1) O artigo discute as relações entre literatura e música no contexto da canção da Música Popular Brasileira (MPB).
2) Ele explora como o elemento poético é configurado nas canções, considerando especialmente o elemento lúdico em canções dos anos 1960 e atuais.
3) O artigo também analisa como a canção da MPB pode ser vista como uma manifestação que compreende a memória histórica como uma transcendência estética.
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Entre a Literatura e a Música o Poético e o Lúdico No Contexto Da Canção Da MPB
1) O artigo discute as relações entre literatura e música no contexto da canção da Música Popular Brasileira (MPB).
2) Ele explora como o elemento poético é configurado nas canções, considerando especialmente o elemento lúdico em canções dos anos 1960 e atuais.
3) O artigo também analisa como a canção da MPB pode ser vista como uma manifestação que compreende a memória histórica como uma transcendência estética.
1) O artigo discute as relações entre literatura e música no contexto da canção da Música Popular Brasileira (MPB).
2) Ele explora como o elemento poético é configurado nas canções, considerando especialmente o elemento lúdico em canções dos anos 1960 e atuais.
3) O artigo também analisa como a canção da MPB pode ser vista como uma manifestação que compreende a memória histórica como uma transcendência estética.
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Entre a literatura e a msica: o potico e o ldico no contexto da cano da MPB
Fabio Cecchetto 1
RESUMO: O presente artigo considera a configurao do potico no contexto da cano da msica popular brasileira. Para tanto, parte de consideraes gerais e tericas sobras as relaes entre a literatura e a msica, adensando a discusso da natureza da cano como manifestao de uma reflexo que compreende a memria histrica como transcendncia metafsica esteticizada. Na sequncia, considera a configurao do elemento ldico como importante recurso de composio do potico em canes dos anos 60 e de canes atuais.
Palavras-chave: Carter potico de canes; MPB; Elemento ldico.
ABSTRACT: The present article considers the configuration of poetic features of a song in the context of the so called Brazilian Popular Music. The inicial discussion draws general and theoretical considerations about the relations between literature and music and deepens the analysis on the nature of the song as a manifestation of a consciousness of the historical memory as a metaphysical and aesthetical transcendence. The ludic element is then considered as an important element of the poetic features of songs in the 60s and nowadays.
KEY WORDS: Poetic features of songs; Brazilian popular music (MPB); Ludic elements.
Introduo
No novo o interesse das relaes entre a msica e a literatura. Para alm do campo da criao artstica, e superando existncia de especulaes meramente diletantes, assinalvel um nmero considervel de investigaes srias do assunto. Neles, h diferentes formas de fazer referncia ao objeto de investigao. Por vezes os autores referem-se msica, literatura e s suas interaes separadamente; outras vezes h meno ao que chamam literatura-msica, poesia-msica ou ainda palavra-msica. Muito mais do que mera variao terminolgica, tais discrepncias apontam para diferenas na conceituao do objeto, o que, consequentemente, afeta consideravelmente os resultados a que se chega eventualmente. De modo amplo, possvel identificar nestas diferenas, pelo menos duas posies majoritrias, as quais representam duas formas de abordagem da questo. Na primeira, consideram-se a literatura e a msica campos de estudo distintos, mas interagentes. Nesta perspectiva, define-se a existncia de dois elementos distintos de estudo: o
1 Fabio Cecchetto docente do curso de Letras na Universidade Estadual Paulista (UNESP) em Assis, SP.
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literrio de um lado e o musical do outro, considerados quando em dilogo. Mesmo analisados pelo vis de sua interao, predomina o princpio da distino das partes. Por outro lado, defendida pelos que propem o apagamento das fronteiras entre msica e literatura, a outra perspectiva se abre para o surgimento de um terceiro objeto de estudo, um hbrido resultante da interao da msica e da literatura que para ser estudado no pode ser considerado a no ser em sua existncia orgnica e holstica, pois de outra forma haveria o prejuzo de sua descaracterizao. No se trata de um objeto que possa ser estudado a partir de uma tica exclusivamente literria ou exclusivamente musical. Esta proposio descortina uma terceira margem na considerao dos estudos das relaes entre a literatura e a msica na qual o hbrido interposto tem valor substantivo. Vale, portanto, considerar esta posio mais de perto.
1. O espao do entremeio: a palavra-msica
Mesmo sem realizar a construo exaustiva de uma fundamentao terica, seja em perspectiva sincrnica ou diacrnica, possvel apontar alguns balizamentos importantes na instituio de um objeto hbrido que resulta das interaes entre a literatura, mais especificamente entre a ndole do potico, e a msica. No no to distante sculo XIX, o filsofo (e fillogo!) alemo Friedrich Nietzsche escreve com fervor sobre a natureza da tragdia em sua relao com a msica, motivado, como se sabe da leitura mais extensiva de seus textos e de sua biografia, por suas inclinaes obra de Richard Wagner. Entretanto, em que pese a contribuio do autor para o esclarecimento das relaes entre o potico e a msica, Nietzsche no o primeiro a ocupar-se desta matria nem mesmo no contexto cultural alemo em que vivia. Dcadas antes, os poetas-filsofos do primeiro Romantismo Alemo j preconizam que a poesia seria algo transcendental, cujas fronteiras com outras formas do discurso so projees utpicas dos crticos e dos leitores a serem derribadas. Segundo entendem, a poesia e a crtica devem formar uma unidade orgnica. Este pensamento pode ser igualmente concebido na relao da poesia com a vida em geral, pois para o poeta romntico alemo no havia ou no deveria haver distino entre a poesia e a vida.
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Tal entendimento pode ser e extensivamente aplicado a outras formas de arte, isto , a poesia e a arte em geral devem ou podem constituir uma unidade orgnica. Desta forma, abre-se j com os poetas romnticos alemes, mesmo considerando que eles no tenham empunhado programaticamente a bandeira do estudo das relaes do potico especificamente com a msica, uma possibilidade terica concreta de considerar o estudo da msica no domnio das Letras. Mesmo partindo apenas destes dois exemplos possvel depreender, ao menos no que se refere Alemanha entre fins do sculo XVIII e o sculo XIX, um interesse no estudo das relaes da msica com a poesia do ponto de vista da reflexo filosfica ou a partir de um fundo marcadamente filosfico. No obstante, no sculo XX mais propriamente, tais estudos vo se acomodando cada vez menos na filosofia e cada vez mais em reas de domnio direto ou convexo das Letras, notadamente nas esferas da Semitica e da Literatura Comparada, as quais oferecem repertrio terico-crtico, bem como instrumentos de anlise, que se prestam ao estudo das relaes de seu objeto duplo, mas no chega a haver a constituio de uma rea de investigao autnoma. Neste cenrio, e desconsiderando-se as diferenas de enfoque e os objetivos estritos de cada terico ou abordagem que trata das relaes entre o potico e a msica, um dos traos comuns que se destaca no discurso crtico da maioria dos autores a existncia de um certo carter combativo, muitas vezes apaixonado, outras vezes programtico, no sentido de se buscar e de se estabelecer uma validao, nas Letras, de um tipo de estudo que obviamente ultrapassa a competncia da anlise do discurso lingstico e que, em princpio, excederia os limites desta rea de conhecimento. No obstante, no Brasil inclusive, uma reviso mais aprofundada dos textos crticos que consideram as relaes possveis entre o potico e a msica nesta perspectiva aparece pontuada de similitudes terico-espitemolgicas que podem ser consideradas tpicas deste combate ao deslinde do isolacionismo conceitual de palavra e de msica no binmio palavra- msica. Tais semelhanas, que em um contexto mais abrangente chamo de isotopismos do discurso crtico, so facilmente identificveis em textos do gnero que se publicam atualmente nas revistas acadmicas especializadas, assumindo diferentes aparncias conforme a natureza sobretudo musical do objeto considerado.
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A identificao e avaliao destas similitudes na crtica, se realizadas de forma no valorativa, podem levar a elementos que eventualmente ajudaro a explicar no s o objeto de estudo a cano, por exemplo como tambm seu processo de apreenso e compreenso. Assim, assume-se como pressuposto para uma leitura inicial do elemento potico e a msica popular brasileira, a existncia, no discurso crtico sobre a cano da MPB, sobretudo das produes dos anos 60 e 70, de duas linhas de leituras majoritrias. A primeira aproxima a cano do contexto da represso e da ditadura militar; a segunda a considera, em nvel temtico, a manifestao de uma reflexo que compreende a memria histrica no diapaso da transcendncia metafsica. Como o comentrio e anotao da primeira perspectiva esto documentados satisfatoriamente, passa-se em seguida considerao mais detalhada de elementos que subsidiem a anlise da segunda.
2. O potico e a msica popular a partir do incio dos anos 60
No Brasil de meados dos anos 60, a poesia busca caminhos que a separam da existncia conjunta com a msica, mesmo que de modo provisrio. A idia de que a poesia encontra no som sua real e plena existncia, entre outras coisas em funo de sua natureza rtmica, e que ganha evidente destaque sobretudo a partir da operao crtico-criativa dos poetas da segunda metade do sculo XIX, desafiada frontalmente pela poesia concreta brasileira. De certo modo, o poema concreto busca um apagamento do verso e do tempo. O ritmo no poema, assim como a msica, no pode existir fora de uma dada noo de temporalidade. Sem este trao de temporalidade, o trao performtico da poesia que revela sua inclinao para o musical se reduz consideravelmente, mesmo se se considerar os experimentos da msica moderna, pois a msica existe no tempo, mesmo subvertendo normas e padres rtmicos. No obstante, para marcar a reflexo das relaes do potico e da msica desta maneira, isto , ao se tomar como ponto de partida o contexto potico-literrio do Brasil dos anos 50 e 60, necessrio apontar que a poesia se afasta no apenas da msica, mas tambm da prpria palavra ao se aproximar dos signos no-verbais. Apesar disso, ainda assim possvel reconstituir nas produes poticas do perodo um caminho que liga a poesia, a
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palavra e a msica. As etapas desta reconstituio, entretanto, requerem muito menos inteleco e muito mais dinamismo psquico. Desta forma, no justo afirmar que nos anos 50 e 60 o trao potico das canes populares no Brasil deriva diretamente do trao potico daquele momento literrio. Desta constatao surge o questionamento (a que no se pretende responder aqui), de qual seria a fonte que alimenta trao potico da cano popular naquele dado recorte temporal. A resposta-padro de que a cano ocupa, no perodo, um espao deixado vazio pela literatura simplista demais e no abrange a complexidade da questo. Certamente a resposta tambm no pode ser encontrada na mera constatao da atividade potico-literria de alguns compositores, como o caso notrio de Vincius de Moraes, ncora comum de vrios textos que consideram as relaes da literatura com a MPB. evidente, neste caso, que a prxis do poeta influencia o trabalho do letrista/compositor. O resultado, como dificilmente seria diferente, so textos cheios de um ardor potico a que se pode chamar sem medo de manifestaes poticas. Entretanto, as letras de canes tm coerncia interna, mecanismos, funes, objetivos, contextos prprios; enfim, implicaes que divergem daquelas do poema s vezes mais, s vezes menos e que s vezes se sobrepem umas s outras, o que gera desorientao. Segundo um dos mecanismos acima referidos, a msica popular brasileira cria para si simulacros prprios, partindo j de sua autodefinio como popular. Em sentido estrito, a msica popular brasileira nunca foi popular de fato a no ser em sua oposio msica erudita 2 . Em primeiro lugar, de modo geral, e resguardadas as necessrias excees, ela no foi a expresso autntica das camadas verdadeiramente populares da sociedade brasileira, mas o produto da leitura que uma classe mdia instruda fazia das estruturas sociais. Tambm as relaes de afetividade das canes so construdas na perspectiva muitas vezes romantizada da classe mdia. Em segundo lugar, a msica popular brasileira, por sua prpria estrutura, no de fato direcionada para as camadas mais populares da sociedade, que consome preferencialmente outros gneros musicais. Entretanto, esse paradoxo identitrio no deixa de revestir-se de um carter to ldico quanto literrio, pois em fingir-se popular, a MPB acaba criando espaos poticos eventualmente fictcios nos quais desenvolve seu programa. Neste tempo-espao inventado,
2 Apesar de controverso, no cabe aqui a discusso do termo erudito para designar o tipo pretendido de msica cannica estabelecida por elites letradas.
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os compositores misturam elementos culturais de diversas camadas sociais, o que promove um apagamento das fronteiras entre os elementos que provm de cada uma delas, amalgamando-os. Em tais canes, a percepo histrica absorvida, diluda e esteticamente reconfigurada, afastando-se do discurso poltico de resistncia aberta represso da ditadura militar. verdade que nos anos 60, muitas das barreiras scio-culturais que classificavam gneros musicais segundo a classe social de seus ouvintes ou compositores, mais especificamente letristas, j esto por terra. Assim, o samba ou as rodas de pagode, por exemplo, no esto mais restritos s comunidades pobres dos negros cariocas, e alcanam uma parcela bem mais ampla da populao. Em seus princpios, a MPB ultrapassa as dicotomizaes do mundo contextual lendo-o, filtrando-o, reconfigurando-o e estetizando-o na mistura deliberada de elementos, mesmo na mistura do real e do ficcional. Vincius de Moraes, por exemplo, autoproclamado no texto de seu Samba da bno o branco mais preto do Brasil, simula com isso um tipo de sincretismo entre a cultura letrada branca e elementos oriundos de manifestaes das camadas mais desfavorecidas da populao, usando sua prpria imagem como manifestao da sntese desejada, a qual ele ambiciona estender configurao da natureza do samba: o samba, mudado, tornou-se branco na poesia, mas continua negro demais no corao, o que manifesta um desejo de sincretismo no apenas de assuntos e contedos, mas tambm de aspectos da prpria estrutura do samba. Diante deste quadro, comum de se encontrar textos que estudem em canes de Moraes, por exemplo, o uso de coloquialismos lingsticos e de palavras, frases e expresses do universo do candombl, tais como atot aluai, atot bab (saudao aos orixs), Tonga da mironga do cabulet (certamente escolhidas em funo de sua sonoridade, estas palavras juntas tm significado obscuro, porm ofensivo), etc. Mais raro, pouco comum, na verdade, encontrar estudos que abordem as mesmas canes como um produto de um hibridismo estrutural. Em um processo semelhante, possvel anotar em canes do Tropicalismo a incorporao de diferentes estruturas da vanguarda artstica, no s literria, mas tambm das artes plsticas. O experimentalismo e a colagem, tanto musical quanto textual, muitas vezes, do o norte. Entretanto, tal tentativa de aproximar a cano do perodo de um domnio mais
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universal das artes em geral no ocorre de forma autnoma e isolada, mas corresponde tambm a um apelo da poca:
Num ensaio publicado em 1970 na revista francesa Temps Modernes, o critico Roberto Schwarz estudou o Tropicalismo no contexto da situao poltica, como uma das muitas manifestaes de irracionalidade que tem funcionado a maneira de revolta num pas submetido ditadura. Revolta que contunde os hbitos correntes, mas leva apenas ao niilismo. Segundo Schwarz, que mostra a sua semelhana com o movimento Pop, o Tropicalismo fruto da coexistencia de um contedo arcaico da cultura burguesa brasileira e das formas avanadas de expresso, com o intuito deliberado de criar situaes absurdas. Podemos completar dizendo que neste caso ele abriu caminho para as atuais manifestaes do que est em moda chamar de "contra-cultura", e que parece uma rebelio pattica de importncia, quando encarada do angulo poltico. (Cndido, 1977: 15).
Cndido no deixa esquecer que tambm a cano um produto social e socialmente elaborado, que existe na histria, deriva dela e com ela interage. Assinala, comentando Schwarz, que mesmo os procedimentos e efeitos esteticizantes produzidos pelas canes dos tropicalistas, ou nela utilizados, surgem ligados represso do perodo da ditadura. Estas observaes, embora verdadeiras e vlidas, no explicam satisfatoriamente nem os mecanismos intrnsecos do funcionamento potico das canes dos tropicalistas, nem sua interao com a literatura ou com as artes em geral. Coutinho afirma:
Compreendendo a msica popular como um fato eminentemente esttico - sem prejuzo de sua dimenso mercadolgica - o tropicalismo opera um deslocamento da questo poltica do plano scio-econmico para um plano fundamentalmente tico. A poltica tropicalista, que talvez possamos chamar de "micropoltica", subverte costumes, valores e prticas "tradicionalistas" presentes na sociedade brasileira - o patriarcalismo, o passadismo intelectual, o patrimonialismo nacionalista, o autoritarismo populista -, mas revela sua face conservadora ao desconsiderar o povo como sujeito histrico. (Coutinho, 2002).
O autor alarga a perspectiva de Cndido, conferindo s canes tropicalistas uma dimenso tica fundada sobretudo na subverso dos valores sociais e da memria histrica (costumes, tradio, etc.), a qual, como efeito colateral, desconsidera o povo como sujeito histrico. Uma inferncia que pode derivar desta afirmao a de que o projeto tico tropicalista no contempla o povo de fato, que existe na histria, mas sua imagem decalcada e esteticizada.
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Sem valorar este fato positiva ou negativamente, importante apontar que a operao dos mecanismos poticos da cano tropicalista, levando em conta os elementos aqui apreciados, d sinais de que acontece, como nos exemplos anteriores, na esfera da simulao, da criao de simulacros estticos. Assim, embora o produto que resulta da prtica do programa tropicalista a cano incorpore e veicule (e eventualmente subverta) elementos da realidade histrica, e embora estabelea em certa medida o pretendido dilogo com a arte moderna, de se notar que tal relao se d mais propriamente no fazer, ou seja, no processo de composio. este fazer, este processo que acaba por inaugurar e conferir cano que dele resulta uma lgica e coerncias prprias. portanto na atividade e no carter ldico que o trao potico encontra uma de suas existncias possveis no contexto da cano da msica popular brasileira. Mesmo a partir dos anos 80 possvel assinalar a existncia de um tipo de cano menos programtica, que se afasta do discurso poltico e que instaura seu ser potico na esfera do ldico. Essa desinstrumentalizao da cano fica mais bvia a partir de meados da dcada em canes no propriamente da MPB, mas de composies do rock nacional ou de artistas independentes. Com o eixo principal do impulso criador das canes variando do teleolgico para o ldico, possvel assinalar aquilo que se pode identificar como o uma reafirmao do lirismo potico na estrutura da cano da msica popular brasileira. Tome-se como primeiro exemplo a cano Maria de verdade (1992), de Carlinhos Brown, que compe o CD Cor de Rosa e Carvo (1994), de Marisa Monte:
Maria de Verdade
Pousa-se toda Maria no varal das 22 fadas nuas lourinhas Fostes besouro Maria e a aba do Pierrot descosturou na bainha
Farinhar bem, derramar a cano Revirar trens, louco mover paixo Nas direes, programado e emoldurado Esperarei romntico
Sou a pessoa Maria Na gua quente e boa gente tua Maria Voa quem voa Maria e a alma sempre boa sempre vou Maria
Tou vitimado no profundo poo
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na poa do mundo do cu amor vai chover Tua pessoa Maria Mesmo que doa Maria Tua pessoa Maria
Sem a inteno de aprofundar uma anlise da cano, as linhas gerais mostram uma desestabilizao das sries semnticas, da ordenao sinttica da letra e a instaurao de uma lgica onrica. Jogos de palavras promovem uma flutuao do nome Maria, que ora se identifica com a voz (eu-lrico) da cano, ora com um interlocutor fingido, ora com a terceira pessoa do discurso. A msica funciona em parte como elemento aglutinante das imagens quase alucingenas. Em princpio, no h reconstruo de memria histrica, recuperao de tradio ou sistema de valores sociais, nem a preocupao de lanar mo de um repertrio cannico de metforas e de imagens historicamente estveis, com exceo da meno figura do Pierrot. Tambm no h, pelo menos em primeiro plano, a evocao do universo das relaes amorosas e das afetividades interpessoais. Para prosseguir, tome-se tambm o exemplo a cano Nem tudo, de Zlia Duncan, que integra seu CD Pelo sabor do gesto (2009):
Nem tudo
Nem tudo que reluz corrompe Nem tudo que bonito aparenta Nem tudo que infalvel se aguenta
Nem tudo que ilude mente Nem tudo que gostoso t quente Nem tudo que se encaixa pra sempre
Nem tudo que sucesso se esquece Nem todo pressentimento acontece
Nem tudo que se diz t dito Nem tudo que no voc esquisito
Nem tudo que acaba aqui Deixa de ser infinito
Com um texto absolutamente despretensioso, Zlia Duncan vai construindo, a partir de contradies lgicas, paradoxos reveladores da oposio essncia/aparncia, mas de certa forma, fundeada na reformulao do lugar-comum nem tudo que reluz ouro e na construo
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de variaes deste mote. Neste exerccio, que quase um devaneio livre sobre uma aspirao barroquista (mas no barroca), obviamente o que ganha destaque o carter ldico. E no poderia ser diferente, pois a carga semntico-cognitiva, mesmo considerando-se a produo de sentidos dos elementos no-verbais da cano, sobretudo os musicais, no diz muito alm do depreensvel j na primeira linha da letra. O que mais vale, portanto, o processo, a brincadeira de fazer a cano, de brincar com as palavras. Evidentemente, a presena do elemento ldico sobretudo na estrutura e no processo de composio da cano no a nica forma de manifestao do potico na MPB. , entretanto, uma forma at agora injustamente desprezada pela crtica e que precisa de maior visibilidade e valorizao.
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
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