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FIV (Fertilização in Vitro)

Todas as manhãs repetiam os mesmos gestos sem

saber por que o faziam. Simples intuição de que teria que

ser assim...

Encontravam-se em grupos. Como se fossem uma

espécie de rebanho... Um dia toda a sociedade marchará por

grupos, cada um a caminho da sua função. Um dia toda a

sociedade receberá ordem para viver, para sorrir, para se

alimentar...

A função era relativamente comum : a busca da

felicidade. Para alguns talvez não. Não sei, as pessoas

quando falam nunca são sinceras...

Partamos do princípio que sim... Em busca de uma

qualquer felicidade... Homens e mulheres juntos... nem

sempre... Os homens eram necessários apenas na parte

final da linha de produção... uns percorriam todo o caminho,

outros iam apenas quando os chamavam... uns eram mais

machistas que outros, uns escondiam-se, outros tinham

gestos ternos e doces com as mulheres...

A primeira vez que aí cheguei sentia-me estranha, mal,

deslocada. Apeteceu-me imenso fugir. Comecei a ter


dúvidas, medo... A vida para mim não tinha que passar por

ali, como se para mim o destino fosse mais forte e eu não

tivesse que andar a moldá-lo aos meus desejos. Foi uma luta

feroz. Queria fugir mas sabia simultaneamente que era a

minha última hipótese de ser feliz. Ou pelo menos de ter o

que desejava. Não sabia já o que desejava... Por momentos

esquecia-me de mim e ouvia apenas aquelas mulheres que

ainda eram capazes de falar. Falavam, falavam, mas de

facto ninguém dizia nada. Algumas diziam mal de tudo.

Quem as ouvisse com atenção perceberia todas as

contradições e veria que todo o discurso tinha apenas a

função de as colocar já no nível das veteranas. Nestes casos

as veteranas já sabem imenso e ajudam as novatas...

Quanto a mim preferia as mulheres silenciosas que se

limitavam a sorrir, ou que diziam timidamente :"sim, é a

primeira vez"... ou que nem sequer diziam nada...

O nosso comando geral era conhecido por UNIDADE


PLURIDISCIPLINAR DE REPRODUÇÃO HUMANA, situava-se

num corredor escuro e tenebroso. A nós tratavam-nos por

FIVS.

Mal chegávamos faziam-nos uma série de testes para

verem se éramos saudáveis. Se não fossemos tratavam-nos.

A partir de determinado momento comandavam toda a

nossa existência, impediam-nos de tomar quaisquer drogas

e determinavam as nossas actividades dia a dia.

Entregavam-nos um papel que dizia: "Ciclo Terapêutico FIV",

que continha todas as informações necessárias para o

processo, pensavam eles... mas que na realidade não dizia


nada que não soubessemos já...

O primeiro grande momento, o primeiro em que

percebíamos que tudo estava a começar, era o momento do

cateterismo, ou seja, uma avaliação das características do

canal do colo do útero. Não era difícil de fazer, sentia-se

uma espécie de picada , respirava-se fundo e pronto, tudo

tinha já passado. Neste mesmo momento aproximadamente,

começava o ciclo regular e traumatizante de duas injecções

diárias que eram dadas por nós próprias. As primeiras foram

terríveis de dar. Eu costumava isolar-me, concentrar-me e

depois tentava picar a prega da barriga. ÀS vezes picava

cinco e seis vezes até conseguir. Passados dez dias já fazia

aquilo num abrir e fechar de olhos. Tudo na vida é de facto

uma questão de hábito... mesmo o sofrimento se pode

tornar um hábito...

A partir de determinada altura, todas as 5ªs feiras ia à


unidade. Já não sentia nem dizia nada. Fazia apenas o que

tinha a fazer. Um dia deram-me finalmente a pasta azul e

passei a ir todos os dias. O ritmo era sempre o mesmo.

Chegávamos e dirigiamo-nos ao laboratório, no piso 3 de

um determinado bloco. Aí era-nos extraído sangue, para

análise do estradiol. Quem o fazia era uma senhora que só

refilava e que nunca vi sorrir. De seguida descíamos ao piso

1, percorríamos um imenso corredor e voltávamos a subir ao

piso 3 de outro bloco. Dirigiamo-nos a um gabinete onde

pediamos a pasta azul e onde nunca ouvimos nenhuma

palavra em troca , mesmo que simpaticamente dissessemos


"bom dia". Voltavamos a descer ,desta vez ao piso O1, para

apanhar um elevador para o piso 5 de outro bloco, onde

teríamos que fazer uma Ecografia. Chegávamos aí o mais

tardar às 9 horas da manhã e só começavam a chamar

depois das 10.

No primeiro dia ainda aí fiquei à espera, depois

comecei a perceber como tudo funcionava e baldava-me. Às

vezes ia até à rua apanhar ar e sol, outras vezes passeava

por aqueles imensos corredores, imaginava-me num

labirinto e tentava sair. Frequentemente via gente em

sofrimento o que colocava imensas dúvidas à minha

existência. Mal sabemos o que cá andamos a fazer no meio

de toda esta confusão, teremos o direito de ousar sequer

desejar a propagação da espécie que será sempre uma

forma de propagar o sofrimento? Filosofar sobre a

existência é terrível... É como ouvir a Igreja censurar a

reprodução por processos científicos, vêm com aquela velha


história da reprodução como consequência de um acto de

amor... Deus disse: "Crescei e multiplicai-vos", mas e se o

acto de amor não gera nada não será um erro do Criador?

Não teremos o direito de pedir à ciência que cumpra essa

função divina? E a quantidade de crianças que nascem de

actos de amor e depois morrem de fome... Nada disso tem

lógica. Se imaginarmos que a inteligência humana provem

de Deus, e que a ciência é a conclusão lógica da inteligência

humana, então reprodução "IN VITRO" provem da mão de

Deus... a mim o que me incomoda mais é aquela ideia do

acto de amor... e quantas crianças nascem de actos de amor


que são estrafegadas à nascença... quantas nascem de

actos de amor para serem desprezadas toda a vida...

Finalmente obrigam-nos a sofrer de solidão. Misturam-

nos com gente que sofre, para podermos dar mais valor à

vida e às desilusões, isolam-nos durante uma noite e

obrigam-nos a dormir com fome.

A noite é longa, o sono difícil de conciliar, e depois de

muito pensar caimos de exaustão e quando nos lembramos

de novo que existimos, que estamos prontas a entrar na

linha final de produção, está já junto a nós uma mulher

fardada a dar-nos algo de incómodo que nos limpará as

vísceras. É então chegado o momento da toilette quotidiana.

Durante o duche lavo-me cuidadosamente como quem

prepara um lar para um recém-nascido. O nervosismo

aumenta. Não me lembro de mais nada até entrar para a

sala do aparatoso processo onde está muita gente que


nunca vi. Sinto que me mexem em todas as profundezas e

que de mim retiram algo para juntar a todas as sementes de

esperança.

Terminado o processo mandam-nos embora com a

sensação de que ali ficará algo de nós para sempre.

Temos quarenta e oito horas de incerteza, sem sequer

saber se lá voltaremos para concluir todo o processo.

Enquanto fazemos de conta que a nossa vida é normal,

seres especializados constroem o nosso futuro. Já nada

depende de nós, nada está nas nossas mãos. Quarenta e

oito horas de angústia...


Regressamos. O regresso só por si traz-nos, de novo,

alento... pode ser que sim, que seja desta... as

probabilidades são poucas mas nunca se sabe. Regressar só

por si já é uma hipótese... mais uma etapa vencida...

Mandam-nos para casa e pedem-nos descanso, nada de

esforços e nova medicação. Cumprimos tudo na incerteza,

privamos a vida do quotidiano real alimentados de

esperanças. O pensamento não pára mas reina apenas a

incerteza. Quase quinze dias de desespero e novo teste.

Horas de espera que se revestem de angústia. Que somos

nós afinal? Queremos que saibam que esperamos o

resultado final mas o mundo continua a girar como se não

existissemos.

Temos enfim a certeza que nem Deus, nem a ciência

farão nada por nós e que a FIV que julgámos um caminho

para a vida se tornou afinal a morte de sonhos e ideias. Mas

a vida faz-se e desfaz-se, é uma luta constante.

Por mais que nos preparemos nunca estamos

preparados para a desilusão e o sofrimento... por mais que

imaginemos a dor nunca perceberemos como é que ela nos

sufoca...

Caí em sofrimento mas consegui levantar-me e


continuarei a lutar pela vida que desejo... todos os dias,

todos os anos, até conseguir um caminho para a vida...

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