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Nick Shadow

Tradução Rita Sussekind


Título original: The Midnight Library - End game
Série criada por Working Partners Limited
Ilustração de capa: David Wyatt

Direção editorial
Soraia Luana Reis

Editora
Luciana Paixão

Editor assistente
Thiago Miaker

Assistência editorial
Elisa Martins

Revisão
Vanessa Rodrigues e Luciana Garcia

Criação e produção gráfica


Thiago Sousa

Assistente de criação
Marcos Gubiotti

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

S537f Shadow, Nick


Fim de jogo / Nick Shadow; tradução Rita Sussekind. -
São Paulo: Prumo, 2009. (Biblioteca da meia-noite)
Tradução de: End game
ISBN 978-85-61618-91-9
1. Ficção infanto-juvenil inglesa. I. Sussekind, Rita. II.
Título. III. Série.
CDD: 028.5
09-0663. CDU:
087.5
Bem-vindo, leitor.

Meu nome é Nick Shadow, curador desta


instituição secreta: a Biblioteca da Meia-
noite.
Onde fica a Biblioteca da Meia-noite?,
você pergunta. Por que você nunca ouviu
falar dela? Para sua própria segurança, é
melhor que essas perguntas permaneçam
sem resposta. Contudo... desde que você
prometa não revelar onde descobriu o que
vem a seguir (não importa quem ou o quê
exija isso de você), eu revelarei o que
mantenho nos cofres antigos. Após muitos
anos de pesquisa, reuni a mais assustadora
coleção de histórias já apresentada ao
homem. Elas irão aterrorizá-lo, e fazer com
que a carne de seu jovem esqueleto
estremeça. Talvez você devesse tomar
coragem e virar a página. Afinal de contas,
qual a pior coisa que poderia acontecer?...
Volume 3

Histórias de Ben Jeapes

Fim de jogo

A outra irmã

Tem alguém aí?


Fim de jogo
O interior do carro era à prova de som, e
uma parede de vidro separava os bancos da
frente dos de trás. O único barulho na parte
traseira vinha do jogo de Simon: o bip-bip-
bip enquanto apertava os botões, a leve
comemoração triunfante quando outro
dragão caía no chão. Ele não ouviu as rodas
crepitarem sobre a terra enquanto o carro
pegava a estrada para casa. Seus olhos
estavam fixos na pequena tela LCD do
computador portátil. Estava jogando havia
muito tempo, mas se lembrava da dica do
site: o herói deveria descer do cavalo antes
de passar pelo portão, para que o dragão
errasse o alvo quando atacasse; porém, se
descesse rápido demais, a ponte desabaria
e ele cairia para a morte, então o
movimento tinha de ser perfeitamente
calculado.
O motorista abriu a porta, e uma brisa
gelada atingiu sua face.
— Estamos em casa, sr. Simon — disse
o homem.
Simon Down olhou para ele, depois
para a tela, no momento em que o corpo
decapitado do herói sucumbia ao chão. Fora
distraído no momento errado. O dragão
voava pelos ares, com a cabeça presa em
suas garras, formando uma trilha de sangue
pelo caminho.
— Você está despedido! — gritou
Simon.
— Se é o que diz, sr. Simon —
respondeu o homem. — O jantar será
servido às sete.
É evidente, pensou Simon enquanto
adentrava a casa, que não tinha autoridade
para despedir ninguém. Não era algo que
um menino de doze anos pudesse fazer. Mas
era uma sensação agradável a de poder
controlar o mundo real da mesma maneira
como fazia em seus joguinhos.
Parou na porta da frente e virou-se a
fim de olhar para trás. A casa ficava acima
do bosque, e de lá se via toda a cidade. Lá
embaixo, pensava Simon, havia outras
pessoas. Mordeu o lábio. Seus colegas de
colégio estavam lá embaixo. Pessoas vivas.
Umas próximas das outras.
Era um pensamento solitário, mas
Simon aprendera a transformar
pensamentos solitários em coisas negativas.
Sim, aquelas pessoas tinham umas às
outras, ele disse a si mesmo, mas viviam
espremidas. Constantemente se esbarrando.
Constantemente no caminho umas das
outras.
Ele, por outro lado, era livre aqui em
cima, acima de todos eles, olhando-os do
alto.
Uma vez tentou convidar algumas
pessoas para vir com ele até sua casa. Idéia
de sua mãe. Provavelmente alguma coisa
que lera em um livro de psicologia infantil:
incentive seu filho a fazer amizades.
Ninguém veio, mesmo com a descrição de
Simon de sua enorme televisão e de sua
vasta coleção de jogos e DVDs. Ele até
exagerou um pouquinho: não tinha
realmente uma sala particular com TVs de
tela plana espalhadas pelas paredes
mostrando dezenas de canais ao mesmo
tempo. Mas não; ninguém se interessou em
vir.
Bem, fiquem longe, concluiu ao voltar
para dentro de casa. Simon não se permitia
invejá-los. Ele tinha uma coisa muito melhor
do que quaisquer coisas que os outros
pudessem ter. Uma coisa que era, em todos
os sentidos, muito melhor que a realidade.
Olá, SIMON. Bem-vindo ao Mundo dos
jogos melhores que a realidade [Se não for
SIMON, clique aqui].
As palavras passeavam pela tela
enquanto Simon carregava o servidor e se
ajeitava na frente do computador.
Programou o site Mundo dos jogos melhores
que a realidade para ser sua página inicial, e
a casa em que morava tinha a conexão de
banda larga mais veloz que existia. Bastava
ligar o computador, e lá estava.
O brilho do monitor era a única luz no
quarto de Simon. Os verdes, vermelhos e
amarelos brilhantes iluminaram seu rosto, e
ele sorriu. O site era mais confiável que
qualquer amigo, caloroso e receptivo, e
estava à sua disposição o tempo todo.
Foi uma noite típica: dever de casa,
jogos, jantar, mais jogos. Tudo
supervisionado pelo mordomo, Templeton, e
pela sra. Solomon, a governanta. Papai
ainda estava no banco, e mamãe estava
fora, fazendo trabalho voluntário. Depois, às
nove e meia em ponto, hora de dormir. Os
empregados não reclamariam se ele ficasse
acordado, mas seus pais, sim, se chegassem
em casa. Eles se lembravam de ter ouvido
falar sobre hora de dormir uma vez. Como
se fossem bons pais ou algo do tipo.
Mas o Mundo dos jogos melhores que a
realidade era a maneira como Simon sempre
encerrava seus dias. Esses jogos eram
definitivamente melhores que a realidade —
aliás, melhores do que qualquer outra coisa
na vida. Jogos que o faziam pensar, jogos
pelos quais você não poderia simplesmente
passar. Jogos que nunca se repetiam.
Como sempre, a setinha do mouse
estava sobre o link dos “jogos
personalizados”. Ele já havia clicado ali uma
vez, mas uma olhada nos preços fez com
que mudasse de idéia. Se ao menos
houvesse uma amostra grátis ou uma
demonstração, mas não; depois que
passasse pelos preços, era preciso informar
os detalhes de seu cartão de crédito. Ele
não tinha cartão de crédito e sabia, por
experiência própria, que pagaria caro se
usasse o da mãe ou o do pai. Essa seria uma
maneira garantida de chamar a atenção,
mas teria algumas desvantagens, como ficar
sem computador por uma semana.
Ele suspirou, e alguém bateu à porta.
Uma fresta se abriu e um rosto feminino
apareceu. Ela tinha longos cabelos
castanhos e olhos cor de mel separados,
como os de Simon.
Simon se levantou.
— Mãe!
— Oi, querido. Ainda acordado? — A
sra. Down não entrou no quarto. — Não
tenho visto você ultimamente, não é
mesmo? Vá dormir agora, e nos vemos
amanhã de manhã. Boa noite!
A porta se fechou antes que Simon
pudesse dizer alguma coisa.
Ele voltou novamente a atenção para o
computador e saiu da página.
— Amanhã de manhã — ele sussurrou
para si mesmo. Claro! Só que, até que ele
acordasse, ela já teria tido alguma
emergência para resolver e já teria ido para
o escritório. Seu trabalho voluntário cuidava
de crises pelo mundo. Qualquer coisa, desde
golfinhos doentes a órfãos da Guatemala.
Qualquer coisa que não fosse ele.
Desligou o monitor, e o quarto ficou
inteiramente escuro.
Alguma coisa brilhava através das
pálpebras de Simon. Ele abriu os olhos e
olhou o quarto, sonolento. O monitor estava
ligado, e as conhecidas cores brilhantes do
Mundo dos jogos melhores que a realidade
se espalhavam pelo ambiente. Simon franziu
o rosto. Tinha certeza de que havia
desligado tudo.
Enrolou-se como um caracol e puxou a
coberta por cima da cabeça. De algum jeito
a luz continuava entrando, e ele não
conseguia mais dormir. Afastou a coberta,
irritado. Teria de desligar o computador em
definitivo, e dessa vez tiraria o plugue da
tomada, só para ter certeza.
Mas, ao se aproximar do computador, o
que viu não foi a tela de boas-vindas que
sempre aparecia.
Olá, SIMON. Como você é um de nossos
melhores jogadores, gostaríamos de lhe
oferecer um JOGO PERSONALIZADO
GRATUITO. Preencha os campos abaixo e
seu JOGO PERSONALIZADO GRATUITO será
postado diretamente para você.
— Gratuito, hein? — murmurou Simon.
Uma coisa que havia aprendido há muito
tempo era que nenhuma empresa bem-
sucedida oferecia nada realmente gratuito.
Mas ele jogaria até descobrir qual era a
pegadinha; depois, desligaria.
Então, sentou-se na cadeira e colocou a
mão sobre o mouse.
Primeiro vinham as informações
demográficas: idade, sexo, ocupação — em
outras palavras, informações que iriam
diretamente para o departamento de
marketing, para mandarem spams pelo
resto da vida. Ele se declarou um viúvo de
oitenta anos, que trabalhava como
neurocirurgião e ganhava um milhão de
libras por ano.
Depois, os itens mais importantes
apareceram.
SEU JOGO:
Você gostaria que seu jogo fosse suave
ou perigoso?
Ora, é óbvio, pensou Simon. Ele
selecionou “perigoso” sem pensar a
respeito.
Você gostaria que seu jogo se passasse
em sua cidade, em uma cidade qualquer ou
em um mundo de fantasia?
A setinha passeou sobre a opção
“mundo de fantasia”. Programar um jogo em
sua própria cidade? Até parece! Simon deu
um sorriso zombeteiro. Sua cidade era...
Pensando bem, sua cidade era exatamente
o tipo do lugar que precisaria ser o cenário
de um jogo para melhorar um pouco. Então,
clicou na opção “sua cidade”.
Você gostaria que seu jogo fosse
apenas baseado na realidade ou que fosse
tão real quanto a vida?
Simon franziu o rosto. Qual era a
diferença? Então, lembrou-se daqueles jogos
entediantes de lan houses em que você
controla um skatista ao longo de zooms em
um cenário fantasioso, ou aqueles em que
um atirador que não se vê ataca ladrões e
aliens em um labirinto sem fim. Esses são
baseados na realidade, e a pessoa logo
descobre as manhas, ao perceber que são
todos iguais e repetitivos. Por outro lado,
uma coisa certa a respeito da vida real é
que hoje pode ser completamente diferente
de ontem. Então, Simon escolheu a opção
“tão real quanto a vida” e clicou.
Acordou com um engasgo. Os raios de
sol penetravam pela cortina, e os pássaros
cantavam lá fora. A tela vazia do
computador o encarava, impassível, do
outro lado do quarto.
Franziu o rosto. Tela vazia? Ele
desligara tudo antes de se deitar, mas o
computador não havia ligado sozinho e ele
não havia...?
Sacudiu a cabeça para clarear os
pensamentos. Claro, Simon! Seu
computador lhe ofereceu um jogo gratuito!
Fala sério!
Em seguida, olhou para o relógio de
cabeceira e saltou da cama com um grito.
Dormira quase uma hora a mais!
Simon tomou banho, vestiu-se e jogou
os livros na mochila com uma velocidade
impressionante. Teria de sair sem tomar
café da manhã. O carro o levaria até a
escola em River Park, mas seria tão
implacável quanto o ônibus escolar. Sairia
na hora exata, estivesse ele pronto ou não
— além de levar Simon à escola, teria de
pegar seu pai em sua reunião diária da hora
do café. Se não estivesse no carro na hora
de sair, Simon estaria muito encrencado.
Mas havia um ritual que ele precisava
cumprir, independentemente da hora ou de
quão atrasado estivesse. Ligou o
computador para ver se havia recebido
alguma mensagem.
Olá, SIMON. Seu jogo personalizado já
foi postado.
Simon levou um susto. Então ele
realmente havia recebido uma oferta de
jogo gratuito na noite anterior! Mas era
estranho ele não se lembrar de ter voltado à
cama depois. Não tinha tempo para pensar
nisso agora. Ouvia o carro se aproximar do
portão. Correu para fora do quarto,
deixando-o bagunçado e a cama, desfeita.
Os empregados arrumariam tudo enquanto
estivesse fora.
Quando chegou em casa naquela noite,
a colcha estava lavada e passada. Sobre ela
havia um pacote pardo.
Simon largou a mochila e pegou o
pacote. Girou-o nas mãos. Era pequeno e
quadrado, com o peso e o tamanho de uma
caixa de DVD. Seu nome e seu endereço
estavam anotados em letras perfeitamente
manuscritas. Não havia endereço para
retorno, e também não havia selo de
postagem. Quem poderia ter entregado um
pacote em mãos?, pensou.
Desceu até o primeiro andar.
Templeton atravessava a sala quando Simon
o chamou.
— Quando chegou isto?
O mordomo olhou para cima, surpreso.
— Quando chegou o quê, sr. Simon?
Simon levantou o pacote.
— Isto. Para mim.
Templeton ergueu as sobrancelhas.
— Que eu saiba, não chegou nada hoje
para o senhor. Simon ficou desconfiado.
Poderia jurar que seu mordomo possuía um
certificado de garantia de ausência de
qualquer senso de humor. Será que
Templeton estava brincando com ele?
— Alguém entrou no meu quarto hoje?
— perguntou Simon.
— A governanta fez a sua cama, sr.
Simon — respondeu o mordomo. — Mas,
fora isso, não; ninguém, senhor.
Simon voltou para o quarto e examinou
o pacote. Não poderia ter simplesmente
aparecido, poderia? Alguém tinha de tê-lo
colocado lá.
Será que alguém poderia ter subido
sem que os empregados notassem? Ou seria
coisa da governanta, tentando brincar com a
cabeça de Simon?
— Ei, acalme-se! — disse a si mesmo.
Não adiantaria nada ficar paranóico. O que
era inegável era o fato de que o pacote
estava ali, agora.
Rasgou o papel e pegou o DVD na
caixa de plástico. Não havia etiqueta na
caixa nem no disco — apenas o nome
“Simon” com tinta preta permanente. Será
que a governanta poderia estar deixando
DVDs para ele?
Levou meio segundo para concluir que
não, ela não deixaria DVDs para ele.
Precisava de ajuda até mesmo para ligar o
DVD player — jamais gravaria discos nas
horas vagas. Com o coração acelerado,
Simon ligou o computador e inseriu o DVD
na bandeja.
O disco começou a funcionar, e a tela
ficou branca. Uma mensagem apareceu em
letras brancas sobre um fundo preto. Parecia
um texto de computador muito antigo,
daqueles que ainda tinham o sistema DOS.
Bem-vindo ao jogo, Simon.
Até agora, nada de mais. Ele já tinha
visto designs melhores em jogos de
fliperama dos anos 80. A mensagem não
passava de um texto básico de computador
aparecendo na tela.
A mensagem de boas-vindas
desapareceu e foi substituída por um texto
um pouco mais longo.
Você controla as ações de um
criminoso perigoso.
O objetivo do jogo é causar a máxima
devastação possível à cidade.
Em seguida, veio a explicação sobre o
uso dos comandos, que até dormindo ele
teria sido capaz de desvendar. Era tão
básico quanto a primeira tela. Simon
bocejou enquanto pegava o controle ligado
à torre de seu computador.
Depois a tela clareou e ele ficou ali,
espantado, enquanto o realismo parecia
invadir o quarto através da tela.
— Uau! — suspirou. Estava olhando
para a rua principal de sua cidade. Era como
se houvesse uma câmera lá, fornecendo
imagens ao vivo diretamente para a tela de
seu computador. A resolução não era fraca
como a de uma webcam, e a imagem não
era em preto e branco como a de uma
central de vigilância. Sua tela estava cheia
de imagens coloridas e em alta resolução.
Seu ponto de vista parecia ser de cerca de
cinco metros acima do chão, olhando para
baixo e ao longo da rua.
Era a hora do rush do fim do dia. A rua
estava congestionada, e as calçadas,
lotadas. Os sons que invadiam seu quarto
eram os da rua principal no final da tarde.
A única garantia de que não se tratava
de uma imagem ao vivo e real era o homem
em pé no meio da rua, de costas para
Simon. Ele simplesmente ficou lá, ignorando
o trânsito que se acumulava em ambos os
lados. Usava tênis velhos, jeans gastos e
camiseta. Não era possível ver seu rosto; só
a parte de trás de seu cabelo, que era bem
curto. Em função de seus ombros largos e
dos braços grossos, era exatamente o tipo
de figura que faria Simon atravessar a rua
para evitá-lo.
Simon mexeu seu controle para a
frente, e o homem deu alguns passos
adiante. Esquerda, e o homem virou à
esquerda. Todo o cenário girava com ele,
para que o homem permanecesse sempre
de costas. Agora estava de frente para as
lojas.
Impossível, pensou Simon. Impossível
terem digitalizado toda a cidade em apenas
algumas horas! Afinal, tinha sido esse o
tempo decorrido desde que Simon registrara
seu pedido: apenas algumas horas. Por
acaso tinham modelos de diferentes
cidades? Ou, pelo menos, das cidades do
banco de dados de seus clientes? Mas ali, na
tela do computador, logo à esquerda, estava
a igreja com o andaime na frente. Simon
passava por ali todo dia, a caminho da
escola, e sabia que o andaime só estava
instalado havia dois dias. Provavelmente
atualizavam o banco de dados
regularmente. Talvez houvesse alguma
transmissão via satélite.
Fosse o que fosse, ele resolveu que
testaria a simulação até o esgotamento.
Haviam se esforçado tanto para que o jogo
parecesse extremamente real... Ele tinha a
obrigação de provar o contrário. Fez o
personagem correr calma e tranqüilamente
pela calçada. As pessoas logo saíam de seu
caminho, de um lado e do outro. Às vezes se
pareciam com pessoas que Simon conhecia
— a bibliotecária da escola, alguém que
trabalhava para seu pai —, mas todas
desapareciam de vista à medida que o
homem corria.
Utilizando o controle, Simon virou o
sujeito para a esquerda, deixando a rua
principal, e passeou pelo parque, pelo rio e,
em seguida, por uma rota fluvial de volta ao
centro da cidade. O homem respondia
instantaneamente a cada um de seus
comandos, e não havia quebra entre os
cenários. Era como se tudo estivesse
realmente acontecendo na cidade.
O homem chegou a uma bifurcação, e
Simon largou o controle. Já havia tentado
fazer o sujeito passear pela cidade; talvez
devesse desenvolver alguma estratégia. Mas
qual? Na tela do computador, o homem
havia parado e esperava pelo próximo
comando.
De repente, uma mensagem surgiu na
tela. Era a mesma letra antiga, preta, sobre
fundo cinza.
Lembre-se, JOGADOR, você está
controlando um CRIMINOSO PERIGOSO.
Então, faça algo PERIGOSO.
— Ora, desculpe-me por viver no
mundo real — disse Simon. — Você tem
alguma sugestão... Uau! — Como se
respondesse a Simon, outra mensagem
apareceu.
Por que você não invade algum lugar?
Você pode escolher:
O hospital.
A companhia de gás.
A padaria.
— A padaria? — disse Simon, irônico. —
Claro, todos os criminosos perigosos
invadem a padaria...
Escolheu a padaria assim mesmo, pois
queria testar o jogo com a escolha menos
óbvia. E, se por um lado não tinha nada
contra o hospital (poderia ficar doente um
dia) ou a companhia de gás (precisava se
manter aquecido), o dono da padaria na rua
Bruton era outra história. O sujeito vivia
mal--humorado e parecia ter raiva de todos
os jovens da cidade. Isso, pensou Simon,
poderia ser interessante.
Assim que fez sua opção, o
personagem começou a correr pela cidade.
— Ora, vamos! — protestou Simon.
Imaginou que, ao escolher a padaria, o
homem iria direto para lá, como se pulasse
para outra cena. Mas a desvantagem desse
jogo é que tudo parecia acontecer em tempo
real, o que significava que percorrer uma
distância um pouco maior parecia levar uma
eternidade. Apertou o controle com força,
mas o sujeito continuava correndo no
mesmo ritmo. Simon já estava acostumado
a controlar cada movimento do jogador, e
era uma sensação estranha a de ficar ali
parado, assistindo.
O homem entrou no shopping e o
atravessou, parando do lado de fora da
vitrine da padaria. E lá ficou, sem se mexer.
Seus braços estavam pendurados nas
laterais do corpo, e ficou observando pelo
vidro as prateleiras de pães e bolos.
Continuava de costas para Simon, e seu
reflexo no vidro era escuro demais para que
o menino pudesse identificar algum traço.
— Olá? — disse Simon. — Olááá? Você
vai a algum lugar? Mesmo assim, ele
continuou parado, até Simon mexer
experimentalmente no controle e o sujeito
dar alguns passos.
— Isso! — disse Simon com satisfação.
O sujeito estava novamente sob controle.
Simon o fez passear pela loja e olhou em
volta. Havia prateleiras cheias de pães,
bolos, salgados e biscoitos, além de um
balcão de vidro com a caixa registradora em
cima. Era exatamente igual à da vida real.
— Incrível — murmurou Simon. Ele
havia pensado que talvez os fabricantes do
jogo tivessem obtido as imagens da cidade a
partir de fotos de satélites, mas que satélite
poderia entrar numa loja?
O dono da padaria estava atrás do
balcão. Era um homem de meia-idade, de
cabelos escuros e expressão
permanentemente mal-humorada. Assim
como o interior da padaria, o dono era
exatamente igual ao verdadeiro.
— Posso ajudá-lo? — perguntou o
proprietário. As caixas de som de Simon
tinham qualidade suficiente para que
parecesse que o sujeito estava a seu lado.
Até o tom de voz era o mesmo, sugerindo
que só estivesse fingindo gostar do cliente.
— Claro, vou destruir este lugar —
disse Simon, contente, para a tela do
computador. — Mas, antes disso, vou pegar
todo o seu dinheiro, pois sou um criminoso
perigoso. — Estudou todos os botões do
controle. Será que havia algum comando
que fizesse o homem falar? Aparentemente
não. Presumiu que o sujeito não podia falar,
então simplesmente fez com que ele
caminhasse ao redor do balcão e se
aproximasse da caixa registradora.
— Ei! — O dono da padaria deu um
passo à frente e empurrou o jogador. —
Afaste-se!
Simon ainda não havia feito o sujeito
fazer nada além de correr. Como ele lutava?
Num impulso, apertou o botão vermelho no
controle — o botão que apertaria se esse
fosse um jogo de guerra e ele quisesse
bombardear alguma coisa. O homem na tela
pôs a mão no peito do dono da padaria e o
agrediu com força. O proprietário cambaleou
e atingiu um pequeno armário de vidro atrás
de si. O som aflitivo do vidro quebrando se
reproduziu com perfeição pelas caixas de
som do computador de Simon. O homem
agredido se encolheu sobre o chão cheio de
estilhaços, encarando seu agressor com
uma expressão apavorada.
O agressor simplesmente ficou ali
parado e o encarou de volta, porque Simon
havia se esquecido de ordenar qualquer
outro comando. Ele estava olhando para a
tela do computador, incrédulo.
— Uau! — sussurrou Simon. Estava
acostumado a jogos de luta, jogos em que
heróis super-humanos e completamente
irreais podiam bater uns nos outros como se
fossem almofadas. Mas havia alguma coisa
real nesse jogo. A maneira como o homem
se recolheu e a força de seu golpe pareciam
genuínas, como se um verdadeiro ser
humano, de carne e osso, tivesse acabado
de atacar outro.
Simon voltou a si e deu de ombros.
Ora, acalme-se, disse a si mesmo. Por
melhores que fossem as imagens, não
passavam de dados gravados em um cartão
de memória. Nada além disso. E ele tinha
uma missão a cumprir.
Simon fez o sujeito caminhar em
direção à caixa registradora, que abriu com
um golpe. Esvaziou a caixa e depositou todo
o conteúdo em seus bolsos. Antes que
Simon pudesse virar o sujeito para deixar a
loja, uma mensagem apareceu na tela.
Quer causar mais estragos? Lembre-se:
este é um CRIMINOSO PERIGOSO.
Mais estragos? Por que não?, pensou
Simon. Afinal, era só um jogo.
Seu personagem estava próximo a
algumas prateleiras. Simon apertou o botão
vermelho novamente, e o sujeito agarrou as
prateleiras e depois as sacudiu. Muitos
alimentos caíram pelo chão, numa nuvem
de farinha. Com mais alguns testes, Simon
descobriu que apertar o botão vermelho
bastava para ativar o módulo “destruição”
no sujeito. Se estivesse próximo ao dono da
padaria, bateria nele; se estivesse perto de
algo quebrável, quebraria.
Simon passeou pela loja, destruindo
mais prateleiras, chutando o vidro do
balcão, arrancando as luzes. Em seguida,
notou uma porta atrás do balcão. Utilizando
o controle, levou seu personagem até ela e
a arrombou. Ela levava a uma sala de
azulejos alinhados, iluminada por luzes
fluorescentes. Em uma das paredes havia
um enorme forno de aço inoxidável. A porta
da frente era de metal e vidro, e uma fileira
de mostradores e botões estava à mostra na
parte de cima. Uma pequena mensagem
surgiu no canto superior direito da tela.
Passe o cursor sobre os itens para
obter valores.
Simon arrastou o cursor sobre o forno.
Forno. Seis meses de uso. Valor: 5.000
libras.
Uau! Era quase tão caro quanto a TV de
seu pai!
Você pode causar um VERDADEIRO
estrago aqui, Simon!
Simon apertou o botão vermelho
novamente, mas desta vez o homem ficou
parado.
Utilize a cadeira para aumentar o
estrago.
Cadeira? Simon fez o homem olhar ao
redor do ambiente. Havia uma cadeira de
aço no canto, então guiou o sujeito até ela.
Mais testes comprovaram que o botão verde
fazia o homem pegar os objetos. Depois,
apertou o botão vermelho novamente. O
criminoso ergueu a cadeira com as duas
mãos e a atirou com força contra o forno. As
caixas de som tremeram com uma explosão
metálica ensurdecedora. Na tela do
computador, os mostradores do forno iam
sendo destruídos, e alguns botões caíam.
Simon atacou o forno repetidas vezes, até
que a cadeira não passasse de tubos
dobrados e o forno estivesse aniquilado,
como se tivesse sido atropelado por um
trem.
Tremendo e ofegando como se ele
mesmo, pessoalmente, estivesse causando
a destruição, Simon comandou o homem
para que se dirigisse a outra sala. O dono da
padaria obviamente a utilizava como
escritório. O criminoso passou para trás da
mesa e chutou as gavetas de arquivos
diversas vezes, deixando vigorosas marcas
de sapato em cada gaveta. Na mesa havia
um computador, que ele pegou e atirou ao
chão. Depois, virou a mesa. Finalmente,
arremessou a cadeira pela janela.
Ao longe, Simon podia ouvir a sirene da
polícia. Percebeu que o som vinha do
computador.
A polícia está a caminho. É melhor
parar por aqui. Você:
Pegou 788 libras.
Causou um prejuízo de 7.093 libras em
estragos. Sua pontuação é 7.881. Você quer:
Gastar o dinheiro? Esconder o dinheiro?
Simon refletiu. Em que poderia gastar
788 libras? Não muita coisa em comparação
ao que já tinha em seu quarto. Não;
economizaria e compraria alguma coisa
incrível. Se houvesse alguma espécie de loja
virtual nesse jogo, talvez pudesse comprar
um colete à prova de balas ou uma arma
para seu criminoso. Simon decidiu que
esperaria. Então selecionou “esconder o
dinheiro”.
Imediatamente, o sujeito voltou a
correr para a saída dos fundos da loja.
Parecia saber exatamente onde esconderia
o dinheiro. Como antes, ele tinha um destino
em mente, então Simon não conseguia
controlá-lo. Só que Simon não conhecia esse
destino. E se estivesse indo esconder seus
ganhos em um lugar ruim? Não tinha como
o sujeito conhecer a cidade melhor que
Simon. O menino gritou, irritado, e apertou
com força o controle. Mas o sujeito
continuou correndo, e Simon só podia
assistir, frustrado.
Na tela do computador, o homem corria
pela rua principal, para longe do centro da
cidade. Simon imaginou para onde estaria
indo. Será que tinha uma base secreta ou
um esconderijo?
Continuou correndo. Simon mexeu os
polegares e compôs em sua mente a crítica
que deixaria no site Mundo dos jogos
melhores que a realidade: O trabalho gráfico
era ótimo, a ação era incrivelmente real,
mas o elemento “tempo real” era um SACO!
O criminoso chegou à parte industrial,
no limite da cidade, e não apresentava
nenhum sinal de que fosse parar. Parecia
que o idealizador do jogo tinha decidido que
esconder o dinheiro significava abandonar a
cidade. Na tela, a estrada na frente do
sujeito começava a apresentar curvas e
subir. Simon conhecia muito bem aquele
caminho. Era o percurso que fazia todos os
dias para ir à escola e voltar. Se pudesse
fazer o criminoso parar e girar, veria toda a
cidade a seus pés. Mas o homem continuou,
deixando a cidade cada vez mais para trás.
Será que o mapa do jogo se estendia até o
topo da colina? Será que havia uma mansão
digitalizada no topo, com um pequeno
Simon no quarto de cima, na frente de um
computador menor ainda?
Mas, depois dos campos, entre a
cidade e o topo da colina, havia a floresta —
depois que a floresta cobrira toda a colina.
Agora havia apenas algumas árvores até o
topo, uma barreira que separava a casa de
Simon do resto da cidade. O homem entrou
na floresta e pela primeira vez saiu da
estrada. Simon teve mais uma chance de
apreciar o trabalho gráfico do jogo, a
maneira como o sol se punha e como os
raios dourados iluminavam por entre os
galhos.
Cerca de cem metros floresta adentro,
o criminoso parou em frente a um carvalho
com iniciais marcadas no galho. Por um
instante, Simon imaginou quem teriam sido
JV e ZD. O homem se ajoelhou para abrir um
buraco na folhagem entre duas raízes e
escondeu o dinheiro ali. Depois, cobriu o
buraco outra vez e deixou uma pinha para
marcar o local.
Simon olhou para o relógio. Pulou da
cadeira: eram oito e meia — ele estava
jogando havia quatro horas! Boa parte,
concluiu, havia passado assistindo ao
criminoso caminhar em tempo real. Estava
faminto — os empregados provavelmente o
chamaram para jantar, mas ele não ouviu —,
e seus olhos estavam secos e doendo.
Olhou novamente para o jogo e mordeu
o lábio. Não queria sair agora, quando
estava começando a pegar o jeito. O
problema é que, se mandasse o criminoso
de volta para a cidade, teria de esperar uma
hora enquanto o sujeito descia a colina.
A tela estava escurecendo, para ficar
compatível com o horário do dia. Simon
apertou mais alguns botões para ver se
existia algum artefato que possibilitasse a
visão noturna. Aparentemente não.
O jogo tomou a decisão por ele. O
homem voltou para a estrada, e depois se
dirigiu à colina, a fim de voltar para a
cidade. Uma mensagem apareceu na tela.
Por hoje é só, Simon. Espero que tenha
saciado seu apetite. Até amanhã.
A tela ficou branca e o disco se ejetou
sozinho, com um ruído.
— Uau! — impressionou-se Simon.
Removeu lentamente o disco da
bandeja e o devolveu à sua caixa. Depois,
desligou o computador. O jogo tinha alguns
defeitos, mas ao mesmo tempo era a coisa
mais legal que já havia visto. Em toda a sua
vida.
Alguém esbarrou em Simon, deixando-
o sem fôlego. Ele cambaleou e colidiu contra
a parede.
— Ei, olha por onde anda, Down! A
realidade voltou com tudo.
Durante quase toda a manhã, Simon
estivera distraído, pensando no jogo.
Subitamente, foi trazido de volta a seu
ambiente. Estava na escola, caminhando
pelo corredor principal entre uma aula e
outra. Era uma agitação de uniformes
escolares e conversas barulhentas, no breve
intervalo entre as aulas. Mas, mesmo com
tantas pessoas andando em todas as
direções, a maioria dos alunos conseguia se
locomover sem esbarrar em ninguém.
Exceto por Mat Frost — alto, bonito, de
cabelos claros, um menino que Simon
detestava. Geralmente ele era muito bom
em procurar por Mat, mas hoje estava muito
absorvido nos pensamentos que envolviam
o jogo e no que faria logo mais, à noite.
Os dois meninos se afastaram um do
outro — Simon, lenta e cuidadosamente, e
Mat, com desmazelo. Mat sorriu e encarou
Simon por um instante, o suficiente para que
ele desviasse o olhar. Simon voltou-se para
seu armário e procurou suas chaves, como
se essa tivesse sido a sua intenção o tempo
todo. Sabia, por experiência própria, que, se
Mat Frost resolvesse implicar com ele, seu
dia seria insuportável.
No entanto, Mat se distraiu com um
grito que veio do fundo do corredor.
— Ei, Frost! Você vai ao shopping na
hora do intervalo? — Era o melhor amigo de
Mat, Tom Mansbridge.
— Está brincando! — disse Mat. — Você
não soube? A polícia está por todos os lados.
— O quê?
Simon ainda lutava contra sua chave,
mas não pôde deixar de ouvir. Quase
ninguém da escola pôde deixar de ouvir. Ele
parou e prestou atenção.
— Uma invasão e tanto na padaria
ontem à noite! O dono apanhou muito —
disse Mat.
— Não é possível! — exclamou Tom.
— Pois é, esvaziaram a caixa
registradora e acabaram com o local; o dono
precisou levar pontos...
Um pequeno grupo estava se formando
para discutir o ataque, e, para sua surpresa,
Simon sentiu que seus pés o levavam para
perto do grupo. Colocou-se atrás da
multidão. Ninguém pareceu se importar.
Aproximou-se um pouco mais. Alguns alunos
até abriram espaço para ele, sem desviar a
atenção de Mat.
Um dos meninos mais novos — um
gordinho levemente destacável, o tipo de
garoto com quem Mat implicaria — se
manifestou.
— Espero que peguem o culpado —
disparou. — Isso não está certo.
Mat simplesmente olhou para ele. Não
fez nenhum comentário sarcástico e
nenhuma piada desnecessária.
— É verdade — concordou. — Não está
certo.
Foi o suficiente. Se aquele menino
podia ser aceito, então Simon também
poderia. Sabia que o problema com a
padaria não passava de uma grande
coincidência, mas todos achariam estranho
se soubessem o que ele jogara na noite
anterior.
Simon riu um pouco alto demais,
tentando fazer uma piada.
— É, duvido que ele volte a me enrolar
na hora do troco, agora!
Foi como estourar uma bolha. O humor
da rodinha mudou, e diversos olhares hostis
se voltaram para Simon. Sua face começou
a esquentar.
Mat olhou para ele com desdém.
— Mais uma de suas fantasias, Down?
— A maioria dos meninos começou a se
afastar, e Mat voltou sua atenção de Simon
para Tom. — Encontro você no lago depois
da aula, tá? Vamos ver se conseguimos
reunir alguns meninos.
— Certo, Frosty. Boa idéia. Simon fez
um último esforço.
— Certo, vejo vocês lá — disse Simon.
Mat voltou-se para ele novamente.
— Sinto muito, Down. Mas o lago é
proibido para nerds. — Ele e Tom riram
enquanto caminhavam pelo corredor,
deixando Simon sozinho, com os punhos
cerrados.
De algum jeito, Simon sobreviveu ao
resto do dia. Mat Frost não saía de sua
cabeça. Ele tinha chegado muito perto de
pertencer ao grupo. Tinha uma coisa em
casa que podia acabar com a popularidade
de Mat. Se ao menos conseguisse descobrir
um jeito de contar a todos, ele seria popular.
As pessoas desejariam brincar com ele.
Mat alto. Mat bonito. Mat popular. Mat
que não seria nada sem o pai dele, dono de
uma concessionária de automóveis.
O sr. Frost tinha uma concessionária de
carros de elite — carros esportivos muito
caros que custavam o salário de um
banqueiro ou mais. Mat sempre falava dos
novos modelos que seu pai testava,
geralmente com ele no banco do passageiro.
E para que servem carros modernos
para alunos de colégio?, Simon pensava
amargamente. Nenhum de nós pode dirigir!
Mas todos podem jogar no computador,
assistir a filmes — todas as coisas que
podiam fazer com espadas se ficassem com
Simon.
O sinal do fim da aula naquela tarde de
sexta-feira foi como a abertura dos portões
de um presídio. O pátio estava lotado de
crianças que passavam por ali, esperando o
ônibus ou alguém que as buscasse, ou
pegando suas bicicletas estacionadas no
bicicletário. Como sempre, o carro de Simon
já esperava por ele, em frente ao portão.
Fechou a porta e se isolou de quase todo o
barulho que vinha de fora; pegou seu
GameBoy e o ligou. O carro se afastou.
— O senhor teve um bom dia na escola,
sr. Simon? — perguntou o motorista, sem
olhar para trás.
— Normal — resmungou Simon. Olhou
para a pequena tela do GameBoy e franziu o
nariz. Servia como passatempo, mas,
comparado ao que o esperava em casa, não
passava de uma brincadeira de criança.
O carro se afastou da cidade.
— Imagino que esteja chegando a
época das provas, sr. Simon — disse o
motorista alegremente. — O senhor tem
muitos deveres de casa?
Simon se ajeitou ainda mais atrás nas
almofadas e o ignorou. O GameBoy era
melhor do que nada. Começou a jogar.
Era um trajeto de quinze minutos para
deixar a cidade e subir a colina em direção à
sua casa. O resto da cidade foi ficando para
trás, e a estrada subia pela colina, passando
pelas árvores...
As árvores!
— Ei! — Simon sentou-se
repentinamente, esquecendo
completamente o GameBoy. — Pare! Pare
aqui!
O motorista olhou para trás.
— Sr. Simon, o senhor sabe que o seu
pai insiste para que eu o leve direto para
casa...
— Obedeça! — gritou Simon. — Ou...
ou eu vou voltar para cá de qualquer jeito!
— Estavam logo abaixo do bosque, próximo
ao topo da colina. Ele não levaria tanto
tempo se fosse de bicicleta.
— Certo, acalme-se — disse o motorista
serenamente. O carro desacelerou e
encostou.
Simon se retirou com o carro ainda em
movimento, mas, por um instante, apenas
ficou parado e olhou para as árvores. Não
tinha certeza se queria ou não continuar.
Havia roubado a padaria e espancado o
dono do estabelecimento — em um jogo. E,
ao mesmo tempo, alguma coisa
assustadoramente parecida acontecera na
vida real. O que havia sido uma
coincidência.
Mas e se não tivesse sido?
— O senhor quer que eu vá junto? —
ofereceu o motorista, mas Simon mal
escutou. Começou a andar.
Podia ser uma coincidência que as
coisas acontecessem em seu jogo e na vida
real. Mas certamente o verdadeiro ladrão
não teria escondido o dinheiro do roubo no
mesmo lugar do criminoso do jogo de
Simon. Seria coincidência demais. Então, ele
olharia debaixo da árvore em que o homem
do jogo de computador havia enterrado o
dinheiro, descobriria que o dinheiro não
estava ali e teria a certeza de que era
apenas um jogo.
Mas Simon tinha de admitir que parte
dele esperava que, por mais impossível que
parecesse, fosse verdade. Como seria legal!
Ter um jogo que manipulasse a realidade!
A floresta estava em silêncio; nada
além do som do vento soprando entre as
folhas. Simon percebeu que estava
ofegante. Reconhecia a sensação. Era a
mesma que sentia quando Mat Frost o
chateava. Era medo.
Medo de que o dinheiro não estivesse
lá ou medo de que estivesse? Ele não sabia
ao certo.
Seus passos quebravam as folhas
secas no chão, e ele mantinha os olhos
atentos para encontrar a árvore. Aquela que
tinha as iniciais gravadas no tronco.
E lá estava. A árvore. JV e ZD. Simon
desacelerou repentinamente, relutante
quanto a seguir em frente. Mas se forçou a
continuar. Ajoelhou-se ao pé da árvore e
quase gritou ao ver o que havia na base do
tronco.
Havia uma pinha marcando um local
entre as raízes.
Simon sentiu como se estivesse
olhando para si mesmo de uma longa
distância. Afastou as folhas secas e tocou
uma nota úmida com seus dedos.
O dinheiro não havia sido embrulhado e
estava sujo por causa da noite que passara
escondido ali. Simon já sabia quanto tinha,
mas contou assim mesmo. Notas de dez, de
vinte e de cinco misturadas, e algumas
moedas.
788 libras.
Simon sentou-se no chão. O dinheiro
estava entre seus pés. — Meu Deus — disse
Simon. — Meu Deus. Pensamentos se
misturavam em sua cabeça. O jogo era real,
e ele era um ladrão, mas era tão legal, e ele
controlava um criminoso violento, mas
poderia se tornar extremamente popular se
soubesse lidar com isso, e não precisava
machucar ninguém, mas já tinha
machucado, só que ele não sabia, e Mat
Frost ficaria louco, e ele só precisava de um
plano e... ...e, basicamente, podia fazer
tudo.
Simon recolheu o dinheiro e se
levantou. Em seguida, caminhou de volta
para o carro; primeiro lentamente, e mais
rápido à medida que seus pensamentos e
seu plano se definiam. Até chegar ao carro,
o novo plano já estava pronto.
— De volta à cidade — disse ao
motorista.
O maior monitor de tela plana que
Simon podia comprar com 788 libras tinha
uma tela de trinta e duas polegadas e
acabamento em preto e prateado. Ocupava
quase toda a sua escrivaninha, deixando
espaço apenas para o teclado, o mouse e o
controle. Ele conectou o último cabo e deu
um passo para trás para admirar. Sim,
estava ótimo. E, de algum jeito, era
apropriado. Era como se estivesse
agradecendo ao computador, que havia
permitido que conseguisse o dinheiro.
Uma brisa fria entrou pela janela
aberta. Um leve som de música alcançou
seus ouvidos, e Simon se aproximou da
janela para se colocar próximo às cortinas.
Vinha do outro lado das árvores. Vinha do
lago, onde Mat, Tom e seus amigos estavam
se divertindo. Enquanto Simon estava ali,
sozinho — como sempre. De repente, o novo
monitor não parecia tão legal assim, mas ele
afastou esse pensamento. Teria de dar
continuidade ao plano que bolara na
floresta. Parecia que estavam dando uma
festa lá embaixo — o tipo de festa que
deveria ser interrompida.
— Simon? — disse uma voz atrás dele.
Ele pulou.
— Mãe!
A sra. Down entrou no quarto. Ela abriu
um sorriso, e Simon se forçou a retribuí-lo,
tentando parecer calmo. Não ficou surpreso
por ela não ter notado o novo monitor, mas
não se importou. Foi a primeira vez em
meses que ela fez mais do que olhar pela
porta.
— Oi, querido. Será que você pode me
ajudar?
— Ah, tudo bem! — disse Simon. Eram
apenas seis e meia. Mat e os outros ficariam
no lago por horas, e, se ajudar sua mãe
agora significasse que ela não voltaria para
perturbá-lo mais tarde, valeria a pena. Ele
precisava de total privacidade para fazer o
que tinha em mente.
A pilha de envelopes crescia
lentamente a seu lado, e Simon já havia
perdido a conta do número de cortes de
papel que havia sofrido. Olhou
amargamente para sua mãe, que estava do
outro lado da mesa, enquanto pegava outro
panfleto. Dobrar uma vez, dobrar outra vez
e colocar no envelope. Mais um. Dobrar uma
vez, dobrar outra vez... Por isso ela queria
sua companhia. Não pela sua conversa. Não
por ser seu filho. Só para que ele
trabalhasse de graça.
Sua mãe olhou para ele e sorriu.
— Muito obrigada por isso, querido.
Ajuda muito a instituição de caridade
quando cuidamos da correspondência assim.
— Tudo bem — sussurrou ele. Dobrar
uma vez, dobrar outra. — Para que é isso
tudo?
— Você se lembra da bolsa-ave? —
perguntou sua mãe. — Nós a
reintroduzimos...
— Lembro, lembro — resmungou
Simon, interrompendo sua mãe. Só havia
perguntado por educação e, sim, ele se
lembrava da bolsa. A prefeitura encontrara
uma espécie rara de ave nos arredores do
lago, e, quando os pais de Simon eram
crianças, a espécie quase se extinguiu. Há
alguns anos, galinhas criadas em cativeiro
foram libertadas em uma área protegida
perto da marina, e agora a pequena
comunidade vivia em liberdade. A escola de
Simon recolheu verbas para ajudar; o fato
de a mãe de Simon ser a encarregada do
projeto havia proporcionado mais munição
do que nunca a Mat Frost.
— Estamos quase acabando — ela
disse. Pegou uma série de etiquetas
impressas no computador. — Depois só
precisaremos colocar uma etiqueta em cada
um e...
Simon se levantou.
— Sinto muito, mãe, tenho dever de
casa para fazer! — E correu para o andar de
cima, saltando dois degraus de cada vez
antes que sua mãe pudesse protestar.
Seu quarto estava frio. Ele não havia
fechado a janela. Deu uma última olhada na
direção do lago, de onde podia ouvir ao
longe o som da música. Em seguida, fechou
a janela e voltou sua atenção para o
computador.
— Mas o quê...?
A tela tinha um brilho fraco. Ele não se
lembrava de ter ligado o computador antes
de descer com sua mãe. O novo monitor
continuava preto, mas letras vermelhas se
formavam com clareza.
Pronto para jogar?
Simon sentou-se lentamente em frente
à tela. O computador acertara em cheio; ele
estava pronto para jogar. Aliás, pensando
bem, estava desesperado para jogar.
Digitou “sim”.
A tela clareou e mostrou o homem
parado no meio do parque.
Podemos ir: Ao cinema. Ao...
Simon não esperou as opções. Ele
sabia para onde queria ir. Digitou “LAGO”
em letras maiúsculas e apertou “Enter”. Ok.
O homem na tela começou a correr, e
Simon pegou o controle.
Ele se irritou ao se lembrar do principal
defeito do jogo. Tudo acontecia em tempo
real, e, para ir do parque até o lago, nos
limites da cidade, levaria muito tempo.
Mexeu no mouse e tentou fazer com que o
computador mudasse de idéia, mas tudo
parecia já estar programado. Simon
resmungou e se ajeitou na cadeira. Não
havia nada a fazer além de observar o
homem correr.
A luz do dia estava desaparecendo — lá
fora, do outro lado da janela, e na tela do
computador. As luzes da rua se acenderam,
mas, quando o criminoso finalmente chegou
ao lago, já estava quase completamente
escuro. Ele caminhou pelo estacionamento
vazio. O portão na cerca de ferro que
circundava a marina estava trancado. O
homem aproximou o rosto da cerca. As luzes
da sede do clube estavam apagadas, e boias
flutuavam silenciosamente próximas à
plataforma. Uma leve brisa soprava sobre a
água, formando ondulações.
Simon fez o personagem olhar em
volta. Onde estavam todos? Ele não os
machucaria — só queria participar da festa,
de uma maneira que ninguém jamais
esqueceria.
Não adiantou nada. Mesmo com as
caixas de som ligadas no volume máximo,
só o que ouvia era o vento batendo nas
árvores e, ocasionalmente, os carros que
passavam a distância. O homem demorara
tanto para chegar que a festa já havia
acabado. Irritado, ele socou a mesa do
computador, fazendo com que o monitor
balançasse. Por que esse criminoso idiota
desse jogo idiota não podia ter começado a
partida na marina, antes que todos tivessem
desaparecido?
Eles estão se escondendo de você.
Simon não sabia se havia vindo do
computador ou se a mensagem
simplesmente aparecera em sua mente,
mas sentiu uma raiva muito grande dominá-
lo. Estavam se escondendo? Dele? Como
poderiam? Como ousavam?
Comandou o jogador para que corresse
ao longo da margem, olhando da esquerda
para a direita, mas não havia nenhum sinal,
ou barulho, de mais ninguém. Então, Simon
o fez caminhar de volta para a marina, o
único lugar onde alguém poderia estar se
escondendo. Havia luzes acesas no
estacionamento, mas nada na marina;
estava escuro e havia sombras por trás da
grade.
— Vamos! — gritou Simon. — Vá e
pegue-os! — O homem escalou a grade em
segundos e caiu do outro lado.
Simon fixou os olhos na tela. Estava
com o mesmo problema do final da última
partida. Estava escuro lá fora, e ele mal
conseguia enxergar.
— Encontre-os! — sibilou para o
homem. — Encontre-os! Mas o criminoso não
fez nada, é claro, pois Simon não mexeu no
controle.
— Cansei desse jogo idiota! — gritou
Simon para a tela. — Quando está
começando a ficar bom, você faz isso. De
que adianta?
Como se estivesse respondendo, um
texto escrito em branco surgiu contra o
fundo da tela: O que você gostaria de fazer?
Abandonar o jogo.
Tomar um copo de leite, ganhar um
beijinho da mamãe e ir dormir. Destruir.
— Não banque o espertinho comigo —
sussurrou Simon. — Destruir, certo? — Ele
selecionou a última opção e clicou. A tela
continuou preta; ele não conseguia ver o
homem na escuridão. Depois de uma pausa,
ouviu, pelas caixas de som, um fraco som de
vidro se quebrando. Depois, uma coisa dura
se quebrando. Depois, alguma coisa...
Mas ainda era noite, e ele continuava
sem enxergar nada. Simon desligou o
monitor com um clique furioso.

Simon estava em sua carteira na sala


de aula, quase em transe, o sangue
correndo agitado por suas orelhas. A
professora falava, mas sua voz parecia
abafada e distante.
Reviveu em sua mente, mais de uma
vez, a seqüência de eventos da noite
anterior. Havia selecionado “destruir”. Mas
estava escuro demais para que enxergasse
alguma coisa, então desligou o monitor. Em
seguida, já era de manhã, e ele estava
saindo da cama (apesar de não se lembrar
de ter ido deitar). Depois, ligou a TV e
sintonizou no canal de notícias locais.
O repórter estava na plataforma do
lago. A câmera exibia pedaços de cascos
destruídos, destroços de barcos boiando na
água. Em tom grave e preocupado, o
repórter descreveu o modo como alguém
destruíra os botes na noite anterior. Todos
os barcos foram afundados, e as janelas do
clube haviam sido despedaçadas.
Mas não foi isso o que fez Simon
procurar o botão “off” no controle remoto.
Com um pedido de desculpas pelas imagens
perturbadoras, o repórter apontou para uma
área próxima. O remo de um dos botes
estava ao lado de um ninho, sujo de penas e
sangue. Toda a colônia de aves havia sido
destruída, poucos meses após ter sido salva
da extinção por Eleanor Down, explicou o
repórter em tom sombrio. A câmera exibiu
os corpos quebrados e indefesos dos
pássaros até Simon apertar o botão “off”
com tanta força que deixou uma marca em
seu dedão.
Então, ele percebeu que o computador
estava ligado. A tela estava vazia, apenas
com um texto em letra branca.
Você fez isso.
— Não fiz nada — disse Simon, ousado.
— Foi ele. Mas não é você quem o controla?
Simon deu um salto quase para o outro
lado do quarto.
— É claro que o controlo! Então, a
culpa é sua.
— Foi um acidente! — gritou Simon. —
Eu não sabia o que “destruir” faria. Não vai
acontecer de novo. A partir de agora, direi
exatamente o que ele deverá fazer.
Exatamente!
— Exatamente — Simon sussurrou para
si mesmo agora, sentado na sala de aula.
— Pois não, Simon? — perguntou a
professora.
Simon voltou assustado para a sala de
aula, derrubando o estojo no chão. Canetas
voaram por todos os lados. O resto da
turma, mesmo pessoas que normalmente o
deixavam em paz, começou a rir. Mas, nesse
momento, essa era a menor das suas
preocupações.
Simon passou boa parte do dia
tentando esquecer o ataque na marina e
quase conseguiu.
— Ei, Down!
Simon rosnou. Frost o avistara quando
já havia quase passado da porta, na hora da
saída.
Mat veio pelo corredor com um sorriso
malicioso estampado no rosto. Estava com o
seu grupo de sempre.
— Sinto muito que não tenha podido ir
ontem à noite, Downinho, mas estamos
bem, obrigado por perguntar. Nos
divertimos um bocado.
— Que pena — resmungou Simon,
antes de pensar no que estava dizendo.
Mat fechou a cara.
— Ei, Downinho, qual é o seu
problema? Eu pensei que fosse ficar
contente por saber que não fomos atacados
pelo maluco do machado.
Simon sabia muito bem que eles não
correram nenhum risco com o maluco do
machado — todos foram embora antes de
ele chegar. O fato de não poder contar isso
a ninguém o corroía por dentro.
A face de Mat se iluminou outra vez,
como se uma grande idéia tivesse acabado
de lhe ocorrer.
— Obviamente, eram os passarinhos da
mamãezinha, não eram? — exclamou Mat.
— Oh, a mamãezinha chorou quando soube
da notícia?
Simon deu um passo em direção a Mat.
— Retire o que disse — sibilou Simon.
— Ou então... Mat deu um sorriso
zombeteiro.
— Ou então o quê, nerd? — Pôs a mão
casualmente sobre o ombro de Simon e
começou a andar para a frente. Simon
tentou se livrar das garras de Mat, mas ele
era maior e mais forte e simplesmente
lançou Simon contra a parede. Simon olhou
impotente para o círculo de admiradores de
Mat ao fundo. Ninguém mandou Mat parar.
Ninguém fez nada para ajudar. Alguns
começaram a rir quando Simon tentou se
livrar de Mat. Ele foi consumido pela raiva.
Ele controlava o cidadão mais perigoso da
cidade, e na escola riam dele.
Mat se inclinou para a frente até que
seu rosto e o de Simon estivessem muito
próximos. Não havia nenhum traço de
humor em seus olhos frios. Simon se forçou
a encontrar o olhar de seu inimigo e
imaginou o criminoso esmagando a cara de
Mat. Para sua própria surpresa, Simon sentiu
um sorriso se formar em seu rosto.
Os lábios de Mat se curvaram.
— Você é realmente patético, Down —
rosnou. Em seguida, sacudiu Simon e o
soltou. E saiu andando. Simon sentiu gelo se
formar em torno de seu coração ao
caminhar em direção ao carro que o
esperava.
FROST MOTORS. A placa sobre a
concessionária era idêntica à real. Uma
fileira de carros impecáveis ocupava a parte
da frente: alguns Porsches, uma Ferrari, um
Maserati e um antigo Aston Martin.
O machado do criminoso atingiu o teto
da Ferrari. Ele o retirou do metal destruído e
o lançou contra o parabrisa, que se quebrou
em mil pedacinhos. O alarme do carro
disparou enquanto o sujeito se dirigia à
lateral do veículo para atacar os pneus.
Cada movimento, Simon ficou feliz ao
perceber, era feito de acordo com seus
comandos no controle. O homem estava
cumprindo suas ordens.
Simon tinha controle absoluto.
— Ei! — disse uma voz pelas caixas de
som. Mecânicos e vendedores surgiram da
loja principal. Eles atacaram o criminoso e o
afastaram do carro. Simon usou o controle
para combatê-los. Certificou-se de que o
criminoso utilizasse o taco de beisebol que
trouxera consigo, e não o machado. Era uma
arma poderosa, mas não letal. Os
funcionários da concessionária se afastaram,
horrorizados.
Simon os ignorou e guiou o sujeito para
o carro seguinte. Destruiu um dos vidros e
esticou o braço para alcançar o freio de
mão.
Espere! — Simon não havia lhe dado o
comando para isso! Apertou o controle
furiosamente.
— Não! Espere!
O homem soltou o freio de mão, pôs o
ombro na lateral do carro e o empurrou. Ele
foi para a frente, primeiro devagar, depois
ganhou velocidade enquanto saía da fileira
em que estava estacionado e chegou à rua
principal. O tráfego de automóveis
enlouqueceu, com as buzinas tocando
ensandecidas; os carros foram parando.
— Ei, espere aí!
O grito veio de fora da cena em
exibição na tela de seu computador. O
homem se virou lentamente para encarar o
sr. Matthew Frost, pai de Mat, que saía de
seu escritório. O sr. Frost caminhou em
direção ao criminoso e o empurrou. Na tela,
o sujeito se sacudiu, mas logo recobrou o
equilíbrio.
— A polícia está a caminho — rosnou o
sr. Frost —, e você vai direto para a cadeia...
O homem levantou as mãos e as pôs
em torno do pescoço do sr. Frost.
— Não! — engasgou-se Simon.
Destruir? Sim. Matar? Não! Agarrou o
controle e sacudiu a mão novamente, como
se tivesse sido transportado por uma
corrente elétrica. Por um breve instante,
teve a certeza de que ele, Simon, estava lá.
Ele estava no estacionamento, admirando o
que havia feito e o que estava prestes a
fazer.
Na tela do computador, o sr. Frost
emitiu um grunhido e em seguida
desfaleceu.
Simon atacou o botão “desligar” do
monitor com um grito de horror. De nada
adiantou; a imagem continuava ali. Ele caiu
de joelhos e foi para baixo da mesa,
procurando o fio para tirá-lo da tomada.
Seus dedos se fecharam em torno do fio, e
Simon o puxou com toda a força. O
computador ficou silencioso. Levantou-se
novamente e bateu com a cabeça na mesa
enquanto tentava se ajeitar.
Simon se sentou novamente em sua
cadeira, tremendo. Não conseguia tirar os
olhos do monitor, apavorado com a
possibilidade de que ele ligasse outra vez —
mesmo estando fora da tomada. Será que
ele havia parado o jogo ou as coisas ainda
estavam acontecendo em algum canto do
mundo virtual? Será que o criminoso ainda
estava matando o pai de Mat?
— Mas não é esse o objetivo? — disse
uma voz no fundo da mente de Simon. — É o
homem que está matando o sr. Frost. Não
foi você quem o mandou fazer isso.
— Não — murmurou Simon. — Não
mandei nada. — Ele não havia selecionado
nenhuma opção de “assassinato” e não
havia controlado as ações do criminoso. Só
foi até a concessionária para destruir o local.
Que culpa tinha ele se o sujeito havia
começado a agir por conta própria?
A exploração desse pensamento era
um prazer culposo, como cutucar com a
língua um dente dolorido. Encostar
lentamente, sentir uma dorzinha, afastar a
língua... e repetir a dose. Ficava cada vez
mais fácil.
É claro que Simon sentiu pena do sr.
Frost. Mas, sinceramente, que espécie de
idiota ataca um homem daquele jeito? Ele
provocara a situação. Era como culpar um
carro por atropelar alguém que se atirara
em sua frente. Algumas coisas são
inevitáveis. De que outro jeito esse encontro
poderia terminar? O sr. Frost deveria ter
deixado o criminoso em paz. Fim de papo.
E por acaso Simon havia estado na
cena do crime? Não. Havia deixado alguma
impressão digital ou amostra de DNA? É
claro que não. Ele jamais poderia ser
acusado de nada relacionado ao crime.
E ele sabia de uma coisa que Mat Frost
não sabia. Onde Mat estava agora?
Assistindo à televisão, brincando com os
amigos? Divertindo-se, como sempre, sem
se importar com quem machucava pelo
caminho. E ele, Simon, sabia o que havia
acontecido com seu pai.
A essa altura, a sensação de horror já
havia passado e fora substituída por uma
calma inesperada. Simon se ajoelhou para
ligar novamente o computador, depois
voltou para a cadeira a fim de esperar a
máquina voltar à vida.
Não se surpreendeu por não precisar
recarregar o jogo. A tela foi logo para a
frente da concessionária Frost Motors, para
o corpo imóvel que jazia ali, e para os
paramédicos que tentavam reanimá-lo. A
visão estava mais difícil agora e um pouco
prejudicada por um caminhão de entrega. O
criminoso estava agachado do outro lado da
rua, na calçada oposta à concessionária.
Simon imaginou que estivesse se
escondendo da polícia.
Calmamente, desligou o computador
outra vez e foi fazer seu dever de casa.
— O pai de Mat Frost foi assassinado
ontem à noite. Nenhum som interrompeu o
silêncio no auditório na manhã seguinte. O
diretor transmitiu a notícia em tom solene e
levemente trêmulo. Simon não tirou os olhos
do rosto do diretor.
— Ao que parece, um vândalo atacou a
concessionária e matou o sr. Frost quando
ele tentou se defender.
Houve uma pausa enquanto o diretor
tomava um gole de água e limpava a
garganta.
— Evidentemente, Mat não virá à
escola hoje, mas o sr. Frost era um grande
amigo, e faremos um minuto de silêncio em
sua homenagem.
Assim que o diretor terminou seu
pronunciamento, os alunos voltaram a suas
aulas. O falatório nos corredores foi
reduzido. Os velhos hábitos de Simon faziam
com que o menino olhasse para o lado cada
vez que alguém se aproximava, mas não
havia necessidade. Sem Mat, não havia
ninguém para iniciar a perseguição
costumeira.
Nada de Mat! Simon podia caminhar
pelo corredor, e Mat não estava lá para
disparar comentários maldosos. Poderia se
concentrar nas aulas, pois Mat não estaria
jogando papéis nele. Poderia levantar a mão
para responder às perguntas sem que
alguém sussurrasse a palavra nerd.
A vida sem Mat tinha muitas
vantagens.
A cereja do bolo veio quando ele ouviu
alguns meninos conversando sobre o
assassinato durante um intervalo entre as
aulas. Tom Mansbridge liderava o grupinho
de sempre.
— Primeiro o sujeito destrói os
Porsches, depois...
— A Ferrari — disse Simon sem pensar.
— Ele atacou a Ferrari primeiro. — Todos os
olhos se voltaram para ele.
— É, e eu suponho que você tenha
testemunhado tudo ao vivo — disparou Tom.
Simon olhou nos olhos do menino.
— Ele atacou o teto da Ferrari com um
machado — disse Simon com a voz fria e
quieta —, depois cortou os pneus...
— É. Foi o que ouvi — comentou
alguém. Foi o selo de aprovação que
capturou a atenção de todos. Rostos
ansiosos se voltaram para Simon, deixando
Tom parado como uma pedra na praia
enquanto as ondas batiam.
— Então, o que mais aconteceu? —
perguntou alguém.
E Simon simplesmente começou a
descrever os eventos que testemunhara. Um
canto de sua mente despertou e se alongou
como um gato no sol. Se houvesse um
contador digital em sua vida, ele pensou,
contando o número de amigos que tinha,
teria disparado de zero para mais de dez em
questão de segundos.
— Como você sabe disso tudo? —
perguntou Tom, desconfiado, e a mentira
saiu da boca de Simon com tanta facilidade
que era como se fosse verdade.
— Eu tenho acesso a um canal a cabo
muito legal — ele disse. — Você recebe as
notícias muito antes de os outros canais
transmitirem. Eu também poderia contar
sobre o que se passou na marina.
— Sério? O que foi que aconteceu lá?
— Você conseguiu descobrir quem fez
aquilo? Tom cruzou os braços.
— É. Conte o que aconteceu, Down.
Simon imediatamente desejou ter
ficado de boca fechada. Não havia visto
nada do que se passara na marina; o ataque
acontecera no escuro.
— Bem, é... — ele começou. Tom
sorriu, como uma cobra.
— Então?
— Bem, é, o cara... ele pegou... hum...
— Simon pensou a respeito. Como o
criminoso teria destruído os barcos? Os
pássaros haviam sido mortos por um remo,
mas o que causara tanto estrago aos
barcos? Em seguida, lembrou-se da arma
escolhida pelo criminoso durante o ataque à
Frost Motors. — Um machado, é claro! Ele
pegou um machado e foi destruindo os
barcos...
— Os policiais no rádio disseram que foi
um cano de ferro — disse Tom. — Eles
encontraram o cano escondido nos arbustos.
— O garoto encarava Simon furiosamente.
— Eu, bem — gaguejou Simon —, foi o
que eu quis dizer, um cano, mas isso não é
importante...
— Você viu o cano no seu canal a
cabo?
— Vi — mentiu Simon. — Era...
— Qual era o tamanho?
— Ei, fique quieto! — reclamou alguém
com Tom. — Deixe ele nos contar.
Simon posicionou as mãos com uma
distância de mais ou menos um metro entre
uma e outra.
— Era mais ou menos deste tamanho, e
depois...
— Era de que cor? Simon revirou os
olhos.
— Cinza.
— Então não era mesmo um machado?
— Não! — gritou Simon.
— Ao que parece, era um machado —
disse Tom com satisfação. — Era um
machado enorme e vermelho do clube. Foi o
que encontraram nos arbustos.
Simon o encarou e sentiu o respeito da
platéia desaparecer.
— M-mas... o cano... — ele disse.
— Eu inventei o cano — disse Tom. —
Assim como você. Vamos, pessoal. Vamos
deixá-lo no mundinho dele. Só fique longe
do nosso, certo, Down?
Tom se afastou sem olhar para trás, e,
pouco a pouco, a multidão em torno de
Simon se desfez. Alguns olharam para trás:
uns, com hostilidade; outros, simplesmente
ofendidos.
— Não tem a menor graça, Simon —
resmungou um deles. Outra pessoa esbarrou
nele de propósito, como Mat fazia. Dez
segundos depois, Simon estava sozinho
outra vez, no meio do corredor, com o rosto
em chamas. E o contador de amigos voltou
à estaca zero.
Seu rosto continuava em chamas
enquanto o carro o levava para casa. Ele
havia dito a verdade! Quanta ironia! Até o
paspalho do Tom perguntar sobre a marina,
ele estava descrevendo tudo da maneira
como tinha acontecido. A injustiça da
situação fez com que desejasse gritar.
Estava dando o que queriam, e mesmo
assim o rejeitavam. Não o queriam se
dissesse a verdade. Não o queriam se
mentisse. Simplesmente não o queriam.
Vamos deixá-lo no mundinho dele. Fora
o que Tom dissera. Bem, eles poderiam
fazer parte desse mundo se quisessem.
Poderiam ser seus amigos. Ele teria
permitido que participassem de sua vida se
quisessem. Mas, em vez disso...
Fique longe do nosso, certo, Down ? De
jeito nenhum! Simon daria um recado ao
mundo deles que não poderiam ignorar.
Foi para o quarto, jogou a mochila na
cama e ligou o computador, confiante.
SENTI SAUDADES, diziam as letras no
monitor. BEM-VINDO OUTRA VEZ.
— Vamos jogar — disse Simon,
sorrindo.
O helicóptero caiu soltando fumaça do
motor, o ruído estridente de suas peças
destruídas saindo das caixas de som. Atingiu
a lateral dos escritórios do conselho e
explodiu em uma bola de fogo laranja.
Um bum abafado entrou pela janela de
Simon, misturado ao som de sirenes, que
havia sido o som de fundo durante boa parte
dos últimos dois dias.
O homem estava no topo do prédio e
baixou a arma. Simon sorriu. O helicóptero
sobrevoava a cidade, irritantemen-te,
zumbindo como um inseto gigante, metendo
o nariz onde não era chamado. Ele — Simon,
o homem, eles eram praticamente a mesma
coisa agora — tomou as rédeas da situação.
Mesmo assim, Simon sentia como se
devesse alguma coisa ao helicóptero. Só o
que podia ver na tela do computador era o
que o homem via. As últimas informações do
helicóptero à estação local de rádio
relatavam o que ele havia feito até agora.
“O fim de semana em que a anarquia e a
destruição invadiram a cidade”, segundo a
descrição do repórter do noticiário.
A prefeitura estava em chamas.
Fumaça negra saía das janelas de uma loja
de departamentos. A biblioteca parecia uma
fornalha, com pedaços de papel queimado
voando pelas janelas. A escola de Simon
estava envolta em fumaça.
Surpreendentemente, nem tudo era
obra do criminoso. A violência estava se
espalhando. Simon havia sido criativo. Ele
iniciara uma confusão ao atacar um grupo
de torcedores que saíam de um jogo de
futebol e — um pouco antes de abater o
helicóptero — libertara os prisioneiros da ala
de segurança máxima do presídio. Tudo isso
colaborou para que a situação saísse do
controle.
Os moradores da cidade perceberam a
gravidade da situação, e todas as ruas
estavam lotadas de veículos. Mas tentar
fugir não os ajudou em nada, pois o
criminoso havia bloqueado as principais
rotas com caminhões roubados.
O computador não fazia mais
sugestões. Tudo havia sido idéia de Simon.
Parecia não importar mais que tipo de
precaução as pessoas tomassem lá
embaixo. Se as portas estivessem
trancadas, o criminoso conseguiria abri-las.
Se as pessoas se aproximassem, ele poderia
combatê-las. Não havia nada capaz de pará-
lo.
Não havia nada capaz de parar Simon.
Ah, sim, e ninguém se esqueceria disso
tão cedo.
Algo dizia a Simon que ele estava
faminto, exausto e malcheiroso. Não havia
comido, dormido nem tomado banho nos
últimos dois dias. Passara todo o fim de
semana em frente ao computador,
orquestrando a onda de crimes. E, ao
mesmo tempo em que uma parte de sua
mente gritava apavorada com as coisas que
fazia, o resto de sua consciência vibrava
triunfante. De algum jeito, isso parecia
certo. Parecia necessário. Ele sabia que o
que estava fazendo fazia parte do coração e
da essência de todo mundo. Só estava
liberando.
A porta de seu quarto se abriu pela
primeira vez em dois dias. Geralmente, os
empregados batiam e desistiam quando não
obtinham resposta. Alguns, mais corajosos,
chegavam a abrir a porta e colocar a cabeça
para dentro, mas desistiam ao ouvir um
grito irritado de Simon. Mas desta vez...
— Simon?
— Ah. Oi, pai.
O pai de Simon não avançou muito no
quarto. Simon tinha uma vaga percepção da
presença de uma figura alta em algum lugar
atrás de si — que era só o que via de seu pai
mesmo, na melhor das hipóteses. Não
desgrudou os olhos do monitor, mas
diminuiu o som das caixas. Estava
transportando o homem da rua da igreja
para o museu. Por que não havia pensado
nisso antes? O museu estava cheio de coisas
caras e importantes.
Seu pai franziu o nariz.
— Você pode abrir a janela? Estou
sentindo um cheiro horrível aqui.
— Faça o que quiser — respondeu
Simon. O homem havia chegado às portas
de vidro da frente do museu. O local estava
fechado e as portas, trancadas. O criminoso
pegou uma lata de lixo e a atirou contra
elas.
— Estão precisando de mim no banco.
Alguém precisa acalmar os seguranças. Eles
estão em pânico. Não se preocupe;
ficaremos seguros...
Tá bom, tá bom, pensou Simon, mal
ouvindo o que seu pai dizia. Vá logo.
— O carro é blindado, e o motorista
participou de um daqueles cursos
preparatórios especiais...
— Arrã.
Ouviu um sussurro de mulher vindo do
térreo, do lado de fora.
— Ah, e e sua mãe vai comigo — disse
seu pai. — Mas, como eu lhe disse,
estaremos em segurança. E iremos
depressa. Vamos em um pé e voltamos no
outro, então não se preocupe.
— Tudo bem — sussurrou Simon, sem
desgrudar os olhos da tela.
O sr. Down olhou sobre o ombro de
Simon.
— Meu Deus do céu, o que você está
jogando? — Ele engoliu em seco. — Assim
que isso tudo terminar, prometo que
faremos mais coisas juntos. Certo?
Pôs a mão no ombro de Simon. O
menino fez um gesto de impaciência,
afastando a mão do pai. Este suspirou.
— Não gosto de ter que deixar você,
mas vai ficar melhor aqui do que lá
embaixo, na cidade. Até logo, Simon.
Simon se inclinou para a frente a fim de
aumentar o som novamente. Na tela do
computador, o homem havia pegado uma
pequena estátua de pedra da exposição de
arte romana e a utilizava como taco para
quebrar outros objetos. Um segurança se
aproximou dele e foi atacado com a estátua.
O guarda caiu no chão, inerte.
Em seguida, dirigiu-se à próxima
galeria do museu: armas medievais.
Você causou:
31.593.476 libras de prejuízo.
Nada mau, pensou Simon. O homem
desceu os degraus a passos largos,
afastando-se do museu. Simon se ajeitou na
cadeira e se alongou. Sentiu a coluna
estalar. Entrelaçou os dedos e os estalou
também. Ah, mas que sensação boa...
Ei, Simon, e agora?
Que tal bater onde vai realmente doer?
Simon franziu o rosto. Era a primeira
vez em horas que o computador fazia uma
sugestão. O que ele queria dizer com “bater
onde realmente vai doer”? Ele já não havia
causado um prejuízo de mais de 30 milhões
de libras? Isso certamente havia doído...
Uma vaga memória começou a invadir
sua mente. Seus pais não haviam vindo a
seu quarto há pouquíssimo tempo? O que
seu pai havia dito? Alguma coisa sobre...
Alguma coisa sobre ir até a cidade.
Alguma coisa sobre ir até o banco.
Dã! Simon deu um tapa em sua própria
testa. Como poderia ter sido tão lento?
Destruir o banco: a razão de viver de seu
pai! Isso! Isso mostraria a seus pais que ele
era mais importante do que imaginavam. E,
se ele pegasse todo o dinheiro do banco,
sua pontuação seria astronômica!
— Certo — ele disse. — Vamos até o
banco!
Imediatamente, o homem na tela do
computador passou a correr daquele jeito
que Simon já conhecia. Ele já havia se
acostumado. Quando tinha um destino em
mente, o criminoso simplesmente corria até
lá. Era um pouco chato, mas...
Simon se ergueu, assustado. Não havia
utilizado o controle para selecionar um
destino. E não tinha nenhuma ferramenta de
reconhecimento de voz; como o computador
poderia ter reagido ao que dissera?
Segurou o controle e tentou fazer com
que o criminoso parasse, mas este
continuou correndo. Um grupo de
baderneiros que atacavam uma loja de
eletrônicos abriu caminho para ele passar.
Passou pela prefeitura em chamas, deu um
salto para correr pelo teto dos carros presos
no trânsito. Avançou em direção à praça,
onde ficava o banco.
De repente, o homem saiu de cima do
carro e alcançou um veículo em movimento,
do outro lado da rua. Ele o alcançou com
facilidade. Abriu a porta do motorista e o
empurrou para fora. O motorista começou a
reclamar, mas Simon deu um soco em sua
barriga e outro em seu rosto, fazendo-o cair
de joelhos. Em seguida, o criminoso entrou
no veículo e pisou fundo no acelerador. Os
pneus cantaram e o carro partiu.
Agora era impossível controlar o sujeito
com o joystick. Era como assistir a um filme
— mas um filme que Simon sabia que era
real...
Pedestres apavorados saíam de seu
caminho. Um deles se moveu muito
lentamente e acabou sendo atropelado,
lançado pelos ares. A visão na tela do
computador agora era a do parabrisa do
carro. Simon se agarrava às extremidades
da mesa quando o veículo fazia curvas.
O carro seguia pela contramão da
estrada em direção à praça. Um enorme
carro preto, uma limusine, entrou em seu
campo de visão, logo à frente. Movia-se pela
mão certa, o que significava que mal se
mexia. Alguma coisa começou a cutucar a
mente de Simon. A limusine parecia familiar.
O carro roubado avançou em direção à
limusine, acelerando cada vez mais. Simon
gritou em sinal de alerta. Mas,
evidentemente, ninguém podia ouvi-lo. O
carro bateu diretamente na lateral da
limusine, provocando o som agudo de metal
destruído. O parabrisa do carro de Simon se
despedaçou, e Simon observou a cena,
horrorizado.
A porta da limusine se abriu, e uma
figura apareceu.
— Pai! — gritou Simon, olhando para a
tela do computador. — Cuidado!
O homem deu marcha à ré no carro e,
em seguida, foi para a frente novamente.
Simon gritou.
— NÃO!
Seu pai ficou preso entre a frente do
carro roubado e a lateral da limusine. Uma
tonelada de metal o esmagou. O homem
recuou o carro novamente, e o corpo mole e
desfigurado do sr. Down caiu no chão.
Naquela fração de segundo, Simon
voltou a ser um menino normal. Uma olhada
no corpo sem vida de seu pai fez com que
toda a raiva, toda a revolta, toda a
frustração que movia o jogo
desaparecessem; era como se nunca
tivessem existido. Simon sentiu o estômago
se embrulhar e teve de fechar a boca. Mas
não conseguia afastar os olhos do monitor.
No interior da limusine, ele podia ver
uma sombra, sem ação, que mal se mexia;
sabia que se tratava de sua mãe. O carro
atacou a limusine outra vez, só que agora o
criminoso manteve o pé no acelerador. A
limusine começou a se mover lateralmente,
passando pela rua, cada vez mais rápido,
até atingir um muro. Então uma faísca deve
ter atingido o tanque de gasolina. Ele ouviu
o barulho do combustível explodindo, e uma
bola de fogo se ergueu do veículo destruído.
Chamas alaranjadas dominaram a tela do
computador.
Simon se afastou do computador.
— Não! — disse ele. — É só um jogo.
TEM QUE SER! É só um jogo! — ele gritou.
Ele verificaria o canal de notícias na
televisão. Tinha de estar mostrando alguma
coisa diferente. Então saberia que nada
daquilo era real, e que em breve seus pais
estariam de volta.
Ligou a TV e utilizou o controle para
passar pelos canais. E lá estava. Uma visão
aérea da praça da cidade, com a limusine de
seus pais amassada e em chamas em um
dos cantos. O corpo de seu pai estava no
chão; um paramédico o cobria com um pano
nesse instante. Multidões horrorizadas se
mobilizavam, abandonando seus carros, em
pânico, tentando escapar. Não havia
nenhum sinal do criminoso.
Simon olhou para o monitor de seu
computador. Viu exatamente a mesma cena.
O homem na tela olhou para cima.
O monitor mostrou outra visão.
Mostrava o olhar do criminoso voltando-se
para cima — passando pelos prédios ao
redor da praça, e além. Até chegar à
mansão que ficava na colina acima da
cidade.
A casa de Simon.
O sujeito começou a correr — daquele
jeito que Simon já conhecia —, pegando a
estrada que o levava para fora da cidade.
— NÃO! — gritou Simon, apavorado.
Ele atravessou o quarto e se jogou
sobre sua cadeira. Abriu a bandeja da torre
do computador e pegou o DVD. Bateu-o com
força contra a mesa. Mas o disco não se
quebrou. Colocou-o contra a ponta da mesa
e se apoiou sobre o DVD, com todo o seu
peso. O disco começou a se dobrar e, de
repente, partiu-se em dois. Um pedaço de
plástico quebrado cortou seu pulso.
Simon se apoiou na mesa, ofegante,
com os olhos fechados. Havia destruído a
fonte do jogo. Era o fim. Tinha de ser.
Mas ele continuava ouvindo as sirenes
pelas caixas de som do computador. Abriu
os olhos e gritou.
O jogo continuava acontecendo.
Simon tentou encerrar o jogo, mas seu
computador o ignorou. Digitou Ctrl-Alt-Del, e
nada aconteceu. Apertou o botão power com
toda a força, mas o computador continuou
ligado. Atirou-se ao chão, de joelhos, e
procurou o fio. Desligou o plugue do
computador e, só para garantir, desligou a
outra ponta do fio da tomada. O jogo
continuou acontecendo.
O homem estava perto agora.
Simon gritou e correu para o andar
térreo da casa.
— Ele está vindo! — gritou Simon em
direção ao hall. Templeton, que estava na
extremidade da longa escadaria, piscou e
olhou para o menino.
— Quem está vindo, sr. Simon?
— Ele... ele! Ele matou a mamãe e o
papai! Está vindo para cá...
O mordomo franziu o rosto.
— O senhor está bem, sr. Simon?
Então, alguma coisa atacou a porta da
frente.
— Mas o que foi isso? — Templeton foi
até a porta.
— Cuidado! — gritou Simon, recuando.
— Ele não pode estar aqui... não tão
depressa! — O sujeito nunca se mexia tão
rápido no jogo! Ele correu de volta para o
quarto. No monitor, viu a porta da frente de
sua casa aberta. O rosto espantado do
mordomo preenchia a tela do computador.
— Quem é...
O punho do criminoso atingiu o rosto
de Templeton, e ele cambaleou para trás,
com muito sangue escorrendo do nariz. O
homem o perseguiu dentro da casa e
esticou os braços. Segurou o pescoço do
mordomo e o apertou. Templeton segurou
os braços do sujeito, tentando se libertar.
Em seguida, seus olhos reviraram e seu
corpo sucumbiu. O sujeito o largou.
Houve um grito vindo de um dos lados.
O homem se virou e viu que a empregada
estava ali, com as mãos no rosto. Era rápido
demais para ela; atacou-a antes que
pudesse fugir.
Pôs um braço em torno do pescoço
dela e girou. Os gritos da mulher pararam
subitamente.
Simon chorou e correu para fechar a
porta do quarto. Girou a chave e se trancou
lá dentro.
O computador, por mais impossível que
fosse, continuava ligado.
O jogo continuava.
Simon se encostou na parede,
apavorado, mas não conseguia afastar os
olhos da tela do computador. Podia ver o
homem subindo a escada em direção a seu
quarto. O criminoso alcançou a maçaneta da
porta, e Simon conseguia ouvir sua
respiração pelas caixas de som. Olhou para
a verdadeira porta. A maçaneta estava
girando. De repente, parou, e houve uma
pausa. Em seguida, a madeira sacudiu
quando um peso pesado se lançou contra a
porta.
Outra vez.
A madeira começou a se quebrar.
Lágrimas de horror embaçaram a visão
de Simon, e a última coisa que viu na tela do
computador antes de a porta se abrir foram
as palavras...

Game Over.
A outra irmã

A Acessórios Sparkle estava lotada com o


público do verão. Um CD com os maiores
sucessos de uma boy band fornecia o fundo
musical enquanto Catherine Woollams
cumprimentava cada cliente com um largo
sorriso no rosto. Parecia tão falso quanto o
ouro e a prata dos novos batons que passara
a manhã ajeitando na vitrine.
Um grupo de três meninas finalmente
chegou ao primeiro lugar da fila.
— Você tem alguma coisa azul? —
perguntou uma delas. Remexiam uma pilha
de prendedores de cabelo, que derrubaram
no balcão.
— O azul acabou — desculpou-se
Catherine. Ela apontou as alternativas. —
Temos vermelho, verde, amarelo, laranja...
— Não... — pensou a menina. —Alguma
coisa turquesa?
— Não, na verdade só o que está aqui
mesmo: vermelho, verde...
— E azul-bebê? Ou safira! Ai, eu adoro
safira...
Um dos cantos da mente de Catherine
já estava examinando tudo o que ainda teria
de fazer: estocar as pulseiras do balcão,
colocar os brincos mais próximos da porta —
Stella, a gerente, lera em uma revista que
os clientes preferem ver primeiro os itens
mais baratos, assim não se espantam —,
arrumar as bolsas...
— Não — respondeu. — Só vermelho,
ou...
A menina virou-se de costas e passou
por suas amigas.
— Deixa pra lá. Vamos, meninas. Este
lugar é uma droga.
Catherine já estava sorrindo para a
próxima cliente enquanto em outro canto de
sua mente reclamava de clientes que a
faziam perder tempo. Mas não adiantava
pensar muito sobre isso, ou passaria o dia
inteiro incomodada.
A Acessórios Sparkle tinha uma equipe
de três pessoas, incluindo a gerente, e
durante as férias ficava sempre lotada. Mas
Catherine sabia o que fazer para que cada
cliente achasse que estava concentrada
exclusivamente nela.
— Posso ajudá-la? — perguntou,
alegremente. A mulher tinha no mínimo o
dobro da idade da clientela costumeira, e
Catherine imaginou se teria entrado na loja
por engano.
— Finalmente — exclamou a mulher. —
Estou aqui há horas.
— Em que posso ajudá-la, senhorita? —
perguntou Catherine.
— Quer dizer, nem todos podem passar
o dia em pé esperando, certo?
— Certo — concordou Catherine; seu
sorriso já começava a doer. — O que posso
fazer por você?
A mulher retirou um cachecol verde da
bolsa.
— É este cachecol — ela disse. —
Comprei aqui há alguns dias...
— Você tem cintos? — perguntou uma
menina de mais ou menos doze anos,
interrompendo a mulher.
— Perto das luvas — respondeu
Catherine automaticamente, apontando na
direção dos cintos.
— Ah, obrigada. — A menina correu, e
Catherine voltou a atenção para a mulher.
— Veja só esta costura — ela dizia,
segurando o cachecol e apontando para o
defeito. — Já está se desfazendo!
Catherine ouviu a reclamação com um
sorriso educado. Já fazia esse trabalho havia
dois anos, desde os catorze, quando
começou como vendedora aos sábados.
Nesse verão trabalhava em tempo integral
pela primeira vez, antes de iniciar o último
ano da escola. As últimas quatro semanas
tinham permitido que praticasse o sorriso
educado mais vezes do que poderia
imaginar, acenando com a cabeça nos
momentos adequados e ignorando o que os
clientes diziam. A mulher continuou
reclamando.
— E, além do problema da costura,
quando usei este cachecol durante o dia,
percebi que a cor é verde-limão, e eu prefiro
cor de jade.
Catherine balançou a cabeça e sorriu.
— E o jeito como se encaixa nos meus
ombros não combina com meu corpo tão
bem quanto poderia...
Não combina com seu corpo? Você está
na Acessórios Sparkle! Para MENINAS! Você
está tentando usar um cachecol feito para
alguém que tem a metade da sua idade! O
que poderia querer?
— Então, eu pensei, será que você tem
alguma coisa... Quer dizer, o que você
estava PENSANDO?
— Está tudo bem, Catherine?
O coração de Catherine disparou, mas
o sorriso em seu rosto não se desfez. Stella,
a gerente, havia saído da sala do estoque e
entrou na conversa. Stella gostava de se
vestir bem, com tailleurs escuros, salto alto
e cabelo perfeito, sem esconder que
gostaria de ser gerente de uma loja de
departamentos algum dia.
— Tudo bem, Stella — disse Catherine.
— Esta senhorita estava apenas trocando
um cachecol...
— Então acho que você deveria
escolher entre as alternativas que podemos
oferecer à senhorita. — Stella sorriu para a
cliente, que fez que sim com a cabeça. —
Alguma coisa que combine melhor com ela.
Por exemplo, jade?
A mulher sorriu, e Catherine pensou:
“Você só está dizendo isso porque ouviu o
que ELA disse”.
— Pode deixar, Stella — disse,
afastando-se do balcão.
— E, quando acabar, gostaria que
trocasse o lugar dos brincos...
— Já está na minha lista de coisas para
fazer, Stella.
— Bem, para fazer não é feito, certo? —
respondeu Stella, como se estivesse
transmitindo uma pérola de sabedoria.
Provavelmente, alguma frase de efeito lida
em um livro qualquer sobre gerenciamento
de lojas. Catherine sabia que não deveria
responder, então simplesmente se dirigiu
aos cachecóis para escolher alguma coisa
remotamente verde.
Escolheu uns três ou quatro e se voltou
para o balcão, quase derrubando uma
menina que estava logo atrás dela. A
menina não a havia visto — estava girando
lentamente um carrossel de bolsas
brilhantes, observando a maneira como as
luzes faziam com que as bijuterias
brilhassem. Catherine não tinha muito
talento para adivinhar a idade de crianças,
mas esta parecia pequena o suficiente para
ter cerca de seis anos de idade, tinha
cabelos louro-escuros e bagunçados, na
altura dos ombros, e usava um casaco
acolchoado com detalhes em vermelho e
rosa; era um pouco estranho, mas bem
estiloso, meio retro. Catherine imaginou
qual seria a origem do casaco e se seria
vendido em tamanho adulto.
— Olá — disse. A menina olhou para ela
por um instante, depois voltou sua atenção
para o carrossel. Catherine parou por alguns
segundos, pensativa. Stella não gostava de
crianças desacompanhadas na loja — nunca
tinham dinheiro para gastar, e algumas
delas roubavam coisas. Mas essa menina
parecia mais jovem do que os clientes que
normalmente traziam problemas, e
Catherine concluiu que pelo menos um dos
pais deveria estar por perto. Então, passou
adiante, formando seu sorriso outra vez, e
voltou para o balcão.
—Ah, eu não sei — disse a moça
quando Catherine espalhou os cachecóis
sobre o balcão. — Nenhum desses é jade,
não é?
Felizmente, Stella parecia determinada
a concluir a venda por conta própria, então
ela seria a responsável por convencer a
mulher de que um daqueles tons de verde
combinava melhor com seus olhos.
Catherine andava de um lado para o outro
atrás delas, imaginando se Stella cuidaria do
resto da fila e se ela poderia se ocupar dos
brincos. Olhou em volta da loja para ver se a
menininha ainda estava lá.
Ela estava olhando as bolsas agora,
passando o dedo em um exemplar de couro
brilhante. Catherine a observou com
curiosidade: aquela bolsa era um dos itens
mais caros da loja, e ela duvidava que a
menina tivesse qualquer intenção de
comprá-la. Não queria que Stella se
aproximasse e expulsasse a menina da loja,
então ficou de olho na garota, com a
esperança de que seus pais aparecessem.
Após alguns instantes, tornou-se claro
que a menina estava sozinha. Talvez seus
pais estivessem em outra loja. Não dava a
impressão de que traria encrenca. Catherine
já havia tido problemas com crianças que
pegavam algo de que gostavam e saíam
correndo, fazendo o alarme disparar, rápidas
demais para serem alcançadas. Mas essa
menina parecia jovem demais, tímida e
quieta demais para roubar alguma coisa e
fugir em seguida.
Finalmente, a cliente complicada partiu
com um cachecol o mais próximo possível
de seus olhos que a Acessórios Sparkle
podia oferecer. Stella desapareceu na sala
de estoque, já que Beth, a outra vendedora,
voltara de seu horário de almoço para cuidar
do resto da fila.
— Já venho ajudar você, Beth —
prometeu Catherine, caminhando em
direção à menininha. Ela estava em outra
seção, observando luvas com as cores do
arco-íris, admirando-as de longe, como se
não ousasse tocá-las.
Catherine formou seu melhor sorriso —
um que quase parecia genuíno — e se pôs a
seu lado.
— Olá — disse. — Você está
procurando alguma coisa?
A menina olhou para ela. Sua
expressão era fechada e tímida, mas parecia
haver um sorriso lá, sob os olhos castanhos.
Seus dedos esfregaram uma das luvas.
— Eu gosto destas aqui — murmurou a
menina, tão baixo que Catherine quase não
ouviu.
— Acho que essas são um pouco caras
para você — disse Catherine gentilmente.
A menina pareceu se entristecer.
— Não tenho nenhum dinheiro. Mas...
— ela se aproximou — ...acho que a minha
irmã gostaria muito delas — disse a menina,
como se estivesse compartilhando o maior
segredo do mundo. Catherine respirou fundo
para perguntar a respeito da irmã, se era
mais velha ou mais nova, se estava com a
mamãe e o papai, mas logo ouviu Stella
chamá-la do outro lado da loja.
— Catherine! O que você está fazendo
aí? Venha ajudar a Beth! Funcionários
eficientes são funcionários ocupados!
Catherine se ajeitou.
— Já estou indo, Stella.
Stella abriu a boca para dizer mais
alguma coisa, e Catherine viu seus lábios
pararem ao ver a garotinha.
— Espero que você... — começou
Stella, e Catherine sabia que ela estava a
meio segundo de lembrá-la a respeito da
política sobre crianças desacompanhadas na
loja.
— Sinto muito, são só para clientes —
Catherine murmurou, tomando as luvas das
mãos da garota. — Acho que você deveria
procurar os seus pais. — Com o canto dos
olhos, ela viu Stella fazer um sinal em tom
de aprovação e virar-se de costas.
A menina ficou parada por um instante,
com os olhos escuros e inexpressivos, antes
de passar por ela e correr para fora da loja.
As luvas sacudiram levemente no cabide em
que estavam penduradas, e Catherine
sentiu-se como se tivesse um centímetro de
altura.
E o que mais eu poderia fazer?,
pensou, irritada — irritada consigo mesma,
irritada com Stella e irritada até mesmo com
a menina. Ela não podia ficar passeando por
ali e obviamente não compraria nada; se
tentasse fugir com alguma coisa, Stella a
culparia por tudo. Suspirou, pensando se
seria tarde demais para arrumar um
emprego em que não precisasse lidar com o
público, ou com gerentes excessivamente
ambiciosos, e voltou para o balcão.
Dois dias depois, Catherine passou
correndo pelas portas automáticas para
entrar no shopping. Estava mais cheio do
que o normal para uma segunda-feira,
lotado de pessoas que pareciam
determinadas a caminhar dez vezes mais
devagar do que ela gostaria. Havia perdido a
hora, seu ônibus tinha ficado preso no
trânsito do centro da cidade e faltavam três
minutos para que estivesse oficialmente
atrasada para o trabalho.
— Com licença... desculpe... obrigada
— sussurrava, ofegante, empurrando e se
desviando das pessoas até a escada rolante
que levava ao primeiro andar. — Com
licença... — Tentou se espremer e passar
pela pessoa que estava à sua frente na
escada rolante, esperando conseguir correr
até o andar de cima, e o sujeito olhou para
ela por sobre os ombros.
— Por que tanta pressa? Você sabe que
estas escadas sobem automaticamente, não
sabe? — irritou-se o sujeito, que se voltou
para a frente, impedindo teimosamente a
passagem de Catherine. Ela rangeu os
dentes por ser forçada a se mover no
mesmo ritmo lento das outras pessoas.
De repente, algo vermelho e rosa
prendeu sua atenção. Alguma coisa parecida
fez com que se lembrasse da menininha que
vira no sábado. Catherine olhou em volta,
colocando-se na ponta dos pés para
enxergar melhor, e então a viu. A menina
estava abaixo dela, no piso térreo do
shopping, ao lado do chafariz ornamentado.
Catherine se lembrou da maneira como
se despediram — ela havia praticamente
expulsado a menina da loja só para evitar a
ira de Stella. Pensou se deveria descer e se
desculpar, já que não gostou da maneira
como agira. Não queria que a garotinha
pensasse que a Acessórios Sparkle só tinha
funcionários grosseiros.
— Olá — gritou Catherine, enquanto a
escada rolante a levava para trás de uma
pilastra. Tentou descer um degrau, mas a
escada estava cheia demais, e recebeu um
olhar enfurecido da mulher que vinha atrás.
Também não tinha como ir para a frente.
Quando finalmente saiu de trás da pilastra,
a garotinha havia sumido.
Catherine correu para longe da escada
e olhou para baixo, tentando enxergar a
menina no térreo. O casaco rosa não estava
em lugar nenhum. Deu de ombros. Ela tinha
a melhor das intenções, mas não adiantava
mais se preocupar com isso. E, se não
chegasse à loja em trinta segundos, estaria
atrasada.
A terça-feira pareceu longa, e a quarta,
mais longa ainda. As férias escolares
significavam muitas crianças com tempo
livre, e Catherine podia jurar que todas elas
vinham à Acessórios Sparkle passar seus
dedos sujos de sorvete nos cachecóis e sujar
as pulseiras que ficavam em exposição. No
fim do dia, cada centímetro de seu corpo
doía. Seus pés, por ficar em pé atrás do
balcão; sua garganta, por passar o dia
falando mais alto que a música de fundo e a
conversa das meninas; sua cabeça, por
sempre atender no mínimo três clientes
simultaneamente, e também por precisar se
certificar de que tudo o que deixasse a loja
fosse pago, e por ter de deixar Stella
satisfeita. Na hora de fechar o
estabelecimento, ela ficava feliz por ligar o
piloto automático e voltar para casa no
ônibus lotado, junto com todas as outras
pessoas do mundo.
A saída do shopping dava para a rua
principal. Às quartas--feiras as lojas ficavam
abertas até mais tarde, então já estava
escuro quando Catherine foi embora. O vidro
das portas automáticas parecia preto e
brilhante e refletia perfeitamente o interior
iluminado do shopping. Era como se
houvesse duas Catherines caminhando uma
em direção à outra, e ela deu uma olhada
crítica em seu reflexo. Seus cabelos na
altura dos ombros poderiam ser mais lisos, e
ela não gostava da maneira como
balançavam mais de um lado que do outro.
Mostrou os dentes para ver se não estavam
sujos de batom; em seguida, sorriu de
verdade ao perceber que estava bem.
O sorriso se desfez quando viu o brilho
vermelho e rosa outra vez, no reflexo, logo
atrás dela. A menina estava a alguns metros
de distância, e seus olhares refletidos se
encontraram por um instante.
Catherine parou subitamente e se virou
de costas, e a mulher que vinha atrás
esbarrou nela.
— Desculpe — engasgou-se Catherine,
mas já balançava a cabeça de um lado para
o outro, tentando enxergar a menina. — Eu
só... bem...
— Tudo bem — disse a mulher, em um
tom que deixava claro que não estava; deu
passagem e Catherine seguiu em frente.
Catherine tentou regredir por um
instante, ir contra o fluxo da multidão, mas
não fazia idéia de qual direção deveria
seguir.
A menina havia sido engolida pela onda
de pessoas que saíam do shopping, e,
apesar de Catherine estar na ponta dos pés
e com o pescoço esticado, não conseguia
enxergar a cabecinha loura da criança que
vestia o casaco rosa e vermelho.
— Acalme-se, Cath — sussurrou para si
própria. Não fazia mal se a Acessórios
Sparkle tivesse perdido uma cliente
potencial. Voltou para as portas e permitiu
que abrissem à sua frente, para deixar mais
um dia para trás.
Certo, pessoal! Hoje é sexta-feira! Aqui
vai uma música para deixá-los em ritmo de
festa...
A estação de rádio local tocava
alegremente no shopping quando Catherine
entrou, e finalmente seu humor estava de
acordo com a trilha sonora. Finalmente era
sexta-feira! Tudo bem, era véspera do dia
mais ocupado da semana, mas mesmo
assim ela estava ansiosa pela chegada do
fim de semana. A atmosfera era sempre
melhor na loja, e ela tinha uma festa na casa
de sua amiga Jenny no sábado à noite. E
Jenny tinha um irmão mais velho muito
simpático, chamado Chad, que certamente
estaria lá...
A primeira cliente do dia era uma
mulher que parecia perdida, mais ou menos
da idade da mãe de Catherine.
— As aulas começam em algumas
semanas... — começou a mulher.
E eu não sei?, pensou Catherine,
sombriamente.
— É uma pena! — respondeu, e a
mulher sorriu.
— ...e eu queria comprar um presente
de aniversário para a minha filha que tenha
a ver com a volta às aulas. Ela tem catorze
anos, e não sei o que comprar...
— O que ela leva para a escola
normalmente? — perguntou Catherine.
— Bem, a bolsa, é claro, mas já está
ficando velha.
— Então vamos começar por aí! —
disse Catherine, levando a mulher até a
seção de bolsas.
Com o resto da loja praticamente vazio,
era uma boa maneira de começar o dia.
Catherine gostou de ajudar a mulher a
escolher não só uma bolsa nova como
também um porta-lápis, um prendedor de
cabelo e um caderno de capa brilhante.
— Ah, e algumas canetas também! —
disse a mulher.
— Ótima idéia! — Catherine se lembrou
de que seu emprego não era tão ruim assim.
A mulher pagou com cartão de crédito,
agradeceu inúmeras vezes e saiu com suas
sacolas. Por que Stella nunca estava
presente para testemunhar clientes
satisfeitos?, imaginou Catherine.
De repente, ela teve a estranha
sensação de estar sendo observada. Virou-
se e viu a menininha de casaco vermelho e
rosa atrás dela.
— Oi! — disse Catherine. — Quanto
tempo! — A intenção era fazer uma piada.
A menina apenas olhou para ela.
— Então... — Catherine pensou
rapidamente no que poderia dizer. Não
queria que a menina pensasse que ela seria
grosseira outra vez. — O meu nome é
Catherine.
A menina olhou para o crachá de
Catherine.
— Eu tenho nove anos. Sei ler.
Nove? Catherine ficou um pouco
surpresa. Imaginou que a menina tivesse
uns três anos a menos. Certamente era
pequena para a idade. Mesmo assim, nove
era um pouco jovem para fazer compras
sozinha.
Olhou em volta — no interior da loja, e
para o shopping, através da janela —,
tentando encontrar um adulto ao qual a
garotinha parecesse pertencer. Não parecia
haver ninguém.
— Você está sozinha? — perguntou
Catherine. — Sem a mamãe e o papai?
A menina pegou uma bolsa brilhante
em forma de gato e passou a mão pelos
bigodes de plástico.
— Tudo bem; você não precisa se
preocupar com eles. — Ela deu de ombros.
— Ah, certo — disse Catherine, sem
saber o que dizer. A menina olhou ao redor
da loja.
— Todas as coisas aqui são tão bonitas
— disse. — Eu gostaria que eu e a minha
irmã pudéssemos ter coisas bonitas assim.
Mas a nossa mãe não deixa.
— Hum... A sua irmã está por aqui? —
perguntou Catherine.
— Ei, Cath!
Catherine deu um salto, com medo de
levar uma bronca por estar desperdiçando
tempo de trabalho. Mas não era Stella: eram
Jenny e Helen, do colégio.
— Lá está ela! — Da entrada, Helen viu
Catherine, e as duas meninas correram em
sua direção como mísseis de guerra.
— Ah, Cath, precisamos tanto de sua
ajuda! Temos que comprar alguma coisa
para a minha festa — começou Jenny.
Catherine olhou para a garotinha e se
encolheu. O olhar amistoso da menina
desapareceu e foi substituído por um que
parecia de raiva.
— O que elas querem? — perguntou.
— Ei, elas são minhas amigas —
protestou Catherine. A garota olhou para
cima com olhos frios e rígidos.
— Neste caso, acho melhor você falar
com elas — disse a menina, com a voz fria e
fina. Devolvendo ao cabide a bolsa em
forma de gato, ela se retirou da loja antes
que Catherine pudesse dizer alguma coisa,
passando pelas meninas que vinham em sua
direção.
— Quem era aquela menina estranha?
— perguntou Helen, observando as costas
da garotinha, que se afastava.
— Ela não é estranha, Helen — disse
Catherine, um pouco surpresa por estar
defendendo a menina. Afinal, sua reação à
presença de Jenny e Helen havia sido um
pouco exagerada.
— Acho que é um pouco solitária. Ela
vive por aqui, e nunca vi os pais dela...
— Ei, vocês duas, parem de fofocar!
Isto é uma emergência!
— disse Jenny. Mas Catherine viu uma
cliente se aproximando do balcão.
— Pessoal, tenho que atender aquela
menina. Por que vocês não dão uma olhada
para ver se encontram alguma coisa? —
sugeriu. Deixou Jenny e Helen examinando
os batons dourados e prateados e correu
para o caixa.
— Quero trocar este prendedor de
cabelo — explicou a cliente. Pegou um
prendedor, lilás vivo, e o colocou no balcão.
— Acho que algumas lantejoulas estão
soltas.
Catherine verificou; era difícil perceber,
mas uma ou duas lantejoulas estavam mais
soltas que as outras.
— Desculpe — disse Catherine. — Se
você quiser, pode trocar por outro.
— Obrigada, se puder... — respondeu a
menina. Para alívio de Catherine, ela não
parecia tão incomodada. Eram sempre um
mistério as coisas que podiam chatear os
clientes.
Foi uma troca rápida; a garota
devolveu o prendedor velho, escolheu um
novo e foi embora satisfeita. Do outro lado
da loja, Helen e Jenny experimentavam
chapéus e reagiam de acordo com a
aparência no espelho. Catherine sabia que
levaria horas até elas escolherem alguma
coisa. Enquanto isso, girou o prendedor de
cabelos defeituoso nas mãos e o analisou,
pensativa.
“Quando não estou com você...”,
Catherine cantou com o rádio na manhã de
segunda-feira. Ela se pôs na ponta dos pés
em cima de uma escadinha, arrumando
vidros de perfume e esmalte em uma
prateleira da vitrine. “... não estou em lugar
nenhum, pois você é o único...”. A música
ecoou em sua mente durante todo o fim de
semana, e não só porque era a número um
nas paradas de sucesso. Era a música que
tocava quando o irmão de Jenny, Chad,
olhou para ela, do outro lado da festa —
tudo bem, ele foi encontrar os amigos antes
que ela pudesse falar com ele, mas seus
olhos se encontraram de um jeito
significativo, e ela não tinha parado de
pensar nele desde então.
— Suas amigas estão aqui?
Catherine deu um salto. A menina
estava ao lado da escadinha, com o pescoço
esticado para observar Catherine. Seus
olhos estavam duros e frios, e a maneira
como ela disse amigas fazia com que a
palavra parecesse um insulto.
— Não. Não, não estão. — Catherine
desceu de onde estava, isso está
começando a cair na categoria “estranho”,
pensou, lembrando-se do que Helen dissera
na sexta-feira. A menina parecia estar
morrendo de ciúmes de Helen e Jenny.
— Esse vidro não está alinhado — disse
a menina, apontando. Catherine olhou para
cima e notou que uma das embalagens de
esmalte estava ligeiramente torta.
— Obrigada — disse, subindo outra vez
para ajeitar o vidro com a ponta dos dedos.
— Elas passaram horas aqui —
continuou a menina. — Fiquei olhando pela
janela. Vi a moça do prendedor de cabelo
também.
— Bem... que bom — disse Catherine.
Ela tivera uma ótima idéia quanto ao que
fazer com o prendedor de cabelo na sexta-
feira. Mas agora, com a menina sendo tão
hostil, já não tinha tanta certeza. Por outro
lado, podia ser que a garotinha tivesse pais
estranhos — era evidente que não viam
problema em deixá-la passear sozinha pelo
shopping durante dias a fio. Catherine não
precisaria de muito esforço para ser
amigável. — Veja só — disse. Desceu da
escadinha e foi para trás do balcão. Pegou o
prendedor de cabelo lilás. — Eu guardei para
você. — Ela sabia que o prendedor seria
jogado fora de qualquer jeito.
De repente, a expressão da menina se
alterou. O gelo derreteu de seus olhos, e
eles se tornaram profundos, leves e
receptivos. Um sorriso radiante se formou
em seu rosto.
— Nossa! — exclamou a menina.
Esticou o braço com cuidado, como se
estivesse com medo de quebrar o
prendedor, e lentamente o retirou da mão
de Catherine. — Nossa! — disse outra vez.
— É tão lindo! É mesmo para mim?
— Bem, claro... Hum, é, para você. —
Catherine sentiu-se ligeiramente
envergonhada, não só porque a menina
estava tão agradecida, mas porque, de
verdade, o presente não era lá essas coisas.
Um prendedor de cabelo devolvido não era
exatamente uma joia da coroa, mas a
menina reagiu como se fosse.
— É tão bonito! — disse a menina. — É
o melhor presente que já ganhei na vida! —
Olhou para Catherine com um olhar de
adoração que a fez ficar vermelha. — Muito,
muito obrigada! — Em seguida, baixou a
cabeça. — Eu não tenho nada para dar a
você.
— Tudo bem — disse Catherine. —
Você não precisa me dar nada — sentiu um
aperto no coração. Será que ninguém nunca
dera um presente para essa menina,
simplesmente por dar? Será que ela sempre
acreditou que houvesse alguma coisa por
trás, que teria de dar alguma coisa em
troca?
Catherine se inclinou para a frente,
como se fosse contar um segredo. A menina
sorriu mais ainda e se aproximou. Catherine
falou baixinho.
— Preste atenção. A minha gerente vai
voltar logo, e ela não gosta de crianças que
ficam por aqui sem comprar nada. Mas você
pode aparecer por aqui sempre que ela não
estiver.
A menina sorriu novamente.
— Certo. — Ela pôs o prendedor no
cabelo e o ajeitou orgulhosa, com os cabelos
atrás da orelha. — E eu vou usar este
prendedor o tempo todo!
Saiu da loja de cabeça erguida.
Catherine se lembrou de uma coisa.
— Eu ainda não sei o seu nome! —
gritou.
A menina olhou para trás. Por um
instante, pareceu um pouco desconfiada,
como se estivesse pensando no que dizer.
— Susan — respondeu, desaparecendo
no shopping.
— Certo... certo... — Stella andava de
um lado para o outro, feito barata tonta. Era
como geralmente ficava antes de suas
visitas ao banco. — Carta? Carta? Ai, meu
Deus, onde foi que botei aquela carta...?
— Ao lado do caixa — disse Catherine,
sem tirar os olhos da caixa de presilhas que
estava arrumando; as presilhas exigiam sua
atenção.
— Ah, sim. Eu vou me atrasar. Onde
está a minha bolsa? Onde está a minha
bolsa? Ah, obrigada, Beth... Certo; devo
estar de volta mais ou menos às duas horas.
Até logo... — disse Stella, ofegante, e correu
para fora; seus saltos faziam muito barulho.
Beth e Catherine se entreolharam e,
quando o som dos saltos de Stella diminuiu,
respiraram aliviadas.
— Ai, graças a Deus! — exclamou Beth.
— Vou fazer um café. — Desapareceu na
sala dos fundos, e Catherine continuou a
fazer o que estava fazendo.
— Beth — chamou ela —, você se
importa em ficar sozinha aqui durante o
almoço?
— Sozinha? — Beth reapareceu na
porta. — Você tem algum encontro secreto,
Cath? — Em seguida, ela viu Catherine
enrubescer e seus olhos se arregalarem. —
Não acredito! Você tem! Quem é? Pode me
contar tudo!
— É... — Catherine deu de ombros, mas
não queria dizer que não era nada, pois era
alguma coisa. — A minha amiga Jenny me
ligou ontem à noite e quer me encontrar na
hora do almoço... — Tentou soar casual, mas
podia ouvir a animação crescendo em sua
voz. — O irmão dela vai vir junto, e ela tem
certeza de que ele vai me convidar para
sair!
— Oh, Cath! — Beth abraçou a amiga.
— Isso é ótimo! Claro, eu posso cobrir você.
Mas você vai ter que me contar todos os
detalhes quando voltar! Promete?
— Prometo. — Catherine sorriu,
sentindo arrepios no estômago de tão
nervosa.
Meia hora depois, pegou seu casaco e
sua bolsa e parou na porta para verificar o
batom pela vigésima vez.
— Boa sorte! — disse Beth, fazendo
sinal de positivo. Catherine retribuiu o
sorriso, agitada demais para conseguir falar.
Estava prestes a abrir a porta quando notou
que Susan a observava através do vidro. O
prendedor estava na cabeça dela, uma linha
violeta brilhante em seus cabelos louros.
Então, Susan viu o casaco e a bolsa e
seu sorriso se desfez, transformando-se em
uma expressão de decepção.
Catherine abriu a porta e Susan olhou
para ela. Seu rosto agora era
incompreensível.
— Preciso muito falar com você —
anunciou Susan.
— Bem, na verdade... — começou
Catherine, apertando as mãos em sua bolsa.
Ela ia explicar que tinha um compromisso na
hora do almoço.
Susan deu de ombros e virou-se de
costas. Sob o prendedor, seu cabelo parecia
mais sujo do que nunca, e havia uma
mancha de gordura no ombro de seu
casaco.
— Deixa pra lá — disse a menina.
Ela parecia tão desprovida de emoções,
sem se importar nem um pouco, que
Catherine imaginou que estivesse
acostumada a decepções. Acostumada até
demais. Jenny e Chad participariam de
outros almoços, disse a si mesma.
— Eu posso cancelar — disse com
convicção, e, instantaneamente, o brilho nos
olhos de Susan voltou. Catherine pegou seu
celular. — Espere um instante.
— Então, o que você quer?—perguntou
Catherine, olhando para sua companhia.
Estavam em uma lanchonete no térreo. Ela
não foi ao restaurante do andar de cima de
propósito, para não encontrar Jenny ou
Chad. Catherine disse a eles que Stella havia
dado ordem para que ela trabalhasse
durante o almoço. Não podia deixar que
soubessem que foram trocados por uma
menina de nove anos. Nesse momento,
todas as células do corpo de Catherine
queriam estar no andar de cima, almoçando
com Jenny e seu irmão. Mas Susan tinha
ficado triste e dissera que precisava falar
com Catherine, então alguma coisa
importante deveria estar acontecendo.
A menina parecia ter se recuperado.
— Eu quero um milk-shake de
chocolate — disse, com satisfação.
— Dois milk-shakes de chocolate —
disse Catherine à mulher atrás do balcão.
— Aqui estão — disse a mulher um
instante mais tarde, entregando dois copos
e um cookie para Susan. Entregou o troco a
Catherine e sorriu. — Que prendedor bonito!
Foi a sua irmã que deu?
Catherine olhou para Susan. Seus
olhares se encontraram, e elas começaram
a rir. Foram para uma mesa sem corrigir o
erro da balconista.
— Eu sempre quis ter uma irmã como
você — disse Susan enquanto se sentavam.
— Obrigada. Espera aí, mas você não
tem uma irmã? — perguntou Catherine,
intrigada.
Susan deu de ombros e começou a
brincar com o cookie.
— Susan — Catherine tentou
novamente —, quem cuida de você? Onde
está a sua mãe? Ou o seu pai?
A menina deu um sorriso tímido e não
tirou os olhos do cookie. Agora havia mais
farelos do que biscoito, e ela começou a tirar
as gotas de chocolate, alinhando-as no
prato.
— Eu sei me cuidar sozinha, sabia? —
disse a menina.
— Sim, mas... — disse Catherine.
O canudo de Susan fez um ruído
enquanto ela terminava seu milk-shake. Ela
desceu do banco.
— Estava uma delícia — disse. —
Podemos repetir amanhã? Catherine
suspirou. Se havia algo difícil acontecendo
na casa da menina — talvez até alguma
coisa perfeitamente normal, como seus pais
se divorciando —, ela certamente não
estava pronta para falar a respeito. Talvez
só precisasse de um amigo para se sentir
querida. Mas, enquanto isso, ela tinha
deixado de ter um encontro com Chad.
— Podemos — disse Catherine,
forçando-se a sorrir. — Apareça na loja neste
mesmo horário. Geralmente a Stella já saiu.
— Certo, estarei lá! — Susan lançou a
Catherine um sorriso tímido antes de vestir
seu casaco vermelho e rosa e desaparecer
na multidão.
— Ei! Alô! Aqui! — Catherine se
desligou de seu sonho. A cliente era Toni
Parker, uma menina da sala de Catherine
com quem ela nunca se dera bem. Ela
balançou as mãos na frente do rosto de
Catherine para chamar sua atenção.
— Desculpe, eu estava...
— Esqueça o que você estava fazendo.
Isto é muito importante — disse Toni.
Catherine se surpreendeu e sentiu o sorriso
derreter como um batom sob luz quente. —
Olha só, esta bolsa não é adequada. E
pequena demais para a minha carteira,
pequena demais para meu celular, é...
— É uma bolsa de festa — destacou
Catherine. — A função é puramente
decorativa.
— E onde eu guardo o meu celular? —
reclamou Toni. — Preste atenção, quero
uma bolsa maior, mas não vou pagar mais
de jeito nenhum.
A hora de almoço de Catherine estava
praticamente no fim, e não houve sinal de
Susan. Talvez alguma coisa ou alguém
estivesse impedindo que ela aparecesse.
Talvez um de seus pais finalmente tivesse
desenvolvido algum senso de
responsabilidade. Ou, talvez, simplesmente
tivesse esquecido. Catherine tentou não se
sentir magoada. Achava que tinha criado
alguma espécie de vínculo com a menininha
solitária, mas devia ter sido uma coisa de
momento. Onde ela estaria?
— Você não está ouvindo nada do que
estou dizendo, está? — disse Toni. — Como
você é inútil, Cath!
Nesse instante, como se tivesse sido
conjurada pelo mau atendimento aos
clientes, Stella apareceu.
— Ah, Catherine, está tudo bem?
— Você é a gerente? — perguntou Toni.
— Talvez você possa me ajudar. — Levou a
bolsa até Stella.
Catherine já havia agüentado demais.
Estava morrendo de fome, e lhe ocorreu que
Susan talvez tivesse se confundido. Ela
poderia ter achado que se encontrariam na
lanchonete, como da outra vez, e não na
loja. Poderia estar lá agora, esperando,
imaginando onde Catherine estaria,
pensando que talvez tivesse sido
esquecida...
— Estou saindo, Stella — disse
Catherine, pegando sua bolsa atrás do
balcão.
Stella olhou para ela indignada.
— Catherine, o seu horário de almoço é
de meio-dia e meia até uma e meia, e agora
são... — verificou seu relógio — ...uma e
trinta e sete. Então, você não vai a lugar
nenhum.
— Mas Beth disse que cobriria para
mim! — Catherine não teve coragem de
contar a Beth o que acontecera no dia
anterior, então contou que Chad havia
cancelado na última hora, mas que queria
encontrá-la hoje. Beth ficou feliz por
substituí-la.
Stella cruzou os braços, e Toni sorriu
atrás dela.
— Beth pode substituir você durante o
horário de almoço — disse Stella, — mas não
quando você bem entender.
Quando eu bem entender! Catherine
queria gritar. Eu trabalho como uma escrava
e nunca reclamo de nada, e agora você diz
que quero sair quando bem entendo?
— Olha, são só alguns minutos! —
insistiu Catherine. — Eu trabalhei durante o
horário de almoço, então tenho o direito
de...
— Bem, você deveria ter feito o seu
horário de almoço. Não sou escravista,
Catherine. Apenas tenho algumas
expectativas. Agora, guarde seu casaco e
volte ao trabalho. A loja vai ficar lotada
quando as pessoas acabarem de almoçar.
Catherine pensou um pouco e quase
cedeu. Mas a possibilidade de Susan estar
esperando, esperançosa, era forte demais.
Ela provavelmente ficaria na lanchonete até
a hora de fechar, convencida de que
Catherine apareceria a qualquer instante.
Estava claro que já havia se decepcionado
muitas vezes na vida. Catherine não queria
fazer a lista de decepções crescer ainda
mais.
— Dois minutos — disse Catherine. E
foi em direção à porta.
— Catherine! — A voz de Stella era
afiada atrás dela. — Se sair agora, não terei
outra escolha a não ser demitir você.
Catherine hesitou, mas a imagem de
Susan sozinha e decepcionada tomou conta
de sua mente. Agarrou sua jaqueta e saiu da
loja. Stella não a demitiria de verdade. Era
época de férias, a época de maior
movimento na loja. Onde mais ela
encontraria alguém disposto a aturá-la em
tão pouco tempo?
Quando Catherine chegou à
lanchonete, não viu nenhum sinal de Susan.
Resmungou baixinho e voltou à loja. E
descobriu que Stella de fato a demitira.

Oi, Cath!!! A Espanha é muito legal!!!


Meninos por todos os cantos! O pai da Helen
quer que a gente vá a um museu  mas
hoje é noite de farra!!!!!! Com amor, Jen e
Helen.
— Elas estão se divertindo na Espanha?
— perguntou a mãe de Catherine, enquanto
limpava a mesa do café da manhã. Fazia
uma semana desde a demissão.
Normalmente, ela já estaria na loja há mais
ou menos uma hora e já estaria pensando
no primeiro intervalo para o café.
— É difícil dizer — resmungou
Catherine. Jogou o cartão-postal na mesa e
tomou seu chá. Jenny e Helen a haviam
convidado para a viagem no começo das
férias, quando os pais de Helen alugaram a
casa. Catherine recusou, pois havia acabado
de conseguir o emprego na Acessórios
Sparkle e achou que estaria trabalhando.
— Bem, não adianta chorar o leite
derramado, querida — disse sua mãe. —
Talvez você devesse arrumar outros amigos
para sair.
— Eu tenho outros amigos — irritou-se
Catherine, mas não conseguia pensar em
nenhum com quem quisesse sair. Talvez
tivesse trabalhado demais na Acessórios
Sparkle. A única pessoa que tinha visto
ultimamente era... — Eu conheci uma
menina chamada Susan — disse ela, com
cuidado para não mencionar a idade da
garota.
— Que bom! Por que você não a
convida para vir até aqui?
— Bem... — Catherine não havia
pensado nisso, principalmente porque não
costumava convidar meninas de nove anos
para sua casa. E, de qualquer forma, ainda
não sabia onde Susan morava. — Não posso;
não tenho o telefone dela.
— Então não é tão sua amiga assim —
respondeu sua mãe, limpando a mesa com
um pano.
Catherine enfiou um pedaço de torrada
na boca e ficou quieta. Não queria entrar em
detalhes sobre sua nova amiga. Nunca teve
muito talento para mentir para seus pais e
acabaria admitindo que passava seu horário
de almoço na área de recreação do
shopping.
Resumindo, era melhor nem pensar em
Susan. Ou em Stella. Ou em estar sem
dinheiro. Logo Catherine, Jenny e Helen
voltariam às aulas e ela provavelmente nem
se lembraria dessas férias deprimentes.
— Você precisa sair mais — disse sua
mãe, decidida. — Ainda não comprou seus
livros da escola, comprou? Que tal ir até a
livraria antes de todo mundo? Não se
preocupe; eu empresto o dinheiro.
Catherine devolveu a torrada
semicomida ao prato e ajeitou sua cadeira.
Por que não? Não tinha mesmo nada melhor
para fazer.
— Obrigada, mãe.

Parecia estranho achar que o shopping


continuava o mesmo. Catherine teve de
lembrar a si mesma que só fazia uma
semana. Uniu-se à multidão na escada
rolante — pelo menos uma vez na vida
estava feliz por ficar parada e deixar a
escada fazer todo o trabalho — e admitiu
que tinha sido uma boa idéia a de sua mãe.
A atmosfera animada e ocupada já estava
fazendo se sentir melhor; era bom ser
cliente e não funcionária.
Olhou para a Acessórios Sparkle
enquanto a escada rolante a levava até o
segundo andar. Talvez ainda não fosse hora
de voltar à loja. Por sorte a livraria ficava em
um piso superior, e tinha quase certeza de
que não encontraria Stella lá. Os únicos
livros que ela lia chegavam pelo correio e
quase sempre se chamavam Seja um
gerente de sucesso ou Gerência de lojas:
cinco passos para vencer!.
Catherine parou e examinou os livros
em exposição na vitrine. Sua coleção
favorita estava em promoção: “leve três,
pague dois”. Ela calculava se o dinheiro que
sua mãe havia lhe dado seria suficiente
quando alguma coisa fez com que olhasse
para cima. Lá estava ela outra vez — um
flash vermelho e rosa na multidão refletido
no vidro. Por um instante, Catherine viu
Susan, não muito longe, observando-a
silenciosamente. Ela enrijeceu; em seguida,
fechou os olhos e rosnou.
— Vá embora — sussurrou. — Vá
embora. Você já me arrumou problemas
demais. — Quando abriu os olhos, Susan não
estava mais lá. Sorriu, tentando se
convencer de que não estava exagerando.
Talvez nem tivesse sido Susan. Aquele não
precisava ser o único casaco vermelho e
rosa no mundo. Ela estava com Susan na
cabeça.
— Catherine!
Alguém agarrou sua mão, e Catherine
por pouco não gritou. Como se a semana
anterior não tivesse acontecido, Susan
estava segurando seu braço, tentando puxá-
la.
— Catherine, você precisa vir! —
engasgou-se Susan antes que Catherine
pudesse dizer alguma coisa. Sua voz estava
aguda e o tom era de emergência. Os olhos
da menina estavam vermelhos, como se ela
tivesse chorado. Ela puxou o braço de
Catherine mais uma vez, saltitando de
impaciência. — Agora!
— Susan, eu... — Catherine a seguiu,
sem alternativa. — Onde você esteve?
— Por favor! — implorou Susan. — Você
precisa vir. Você precisa ajudar a Laura.
— Laura? — exclamou Catherine. —
Quem é Laura? — Alguma coisa na voz de
Susan dizia que isso não era uma
brincadeira de criança. E, agora que olhara
melhor, Susan parecia mais malcuidada do
que antes. O prendedor de cabelo lilás
continuava intacto, mas o cabelo estava
extremamente sujo e gorduroso. E,
Catherine cerrou os olhos quando percebeu,
havia uma casquinha vermelha na frente de
seu casaco. Será que era sangue?
— É a minha irmã! Por favor! Ela... Eu
não consigo... Eu preciso... — O nervosismo
estava fazendo com que tropeçasse nas
palavras, até que desistiu, colocando as
mãos no rosto.
Catherine se decidiu. Susan
obviamente precisava de ajuda, e, fosse
qual fosse o problema, era urgente. Sua
mente se encheu de imagens de acidentes
domésticos, do tipo que acontece com
crianças não supervisionadas — panelas
com água fervendo, coisas pesadas caindo...
— Tudo bem — disse Catherine,
afastando-se da livraria e pegando a mão de
Susan. — Leve-me até o local. — Elas
correram em direção à escada rolante. —
Onde está Laura?
— Ela está com sérios problemas —
disse Susan.
— Eu sei, mas onde...
— Sérios problemas.
Catherine desistiu. Susan estava
perturbada demais para falar de forma
sensata. Ela precisava de tempo, e
Catherine tinha de mostrar que estava a seu
lado, e assim descobriria tudo.
Catherine abotoou seu casaco
enquanto caminhavam e corriam ao mesmo
tempo pelo estacionamento. Começou a
sentir calor e, apesar de ser um dia frio de
agosto, voltou a desabotoar o casaco. Ainda
não sabia onde Susan morava, não fazia
idéia de quanto tempo a jornada levaria,
nem mesmo se correriam por todo o
percurso.
— Senti sua falta — disse Susan. A voz
dela estava trêmula. — Onde você estava?
— Onde eu...? — Catherine ficou tão
espantada que desacelerou por um instante.
Acelerou outra vez quando Susan puxou sua
mão. — Precisei parar de trabalhar na loja —
respondeu. Susan não entenderia o que era
demissão, e Catherine não queria que ela se
sentisse culpada.
Elas correram pelo centro da cidade,
desviando-se dos pedestres lentos e voando
pelas ruas, perigosamente perto dos carros
em movimento. Catherine percebeu que
estavam correndo para o outro lado da
cidade. Haviam andado pelo menos um
quilômetro e meio, mas Susan nem parecia
perceber. Nem parecia estar ofegante. Ela
deve estar muito preocupada com Laura,
Catherine pensou. Depois de uns dez
minutos, elas firmaram um ritmo e
avançaram por uma estradinha que passava
por baixo da plataforma de embarque do
trem.
— Quem são seus pais? — perguntou
Catherine, ofegante, quando chegaram ao
outro lado. — Eles sabem que a Laura está
com problemas? — Estavam em uma rua
que ela não conhecia, com fileiras de casas
grudadas umas nas outras em ambos os
lados.
— Eles nunca estão em casa... Bem,
não mais — disse Susan. Por algum motivo,
isso não surpreendeu Catherine.
— Olhe — insistiu Catherine —, você
ainda não me disse o que há de errado com
a sua irmã...
Os olhos de Susan se encheram de
lágrimas outra vez.
— Ela está com sérios problemas! —
disse Susan.
— Sim — disse Catherine, começando a
se sentir frustrada —, mas... E eu também
não sei nada sobre a sua mãe e o seu pai...
Susan parou onde estava.
— Chegamos — disse ela, com a voz
surpreendentemente calma. Estavam numa
esquina. Uma calçada estreita levava a uma
casa de três andares, de tijolos
relativamente decadentes, afastada da rua.
O enorme jardim era cercado por arbustos e
árvores, e o telhado era ornamentado e
decorado de ambos os lados.
— Uau! — exclamou Catherine,
esquecendo-se por um instante do motivo
que a trouxera até ali. — Você mora aqui?
Susan já corria pela calçada, os pés
esmagando as pedras. Ela olhou para trás.
— Vamos! — Sua voz tremia, como se
estivesse prestes a chorar. Mesmo assim,
ela estava perfeitamente bem há poucos
instantes. Catherine franziu o rosto. Susan
realmente tinha as emoções mais extremas
que já havia visto, mesmo sendo apenas
uma criança. Ela correu atrás da menina.
Uma escadinha de pedra levava a uma
porta de vidro.
— Precisamos entrar pelos fundos —
disse Susan, desaparecendo por uma trilha
estreita que dobrava a esquina. Catherine
olhou para a casa, um pouco nervosa,
enquanto seguia o som dos passos
acelerados da menina. Todas as janelas
eram foscas, por isso ela não tinha idéia a
respeito do que poderia haver do lado de
dentro. O jardim parecia tão grande e
negligenciado que era difícil acreditar que
alguém morasse aqui, quanto mais os pais
de Susan. Catherine sentiu o coração
acelerar. Seria realmente ali que Susan
morava? Não conseguia se livrar da
impressão de que estava prestes a invadir
uma casa sem ser convidada.
A porta da cozinha, nos fundos da casa,
era de madeira, pintada de verde. Já estava
entreaberta, e Susan entrou sem olhar para
trás.
Catherine hesitou na entrada. Não
podia simplesmente ir entrando.
— Olá? — disse Catherine. — Estou
com a Susan... — Pôs a mão na porta,
abrindo-a. Respirou fundo. Pronto! Sou
oficialmente uma intrusa. Em seguida,
respirou fundo novamente e entrou na casa.
— Olá? — repetiu. Então, parou onde estava.
— Oh... meu...
A cozinha estava em estado de
calamidade. Louças imundas entupiam a
pia, cheias de restos de comida velha e
semissubmersas em água cinzenta. O chão
de madeira estava coberto por pegadas de
lama, e havia um cheiro inconfundível de
podridão no ar, como se alguém tivesse
deixado a lata de lixo destampada. Uma
pequena pilha de sanduíches de geleia
apodrecidos encontrava-se num prato na
mesa, ao lado de uma enorme faca de
cozinha. Um dos sanduíches tinha marcas de
mordida.
— A casa toda é assim? — perguntou
Catherine, horrorizada. Ela sabia que isso
era um caso para assistentes sociais.
Imaginou que os pais de Susan fossem
profissionais ocupados demais para cuidar
dela. Mas uma situação tão ruim assim?
Tanta negligência? Não, por isso ela não
esperava.
— A Laura está por aqui — disse Susan.
Ela estava perto de uma porta do outro lado
e entrou. Catherine mordeu o lábio. Isso
estava começando a ficar cada vez pior. E se
um dos pais voltasse para casa? Será que
poderia lidar com eles? Será que reagiriam
com violência? Já podia imaginar as
manchetes dos jornais: a polícia procura a
jovem Catherine Woollams, de dezesseis
anos, que não é vista desde ontem...
O lábio inferior de Susan começou a
tremer.
— Por favor, Catherine, depressa!
Sentindo-se em uma situação irreal,
como se estivesse em um filme, Catherine
seguiu em frente. Passou por uma pilha de
roupas em um cesto, imundas e cheirando a
mofo.
Susan a levou por uma passagem até o
salão principal. A luz do dia brilhava através
das grandes janelas de ambos os lados da
porta da frente. Essa sala claramente já
havia sido grandiosa; hoje, era muito
malcuidada. Não era tão ruim quanto a
cozinha, mas, quando Catherine passou o
dedo na mesa, deixou um rastro na camada
de poeira. O corredor era cheio de estátuas
que faziam com que seus passos ecoassem
pelo chão de madeira, tão alto quanto as
batidas de um coração. Catherine sentia a
casa se fechando em sua volta; os olhos da
janela observavam todos os seus
movimentos; as escadas eram como uma
garganta pronta para engoli-la.
Susan parou em frente a uma porta na
parede sob a escada. Pôs a mão na madeira.
— A Laura está aqui — sussurrou, com
os olhos arregalados. — Eles a trancaram
aqui.
— Embaixo da escada? — Catherine
não podia acreditar. Ou, talvez, após ter
visto aquela cozinha, pudesse, sim.
— Esta porta leva até a adega —
explicou Susan, como se isso de alguma
maneira não fosse tão ruim quanto trancar
alguém em um armário. Uma lágrima correu
por sua bochecha. — A mamãe disse que a
Laura é má e que não pode sair, pois se sair
vai machucar os outros.
— Má? — engasgou-se Catherine. Ela
sentiu frio e calor ao mesmo tempo, e, de
repente, a sensação de surrealismo
desapareceu, e se tocou de que realmente
estava ali, naquele momento. Cercada por
um horror que não tinha nome, fazendo sua
respiração parecer sufocada, e sua pele
congelar...
— A Laura é minha irmã gêmea. A
mamãe e o papai a detestam porque ela não
limpou direito o banheiro. — Susan começou
a chorar; seu pequeno corpo tremia com
seus soluços. — Mas ela não é má, e... e...
eu tinha que ter limpado a cozinha, e não
limpei, e eles vão dizer que eu também sou
má, e eles vão voltar logo, e...
Havia algo ruim ali, isso era verdade.
Ou pelo menos haveria algo ruim quando os
pais voltassem para casa...
— A mamãe escondeu a chave e eu
não sei onde — resmungou Susan. — Tentei
soltar a Laura, mas não consegui abrir a
porta sozinha!
— Tudo bem, tudo bem. — Catherine
empurrou Susan gentilmente para o lado,
em seguida pôs o rosto contra a madeira da
porta da adega. Levantou a voz. — Olá!
Laura! Você está me ouvindo?
Fez-se um longo silêncio. Só o que
Catherine ouvia era o sangue pulsando em
sua própria cabeça. O casarão estava em
silêncio — mas, de alguma forma vivo, e
observando, esperando que ela fizesse
alguma coisa.
Catherine chamou novamente. Como
antes, não obteve resposta, mas depois
ouviu um arranhão distante. Será que
alguém estava se mexendo?
— Estou com a Susan aqui — disse —, e
nós vamos abrir a porta, tudo bem?
Deu um passo para trás e analisou a
porta. Parecia sólida. A fechadura ficava
abaixo da maçaneta; pareciam fazer parte
de um mesmo mecanismo, construídas em
uma placa de metal. A placa era pregada na
porta.
— Susan, você sabe se existe alguma
chave de fenda em algum lugar? —
perguntou Catherine. Estava mais alerta
agora, ao fazer alguma coisa. Era apenas
uma casa vazia, não havia motivo para se
assustar.
Susan piscou para ela com os olhos
vermelhos.
— Acho que há uma na cozinha —
respondeu. Ela conduziu Catherine pelo
mesmo caminho por onde tinham vindo e
abriu uma gaveta no móvel: Catherine
avistou um martelo, alguns benjamins,
alguns fusíveis, um vidro de geleia cheio de
pregos e, sim, uma chave de fenda. Pegou a
ferramenta.
Voltaram ao hall, e Catherine se
ajoelhou na frente da porta. Queria
continuar falando com a garotinha trancada
do outro lado, queria que soubesse que não
estava sozinha, que logo estaria segura.
— Muito bem, Laura — disse. — Estou
desparafusando a fechadura agora.
Os parafusos estavam nessa porta
havia muito tempo e já tinham sido
pintados. Catherine precisou raspar a tinta
de cada uma das entradas dos parafusos
para ter algum acesso. Suas mãos ficaram
suadas, e ela largou a chave de fenda para
secá-las na calça. Com o canto dos olhos,
podia ver Susan caminhado de um lado para
o outro.
Catherine tentou outra vez. A ponta da
chave de fenda escorregou, deixando-a
ofegante após provocar marcas de arranhão
na madeira da porta. Ela cerrou os dentes e
começou tudo outra vez. Dessa vez, a ponta
ficou no lugar, e o parafuso se soltou.
Catherine o retirou da porta e o deu para
Susan segurar. Então, concentrou-se no
próximo.
Havia quatro parafusos ao todo. Susan
observou silenciosamente enquanto ela
removia cada um deles. Em seguida,
colocou a chave de fenda entre a placa de
metal e a madeira e fez força. A placa se
afastou lentamente da porta e expôs o
mecanismo de tranca. Catherine teve de
soltar isso também, mas só levou um
minuto. Conseguiu soltar tudo, e a placa
caiu no chão, produzindo um som metálico.
Catherine olhou para a porta e se
forçou a respirar fundo. Laura podia estar a
poucos centímetros de distância do outro
lado. O que exatamente ela encontraria
quando abrisse a porta? Ela realmente,
realmente não queria continuar.
Mas Susan precisava dela, sem falar
em Laura, então Catherine deu um sorriso
corajoso.
— Estamos quase lá. Vai ficar tudo
bem.
Empurrou a porta, que tinha as
dobradiças excessivamente lubrificadas.
Catherine se inclinou para a frente. Só
conseguiu identificar os primeiros degraus
em uma escadaria de madeira que levava à
escuridão.
— Olá? — chamou suavemente. —
Laura? Não tenha medo. Sou amiga da
Susan.
Prendeu a respiração e esperou pelo
barulhinho de arranhão que escutara antes.
Continuou sem resposta, mas
definitivamente havia barulho de alguém se
mexendo por ali.
— Ela não vai sair se você não for até
ela — disse Susan, e Catherine deu um
salto. A garotinha estava a seu lado, tão
perto que podia sentir sua respiração em
seu braço. — Ela acha que foi a nossa mãe
quem mandou você vir até aqui.
Catherine ergueu as sobrancelhas,
desconfiada, mas Susan fez um sinal
afirmativo com a cabeça.
— Eu sei porque sou irmã gêmea dela
— explicou. Catherine olhou em volta, à
procura de um interruptor, mas não
encontrou nada.
— Ela está lá embaixo — disse Susan.
— Ótimo — disse Catherine, olhando
para a escuridão. Bem, já tinha ido até ali.
Não podia desistir agora.
— O.k., Laura, estou descendo — disse,
começando a percorrer os velhos degraus
de madeira.
O ar cheirava a mofo e poeira. Os
degraus estalavam sob seus pés, mas,
quando parou, ela achou que estava ouvindo
soluços, o que fez com que continuasse.
Sentiu pedras duras sob seus sapatos, então
soube que tinha chegado à base da escada.
Apalpou a parede, procurando o interruptor,
e seus dedos o encontraram, mas, quando o
apertou, nada aconteceu. A luz que vinha do
salão mostrava uma pequena caixa de
fósforos e um toco de vela sobre uma
prateleira próxima. Catherine conseguiu
acender a vela na terceira tentativa, e um
triângulo hesitante de luz amarela iluminou
a adega.
O lugar era simples e vazio, com
paredes que já haviam sido pintadas de
branco, mas que agora estavam cobertas de
sujeira. Em um dos cantos, semicoberta
pelas sombras, havia uma garotinha. Suas
roupas eram velhas, seu cabelo, malcuidado
e sujo, e seu rosto era idêntico ao de Susan.
Ela fitava Susan horrorizada.
— Olá, Laura. — Catherine carregou
sua voz com todo o calor e a receptividade
que conseguiu. Deu um passo à frente em
direção à outra irmã, e Laura imediatamente
recuou. Catherine parou onde estava.
— Tudo bem — tentou acalmá-la. —
Sou amiga da Susan. Vim para soltar você.
O tórax de Laura começou a tremer. Os
lábios da menina se moviam, mas Catherine
não conseguia identificar as palavras.
Em seguida, um horror frio alcançou
com dedos gelados a garganta de Catherine.
Atrás de Laura, semiescondidas pelas
sombras, no chão, havia duas silhuetas
longas e curvilíneas. Pareciam adultos,
dormindo...
Catherine cerrou os olhos e tentou
enxergar em meio à pouca luz. Disse a si
mesma que não podiam ser duas pessoas
dormindo. Ela havia feito barulho suficiente
para acordar até mesmo os mortos... A
menos que, obviamente, ela não tivesse
feito tanto barulho assim. Porque barulho
nenhum poderia acordar os mortos.
Tinha de tirar Laura dali depressa.
— Preste atenção — disse. — A Susan
está nos esperando lá em cima. Podemos
subir juntas e...
Com os olhos tão arregalados que
pareciam engolir todo o seu rosto, Laura
lentamente ergueu uma das mãos.
Catherine olhou horrorizada quando
percebeu o que a menina segurava. Era uma
chave antiga. O tipo de chave que abriria a
porta da adega.
— Essa é a chave...? — começou
Catherine.
— Por que você deixou que ela
entrasse? — gritou Laura, fazendo Catherine
se encolher enquanto sua voz ecoava pela
adega. — Achei que estivesse segura aqui
embaixo!
Catherine franziu o rosto.
— O que você quer dizer com isso? —
perguntou, mas Laura não ouvia; ela olhava
para alguma coisa atrás de Catherine. Ela se
virou para ver o que era.
Susan estava no degrau logo acima.
Sua face era uma máscara fria de puro ódio,
e segurava a faca de cozinha que Catherine
vira ao lado dos sanduíches. Da lâmina,
pingavam gotas vermelhas.
Susan levantou a faca; seus dedos
brancos seguravam a lâmina com firmeza.
— Obrigada por tudo, Catherine —
sussurrou.
Tem alguém aí?
Pôsteres do menino desaparecido
preenchiam uma fileira na parte de trás do
palco. Luke Benton era bonito, louro e tinha
algumas sardas. Tinha um sorriso tímido,
como se não pudesse acreditar que estava
sendo fotografado. A imagem utilizada nos
pôsteres de Luke era sua última foto da
escola, tirada no dia em que desapareceu.
Ele trajava o blazer e a gravata da escola, e,
apesar de não aparecerem na foto, estava
com tênis pretos novos com uma faixa
prateada. Toda a sua roupa havia sido
imortalizada pela descrição nos pôsteres
espalhados pela cidade, que diziam: “Na
última vez em que foi visto estava
vestindo...”.
Alguém abriu a porta da sala, e os
pôsteres balançaram com a brisa. Juliet
Somerville anotou em sua mente que
deveria colá-los nos quatro cantos após o
ensaio. O funeral de Luke aconteceria dentro
de dois dias, e os pôsteres sacudindo no
fundo do palco seriam uma distração para
todos no salão.
Juliet concluiu que seria mais rápido
executar esse trabalho sozinha do que
mencioná-lo para a srta. Worth. A
representante de turma daquele ano tinha o
dom de pegar as idéias mais simples
possíveis e complicá-las. Já havia
transformado o ensaio do funeral em um
circo em três atos.
Particularmente, Juliet achava tudo isso
de muito mau gosto. Luke já não era visto
havia mais de um ano. Seu telefone não
tinha sido usado. E nenhum dinheiro fora
retirado de sua conta. Só podia estar morto.
Ele deveria ser lembrado em algum culto
religioso ou coisa parecida, e não em uma
performance em que as pessoas ficassem
tímidas e preocupadas quanto à sua
desenvoltura sob os holofotes.
A srta. Worth bateu palmas para
acalmar as conversas no salão até
conquistar a atenção de todo mundo.
— Agora, mesa de luz, mesa de luz!
Obrigada... Mesa de som... Tudo pronto?
Ótimo. Agora, será que todos os que vão ler
o tributo a Luke podem formar uma fila do
lado esquerdo do palco... Não, o lado
esquerdo... Em ordem alfabética pelo
primeiro nome... Ou seria melhor fazer em
ordem de idade? Hum...
Juliet cutucou sua melhor amiga,
Christine.
— Que tal por ordem de tamanho dos
sapatos? — sussurrou. Mas Christine não
estava com humor para piadas.
— Ju, eu acho que o Mark acabou de
olhar pra mim! — sussurrou. Virou-se para o
outro lado do salão. — Olha! Ele olhou de
novo!
Juliet seguiu seu olhar, tentando não
aparentar uma expressão de dúvida. Mark
Logan e seu melhor amigo, Daniel Gardner,
estavam sentados juntos no fundo do salão.
Mark era uma figura bonita e imponente;
Daniel era mais alto e moreno, e tinha
franja. Como a maioria dos meninos, eles
estavam usando o uniforme do time de
futebol. Todos os companheiros de time de
Luke vestiriam seus uniformes para a
solenidade, como parte do tributo. Se Mark
estivera olhando para Christine, não estava
mais. Ele e Dan tinham as cabeças baixas
agora, debatendo algum assunto particular.
— Eu queria saber sobre o que eles
estão falando — sussurrou Christine. —
Aposto que é sobre o Luke. O Mark é tão
profundo. É tão intelectual. Ele vai
compartilhar os pensamentos sobre como a
perda e a dor devem fazer com que
apreciemos as coisas boas da vida e nos
aproximar no amor.
Juliet lançou um rápido olhar à amiga
para ver se ela estava falando sério.
Infelizmente, estava.
— Certamente — concordou. — Ou
então ele fez algum gol muito bonito no
intervalo e está contando para o Daniel.
Christine fez uma expressão de
desdém.
— Como você é cínica! Eles eram os
melhores amigos do Luke.
— Então, por que não se ofereceram
para ler as homenagens? — perguntou Juliet.
— Oh, Ju, não é assim que se mede a
amizade! Pense bem. Quer dizer, perder seu
melhor amigo da noite para o dia, sem nem
sequer encontrar o corpo, simplesmente
perdê-lo; como deve ser isso? É claro que
não querem falar na frente de todo mundo.
Provavelmente ainda nem começaram a
aceitar o que aconteceu a Luke.
— Eles poderiam ter procurado ajuda,
sei lá, alguma espécie de terapia —
ressaltou Juliet. Ela não sabia bem o porquê;
talvez só estivesse sendo teimosa e
quisesse corrigir a visão de Christine a
respeito de Mark. Nas semanas que se
seguiram ao desaparecimento de Luke, a
escola foi tomada por profissionais bem-
intencionados que incentivavam os alunos a
verbalizar suas emoções.
— E por que deveriam? Por que
deveriam falar com estranhos a respeito de
seus sentimentos? — O tom de Christine se
tornou mais acolhedor. — Eles precisam de
alguém que os conheça, que saiba
exatamente o que estão passando.
Em outras palavras, pensou Juliet,
deveriam falar com você. Mas ela não disse
isso. Seria cruel — e talvez Christine
pudesse ajudar os meninos no final das
contas. Enquanto o primeiro aniversário do
desaparecimento de Luke se aproximava,
Mark e Daniel ficavam cada vez mais
absortos. Se alguém se aproximasse deles,
se por acaso esbarrassem neles no corredor,
ficavam irritados e grosseiros. Então, se
Christine pudesse ajudar, bem, ótimo.
Certamente, não poderia piorar.
Juliet olhou para o pedaço de papel em
suas mãos. Terminara de redigir seu tributo,
depois de muitas rasuras e de muita revisão.
Conheci Luke em nosso primeiro dia de aula,
há quatro anos...
Lágrimas se formaram em seus olhos, e
ela dobrou o papel novamente. Teria de
ensaiar muitas vezes antes de conseguir
falar na frente de todo mundo sem perder o
controle. Nem conhecia Luke tão bem assim,
mas, do pouco que conheceu, gostava
muito. Seu desaparecimento súbito foi muito
perturbador. Será que estava realmente
morto? Talvez tivesse apenas fugido! Mas
todos pareciam acreditar que estava morto.
Houve toda aquela conversa de “aceitação”
— mas como poderia haver aceitação
quando ninguém sabia ao certo o que havia
acontecido? Alguma coisa invadiu a mente
de Juliet, alguma coisa sobre águas
passando em sua mente, engolindo a
pessoa, como se esta nunca tivesse existido.
Foi o que aconteceu com Luke. Se não
fossem os pôsteres, ela duvidava que
alguém se lembraria dele. Nem mesmo Mark
e Daniel, que pareciam mais afetados por
seu desaparecimento, falavam sobre o
amigo.
Foi por isso que Juliet resolveu falar no
tributo. Ela não verbalizaria suas dúvidas
quanto à morte de Luke — isso chatearia a
todos os presentes —, mas faria o possível
para manter sua memória viva.
Juliet se recompôs enquanto Christine e
ela se retiravam do salão naquela noite fria
e cinza de inverno. Era novembro, e as
noites seguiam longas e geladas. Mas a
conversa que sucedia ao fim das aulas não
diminuiu enquanto meninos e meninas se
organizavam para esperar os ônibus ou sua
carona para casa. Outros partiam em suas
bicicletas, os faróis vermelhos
desaparecendo na escuridão.
Juliet se encolheu dentro do casaco. Ela
e Christine moravam em lados opostos da
cidade, então partiam em direções
diferentes quando chegavam ao portão da
escola.
— Falo com você depois? — perguntou
Juliet.
— Claro, — Christine tremeu e ajeitou o
cachecol para dentro de seu casaco. — Me
liga.
— Pode deixar. Até mais tarde.
Elas partiram, andando depressa, as
mãos abaixadas contra o vento que soprava.
Juliet estudava naquela escola havia
quatro anos, desde os onze, mas era a
primeira vez que fazia essa caminhada no
escuro. Sua família tinha se mudado durante
o verão. Daniel Gardner era seu vizinho
agora; a família de Luke morava a três ruas
dela, em uma parte mais antiga do bairro.
Ao entrar na rua principal, Juliet notou, com
algum desconforto, quanta diferença a falta
de luz fazia. Todas as referências do local —
um poste de luz inclinado, o ponto de ônibus
pichado — só se tornavam visíveis de perto.
Tudo parecia demorar mais; todas as
distâncias pareciam mais desgastantes.
Era a mesma caminhada que Luke fazia
todos os dias. Um dia ele partiu, assim como
ela, pela escuridão — e nunca mais foi visto.
— Ah, ótimo — resmungou Juliet. — Eu
tinha que pensar nisso.
Virou à direita em direção ao parque.
Geralmente, passava direto por ali. No verão
havia crianças jogando futebol ou espirrando
água umas nas outras ao lado do chafariz.
Agora, Juliet percebeu que o parque não
tinha nenhuma luz. A estrada que passava
em volta dele era bem iluminada, mas os
enormes espaços de arbustos e grama
pareciam buracos negros. Juliet deu uma
olhada e resolveu seguir pelo lado de fora.
Só seriam dez minutos a mais de
caminhada.
Seus saltos faziam barulho quando
tocavam a calçada, e carros passavam
rápido pela rua, pequenas ilhas de calor no
meio da noite. Talvez seja melhor começar a
ir de bicicleta para a escola, pensou.
Acender o farol, passar pelas ruas principais
e, mesmo assim, chegar em casa na metade
do tempo que levava andando.
Veio para a rua do comércio, do outro
lado do parque. Não passava de uma
alameda mais estreita no lado oposto da
entrada norte do parque, que levava à
principal área comercial da cidade. Juliet
observou, chateada, a alameda. Era a única
maneira de passar por esse quarteirão sem
aumentar sua travessia em vinte minutos.
No outro extremo, ela podia ver a praça
iluminada, ocupada por pessoas e ônibus.
Não era longe; ficava a apenas um minuto
de distância. Depois disso, ela estaria na rua
principal, com luzes acesas até a porta de
sua casa. Começou a caminhada.
A escuridão pareceu engoli-la em
apenas alguns passos. Depois que seus
olhos se acostumaram, ela pôde enxergar os
detalhes das construções em ambos os
lados. As paredes e as entradas eram claras,
e as janelas pareciam vazios escuros. Quase
todas as construções na rua já estavam
desocupadas havia algum tempo.
Juliet se aproximou do velho açougue e
deu de ombros. Enormes portas de aço
haviam sido pregadas na entrada para
afugentar pessoas que pudessem querer
ocupar o recinto, e um enorme aviso de
“CONDENADO” foi posto sobre as portas. Ela
só conseguia identificar a pintura vermelha
e os sinais desgastados. As janelas estavam
cobertas de sujeira e teias de aranha, e as
sombras na calçada, do lado de fora,
pareciam engrossá-las ainda mais.
Para surpresa de Juliet, havia uma
figura à frente, na ponta dos pés, para
espiar através de uma das janelas. Apesar
de a luz estar fraca, Juliet reconheceu a
figura alta e esguia, o cabelo de capacete e
a franja. Era Daniel.
Então, ela chamou na escuridão.
— Daniel? Sou eu, Juliet.
Daniel virou-se, parecendo surpreso.
— Eu estava... hã... verificando se não
havia invasores — gaguejou. — Esta loja é
do meu pai...
— Invasores? — Juliet não podia
imaginar ninguém invadindo um lugar tão
frio e não convidativo. — Parece que
ninguém entrou, não é? Parece muito bem
trancado.
— É... bem...
Por um instante, ela pensou que seus
olhares pudessem ter se cruzado, mas era
impossível ter certeza com tanta escuridão.
Depois, ele passou por ela e foi na direção
da qual ela vinha, rumo ao parque.
Juliet ficou parada por um instante,
observando a silhueta do rapaz correndo
pelas luzes no final da rua. Quando o
barulho de seus passos diminuiu, a rua se
tornou silenciosa e fria outra vez, e o
silêncio assentava como um nevoeiro que
não era bem-vindo. De repente, Juliet se
sentiu uma intrusa, um ser humano vivo e
caloroso nesse lugar frio e morto. Enquanto
caminhava em direção à praça, um barulho
cortou o silêncio.
Juliet deu um salto, depois sorriu,
dizendo para si mesma que se deixara
assustar pelas sombras. Remexeu na bolsa
para encontrar seu celular enquanto
caminhava depressa em direção à praça. A
tela do aparelho acendeu com o desenho de
um envelope e as palavras “1 mensagem
recebida”.
Selecionou a opção “ler” e encarou a
linha que mostrava o remetente. Não
reconheceu o número.
Me ajude.
Tem alguém aí?
Juliet apertou a seta para baixo, mas
não havia mais nada escrito.
Por que um estranho estaria pedindo
sua ajuda? Me ajude... a fazer o quê?
Juliet selecionou a opção “responder”.
Quem é você? Qual o problema?
Ela hesitou antes de selecionar
“enviar”. Talvez fosse algum golpe
publicitário. Se enviasse uma resposta a
esse número, poderia ser bombardeada com
mensagens sobre férias em lugares
ensolarados ou montanhas de neve, ou
golpes para enriquecer com facilidade.
Ou, talvez, a mensagem viesse de
alguém que realmente precisasse de ajuda.
Então, ela selecionou a opção “enviar” no
momento em que chegava à praça, cheia de
gente e iluminada.
A última parte da caminhada até sua
casa era ladeira acima, onde as residências
haviam sido construídas no que um dia
foram campos dos quais se observava a
cidade. O celular de Juliet tocou outra vez
enquanto ela chegava à porta da frente de
sua casa. A caminhada pela ladeira a
aquecera um pouco, mas estava ansiosa
para entrar e deixar para trás a noite fria e
úmida.
Era outra mensagem de texto.
Juliet virou o telefone meio sem jeito
em suas mãos enluvadas. Assim que parou
de se movimentar, um sopro de vento frio
passou por ela, o que não ajudou em nada
na melhora de seu humor.
A mensagem tinha o mesmo
remetente.
Estou congelando.
— É, você e eu também — sussurrou
para si mesma. Claramente, alguém estava
brincando com ela: algum idiota que
conseguira seu número e resolvera se
divertir. Colocou o telefone de volta no bolso
e abriu a porta de casa.
— Ei, não foi mais ou menos nesta
época do ano passado que aquele menino
desapareceu? — comentou o pai de Juliet
enquanto a família acabava de jantar.
Juliet suspirou.
— Foi, pai — ela disse. Já perdera a
conta de quantas vezes havia contado a seu
pai sobre a homenagem que seria feita a
Luke. Não valia a pena falar mais uma vez
agora.
— Deve ser muito difícil para os pais
dele — ele disse, pegando o jornal.
Juliet revirou os olhos, mas sua mãe
achou que fosse um bom momento para se
intrometer na conversa.
— Você lembra, Alan — disse ao pai de
Juliet —, a escola vai fazer aquela
homenagem em alguns dias. A Juliet vai
fazer um discurso.
— Uma leitura, mãe — corrigiu Juliet.
— É mesmo? — Seu pai a olhou sobre o
jornal. — Sobre o quê?
— Sobre Luke — murmurou Juliet.
— Luke?
— O menino que desapareceu! —Juliet
controlou seu humor enquanto comia a
última colherada de seu cheesecake.
— Talvez fosse uma boa idéia fazermos
uma revisão sobre o que você vai ler —
continuou seu pai. — Você costuma engolir
as consoantes.
— Pai, eu passei a tarde inteira
ensaiando! Não preciso ler outra vez!
Seu pai franziu os olhos em sua
direção.
— Não precisa gritar, mocinha. Todo
mundo precisa praticar.
— Deixe a menina em paz, Alan —
intrometeu-se a mãe de Juliet. — Ela já está
chateada com essa situação.
— Isso não é desculpa para ser mal-
educada — ele disse. — Esse menino, Luke.
Ele era seu namorado?
— Alan, acho que a Juliet teria nos
contado! — exclamou sua mãe. Ela olhou de
lado para a filha. — Não teria? Ele não era
seu namorado, era?
— Mãe, eu mal o conhecia —
murmurou Juliet.
— Certo, querida. Mas fiquei muito feliz
de saber por Christine que vocês têm saído
com Mark e Daniel. Será bom para todos
vocês.
— O quê? — perguntou Juliet. Era a
primeira vez que ouvia isso! Ela esganaria
Christine, e sorriria enquanto o fizesse.
— Bem, falei com a Christine mais cedo
e... oh, desculpe, não era para eu saber? —
sua mãe deu uma piscadela. — Era
segredo?
Juliet pôs as mãos no rosto e saiu da
mesa para subir assim que pudesse sem
levar bronca por isso.
— Ensaie o seu discurso! — disse seu
pai.
Mais tarde, Juliet estava deitada na
cama com as luzes apagadas, olhando para
o teto. Havia passado a noite inteira olhando
para sua lição de matemática. Geralmente
fazia sentido — aliás, matemática era uma
de suas matérias favoritas —, mas hoje as
equações não passavam de rabiscos no
papel. Sua mente vagava por muitas
direções para que ela pudesse pensar nos
valores de x e y. Luke, morte, seu pai sendo
irritante...
E, graças à sua melhor amiga, sua mãe
estava convencida de que ela tinha um novo
namorado.
— Meu Deus, você é impossível, Chris
— resmungou, na mesma hora em que seu
telefone emitiu outro alerta de mensagem.
Procurou na mesinha de cabeceira e a tela
de seu celular acendeu, produzindo uma luz
fantasmagórica no quarto.
Era o mesmo número de antes. Não
consigo sair.
Juliet se irritou. Quem era o idiota? Ela
parou por um instante.
Supondo que alguém realmente
precisasse de sua ajuda. Tudo bem; era
alguém que mandava mensagens com
intervalos de horas entre uma e outra, então
não podia estar tão encrencado; fosse qual
fosse o problema, estava demorando a se
tornar crítico. Mas, mesmo assim...
Sentou-se na cama. Telefonaria para
esse idiota e descobriria tudo. Se realmente
estivesse com problemas, ela veria o que
poderia fazer a respeito. Se alguém
estivesse brincando com ela, ele — ou ela —
se arrependeria amargamente.
Juliet selecionou a opção “ligar de
volta” e pôs o celular no ouvido. Enquanto a
ligação completava, não havia nada além do
som de seus próprios batimentos cardíacos
ecoando pelo telefone e voltando para sua
cabeça.
De repente, três notas soaram em seu
ouvido, e uma voz educada disse:
— Sinto muito. O número que você
digitou não foi reconhecido. Por favor,
verifique e tente novamente.
— Como assim? — disse Juliet em voz
alta, apesar de saber que se tratava apenas
de uma gravação. — Não é possível! Como o
número pode não ser reconhecido? Ela não
podia estar recebendo mensagens de um
número inexistente!
Ela sabia que isso poderia ser feito e-
mails — endereços falsos que pareciam vir
de algum conhecido. Mas nunca ouvira falar
em falsificação de mensagens de texto.
Se alguém estivesse fazendo isso de
propósito, ao menos significava que a
pessoa não estava em apuros. Fosse quem
fosse, só estava agindo assim para enganá-
la, e ela não lhe daria a satisfação de deixá-
lo saber que tinha conseguido chamar a sua
atenção. Apertou o botão “desligar” com o
dedão e continuou apertando até que o
telefone se apagasse.
Juliet acordou sentindo-se revigorada,
apesar de ter sonhado com equações. As
outras coisas que a incomodaram na noite
anterior pareciam bem distantes. Apalpou a
parede até encontrar o interruptor e
esfregou os olhos antes de acendê-lo.
Seu celular estava no mesmo lugar em
que o havia deixado, na mesa de cabeceira,
com a tela cinza e vazia virada para cima.
Ela ligou o aparelho. Enquanto a tela
mostrava o processo de inicialização,
recolocou o telefone sobre a mesa e foi para
o banheiro.
O alerta de mensagem tocou antes que
tivesse alcançado a porta.
Juliet parou. Virou-se e olhou para o
telefone. A incerteza se instalou no fundo de
sua mente. Seria mais uma daquelas
mensagens tolas? Recuou e atravessou o
quarto em dois passos. Pegou o telefone e
verificou a tela. Daria uma resposta tão...
A mensagem era de Christine. Fora
enviada na noite passada, depois que Juliet
desligou o telefone.
— Ah, Chris... — Juliet suspirou aliviada.
Oi J! Quer fazer compras depois da
aula?
Fazer compras com Christine de
repente pareceu a melhor coisa para fazê-la
esquecer o idiota que ficava mandando
mensagens. Juliet sorriu e respondeu:
Claro! Até mais tarde.
O telefone soou novamente quase no
mesmo instante, e ela sorriu enquanto
olhava para a tela. Christine certamente
precisava dessas compras! Então ela leu:
Estou com medo.
— Pai? — disse Juliet durante o café da
manhã.
— Hein? — respondeu ele, absorto,
enfiando a faca na marmelada enquanto
virava a página do jornal com a outra mão.
Enquanto se vestia, Juliet pensou muito
sobre contar a seu pai sobre as mensagens.
Se achasse que não era motivo de
preocupação, ele falaria. Mas, se ela
estivesse sendo perseguida por algum
maluco anônimo, ele certamente quereria
saber. Então, arriscou dizer:
— Tenho recebido umas mensagens de
texto...
— Que bom.
Sua falta de atenção era irritante e fez
com que Juliet tivesse mais coragem para
falar.
— Não, não é. São esquisitas. — Ela
pegou o telefone e passou pelas mensagens.
— São todas de alguém que eu não
conheço. Olhe só. Me ajude. Estou
congelando. Não consigo sair. Estou com
medo. Pai, elas... bem, elas são estranhas.
— Certo, provavelmente... — Sua voz
parou enquanto uma manchete prendia sua
atenção. — Ai, por Deus. Será possível que
não haja um dia em que as pessoas passem
sem especular sobre os preços das
propriedades? As pessoas não deveriam
abusar de suas hipotecas; isso resolveria
essa maluquice.
— Pai! — protestou Juliet.
— Desculpe, meu amor. — Mal
levantou os olhos do jornal. — Certo,
provavelmente é algum menino que gosta
de você e está tentando chamar sua
atenção. É só ignorar... Sinceramente! Subiu
mais um por cento?
— Eu vou para a escola — resmungou
Juliet.
Desceu a colina de mau humor. Ela
agora tinha quatro mensagens de um
número inexistente em seu telefone, e,
fosse quem fosse que estivesse do outro
lado da linha, ou tinha um péssimo senso de
humor, ou realmente precisava de sua
ajuda.
O tempo não ajudou em nada. Estava
mais quente do que ontem, mas uma chuva
leve atrapalhava tudo. A água parecia ficar
suspensa no ar, e você só percebia a chuva
depois que já estava ensopado. Quando
Juliet alcançou a base da colina, sabia que
chegaria encharcada à escola.
Aos poucos, porém, alguma coisa
cessou seu mau humor: a sensação de que
não estava sozinha. Estava sendo seguida
por um carro — um carro que a perseguia
pela estrada, lentamente, e que andava no
mesmo ritmo dela.
Ela não estava com ânimo para nada
disso. Decidiu que não seria seqüestrada em
plena luz do dia; parou com as mãos nos
quadris e olhou diretamente para o
parabrisa. O carro era novinho. Era azul
metálico, e gotinhas de chuva embaçavam
suas janelas.
A janela do motorista se abriu, e um
jovem olhou para fora.
— Ei,Ju!
Juliet relaxou imediatamente.
— Dave! — Ela olhou para a direita e
para a esquerda e, finalmente, atravessou a
rua.
Dave era seu primo. Apenas alguns
anos mais velho, e próximo o suficiente para
ser como um irmão, principalmente porque
ela era filha única.
— Quer uma carona para a escola? —
ofereceu Dave. Juliet sorriu.
— Claro!
Correu para a porta do passageiro e
entrou. O interior do carro era quente e seco
e tinha aquele tipo de cheiro plástico de
carros novos.
— Muito bonito — disse, em tom de
aprovação, enquanto examinava o interior
impecável. — Há quanto tempo está com
ele?
— Peguei na sexta-feira — respondeu
Dave, orgulhoso. — Vou receber um bônus e
achei que deveria comemorar.
— Que legal! — ela disse. — Devem
gostar de você na delegacia.
Dave era oficial da polícia. Estava
usando parte de seu uniforme agora. Vestia
sua própria jaqueta de couro, mas, por baixo
dela, Juliet via que estava com uma camisa
branca abotoada, gravata e calça azul.
Talvez não devesse considerar inúteis
todos os membros de minha família, Juliet
pensou.
— Dave? — começou ela, lentamente.
— Posso lhe perguntar uma coisa?
Dave escutou com atenção enquanto
ela lhe contou sobre as mensagens de texto.
Quando acabou de falar, a face dele estava
rígida.
— Ju, se você está sendo assediada,
precisa denunciar! Avise a companhia
telefônica. Eles podem cortar o acesso do
cliente se for necessário.
— Mas é um número inexistente —
relembrou Juliet.
— O número existe, senão não
estariam ligando para você. É um golpe. É
perfeitamente possível disfarçar a
identidade de um telefone celular. Basta
entender um pouquinho a mais do assunto.
Eu ficaria surpreso se a companhia
telefônica não conseguisse descobrir quem
é.
Juliet fez uma pausa e virou o telefone
nas mãos. Ela queria pedir um favor a Dave.
— Será que você poderia rastrear?
Quer dizer, se eu não fizesse uma
reclamação oficial, você poderia rastrear, só
entre nós?
Dave a olhou por um instante; em
seguida, voltou a atenção para a estrada.
— Bem, eu poderia — disse. — Mas
podemos nos encrencar bastante se
utilizarmos recursos oficiais em benefício
próprio.
— Mas eu não quero denunciá-lo, seja
quem for — disse Juliet. — É por isso que
estou perguntando desse jeito. Se for algum
maluco, então tudo bem, eu denuncio, mas,
se for só alguém da escola fazendo
gracinha, não vale a pena se estressar. E, se
for alguém em apuros, bem, nesse caso eu
gostaria de ajudá-lo. Mas não sei qual das
alternativas é a verdadeira. E não vou
descobrir se não souber de quem é o
número. — Ela parou de falar, confusa.
Chegaram ao portão da escola e Dave
encostou.
— Posso ver essas mensagens, Ju?
Ela lhe entregou o telefone e observou
enquanto ele analisava os textos. Dave
ergueu as sobrancelhas e leu baixinho uma
das mensagens.
De repente, Juliet se engasgou e se
agarrou ao banco do carro. Teve uma visão,
uma certeza absoluta sobre o estranho do
outro lado da linha. Era uma pessoa sozinha,
com frio e assustada. Estava no escuro. Um
espaço pequeno, escuro e fechado. Ele mal
conseguia respirar...
Juliet mordeu o lábio. De onde vinham
esses pensamentos? Ela não poderia saber
isso tudo somente por meio de algumas
mensagens. Era só alguém brincando, certo?
Dave estava olhando para ela,
preocupado.
— Isso está realmente chateando você,
não está? — perguntou. Ela fez que sim com
a cabeça, sem conseguir falar. Ele suspirou
e devolveu o telefone.
— Anote o número — ele disse. — Vou
ver o que posso fazer. Juliet se sentiu um
pouco melhor enquanto caminhava para a
escola. Talvez até o fim do dia Dave
soubesse de onde vinham as mensagens, e
ela poderia confrontar o responsável. Ela
mal podia esperar para ver a cara de quem
estava fazendo aquilo. Christine a encontrou
logo na entrada do portão.
— Ju! Ju! Ouça só que legal! — Juliet se
deixou ser arrastada para a entrada do
parquinho. Os olhos de Christine brilhavam,
e suas bochechas também reluziam. — Mark
disse que sairia comigo! Comigo! Ele vai nos
encontrar na rua principal hoje à tarde.
— Nós duas? — questionou Juliet.
— Claro, nós duas! Você disse que iria,
não disse?
Juliet se esquecera completamente do
combinado de fazer compras com Christine.
A conversa com Dave e suas preocupações
afastaram de sua mente o programa com a
amiga, apesar de ter gostado muito da idéia
quando recebeu a mensagem. Mas Christine
e Mark em clima de romance era a última
coisa que ela queria. Imaginou se
encontraria uma desculpa para escapar do
programa até o final do dia — de repente,
Dave telefonando para informar a
identidade da pessoa que estava mandando
as mensagens.
— Claro — respondeu Juliet.
O dia se arrastou, assim como o humor
de Juliet. Durante o intervalo de almoço, o
telefone tocou — mas, desta vez, era o
toque de chamada. Alguém estava ligando,
e não mandando mensagens, mas ela não
se tranqüilizou quando olhou para o
identificador de chamadas na tela e leu
“número privado”.
— Ei, não vai atender o celular? —
perguntou Christine, e Juliet percebeu que
estava parada com o aparelho na mão,
olhando para ele.
— Ah, sim, claro — disse. Apertou o
botão verde para receber a chamada e
cuidadosamente levou o telefone ao ouvido.
— Ah, alô?
— Você parece completamente
assustada — disse um homem do outro lado
da linha. — Você está bem?
Juliet respirou aliviada.
— Oi, Dave. Hã, eu... — não sabia o que
dizer.
— Juliet, descobri alguns detalhes sobre
aquilo que você me perguntou — disse
Dave.
O coração de Juliet acelerou, e seus
dedos pareceram escorregadios segurando
o telefone.
— E?
Dave suspirou.
— Esse golpista é mais esperto do que
imaginei. Está usando um número que já
está desativado há um ano. Amanhã
completará um ano que foi utilizado pela
última vez.
— Por quem? — Juliet quis saber.
— Desculpe, Juliet, mas isso é
informação confidencial, e não posso
divulgar. Você deve falar com a companhia
telefônica. E a melhor coisa a fazer. Tchau.
Juliet olhou frustrada para o telefone
enquanto a ligação era desconectada.
Parecia que Dave estava convencido de que
era obra de algum brincalhão utilizando um
telefone desativado. Mas qual poderia ser o
objetivo dessa brincadeira? Se alguém
estava tentando assustá-la, não seria melhor
telefonar? Talvez respirar fundo e tentar
fazer com que ela dissesse alguma coisa?
Será que a pessoa não teria interesse em
conhecer sua voz?
— Certo — murmurou Juliet. Tiraria
essa história a limpo. A melhor maneira de
se assustar seria permitir se assustar com
isso. Mas ela poderia reagir em vez de ficar
com os braços cruzados. Confrontá-lo, fosse
ele quem fosse. Ou ela.
Abriu a última mensagem recebida,
selecionou a opção “responder” e digitou:
Não sei quem você é, mas não posso
ajudar se não disser o que está
acontecendo.
O ícone do envelope apareceu no visor
do celular com o letreiro “mensagem
recebida”, e o telefone vibrou em sua mão.
Juliet piscou os olhos, surpresa, e
selecionou a nova mensagem.
Sou seu amigo; preciso de você.
Juliet quase deixou o telefone cair.
Impossível; impossível que alguém tivesse
tido tempo de digitar uma resposta à sua
mensagem. Impossível!
Mas foi o que aconteceu.
As lojas estavam cheias e iluminadas
com luzes extravagantes. Era metade de
novembro e já começavam a preparar a
decoração de Natal, tocando músicas
natalinas ao fundo. O shopping tinha três
andares, e Juliet e Christine se dirigiram
diretamente para o segundo, onde ficavam
as melhores lojas de roupas.
— Chris — chamou Juliet enquanto
subiam pela escada rolante. Christine
passava brilho labial. O cheiro artificial de
morango fez com que Juliet se sentisse um
pouco enjoada.
— Hã?
— O que você faria se fosse perseguida
por alguém? Christine girou o brilho labial de
volta no tubo e guardou-o na bolsa.
— Não sei. Depende de quem estivesse
me perseguindo, eu acho.
— Suponha que você não soubesse
quem era. Que a pessoa tivesse seu número
de celular e ficasse mandando mensagens
estranhas.
Christine sorriu.
— Seria mais legal ainda! Eu poderia
imaginar quem seria e jamais sairia
decepcionada.
Juliet desconfiou que Christine não era
a melhor pessoa para se sensibilizar com
isso, principalmente porque se sentia
estranha contando para a amiga a respeito
das mensagens.
— Mas... — começou Juliet.
— Olha! — exclamou Christine.
Chegaram ao último andar de elevador.
Christine agarrou os braços de Juliet,
puxando-a pela porta, em direção à loja
mais próxima. — Você tem que me ajudar!
— insistiu. — Tem duas blusas muito legais,
mas eu preciso saber de qual das duas Mark
vai gostar mais... Espere aqui.
Largou o braço de Juliet e desapareceu
entre as prateleiras de roupas, deixando
Juliet irritada. Amigas não deveriam
conversar umas com as outras? Como isso
seria possível se uma delas não escutasse
quando a outra tinha um assunto
importante?
Pegou o celular e o ficou segurando,
como se ele guardasse o segredo de seu
mensageiro misterioso e tudo o que ela
tivesse a fazer fosse olhar para o aparelho
até a identidade secreta ser revelada.
Passeou pelas mensagens até que a última
apareceu na tela...
De repente, o telefone foi arrancado de
sua mão.
— Ju, sério! — Christine estava de
volta. Há quanto tempo teria voltado?
Segurava dois cabides, com uma blusa em
cada um.
— Preste atenção, por favor! Isto é
muito mais importante que...
— Ela olhou para a mensagem, e seus
olhos se arregalaram.
— Meu Deus! Meu Deus! — disse
Christine.
Por um instante, Juliet achou que sua
amiga estava assustada com as mensagens
estranhas — e, surpreendentemente, isso
fez com que se sentisse melhor. Talvez não
estivesse exagerando em sua reação.
Mas, depois, Christine diminuiu o tom
de voz e olhou de um lado para o outro,
verificando se estavam sendo observadas.
— Então era disso que você estava
falando quando mencionou as mensagens
de texto! Você está namorando] Por que não
disse nada?
Juliet pegou o telefone de volta.
— Eu não estou namorando! — sibilou
Juliet. — Não sei quem é. Alguém está me
mandando essas mensagens anônimas e...
Christine respirou fundo e levou as
mãos à boca, borrando o brilho labial.
— Juliet, eu sei quem é!
— Quem é? — Juliet estava pronta para
ouvir qualquer teoria.
— É o Daniel! Pense bem, faz todo o
sentido. Somos grandes amigas, não somos?
E Mark e Daniel são grandes amigos, então
é claro que ele quer sair com você. Está
tentando arranjar um encontro.
— Me perseguindo anonimamente? —
resmungou Juliet. Christine não estava
prestando atenção.
— Ah, Ju! Nós quatro juntos! Isso é
fantástico! — Deu um abraço em Juliet. —
Veja bem, vamos esquecer essas blusas.
Vamos encontrar o Mark agora. Eu disse a
ele que você estaria aqui comigo. Aposto o
que você quiser que Daniel vai estar junto.
Juliet duvidava, mas permitiu que
Christine a arrastasse para fora da loja. Não
se lembrava de Daniel já haver demonstrado
qualquer interesse nela. Se ele estivesse
tentando convidada para sair... Bem, ela
tinha de admitir que a idéia dos quatro
juntos soava bem. Daniel tinha um sorriso
bonito, quando resolvia mostrá-lo. Um pouco
tímido, sugerindo que houvesse algo mais a
compartilhar.
E se Daniel estivesse mandando as
mensagens? Bem, isso seria mil vezes
menos assustador, pois ela não teria
dificuldades para confrontá-lo a respeito. Ela
poderia fazer alguma piada e dizer que
havia maneiras melhores de chamar sua
atenção, como ir ao cinema ou jogar
videogame em uma tarde de sexta-feira.
Mas Juliet não achava que era ele, e
não só porque a lógica de Christine era
baseada mais em esperança do que em
fatos; o olhar de Daniel tinha passado
diretamente por ela quando se encontraram
no antigo açougue — aliás, ele não tinha
corrido dela poucos minutos antes de a
primeira mensagem chegar? Ele não havia
demonstrado o menor interesse naquele
instante, e não poderia ter enviado uma
mensagem enquanto corria pelas ruas em
direção ao parque. Não, Juliet não achava
que era Daniel o remetente das mensagens.
Quem quer que fosse, continuava por
aí; mas onde?
Uma das previsões de Christine se
concretizou: Daniel estava com Mark quando
eles se encontraram. Os meninos já estavam
sentados a uma mesa em uma lanchonete.
Mark se levantou sorrindo quando viu as
meninas se aproximarem.
— Oi, Chris — disse. Havia um calor
que parecia corroborar as impressões de
Juliet a seu respeito: quieto, reservado e
impaciente com pessoas que não conhecia
muito bem. Talvez ele realmente gostasse
de Christine, e talvez ela realmente o
estivesse ajudando a superar o
desaparecimento de Luke. Se fosse esse o
caso, Juliet ficaria feliz.
— Oi — respondeu Christine. Apertou o
braço de Juliet por um instante. Juliet tentou
não se contrair.
Daniel seguiu os passos de Mark com
alguma lentidão, a figura esguia se
erguendo da cadeira. Olhou para Juliet, e ela
teve quase certeza de que Christine estava
errada quanto a seus sentimentos. A franja
de Daniel escondia seus olhos, e era difícil
dizer o que ele estava pensando, mas sua
boca não demonstrava muito entusiasmo.
— Oi, Juliet — ele disse secamente.
— Oi — ela respondeu, de forma
igualmente seca.
Se ele fosse se manter tão
desinteressado assim, ela concluiu que não
ofereceria bebidas, e estava com sede.
— Vocês querem alguma coisa? —
perguntou. Ele deu de ombros.
— Pode ser. Uma Coca.
— É, boa idéia — acrescentou Mark.
— O.k. — disse Christine. Ela parecia
extremamente feliz em função do privilégio
de comprar uma bebida para o seu
namorado. — Quer gelo e limão?
Limão? Naquele lugar? Só com muita
sorte.
— Vamos, Chris, não temos o dia todo
— resmungou Juliet, puxando a amiga na
direção do balcão.
A balconista parecia determinada a
quebrar os recordes da vagareza em
serviço. Levou quase o mesmo tempo que
dois limoeiros levariam para crescer no
quintal. Christine foi até a mesa com os dois
primeiros copos de refrigerante, e Juliet teve
de esperar um pouco mais pelos outros.
Quando voltou para a mesa, seu coração
acelerou ao ouvir a conversa de Christine.
— ...um admirador secreto, mandando
mensagens o tempo todo...
Do jeito que Christine falava, e do jeito
que olhava para Daniel com o rabo do olho,
indicava exatamente quem achava que
estava enviando as mensagens. Daniel
parecia entediado.
— Chris, não é nada de mais... — disse
Juliet.
— Nada de mais? — protestou
Christine. —Até parece! Antes que Juliet
pudesse reagir, Christine pegou o celular em
sua bolsa, entrou no menu de mensagens e
mostrou-as a Daniel. Juliet estava com as
mãos ocupadas pelos refrigerantes e só
conseguiu observar a cena.
— Então, o que você acha, Daniel? —
perguntou Christine. Daniel pegou o telefone
e olhou para a tela.
Seu rosto empalideceu e ele jogou o
telefone na mesa, como se o aparelho
queimasse suas mãos.
— Algum problema, Dan? — perguntou
Mark. Ele pegou o telefone e olhou para a
tela. — Ah, não é nada. Enviam coisas desse
tipo o tempo todo e cobram fortunas por
suas respostas. Esqueça, Juliet. Ouvi dizer
que existem telefones que bloqueiam
números que você não queira atender.
Talvez você devesse trocar o seu por um
desses. Não acha, Dan? — olhou para seu
amigo, que enrubesceu.
— Ah, é — ele disse. — Boa idéia.
— É — murmurou Juliet. — Talvez. —
Ela se lembrou que tinha pensado que
poderia ser um golpe de marketing na
primeira vez em que recebeu uma dessas
mensagens. Mas, desde então, já havia
conversado com Dave e descoberto que era
um número antigo desativado. Uma
empresa fazendo propaganda certamente
utilizaria um número novo, não é mesmo?
Daniel arregaçou a manga e olhou para
o relógio.
— Bem, eu, hã, preciso ir — disse. —
Tenho... hã... uma coisa para fazer. —
Afastou sua cadeira e esboçou um sorriso
para Juliet.
Mark franziu o rosto.
— Achei que iríamos ao cinema.
— E, bem, sabe como é... — disse
Daniel vagamente, já andando de costas.
Assim que alcançou a porta da lanchonete,
virou-se e desapareceu em meio à multidão
de clientes.
Christine voltou-se para Juliet com os
olhos arregalados de espanto.
— Ai, Ju, me desculpe! Não sabia que
ele daria um bolo desses em você. Ele não
passa de um idiota...
— Te dar bolo? — estranhou Mark. — O
Dan te convidou para sair ou algo assim?
— Ora — disse Christine antes que
Juliet pudesse responder. — Basta olhar para
ele...
— Não tem problema — disse Juliet. —
De verdade, está tudo bem.
— Bem, a tecnologia avançada sempre
assustou o Gardner — disse Mark,
balançando o celular de Juliet. — Isso deve
tê-lo espantado. Dan vive na Idade da Pedra.
Ele nem tem celular.
— O quê? — Christine ficou mais
chocada do que teria ficado se tivesse
acabado de descobrir que Daniel morava em
um caixote. — Ele não tem telefone celular?
Juliet olhou para Mark, apoiando-se na
ponta da mesa.
— Tem certeza disso? Ele não tem
telefone? — perguntou Juliet.
— Não, ele não suporta celulares —
disse Mark em tom casual. Tomou um gole
de sua Coca. — É um saco quando queremos
marcar treinos do time.
A mente de Juliet estava acelerada.
Apesar de ter quase certeza de que não
tinha sido Daniel, o fato de ele não possuir
um celular comprovava que de fato não
tinha sido ele. Mas ela não sabia o que
achava disso. A idéia de um perseguidor
realmente anônimo parecia ainda mais
assustadora do que antes; ela queria sair
daquela lanchonete lotada e encontrar um
lugar mais calmo para pensar.
— Pode devolver o meu telefone, Mark?
— ela pediu.
— Hein? — Mark percebeu que
continuava segurando o celular de Juliet. —
Ah, claro, desculpe.
Ele devolveu o aparelho, e Juliet o
guardou na bolsa. Em seguida, ajeitou sua
cadeira e praticamente correu para fora da
lanchonete, tentando não pensar no fato de
que qualquer pessoa poderia estar enviando
aquelas mensagens — talvez alguém
naquele shopping, alguém que a estivesse
vigiando nesse instante, esperando até ela
ficar sozinha...
O barulho do salão lotado ultrapassava
as cortinas grossas do teatro da escola. A
srta. Worth organizava tudo, os óculos
presos no cabelo enquanto dava instruções
a Juliet e Christine, Mark e Daniel e todos os
que fossem participar da homenagem. Hoje
era o dia — exatamente 365 dias após o
desaparecimento de Luke Benton.
Juliet releu seu discurso mais uma vez.
Christine lhe dissera que poderia ler em voz
alta para ela, se quisesse praticar... mas,
obviamente, Christine estava do outro lado
do palco, com Mark, completamente
deslocada entre os meninos do time de
futebol.
Num impulso, Juliet retirou seu telefone
do bolso. Abriu uma nova mensagem e
escreveu “Ei, você se lembra de mim?”.
Selecionou o número de Christine e apertou
“enviar”.
O telefone vibrou em sua mão — a srta.
Worth havia dito que todos deveriam
desligar seus celulares, e Juliet resolvera
deixá-lo no modo silencioso. Franziu o rosto
ao olhar para a tela. O texto dizia: “A
mensagem não pôde ser enviada” — e
mostrou um envelope acendendo. Ela
rosnou. Isso acontecia quando a caixa de
entrada e a caixa de saída ficavam cheias
de mensagens armazenadas. Significava
que ela teria de passar por todas as
mensagens antigas para decidir quais
gostaria de guardar e quais apagaria. Sabia
que poderia simplesmente selecionar a
opção “apagar todas”, mas algumas das
mensagens antigas tinham valor
sentimental, e ela queria guardá-las por
mais tempo. A mensagem que Christine
havia mandado para consolá-la depois que
ela ficou em recuperação na escola, por
exemplo, ou a mensagem do primo Dave
anunciando seu noivado.
Ainda faltavam alguns minutos para a
homenagem da turma. Juliet baixou a
cabeça e começou a deletar todas as
mensagens de rotina — as combinações de
encontros com Christine após a aula para
fofocar, para conferir o dever de casa. Essa
parte foi fácil. Mas depois vieram as cinco
mensagens anônimas, e ela percebeu que
não sabia se queria guardá-las ou não.
Mexeu o cursor para cima e para baixo,
analisando as palavras breves e quase
insignificantes, as datas e os horários em
que cada uma delas havia chegado.
Em seguida, percebeu algo estranho.
Ela sabia que a mensagem mais recente
havia chegado ontem, e que a primeira
chegara há dois dias. Mas todas as
mensagens pareciam ter sido enviadas no
mesmo dia. E a data era a de hoje.
Por um instante, ela pensou se haveria
alguma coisa errada com o cartão de seu
telefone. Foi para uma mensagem diferente,
a que Christine havia mandado convidando-
a para fazer compras. Não; esta estava com
a data certa, há dois dias. Juliet voltou para
as cinco mensagens anônimas.
Havia algo errado com as datas. O dia
e o mês eram os de hoje... mas o ano era
diferente. As mensagens tinham a data do
dia de hoje, exatamente um ano atrás.
Hoje, o aniversário do desaparecimento
de Luke Benton, também era o aniversário
de envio dessas mensagens!
Mais estranho ainda, agora que Juliet
estava percebendo coisas, eram os horários
em que as mensagens pareciam ter sido
escritas. Foram enviadas para Juliet em
ordem reversa; cada uma fora escrita
poucos minutos antes da mensagem
anterior. A última mensagem que recebera
tinha sido a primeira a ser enviada. Se as
colocasse na ordem certa, o texto seria:
Sou seu amigo; preciso de você
Estou com medo
Não consigo sair
Estou congelando
Me ajude
Juliet sentiu um arrepio percorrer sua
espinha e tremeu, apesar de estar quente e
abafado atrás das cortinas. Olhou para o
pequeno visor, tentando entender melhor —
tentando entender qualquer coisa — o que
estava lendo e quase derrubou o celular
quando outra mensagem chegou e vibrou
como um inseto em suas mãos. Verificou a
tela e reprimiu uma reação de espanto.
— Ai, não — sussurrou. — Não, por
favor, vá embora. Era do mesmo remetente,
e havia sido mandada antes de todas as
outras.
Este lugar está trancado.
— Que lugar? — murmurou Juliet.
Fechou os olhos, juntando todas as peças.
Estava frio, estava trancado, ela teve mais
uma vez aquele flash de um lugar frio,
escuro e sem ventilação, tão difícil de
respirar. Teve um calafrio e guardou o
telefone de volta no bolso. De onde vinham
essas coisas? Estava começando a ficar
preocupada; isso estava começando a
dominar seus pensamentos...
Alguma coisa relacionada à última
mensagem fez com que ela tivesse uma
lembrança. Alguma coisa sobre estar
trancado...
Rua do comércio, ela pensou. Deu de
ombros. Por um instante, foi como se tivesse
voltado àquele momento frio e úmido, duas
noites atrás. Na rua do comércio, do lado de
fora do açougue vazio; Daniel olhando
através da janela suja, supostamente
procurando invasores.
— Parece muito bem trancado — ela
havia dito. Pouco depois disso, a primeira
mensagem chegou. Juliet agarrou o telefone
em seu bolso. De alguma maneira, o
açougue abandonado estava ligado a isso
tudo.
— Oi, Ju, aonde você vai?
A voz de Christine foi abafada pela
noite úmida, e Juliet fingiu não ouvi-la ao
correr para fora dos portões da escola. Saiu
do salão assim que a homenagem acabou e
pôs as mãos no bolso, caminhando depressa
pela rua. Por um momento, sentiu-se
culpada por evitar Christine assim. Mas
depois lembrou que Christine não entendia
como Juliet estava assustada por essas
mensagens, e que levaria muito tempo para
explicar. Era algo que Juliet precisava fazer
sozinha.
Ela caminhava na escuridão.
Um vento frio soprava pela rua do
comércio, e a umidade naquela pista
estreita só fez com que o frio parecesse
maior; parecia até cena de um filme antigo,
em preto-e-branco.
O açougue não passara de uma
pequena sombra negra da última vez que
Juliet o avistara, e suas janelas pareciam
buracos escuros no desconhecido. Agora
que ela podia vê-lo com maior clareza, sob a
luz do crepúsculo, o lugar tinha aparência
mais ameaçadora. Era quadrado, feito de
tijolos e feio. Sua pintura parecia
deliberadamente estragada, como se nunca
tivesse sido bonita, mesmo quando fora
pintada pela última vez.
Juliet não pulou quando seu telefone
interrompeu o silêncio com o alerta de
mensagem. Já esperava por isso. Verificou o
que havia chegado.
Acho que foram para casa.
Juliet deu de ombros. Quem quer que
tivesse mandado isso, estava sozinho —
como ela estava agora.
— Eu gostaria de estar em casa
também — sussurrou a menina.
Ela encostou a cabeça na janela. O
vidro refletia seu rosto, uma face pálida e
rosada contra o cinza, e ela não enxergava
nada além de algumas formas quadradas no
lado de dentro. A base da janela tinha
marcas de mãos, e ela imaginou se seriam
de Daniel, do dia em que estivera ali
espiando. Juliet se perguntou por que seu
pai não havia arrumado seguranças de
verdade se estava tão preocupado com
invasores.
Ela se afastou do açougue e observou
sua fachada decadente.
— O que estou fazendo aqui? — pensou
em voz alta. Certamente, não passava de
uma coincidência o fato de que recebera a
primeira mensagem nesse lugar.
— Ah, deixa para lá — sussurrou. —
Acalme-se, Ju. Virou-se para ir embora, e seu
celular alertou para uma nova mensagem.
Juliet parou onde estava. Quais eram as
chances de Christine ter mandado uma
mensagem dizendo que havia terminado
com Mark?
Muito remotas, ela sabia. Pegou o
telefone. De fato, eram muito remotas.
Não era Christine; era o número de um
ano atrás. Eles me trancaram.
Juliet perdeu o fôlego. Trancado! O
pavor que sentira com a visão de antes
duplicou. Se tivesse pensado a respeito,
teria concluído que a pessoa havia ido parar
na sala escura, fria e sem ventilação por
acidente. Isso já seria ruim o bastante.
A pessoa havia sido trancada de
propósito?
Juliet examinou os pedaços de metal
pregados na frente do açougue. Não havia
maçaneta.
Olhou em volta e viu uma passagem
escura e estreita que separava a construção
do prédio vizinho. A porta da frente estava
bloqueada, e deveria haver uma nos fundos.
Não consigo sair...
Juliet se dirigiu à passagem, virando de
lado quando seus pés pisaram em alguma
coisa que ela não teve coragem de
inspecionar direito. Suas canelas bateram no
que parecia uma lata de lixo, e ela
resmungou consigo mesma e, depois, mais
alto, quando percebeu que ninguém poderia
ouvi-la. Finalmente, as paredes da
passagem desapareceram, e ela chegou ao
quintal no fundo do açougue.
Era cercado por um muro alto de
tijolos, com arame farpado e cacos de vidro
no topo. A julgar pelas pilhas de lixo jogadas
pelos cantos, com sombras que pareciam
aumentar, teve a impressão de que toda a
rua jogava lixo ali. Mas havia uma porta nos
fundos do açougue que não parecia ter sido
lacrada.
Juliet pôs a mão na maçaneta e a
empurrou, depois sacudiu. Não havia sido
trancada, mas estava lacrada com um
cadeado logo acima da maçaneta. Ela
também conseguia enxergar o buraco
redondo da fechadura. Havia uma janela na
parte superior da porta, com a cortina
fechada pelo lado de dentro para esconder o
interior do estabelecimento. A janela era
coberta por uma grade de metal presa pelo
lado de fora, avermelhada pela ferrugem e
descolando da madeira em um dos cantos.
Sou seu amigo; preciso de você.
Juliet deu um passo para trás e seu pé
esbarrou em alguma coisa que produziu um
barulho metálico. Havia deslocado alguns
canos de metal, empilhados ao lado de uma
pia cheia de louças. Ela se inclinou e pôs as
mãos em volta de um cano frio e pesado.
Segurou-o por uma das extremidades,
colocou-o dentro do arco do cadeado e fez o
máximo de força possível. Primeiro a alça
dobrou; em seguida, abriu com um barulho.
Agora só falta a tranca, pensou Juliet.
Ela teria de quebrar a janela e tentar abrir
pelo lado de dentro. Enfiou os dedos na
grade e puxou. Sentiu alguma coisa
levantar, mas depois a grade ficou firme.
Pegou o cano novamente e o colocou entre
a porta e a grade. A grade desgrudou da
madeira, seus parafusos se soltando com
um barulho horrível. A grade se libertou
mais depressa do que Juliet esperava, e seus
dedos bateram no muro de tijolos. Ela pôs a
mão na boca para estancar o sangue. Agora
só precisava quebrar a janela, e conseguiria
entrar.
Atacou a vidraça com o cano e tentou
não sentir muita satisfação quando o vidro
se espatifou. Pôs a mão no buraco da janela,
com cuidado para não se cortar nos cacos
de vidro que sobraram. Algo frio e úmido
entrou em contato com seus dedos, e ela
quase gritou, até perceber que se tratava
apenas da cortina no lado de dentro da
porta.
Acho que foram para casa.
Seus dedos encontraram a lingueta da
fechadura, apesar de precisar ficar em um
ângulo complicado para conseguir alcançá-
la. Segurou firme e girou. A lingueta
produziu um barulho enferrujado. Ela apoiou
seu ombro na porta e a empurrou.
Lentamente, a porta se abriu. Tão
lentamente quanto ela, Juliet entrou na sala
fria e escura.
Este lugar está trancado.
O açougue cheirava a poeira e mofo.
Primeiro, só o que ela pôde ver foram vagas
formas quadradas e muitas sombras.
Instintivamente, procurou um
interruptor na parede e sufocou um grito
quando esbarrou em diversas teias de
aranha. Recolheu a mão e a limpou no
casaco.
A essa altura, seus olhos já estavam se
acostumando à escuridão. Todos os móveis,
mesas, e tudo o que pudesse dar alguma
dica quanto ao que aquele lugar havia sido
no passado tinha sido retirado. O chão era
feito de azulejos cinza claro e escuro que
talvez tivessem sido brancos um dia.
Juliet deu um passo à frente. Pôde ouvir
alguma coisa pequena se movendo perto de
seu pé, alguma coisa viva e veloz. Deu um
salto para trás e esbarrou na parede,
liberando uma pequena nuvem de pedaços
de grãos que caiu em seu cabelo. Passou as
mãos freneticamente pela cabeça enquanto
a pequena forma escura — um
camundongo? um rato? — correu pelo chão.
Ele desapareceu em um buraco na parede à
sua direita.
Ela se forçou a respirar fundo e
uniformemente até sentir seu ritmo cardíaco
diminuir. Olhou em volta. Havia uma porta
logo à frente que provavelmente levava à
parte principal do açougue. Outra porta à
direita estava semiaberta, e ela conseguia
perceber uma escada do outro lado. Havia
uma terceira porta no canto esquerdo da
sala.
Juliet levou um minuto para perceber
que era uma porta, pois era mais alta e mais
larga do que as outras. Primeiro pensou que
se tratava de uma parte da parede com uma
pintura diferente. Agora que seus olhos já
estavam acostumados à escuridão,
conseguia ver melhor. Era mais escura que a
parede a seu redor e produzia um brilho
metálico com a luz laranja que entrava pelas
frestas das janelas da frente do açougue.
A garota não sabia nada sobre a
administração de um açougue, mas sabia
que tinha de haver um lugar para guardar a
carne. Algum lugar maior do que uma
geladeira comum. Provavelmente ali seria o
frigorífico.
Estou congelando.
Ela caminhou cautelosamente até a
porta e passou os dedos sobre a superfície
de metal. Havia uma comprida maçaneta
vertical na altura de sua cintura. Os botões
do painel na parede ao lado provavelmente
funcionaram como termostato no passado.
Estavam todos desativados agora, é claro; a
energia tinha sido cortada há muito tempo.
Eles me trancaram.
A porta era como a entrada de um
cofre de banco. Se alguém estivesse
trancado em algum lugar deste açougue,
seria aqui. Em qualquer outro lugar, bastaria
arrombar uma porta ou pular uma janela.
Mas uma pessoa trancada aqui... que
chance teria de escapar?
E será que Juliet realmente queria ver o
que havia do outro lado?
Hesitou, mas agarrou a maçaneta com
ambas as mãos. Já tinha chegado até ali.
Precisava saber.
Largou a maçaneta outra vez. Não
queria saber. Queria ir para casa, agora.
Eles me trancaram.
Ela soluçou e ficou parada, tremendo.
Estou com medo.
Com um grito de raiva e medo, ela
agarrou a maçaneta e a puxou. A porta nem
sequer se mexeu. Ela a agarrou outra vez,
firmou os pés no chão escorregadio e fez
força, grunhindo em função do esforço. Será
que se mexera um pouco? Segurou a
maçaneta outra vez e se lançou para trás,
puxando-a com toda a força que conseguiu
reunir.
Alguma coisa estalou, e a porta se
mexeu um pouco.
Juliet ainda precisava das duas mãos
para mexer a porta, mas lentamente ela se
abriu. Um sopro de ar velho atingiu seu
rosto, seguido por um cheiro tão ruim que
fez com que Juliet engasgasse. Era cheiro de
morte e de podridão. Era tudo o que não
poderia ser. Eles me trancaram.
Juliet recuou, com a manga sobre a
boca. Devem ter deixado carne pendurada
aqui. Era o pior cheiro que já havia sentido
na vida.
Prendeu a respiração e deu um passo à
frente para espiar o frigorífico, mas o
espaço, pelo que conseguia enxergar,
poderia ser tão pequeno quanto uma cabine
telefônica ou tão grande quanto um estádio
de futebol. As sombras faziam com que
parecesse mais escuro e espesso do que
qualquer outro lugar, engolindo qualquer
claridade que entrasse no recinto. Juliet
esperou seu estômago se acalmar e, em
seguida, abriu a porta o máximo possível,
para que alguma luz pudesse entrar.
Me ajude.
As sombras se moveram o suficiente
para que Juliet pudesse ver que era uma
sala cúbica quase toda de aço. As paredes
eram curvilíneas e elegantes, e ganchos de
aço pendiam do teto. Eles sustentaram bifes
e bacon no passado, mas agora só
balançavam um pouco com a leve brisa
provocada por Juliet. E o chão...
O chão era de bom gosto, feito de
azulejos de cerâmica. A luz laranja e
empoeirada penetrava enquanto a porta se
abria, indicando um par de sapatos no
canto.
Tênis — pretos, com uma faixa
prateada.
Juliet abriu os últimos centímetros da
porta. A luz entrou e revelou um par de
pernas em calças escuras. Depois, o resto
do corpo. E a cabeça.
O corpo estava encostado na parede,
como se estivesse sentado na hora em que
morreu. Juliet reconheceu o blazer da
escola, mas poderia ter adivinhado quem
era de qualquer maneira.
Havia encontrado Luke Benton.
A pele das mãos havia encolhido; as
linhas dos ossos estavam à mostra, como se
estivessem prontas para saltar para fora do
corpo. Juliet se inclinou e se forçou a olhar
para o rosto. Os olhos de Luke haviam
encolhido. Seus lábios, também, e os dentes
apareciam como num sorriso de desespero.
Os ossos do rosto se destacavam. A imagem
fez com que Juliet se lembrasse das múmias
do Egito.
Uma das mãos de Luke estava cruzada
sobre seu colo, e a outra estava no chão, ao
lado dele, com a palma para cima, os dedos
em torno de um telefone celular.
Juliet esticou o pescoço, tentando
enxergar o visor do telefone sem precisar
chegar muito perto do corpo de Luke. O
ângulo era muito ruim. Ela não tinha outra
escolha senão se esticar e puxar
gentilmente o telefone de sua mão,
utilizando apenas dois dedos, cuidando para
não encostar no corpo sem vida. Os dedos
do cadáver seguravam o telefone com mais
força do que ela imaginara, e, por um
instante, enquanto levantava o telefone, a
mão de Luke subiu junto. Juliet cerrou os
dentes com tanta força que seus olhos
doeram. De repente, a garra morta cedeu, e
a mão caiu de volta no chão.
Juliet virou o telefone para a luz. Ela
conhecia o modelo — era igual ao seu — e
sabia como ligá-lo, mas nada aconteceu
quando apertou o botão. A bateria tinha
acabado há muito tempo.
Mas havia uma coisa que podia fazer.
Abriu a parte traseira do telefone, retirou
seu chip e o colocou em seu próprio
aparelho. Ligou seu celular e a tela se
acendeu, exibindo as últimas mensagens de
Luke.
Lá estavam, na caixa de saída. Todas
elas, na ordem em que havia enviado — a
ordem inversa à do recebimento.
Eles me trancaram
Acho que foram para casa...
Nenhuma delas estava listada como
“enviada”. Juliet analisou a última
mensagem até chegar ao relatório de
detalhes. Observou a data e a hora do envio
até chegar à última linha: “Erro: a
mensagem não pôde ser enviada”.
— Oh, Luke — murmurou Juliet,
enquanto seus olhos se enchiam de
lágrimas. — Vou tirá-lo daqui. Vou buscar
ajuda...
— Fique quieto!
— Estou tentando!
Juliet virou-se de costas. Mais alguém
havia entrado no açougue pelos fundos:
duas vozes; dois conjuntos de passos
caminhando pelo chão. Juliet foi para o lado
instintivamente, afastando-se do feixe de luz
que entrava pela porta aberta. Ela se
encostou na parede. Não conseguia ver
quem estava ali, mas isso significava que
também não podia ser vista.
— Olhe, não sabemos se alguém
esteve aqui...
— Aquela porta foi forçada!
— O.k, Dan, O.k....
Dan! Juliet fechou os olhos e respirou
aliviada. Reconhecia as vozes agora. Era
apenas Daniel, ainda preocupado com os
invasores na loja de seu pai, e trouxera Mark
consigo para obter ajuda.
Abriu os olhos e viu o feixe de luz
diminuir no chão do açougue frio. Afastou-se
da parede a tempo de ver a porta de metal
se fechando.
Juliet gritou e correu. A porta se fechou
e a luz desapareceu na mesma hora em que
ela colidiu contra o metal.
— PAREM! Abram a porta! — gritou ela.
Derrubou o telefone e mexeu
aleatoriamente na superfície de aço. —
Esperem! Abram a porta! Daniel! Mark! Por
favor! Abram a porta!
Estava tão escuro que ela nem sabia se
seus olhos estavam abertos. Apoiou-se na
porta, sem querer tirar as mãos dela, pois
era seu único ponto de referência na
escuridão. Se tirasse as mãos dali e virasse
de costas, estaria vagando por uma
imensidão escura.
Será que Mark e Daniel não viram o
corpo pela porta? Obviamente, não. Mas
deviam tê-la ouvido gritar. Ela gritara antes
de a porta se fechar. Agora que sabiam que
ela estava ali, abririam a porta
imediatamente! Não abririam?
Eles me trancaram...
Ela levou um segundo para entender.
Não foi “Eles sem querer fecharam a porta
atrás de mim”; simplesmente “Eles me
trancaram...”, e, depois, “Acho que foram
para casa”.
— Ai, não — sussurrou Juliet. — Mark e
Daniel! — Ela se jogou no chão, com as
costas contra a fria parede de aço.
Estou com medo.
Não consigo sair.
Estou congelando.
Juliet não sabia quanto tempo havia se
passado antes que começasse a pensar
direito novamente. Precisava sair, e Daniel e
Mark claramente não voltariam para buscá-
la. Ela havia derrubado seu telefone — bem,
tinha de encontrá-lo. Juliet se ajoelhou e
engatinhou para a frente, tateando pelo
chão de cerâmica. Passou o tempo todo com
medo de não encontrar o telefone e esbarrar
em Luke.
Sentiu sua mão esbarrar em alguma
coisa pequena e dura. O objeto escorregou
pelo chão, mas ela o agarrou antes que
pudesse escapar para longe. Em seguida,
conseguiu apertar o botão do menu.
O visor e os números se acenderam
com uma luz verde, e ela respirou aliviada.
Ela tinha luz. Tinha um meio de
comunicação com o mundo.
Sou seu amigo; preciso de você.
O ar mofado e malcheiroso a
pressionou. Juliet não sabia quanto oxigênio
havia na cela de metal, mas, se mantivesse
a calma, poderia durar por um tempo. O
suficiente para que alguém viesse salvá-la.
Acessou o menu de mensagens, escreveu as
palavras “me ajude” e selecionou o número
de Christine.
O envelope giratório apareceu na tela,
indicando que a mensagem estava sendo
enviada. Juliet sentou-se, aliviada.
O telefone apitou, e ela sorriu no
escuro. Em seguida, verificou para ver o que
Christine havia respondido.
Não era de Christine, e, apesar de ter
passado um bom tempo olhando para a tela,
não conseguia assimilar as palavras.
Erro: a mensagem não pôde ser
enviada.
Quando finalmente entendeu, teve
certeza absoluta de que Luke tivera a
mesma idéia há um ano, quando suas
mensagens desesperadas não foram
entregues. Ela estava presa em um caixão
de aço. Nenhum sinal telefônico chegaria ali.
Seu celular não tinha a menor chance.
Juliet gritou.
Digitalização/Revisão: Yuna

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