias e passá-lo para
outra pessoa. Mas, apesar de antigo, não ter recursos sonoros, dispositivos
holográficos ou outras funcionalidades comuns hoje em dia, meu lado
narcisista diz que não estou preparado para desfazer-me dele. Espelho-
me na madrasta da Branca de Neve ao afirmar possessivamente: Espelho,
Espelho meu, existe no mundo alguém mais refletido do que eu?

Contos · 101
poesias
“Dom Quixote”
I

singro em água mansa 1° Lugar


o barco parece firme Luiz Carlos Salami
mas a alma balança Secretaria de Estado da
Educação do Paraná
teus moinhos de vento São Pedro do Iguaçu
com espadas de papel
cravadas no tempo

lúgubre lamento
na serra do rola-moca
um réquiem ao vento

estrela cadente
no firmamento desliza
some num repente

relinchos relinchos
nos confins duma savana
quem corteja a dama

uma brisa branda


embala a breve soneca
duma salamandra

cavaleiro andante
rudes combates à vista
sus, sus rocinante

104 · Poesias
por mais que tu cismes
nunca atinas com o rumo
dos gansos, dos cisnes

mente machucada
pela dor do amor perdido
dor, dor tresloucada

um nuevo camino
uma paixão sem, sem fim
sonho dum menino

numa ribanceira
formigamente descansa
tamanduá – bandeira

sancho, devagar
o teu calcanhar – de – aquiles
pode te matar

II

Não sou Dom Quixote.


Nem Sancho Pança. Na ponta
de minha caneta
afiado gume de lança.

Uma tarde inteira


para esculpir uma trova –
a trova de amor
no tronco duma palmeira.

Poesias · 105
Triste Fim. O Fim
de Policarpo Quaresma.
Vai-se a rubra rosa.
Fica o fecundo jardim.

Vida – trama tola.


Tanto nos faz sorrir como
Nos leva a chorar –
Ardida e doce cebola.

Indolentemente
move-se o moinho de vento.
vai devagarito
feito piá pirracento.

No peito marcado
o coração já cansado
arquiva tuas lutas
do presente, do passado.

106 · Poesias
“Palavras de verdade”
para Luísa
palavras de brinquedo
palavras de verdade
2º Lugar imagens impossíveis
Jane Maria Sprenger nascidas das primeiras palavras
Bodnar
garrafinha de água
Secretaria de Estado da
agasalho para a noite
Educação do Paraná
o livro esquecido da aula de ciências
Curitiba
pó de asas, pólen
imagens absurdas
os olhos aveludados da mariposa

asas de porcelana
das louças antigas
coladas com clara de ovo

filhote de garça caído no ninho


o peixe ainda em seu bico
tema para um haicai sombrio

os acentos das palavras que você escreve


são filhotes estabanados
despencam lá do alto

caderno, ninho de letras


vamos colar os acentos que você esquece
com chicletes

teclado
seus dedos olhos fascinados
outro sentido para a métrica farfalham

Poesias · 107
“Lápis”
prefiro os lápis
apontados a mão
canivete ou estilete 3° Lugar
o cuidado em cada corte Mário Sérgio de Mello
imperfeições e diferenças Secretaria de Estado da
mas que só elas podem Ciência, Tecnologia e
fazer o negro carvão Ensino Superior - UEPG
do jeito que mais apraz Ponta Grossa
às palavras mais intensas

prefiro os lápis
apontados a mão
tortos e certeiros
àqueles aparados
retos, pontiagudos
cones lisos, colarinhos
sinto que destes
não poderiam verter
os trêmulos escritos
que vertem do meu ser

tal como aos homens


prefiro os lápis
apontados a mão

108 · Poesias
“Amor efêmero”
Todo dia naquele ônibus
era olho no olho
Menção Honrosa com aquela menina.
Juliano Grus Passava ponto, parava tanto,
Secretaria de Estado da só não parava aquele olhar.
Educação Namorei-a, só de vista,
Curitiba durante vários e vários dias
por uns doze toques de campainha.
Êta amor passageiro,
efêmero como o preço da tarifa.

Poesias · 109
“Blackout”
Não predomina a luz
Predestina primeiro
O contrário da síntese Menção Honrosa
O sinônimo do óbito Orlando Pinheiro
O óbvio Secretaria de
Estado da Cultura - CCTG
Curitiba

110 · Poesias
“Era outra vez, uma menina”

Estranha tela aquela


Menção Honrosa de cores ora serenas, ora febris
Nelci Peripolli Godinho em que centenas de fragmentos
Secretaria de Estado em meio a um turbilhão de pigmentos
Educação arriscam movimentos sutis
Nova Aurora
Num segundo
uma menina emerge
em cores antigas como o mundo
- tão novas para ela!

Nas mãos um pincel, um arco-íris na paleta


a pinceladas livres certas vivas
a menina traceja (a vida)
- irrequieta borboleta!

Mergulha as mãos no azul do céu e escorrega-as pelas paredes


rompendo limites
- as paredes misturam-se ao céu!

Inventa um cavalinho transparente para ondular no azul


farejar o tempo...
galopam entre nuvens de algodão, por campos e mares verdes
balançam-se nas cabeleiras de árvores verdadeiras, de braços plumosos
- o verde tinge os olhos da menina e invade seus sonhos
despretensiosos!

Mais adiante

Poesias · 111
as ondas das águas tépidas
sugerem-lhe outro curso
- novas pinturas, outras técnicas!

Esboça uma forma insinuante...


uma linha sinuosa... imprecisa...
Indecisa... a moça começa um traço,
traça, destraça,
cruza, transpassa,
retraça
até que perde a graça:
- um grito, a dor!

Na torre
as sombras roubam-lhe as cores:
a mulher tenta juntar
sonho a sonho com traços fracos
nos estilhaços de um abraço
destila o aço
estrelaços de luz
- cansaço!

Tinge tudo de sépia


tons neutros, desprovocantes, irrelevantes, isentos de indagações
Termina e se encosta
sem rosto, braços soltos
uma gota quente escorre seguindo o curso das formas
e cai umedecendo a tinta seca
- restinho de púrpura deixada na paleta!

Súbito

112 · Poesias
refaz uma grande janela
quebrando as vidraças fazendo inundar a luz
uma luz sem pressa que a aquece e a seduz
rouba o olhar da velha-menina encoberto pelas cinzas das horas
cabelos brancos, antigos olhos verdes
- pinta-se outra vez!

Irreverente
agarra as crinas do cavalo transparente
que ondulando fareja o azul do tempo...
com um traço o enlaça
e com ele vai...
voa o mundo
voa a vida
busca tintas etéreas
para finalizar sua tela:
- eterna tela a se estampar!

Poesias · 113
“Imagem humana”
Vi um reflexo no espelho?
Não tenho certeza de que a imagem era minha.
Corri demasiado em busca de uma resposta, Menção Honrosa
nada pude encontrar. André Alves Pereira
Secretaria de Estado da
O tempo, me fez esperar e depressa passou. Justiça e da Cidadania -
Fez os anos mentirem, que o homem mudou. DEPEN
Não compreendo essa metamorfose, que é a vida. Guarapuava
Porque, o homem que sou hoje, não é o que fui.

Seria fútil admitir que mudei. Inútil afirmar que gostei.


Pior ainda, é ser, uma soma humana na sociedade.
Ela,
ela precisa de ação.
Mas sem identificar o reflexo não posso!

Vago, é ser mais um.


E fico só.

Só?
Só andar por caminhos não basta,
Só passar pela vida, não é existir.
Só amar por amar, não define o amor.

Vago?

Vago é trilhar sonhos de outros


Vago, é ser quem não sou;
Vago é querer ser algo, e ao mesmo, tempo não poder.
Vago, é vagar por estradas que levam a muitos lugares e não chegam a
lugar nenhum.

114 · Poesias
O caminho...

O caminho é andar.
A estrada, uma linha que já está definida,
Sair dela, tropeçar, pular pedras, retirar entraves
É ser possível de mudar - a rota.

Vagar por caminhos e não encontrar o reflexo - solidão.


Imprevisível, é amar.
Forte é querer ser, o que já não sou.
Depressa?
Vai o tempo humano.

Uma imagem, um reflexo, o que falta é o espelho.


Não conseguir ver o real já é uma visão.
Não sonhar como antes, é ser o que me tornei.

Se antes havia uma imagem


Hoje, há um reflexo.
O espelho inexiste, assim como não existe a imagem que criei.

Humano,
Transpassa o que pensa
E vive o que pensou.

O reflexo é uma construção


Tua e minha.
A imagem, nunca pode ser a mesma.
Porque somos no fundo um espelho quebrado.

Poesias · 115
“Noite e poesia”
Quando o desejo de viver for maior
que o tamanho dos teus dias
estarei à tua porta Menção Honrosa
feito um anjo Helaine Giraldeli Balla
Eu...arte, palavra Secretaria de Estado da
Poesia Educação do Paraná
Arapongas
Meus versos são passos,
caminho leve sobre os teus tesouros
onde em ti a melhor parte
é onde estou
borboleta fêmea desafiando
o deserto dos homens

Assim que me anuncio


com minhas palavras poucas
já não tens como fugir
o encontro é certo
vou direto, reto
uma flecha contra o mal
um tiro dentro do peito
um vento frio em tua febre

O tempo não espera o amor


ata-me ao teu corpo antes
e me ama em silêncio
vem desvendar os segredos do meu ritmo
e despir as minhas intenções

Olha bem nos meus olhos


e beija-me a boca cheia de sentidos
vem ser feliz!

116 · Poesias
Descobre em mim a matéria de que és feito
penetra as metáforas do meu corpo
a minha ambiguidade inocente
e todos as minhas rimas “ajuizadas”
leia-me
sou horizonte para teus olhos
e linguagem para o coração

Deixa a minha verdade


aclamar teus prantos
tuas dores de amores
teus sustos
teus momentos de morte

Decifra o lirismo em meus olhos


mata em meus braços os desejos
que desesperam a tua alma
e depois, em silêncio
deixa que eu te enxergue dentro
e ilumine o labirinto que te esconde
entrega-te a mim sem medo
de não poder voltar

Vê ao redor .O que te cerca?


dias de ferro
forjando homens em matéria cinza

Sinto em mim pulsarem


as cores mais puras
e me vejo agora contigo, aprisionada!
esquece as chaves
é quase noite
e não existem poemas proibidos

Poesias · 117
“Nuvem”
Felicidade efêmera
palpável
feito fumaça. Menção Honrosa
Sofrimento denso, Arlete Gomes de Souza
concreto Secretaria de Estado da
armado n’alma. Educação
Esperança sempre,
Guaratuba
Sina
De quem ama.
Solidão enclausurada,
karma
de vidas amarguradas,
presa,
segue..
livre nos limites
da minha vida.

118 · Poesias
“Perjúrio”
Nada de ti entrará na minha casa.
Nem teu número constará nas minhas ligações recebidas.
Menção Honrosa Teus bons dias e boas noites foram, prematura e definitivamente,
Nelci Mello Tomadon banidos.
Secretaria de Estado da
Educação do Paraná O livro que te dei
Campo Mourão Trouxe a folha de rosto
Com a dedicatória escrita apenas na minha memória.
Deserto branco.

Teu nome não soará na minha boca.


Tua geografia não será delimitada por mim.
Na minha, tu és lugar algum.

Não revelarei a ti meus caminhos,


Nem meus pensamentos, desejos e emoções.
Não permitirei que me alimentes.
Nem que arrumes minhas coisas.
Meu caos ficará como sempre esteve.

E, por fim,
Não permitirei que me aprisiones
Com a suavidade de teu toque;
Que me enredes com o som de tuas narrativas;
Que me embriagues com o cheiro de tua pele;
Que me sequestres com a delícia de tua língua.

Eu juro... por todo sagrado em que não creio...


Não gosto de ti.

Poesias · 119
“Queria...(?)”
Queria, nem sempre significa passado
Talvez, o imperfeito estado
Em que não se sabe ao certo Menção Honrosa
Se já ia, continua ou vai se querer... Rosemeire Tânia Ferreira
Secretaria de Estado da
Queria, quando refere-se ao amor, Ciência, Tecnologia e
É mais um sinal de impotência do que de desejo Ensino Superior - UEL
É o presente gritando ao passado Londrina
O rompimento de algo que não se rompeu.

O ia que se foi
Antes do depois
Que se esperou por vir....

Queria, em alguns casos,


Nem deveria derivar-se de verbo
Pois é o estado patético
De não se verbalizar...

Queria é camuflar o querer.


Verbo que nessa hora,
Mais que imperfeito se torna,
Pois já não tenho você...

120 · Poesias
“Rastro de estrelas”
Era...
Não era poeta, talvez poesia
Menção Honrosa Que nasce ao acaso
Hamilton Fernandes Filho Feito estrelas coincidentes
Secretaria de A formar rastros siderais;
Estado da Segurança Galáxias de sentimentos;
Pública do Paraná - PMPR Humanos pensares,
Curitiba Sóis que ardem, luminares
Os quais expressam no negro véu noturno
Um quadro salpicado
De cristais sobre o veludo negro
Que o Senhor dos dons pintou.
Colhi respostas em versos
Que dispersos na brisa não rimavam
Fiz repensar sonhos para torná-los possíveis
Chorei... nem por estar vencido,
Nem por descrer, só por saudade.
Cri que amigos eram seres quase inatingíveis
Que só se encontram quando pousamos
Na terra dos sonhos bons.
De lutos colhi frutos mirrados
Para assim nunca perder
Ao menos sua essência, e sobreviver
E como em sonhos ter o sabor
Das romãs que nunca provei.
As constelações ainda cintilam
Na alma ainda que dia
Quando a noite permanece nela
Ainda que viva a adornar
O outro lado da Terra.
No entanto, ainda assim
Vive em mim o ouvir, o querer vê-las

Poesias · 121
Mais que o simples fulgor,
Há vida no entendê-las,
Pois, há traços de perfeição
No rastro das estrelas.

122 · Poesias
“Rolinha”
Rolinha na chuva num galho de árvore
lá embaixo
Menção Honrosa automóveis passam assustados
Cláudio José de Almeida
Mello
Secretaria de Estado
da Ciência, Tecnologia
e Ensino Superior -
UNICENTRO
Guarapuava

Poesias · 123
“Sigamos cigano”
Sigamos
no engano,
cigano. Menção Honrosa
Maria do Rocio Novaes
Ilusões persas P. Ferreira
no tapete voador, Secretaria de Estado da
matematicamente, Justiça e da Cidadania -
disperso. DEPEN
Curitiba
Dispenso
o certo.

Aprecio os errantes
e suas cabanas
no deserto.

Dunas nas cidades


sem idades,
atemporais.

Ritos de passagem
sem embarque.

Orações aos deuses


das dúvidas divinas.

Sigamos, cigano,
em nosso repertório.

Territórios desconhecidos,
ruas e avenidas
nunca dantes percorridas.

124 · Poesias
Sigamos a seta
da bússola trincada.

Para que o sul


seja norte,
na noite de nossos dias.

Poesias · 125
“Urbe”
cidades múltiplas caos urbano trajeto concreto acelerado
perdido desorganizado em crescimento vertiginoso
movimento do olhar além da ideia da imaginação da Menção Honrosa
Marcel da Cruz Fernandes
compreensão engole destrói reconstrói metrópole cidade da Conceição
megalópole vilas bairros prédios casas barracos tendas ar Secretaria de Estado dos
livre florestas matas falta formulação estrutura fenômenos Transportes - APPA
complexos cheios inertes expandidos suporte urbano Antonina
linhas irregulares desconcertantes cinzas arteriais fluxo
interminável contínuo conceitual mundo concreto abstrato
lugares vazios gerados libertados presos fluência passagem
demarcações territoriais ilusões sonhos trabalho ironias
vida morte alto baixo transporte comunicação informação
zonas ocupadas cidades destinos desígnios impactos sem
limites cartografias arquitetônicas interferências mútuas
amontoado de pó espacial surreal pintura em labirintos
visão impulsos mecânicos matéria urbana moderna
fantástica luzes tensão sólida vertical horizontal estática
e monumental panorama urbe cultural e social trânsito
barulhos ruídos constelações efêmeras poluídas estranhas
relações humanas imagens contínuas desocupação territorial
utópica intersecções arte política globalização desumana
sentimentos revoltados pensamentos conturbados estradas
rodovias caminhos possíveis afeto amor amizade sociedade
dilacerada privacidade invadida intervenções físicas
espirituais intelectuais mundo desordenado miséria riqueza
revoluções ocupações cidades lagos parques pessoas

126 · Poesias
imóveis paranoicas aceleradas convulsivas violentas visão
contemplação poemas retratos pensamentos passarela
transitória rápida elementos construtivos distantes janelas
perdidas respiração em planos descomunais separação
tempo ação e reflexão fatos e parâmetros confrontados
realidade percebida ruas córregos terrestres e aéreos vias
arteriais abismos mar tubular feixes luminosos encontros
desencontros percursos possíveis e impossíveis intensos
simultâneos e frequentes lojas bancos comércios vendas
poder invisível necessidades mudanças apropriações
existentes funcionais incluídas excluídas mentirosas áreas
desenfreadas duráveis inservíveis lixo geografia repetida
dispositivos dominantes montados quebrados fixos soltos
homens mulheres crianças moradores induzidos enganados
vítimas e culpados estruturas maleáveis conscientes e
inconscientes ruínas detritos vidros metais carne bloco
sanguíneo dinâmico inflexível silencioso memórias ativas
superfícies expandidas cidade felicidade atrocidades

Poesias · 127
128 · Poesias
fotografias
1º Lugar
Celso Lück Junior
Secretaria de Estado dos
Transportes - APPA
Paranguá

Ubá

130 · Fotografias
2º Lugar
Jandira Tolin
Secretaria de Estado da
Educação
Iretama

Cenas Paranaenses

Fotografias · 131
3º Lugar
Marcelo Conor Kawase
Museu Oscar Niemeyer
Curitiba

Baía de Paranaguá em
trânsito

132 · Fotografias
Menção Honrosa
Marcos Lucio da Silva
Secretaria de Estado da
Segurança Pública - PMPR
Londrina

Amanhecer

Fotografias · 133
Menção Honrosa
Julio Cezar Val Carnieri
Secretaria de Estado da
Segurança Pública do
Paraná - Polícia Civil
Curitiba

Bravo trabalhador
paranaense agradecendo
por mais um dia de
trabalho

134 · Fotografias
Menção Honrosa
Sandro Amaral
Secretaria de Estado da
Segurança Pública - Polícia
Civil
Curitiba

Campo de soja colhida

Fotografias · 135
Menção Honrosa
Arnaldo E. Alves
Secretaria de Estado de
Comunicação Social
Curitiba

Clássico e moderno

136 · Fotografias
Menção Honrosa
Liciane Kuspiosz
Secretaria de Estado da
Educação
Guarapuava

Descanso

Fotografias · 137
Menção Honrosa
Carlos Eduardo Partika
Secretaria da Justiça e da
Cidadania - DEPEN
Curitiba

Descendo o Nhundiaquara

138 · Fotografias
Menção Honrosa
Adriano César Buzzato
Secretaria de Estado da
Educação
Curitiba

Energia

Fotografias · 139
Menção Honrosa
Cleidiane de Miranda
Secretaria de Estado da
Educação
Mallet

Igreja São Miguel Arcanjo

140 · Fotografias
Menção Honrosa
Fabiana Mafessoni
Secretaria de Estado da
Educação
Curitiba

Iguaçu das borboletas

Fotografias · 141
Menção Honrosa
Rita de Cássia da Maia
Secretaria de Saúde do
Estado do Paraná
Curitiba

Ilha das Peças - Maré Baixa


no trapiche

142 · Fotografias
Menção Honrosa
Ana Maria Martins Lopes
Secretaria de Estado da
Educação
Castro

Inspiração divina

Fotografias · 143
Menção Honrosa
Douglas Gomes Daronco
Secretaria de Estado da
Educação
Curitiba

Manhã de inverno

144 · Fotografias
Menção Honrosa
Ana Maria Tozin
Tribunal de Justiça do Paraná
Curitiba

Nascer do sol em Ponta de


Ubá

Fotografias · 145
Menção Honrosa
Cláudio Roberto Dalla Stella
Secretaria de Estado da
Educação
Curitiba

Outono Paranaense

146 · Fotografias
Menção Honrosa
Washington Martins
Companhia de Saneamento
do Paraná - SANEPAR
Curitiba

Paranaense lutador

Fotografias · 147
Menção Honrosa
Jorge Luiz Rizzi Galerani
Secretaria de Estado da
Criança e da Juventude
Piraquara

Pinheiros do Paraná

148 · Fotografias
Menção Honrosa
Yeda Ostan
Secretaria de Estado e
Educação - professora
aposentada
Curitiba

Preservação e vida

Fotografias · 149
Menção Honrosa
Marion Teuber Stautt
Secretaria de Estado de
Ciência, Tecnologia e Ensino
Superior - TECPAR
Curitiba

Queda e elevação

150 · Fotografias
Menção Honrosa
Franciely Menezes Almeida
Secretaria de Estado da
Segurança Pública - PMPR
Ponta Grossa

Sabor de Paraná

Fotografias · 151
Menção Honrosa
Alessandra Tathiana Villa
Lopardo
Companhia de Saneamento
do Paraná - SANEPAR
Curitiba

Vista do ponto culminante do


Estado do Paraná

152 · Fotografias
Menção Honrosa
Felipe de Moura Vieira
Secretaria Especial para
Assuntos Estratégicos -
CELEPAR
Curitiba

Vida de pescador

Fotografias · 153
Título Servir com Arte
Autores Servidores públicos de estado do
Paraná
Capa e projeto gráfico Pedro Nossol Fotografia e Design
Editoração Guilherme Henrique de Oliveira
Cestari
Formato 20 x 20 cm
Tipografia CharterITC Bd BT;
CharterITC BT (miolo)
Swis721 Lt BT (capa)
Número de páginas 156
Tiragem 1000

You might also like