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Antologia de poemas

João Tiago Nota


Nº 12 10º F

Introdução
É muito difícil fazer uma antologia de poemas. Principalmente
dos nossos poemas preferidos. Os poemas que se podem encontrar
nesta antologia são aqueles que me marcam neste momento ou que
já me marcaram.
Para esta antologia tentei escolher o máximo de autores
possível, tentando não ir além de dois poemas por autor. Esta tarefa
foi-me algo complicada, pois apesar de conhecer poesia, tive de
reflectir bastante até encontrar todos os poemas. No final da
selecção, contudo, tive que escolher entre vários, pois a inspiração já
me tinha atingido.
Escolhi estes poemas por uma série de razões: a mensagem
que transmitem; o seu aspecto visual; o terem-me sido transmitidos
por pessoas da minha família; etc.
Tentei que estes poemas fossem variados, por isso juntei poetas
como Camões com poetas contemporâneos como António Gedeão e
também letras de músicas de grupos e cantores portugueses,
brasileiros e britânicos. Outra parte importante desta selecção é
também os poemas com versões declamadas por João Villaret. Mais
uma vez a música volta a ter lugar de destaque nesta antologia. Foi
também o conhecer os poemas declamados por João Villaret que me
levou a escolhê-los (entre outros factores). Um último aspecto
interessante desta antologia é a forma como diferentes facetas do
amor são retratadas nos poemas nela contidos.
Como nota final, explico que o índice encontra-se organizado
não por autor, mas por ordem alfabética do nome dos poemas. Deste
modo tentei evitar uma aglomeração de poemas por autor.

Amor é um fogo que arde sem se ver,


Amor é um fogo que arde sem se ver,
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem-querer;


É um andar solitário entre a gente;
É um nunca contentar-se de contente;
É um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade,


É servir a quem vence o vencedor,
É ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode seu favor


Nos corações humanos amizade
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Luís de Camões

Anti-Anne Frank

Esta criança esquálida,


de riso obsceno e olhares alucinados,
nunca apertou nas mãos a fria face pálida,
nunca sentiu, na escada, as botas dos soldados,
nunca enxugou as lágrimas que aniquilam e esgotam ,
nunca empalideceu com o metralhar de um tanque,
nem rastejou num sótão,
nem se chama Anne Frank.

Nunca escreveu diário nem nunca foi à escola,


nem despertou o amor dos editores piedosos.
Nunca estendeu as mãos em transes dolorosos
a não ser nos primores da técnica da esmola.

Batem-lhe, pisam-na, insultam-na, sem que ninguém


se importe.

E ela, raivosa e pálida,


morde, estrebucha, cospe, odeia até à morte.

Pobre criança esquálida!


Até no sofrimento é preciso ter sorte.

António Gedeão

De Tarde

Naquele piquenique de burguesas,


Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.
Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.
Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, inda o Sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão-de-ló molhado em malvasia.
Mas, todo púrpuro a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas!

Cesário Verde

Deslumbramentos

Milady, é perigoso contemplá-la


Quando passa aromática e normal,
Com seu tipo tão nobre e tão de sala,
Com seus gestos de neve e de metal.

Sem que nisso a desgoste ou desenfade,


Quantas vezes, seguindo-lhe as passadas,
Eu vejo-a, com real solenidade
Ir impondo toilettes complicadas!...

Em si tudo me atrai como um tesoiro:


O seu ar pensativo e senhoril,
A sua voz que tem um timbre de oiro
E o seu nevado e lúcido perfil!

Ah! Como me estonteia e me fascina…


E é, na graça distinta do seu porte,
Como a Moda supérflua e feminina,
E tão alta e serena como a Morte!...

Eu ontem encontrei-a, quando vinha,


Britânica, e fazendo-me assombrar;
Grande dama fatal, sempre sozinha,
E com firmeza e música no andar!

O seu olhar possui, num jogo ardente,


Um arcanjo e um demónio a iluminá-lo;
Como um florete fere agudamente,
E afaga como o pêlo de um regalo!

Pois bem. Conserve o gelo por esposo,


E mostre, se eu beijar-lhe as brancas mãos,
O modo diplomático e orgulhoso
Que Ana de Áustria mostrava aos cortesãos.

E enfim prossiga altiva como a Fama,


Sem sorrisos, dramática, cortante;
Que eu procuro fundir na minha chama
Seu ermo coração, como a um brilhante.

Mas cuidado, Milady, não se afoite,


Que hão-de acabar os bárbaros reais;
E os povos humilhados, pela noite,
Para a vingança aguçam os punhais.

E um dia, ó flor do Luxo, nas estradas,


E sob o cetim do Azul e as andorinhas,
Eu hei-de ver errar, alucinadas,
E arrastando farrapos – as Rainhas!

Cesário Verde
É pau, e rei dos paus, não marmeleiro,

É pau, e rei dos paus, não marmeleiro,


Bem que duas gamboas lhe lobrigo;
Dá leite, sem ser árvore de figo,
Da glande o fruto tem, sem ser sobreiro.

Verga, e não quebra, como o zambujeiro;


Oco, qual sabugueiro tem o umbigo;
Brando às vezes, qual vime, está consigo;
Outras vezes mais rijo que um pinheiro.

À roda da raiz produz carqueja:


Todo o resto do tronco é calvo e nu;
Nem cedro, nem pau santo mais negrejai
Para carvalho ser falta-lhe um u:
Adivinhem agora que pau seja,
E quem adivinhar meta-o no cu.

Bocage

Eu estou bem

Ele fez-me rir


Ele fez-me chorar
Ele fumava na cama
Mas eu estou bem
Eu estou bem
Já antes estive só
Pedi ao rapaz algumas palavras simpáticas
Ele deu-me um romance em troca
Mas eu estou bem
Eu estou bem
Já antes estive só
Está bem, está ok
Era errado de qualquer modo
Eu só queria dizer
Não é muito divertido quando estás a beber só para um
Ele ficou bêbedo
Ele caiu
Ele atirou algumas das minhas coisas
Mas eu estou bem
Eu estou bem
Já antes estive só

Gostava de acreditar que é fácil deixar


Mas tenho de me aperceber
Que onde quer que estejas, ainda guias o meu carro
Paus e pedras partem-me os ossos
Mas as lágrimas não deixam marcas
Por isso estou bem
Eu estou bem
Já antes estive só

Mmm…
Eu estou bem
Eu estou bem
Eu estou bem
Ele jogava Solitário na cama
Fazia bolhas de sabão na cama
Ela cantava músicas de Natal na cama

Madeleine Peyroux
Tradução de Ana Paula Gomes

Eu não sou boa a não ter aquilo que quero

Suponho que devia contar as minhas bênçãos


Para algo jovem o meu mundo não é muito mau
Tenho uma janela, um lugar com uma almofada e um amigo ou dois
Mas desde que vi a cara dele naquela manhã
Nada mais tem tido o mesmo brilho de Verão
Irá ele reparar que os meus olhos se tornaram tão sós?
Ele pode não ser o tal mas eu quero-o para mim e eu sei

Eu não sou boa a não ter aquilo que quero

Talvez eu soe como uma bebé mimada


Mas eu sei que há algumas que têm tudo
Quero juntar-me a elas, sentir aquele brilho à minha volta
Quero-o mais a cada dia, pois ele nunca olha para mim e eu sei

Eu não sou boa a não ter aquilo que quero

Se alguma vez nos encontrássemos juntos


Posso prometer que te amaria todos os dias
Mas tenho um pressentimento que ver é crer
Nunca fazes uma jogada por isso eu quero-te mais do que posso dizer

Sophie Ellis-Bextor
Tradução de Ana Paula Gomes

Já te Falei

Já te falei
Ouvi dizer por aí
Já gritei, telefonei, cantei por toda a cidade
Pelo beco, pelo meio da Avenida Central
no jardim
Já divulguei
Anunciei por aí
Por e-mail, por correio veio toda a verdade
Já mandei no megafone
pra toda a gente escutar
Notícia que se espalha
Paira em qualquer lugar
Li no outdoor, pus na canção,
deu no cinema
Que a vida vale a pena
Na matinê, no botequim,
na madrugada
Vida que vale a pena
Já escutei
E repeti por aí
Coloquei cartazes nos murais
de toda a cidade
Já berrei no microfone
a todo o volume no ar
Palavra que se espalha
Pluma no vendaval
Vi no gibi, foi por aí, li num poema
Que a vida vale a pena
Li no jornal, vi na TV, foi pela antena
Que a vida vale a pena
No futebol, no carnaval, na batucada
Vida que vale a pena

Rita Lee

Leilão

Leilão!
Leilão para acabar;
Leilão por qualquer preço;
Leilão de mim.
Quem que comprar um peito nu
Aberto a todos os olhares?
Olhares curiosos, ávidos, perversos…
E no meio do peito,
Hasteada a bandeira de cor toda vermelha
Com as seis letras da praxe todas brancas:
L-E-I-L-Ã-O!
Leilão destes meus olhos
Que abertos viram tudo
(Até quando fechados).
Que tanta vez disseram
(Até sem eu saber muita coisa que eu próprio ignorava!).
Que tanta lágrima alegre e triste já choraram.
Quem quer comprar o meu olhar vazio?
Quem o compra afinal por qualquer preço?
Quem quer comprar o olhar de um fracassado?...
Leilão!
Leilão da minha boca!
Leilão destes meus lábios que tanto amor gritaram,
Que tanto ódio calaram
E onde tanta poesia ardeu em chama.
Meus lábios, pobrezinhos,
Agora quase frios
E onde nenhum só já chora
Ou clama.
Leilão…
Leilão de duas mãos que abertas deram tudo:
Carícias de Sol e de veludo
E gestos de renúncia e de perdão.
Quem quer comprar as minhas mãos vazias
Que hoje dizem o último adeus a acenar.
Quem é que as compra?
Quem as quer ainda?
Leilão!
Leilão de mim, da minha vida!
E para acabar, a peça principal:
O meu coração.
Quem quer comprar um coração vazio
Que viveu a pulsar cheio de amor.
Onde todos os pecados demoraram,
Desde o mais torpe ao mais sublime;
Onde todos os vícios ficaram,
Desde a renúncia até ao próprio crime…
Meu coração foi maior que a Estrela
E bem menor que um sorriso vulgar da multidão.
Quanto é que vale?
Quanto é que dão ainda?!
Ninguém dá nada por este vil despojo?
Se até eu próprio dele sinto nojo.
Leilão!
Leilão…

João Villaret
Menina Gorda

Esta menina gorda, gorda, gorda,


Tem um pequenino coração sentimental.
Seu rosto é redondo, redondo, redondo;
Toda ela é redonda, redonda, redonda,
E os olhinhos estão lá no fundo a brilhar.

É menina e moça.
Terá quinze anos?
Umas velhas amigas de sua mamãe
Dizem sempre que a encontram, num êxtase longo:
“Como esta menina está gorda, bonita!”
“Como esta menina está gorda, bonita!”
E ela ri de prazer.

Seu rosto redondo


Esconde os olhinhos no fundo,
a brilhar.
Às vezes no quarto,
Diante do espelho;
Ao ver-se tão gorda, tão gorda, tão gorda,
Ela pensa nas velhas amigas de sua mamãe
E também num rapaz
Que a olha sorrindo,
Quando toda manhã ela vai para a escola:
“– Ele gosta de mim… Ele gosta de mim.
Eu sou gorda, bonita…”
E os dedos gordinhos pegando nas tranças
Têm carícias ingénuas
Diante do espelho.

Couto Ribeiro
Não posso ter tudo

digo a mim mesma que não te posso ter, é algo que vou ignorar, digo
a mim mesma que não te preciso, mas caio caio outra vez e todos os
dias é mais difícil erguer o meu coração, digo-o uma vez e outra, tu
não podes ter tudo não podes ter tudo, sonho que me trazes o teu
amor, só nos meus sonhos não chega, continuo a dizer a mim mesma
a dizer a mim mesma não posso ter não posso ter tudo, não posso ter
tudo, continuo a dizer a mim mesma, não posso ter tudo, não te
posso ter e agora estou a aprender a viver, a aprender a viver, estou
a aprender a viver sem ter o teu amor em troca não posso ter tudo
mas tudo o que quero és tu, tu permaneces no crepúsculo, com olhos
que olham mas não vêem, como eu sou um livro aberto, e tu um
cadeado sem chave, desejo todas as manhãs que a dor por ti já não
seja, não posso ter tudo és tudo o que eu quero, porque não ouço
quando os ouço a dizer ‘estás melhor sem um coração que está a
partir-se’, embora seja tola para amar quando não me queres sou
sábia para saber que vais sempre assombrar-me

Sophie Ellis-
Bextor

Tradução de Ana Paula


Gomes
O GÉNESIS

Jeová por alcunha - o Padre Eterno,


Deus muitíssimo padre e muito pouco eterno,
Teve uma ideia suja, uma ideia infeliz:
Pôs-se a esgravatar co’o dedo no nariz,
Tirou desse nariz o que o nariz encerra,
Deitou isso depois cá baixo, e fez-se a Terra.
Em seguida tirou da cabeça o chapéu.
Pô-lo em cima da Terra, e zás, formou o céu.
Mas o chapéu azul do Padre Omnipotente
Era um velho penante, um penante indecente,
Já muito carcomido e muito esburacado,
E eis aí porque o Céu ficou todo estrelado.
Depois o Criador (honra lhe seja feita!)
Achou a sua obra uma obra imperfeita,
Mundo sarrafaçal, globo de fancaria,
Que nem um aprendiz de Deus assinaria,
E furioso escarrou no mundo sublunar,
E a saliva ao cair na Terra fez o mar.
Depois, para que a igreja arranjasse entre os povos
Com bulas da cruzada, alguns cruzados novos,
E Tartufo pudesse inda dessa maneira
Jejuar, sem comer de carne à sexta-feira,
Jeová fez então para a crença devota
A enguia, o bacalhau e a pescada-marmota.
Em seguida meteu a mão pelo sovaco,
Mais profundo e maior que a caverna de Caco,
E arrancando de lá parasitas estranhos,
De toda a qualidade e todos os tamanhos,
Lançou-os sobre a Terra, e deste modo insonte
Fez ele o megatério e fez o mastodonte.
Depois, para provar em suma quanto pode
Um Criador, tirou dois pêlos do bigode,
Cortou-os em milhões e milhões de bocados,
(Obra em que ele estragou quatrocentos machados)
Dispersou-os no globo, e foi desta maneira
Que nasceu o carvalho, o plátano e a palmeira.
..............................................................................
Por fim com barro vil, assombro da olaria!
O que é que imaginais que o Criador faria?
Um pote? não; um bicho, um bípede com rabo,
A que uns chamam Adão e outros Simão. Ao cabo
O pobre Criador sentindo-se já fraco,
(Coitado, tinha feito o universo e um macaco
Em seis dias!) pensou: Deixemo-nos de asneiras,
Trago já uma dor horrível nas cadeiras,
Fastio... Isto dá cabo até de uma pessoa...
Nada, toca a dormir uma sonata boa! -
Descalçou-se, tirou os óculos e o chinó,
Pitadeou com delícia alguns trovões em pó,
Abriu, para cair num sono repentino,
O alfarrábio chamado o livro do Destino,
E enflanelando bem a carcaça caduca,
Com o barrete azul-celeste até à nuca,
Fez ortodoxamente o seu sinal da cruz
Como qualquer de nós, tossiu, soprou à luz,
E de pança pró ar, num repoiso bendito,
Espojou-se, estirou-se ao longo do infinito
Num imenso enxergão de névoa e luz doirada.
E até hoje, que eu saiba, inda não fez mais nada.

Guerra Junqueiro
O MELRO

O melro, eu conheci-o:
Era negro, vibrante, luzidio,
Madrugador, jovial;
Logo de manhã cedo
Começava a soltar, dentre o arvoredo,
Verdadeiras risadas de cristal.
E assim que o padre-cura abria a porta
Que dá para o passal,
Repicando umas finas ironias,
O melro; dentre a horta,
Dizia-lhe: "Bons dias!"
E o velho padre-cura
Não gostava daquelas cortesias.

O cura era um velhote conservado,


Malicioso, alegre, prazenteiro;
Não tinha pombas brancas no telhado,
Nem rosas no canteiro:
Andava às lebres pelo monte, a pé,
Livre de reumatismos,
Graças a Deus, e graças a Noé.
O melro desprezava os exorcismos
Que o padre lhe dizia:
Cantava, assobiava alegremente;
Até que ultimamente
O velho disse um dia:

"Nada, já não tem jeito! este ladrão


Dá cabo dos trigais!
Qual seria a razão
Por que Deus fez os melros e os pardais?!"

E o melro entretanto,
Honesto como um santo,
Mal vinha no oriente
A madrugada clara,
Já ele andava jovial, inquieto,
Comendo alegremente, honradamente,
Todos os parasitas da seara
Desde a formiga ao mais pequeno insecto.
E apesar disto, o rude proletário,
O bom trabalhador,
Nunca exigiu aumento de salário.
Que grande tolo o padre confessor!

Foi para a eira o trigo;


E, armando uns espantalhos,
Disse o abade consigo:
"Acabaram-se as penas e os trabalhos."
Mas logo de manhã, maldito espanto!
O abade, inda na cama,
Ouvindo do melro o costumado canto,
Ficou ardendo em chama;
Pega na caçadeira,
Levanta-se dum salto,
E vê o melro, a assobiar, na eira,
Em cima do seu velho chapéu alto!

Chegou a coisa a termo


Que o bom do padre-cura andava enfermo;
Não falava nem ria,
Minado por tão íntimo desgosto;
E o vermelho oleoso do seu rosto
Tornava-se amarelo dia a dia.
E foi tal a paixão, a desventura
(Muito embora o leitor não me acredite),
Que o bom do padre-cura
Perdera o apetite!

Andando no quintal, um certo dia,


Lendo em voz alta o Velho Testamento,
Enxergou por acaso (que alegria!
Que ditoso momento!)
Um ninho com seis melros, escondido
Entre uma carvalheira.

E ao vê-los exclamou enfurecido:

"A mãe comeu o fruto proibido;


Esse fruto era minha sementeira:
Era o pão, e era o milho;
Transmitiu-se o pecado.
E, se a mãe não pagou, que pague o filho.
É doutrina da Igreja. Estou vingado!"

E, engaiolando os pobres passaritos,


Soltava exclamações:
"É uma praga. Malditos!
Dão me cabo de tudo esses ladrões!
Raios os partam! Andai lá que enfim"

E deixando a gaiola pendurada,


Continuou a ler o seu latim,
Fungando uma pitada.

Vinha tombando a noite silenciosa;


E caía por sobre a natureza
Uma serena paz religiosa,
Uma bela tristeza
Harmónica, viril, indefinida.
A luz crepuscular
Infiltra-nos na alma dorida
Um misticismo heróico e salutar.
As árvores, de luz inda doiradas,
Sobre os montes longínquos, solitários,
Tinham tomado as formas rendilhadas
Das plantas dos herbários.
Recolhiam-se a casa os lavradores.
Dormiam virginais as coisas mansas:
Os rebanhos e as flores,
As aves e as crianças.

Ia subindo a escada o velho abade;


A sua negra, atlética figura,
Destacava na frouxa claridade,
Como uma nódoa escura.
E, introduzindo a chave no portal,
Murmurou entre dentes:

"Tal e qual tal e qual!


Guisados com arroz são excelentes."

******
Nasceu a Lua. As folhas dos arbustos
Tinham o brilho meigo, aveludado,
Do sorriso dos mártires, dos justos.
Um eflúvio dormente e perfumado
Embebedava as seivas luxuriantes.
Todas as forças vivas da matéria
Murmuravam diálogos gigantes
Pela amplidão etérea.
São precisos silêncios virginais,
Disposições simpáticas, nervosas,
Para ouvir falar estas falas silenciosas
Dos mundos vegetais.
As orvalhadas, frescas espessuras,
Pressentiam-se quase a germinar.
Desmaiavam-se as cândidas verduras
Nos magnetismos brancos do luar.
..................................................
..................................................
E nisto o melro foi direito ao ninho.
Para o agasalhar, andou buscando
Umas penugens doces como arminho,
Um feltrozito acetinado e brando.
Chegou lá, e viu tudo.
Partiu como uma frecha; e, louco e mudo,
Correu por todo o matagal; em vão!
Mas eis que solta de repente um grito
Indo encontrar os filhos na prisão.

"Quem vos meteu aqui?!" O mais velho,


Todo tremente, murmurou então:

"Foi aquele homem negro. Quando veio,


Chamei, chamei Andavas tu na horta
Ai que susto, que susto! ele é tão feio!
Tive-lhe tanto medo! Abre esta porta
E esconde-nos debaixo da tua asa!
Olha, já vão florindo as açucenas;
Vamos a construir a nossa casa
Num bonito lugar
Ai! quem me dera, minha mãe, ter penas
Para voar, voar!"

E o melro alucinado
Clamou:

"Senhor! senhor!
É porventura crime ou é pecado
Que eu tenha muito amor
A estes inocentes?!
Ó natureza, ó Deus, como consentes
Que me roubem assim os meus filhinhos,
Os filhos que eu criei!
Quanta dor, quanto amor, quantos carinhos,
Quanta noite perdida
Nem eu sei...
E tudo, tudo em vão!
Filhos da minha vida
Filhos do coração!!!
Não bastaria a natureza inteira,
Não bastaria o Céu par voardes,
E prendem-vos assim desta maneira!
Covardes!
A luz, a luz, o movimento insano,
Eis o aguilhão, a fé que nos abrasa
Encarcerar a asa
É encarcerar o pensamento humano.
A culpa tive-a eu! Quase à noitinha
Parti, deixei-os sós
A culpa tive-a eu, a culpa é minha,
De mais ninguém! Que atroz!
E eu devia sabê-lo!
Eu tinha obrigação de adivinhar
Remorso eterno! eterno pesadelo!
.................................................

Falta-me a luz e o ar! Oh, quem me dera


Ser abutre ou fera
Para partir o cárcere maldito!
E como a noite é límpida e formosa!
Nem um ai, nem um grito
Que noite triste! oh, noite silenciosa!"

E a natureza fresca, omnipotente,


Sorria castamente
Com o sorriso alegre dos heróis.
Nas sebes orvalhadas,
Entre folhas luzentes como espadas,
Cantavam rouxinóis.

Os vegetais felizes
Mergulhavam as sôfregas raízes
A procurar na terra as seivas boas,
Com a avidez e as raivas tenebrosas
Das pequeninas feras vigorosas
Sugando à noite os peitos das leoas.
A Lua triste, a Lua merencória,
Desdémona marmórea,
Rolava pelo azul da imensidade,
Imersa numa luz serena e fria,
Branca como a harmonia,
Pura como a verdade.
E entre a luz do luar e os sons das flores,
Na atonia cruel das grandes dores,
O melro solitário
Jazia inerte, exânime, sereno,
Bem como outrora o Nazareno
Na noite do calvário!

Segundo o seu costume habitual,


Logo de madrugada
O padre-cura foi para o quintal,
Levando a Bíblia e sobraçando a enxada.
Antes de dizer missa,
O velho abade inevitavelmente
Tratava da hortaliça
E rezava a Deus Padre Omnipotente
Vários trechos latinos,
Salvando desta forma, juntamente,
As ervilhas, as almas e os pepinos.

E já de longe ia bradando:

"Olé!
Dormiram bem? Estimo
Eu lhes darei o mimo,
Canalha vil, grandíssima ralé!
Então vocês, seus almas do Diabo,
Julgam que isto que era só dar cabo
Da horta e do pomar,
E o bico alegre e estômago contente,
E o camelo do cura que se aguente,
Que engrole o seu latim e vá bugiar!
Grandes larápios! Era o que faltava
Vocês irem ao milho,
E a mim mandar-me à fava!
Pois muito bem, agora que vos pilho
Eu vos ensinarei, meus safardanas!
Vocês são mariolões, são ratazanas,
Têm bico, é certo, mas não têm tonsura
E, nas manhas, um melro nunca chega
Às manhas naturais de um padre-cura.
O melhor vinho que encontrar na adega
É para hoje, olé! Que bambochata!
Que petisqueira! Melros com chouriço!
E então a Fortunata
Que tem um dedo e jeito para isso!
Hei-de comer-vos todos um a um,
Lambendo os beiços, com tal gana enfim,
Que comendo-vos todos, mesmo assim
Eu fico ainda quase em jejum!
E depois de vos ter dentro da pança,
Depois de vos jantar,
Vocês verão como o velhote dança,
Como ele é melro e sabe assobiar!"

Mas nisto o padre-cura, titubeante,


Quase desfalecendo,
Atónito de horror, parou diante
Deste drama estupendo:

O melro, ao ver aproximar o abade,


Despertou da atonia,
Lançando-se furioso contra a grade
Do cárcere. Torcia,
Para os partir os ferros da prisão,
Crispando as unhas convulsivamente
Com a fúria dum leão.
Batalha inútil, desespero ardente!
Quebrou as garras, depenou as asas
E alucinado, exangue,
Os olhos como brasas,
Herói febril, a gotejar em sangue,
Partiu num voo arrebatado e louco,
Trazendo, dentro em pouco,
Preso do bico, um ramo de veneno.
E belo e grande e trágico e sereno,
Disse:
"Meus filhos, a existência é boa
Só quando é livre. A liberdade é a lei,
Prende-se a asa mas a alma voa
Ó filhos, voemos pelo azul! Comei!" –

E mais sublime do que Cristo, quando


Morreu na Cruz, maior do que Catão,
Matou os quatro filhos, trespassando
Quatro vezes o próprio coração!
Soltou, fitando o abade, uma pungente
Gargalhada de lágrima, de dor,
E partiu pelo espaço heroicamente,
Indo cair, já morto, de repente
Num carcavão com silveiras em flor.

E o velho abade, lívido d'espanto,


Exclamou afinal:
"Tudo o que existe é imaculado e é santo!
Há em toda a miséria o mesmo pranto
E em todo o coração há um grito igual.
Deus semeou d'almas o universo todo.
Tudo que o vive ri e canta e chora
Tudo foi feito com o mesmo lodo,
Purificado com a mesma aurora.
Ó mistério sagrado da existência,
Só hoje te adivinho,
Ao ver que a alma tem a mesma essência,
Pela dor, pelo amor, pela inocência,
Quer guarde um berço, quer proteja um ninho!
Só hoje sei que em toda a criatura,
Desde a mais bela até à mais impura,
Ou numa pomba ou numa fera brava,
Deus habita, Deus sonha, Deus murmura!
............................................................
Ah, Deus é bem maior do que eu julgava"

E quedou silencioso. O velho mundo,


Das suas crenças antigas, num momento,
Viu-o sumir exausto, moribundo,
Nos abismos sem fundo
Do temeroso mar do Pensamento.
E chorou e chorou A Igreja, a Crença,
Rude montanha, pavorosa, escura,
Que enchia o globo com a sombra imensa
Dos seus setenta séculos d'altura;
O Himalaia de dogmas triunfantes,
Mais eternos que o bronze e que o granito,
Onde aos profetas Deus falava dantes,
Entre raios e nuvens trovejantes,
Lá dos confins sidéreos do infinito;
Esse colosso enorme, em dois instantes
Viu-o tremer, fender-se e desabar
Numa ruína espantosa,
Só de tocar-lhe a asa vaporosa
Duma avezinha trémula, a expirar!
.................................................
.................................................
E, arremessando a Bíblia, o velho abade
Murmurou:
"Há mais fé e há mais verdade,
Há mais Deus com certeza
Nos cardos secos dum rochedo nu
Que nessa Bíblia antiga Ó Natureza,
A única Bíblia verdadeira és tu!..."

Guerra Junqueiro

Os Balõesinhos

Esta é a história de dois garotos que todas as tardes


compravam dois balõesinhos cor-de-rosa numa rua popular de um
bairro de Lisboa:

Dois miúdos,
Ele e Ela,
Durante dois ou três Verões
Aquilo era de tabela:
À tardinha,
Dois
Balões.
Mas que coisa mais jeitosa,
Vê-los na rua depois
Com dois balões cor-de-rosa
Às marradinhas os dois.
Balãosinho, balãosinho,
Não há graça como a tua.
Balãosinho, balãosinho
Redondinho como a Lua.
Lá casaram certo dia.
Estive meses sem os ver;
O parzinho não saía,
Por ter muito que fazer…
Tempos depois, quando os vi,
Acenei-lhes com carinho.
Ela cora,
Ele sorri:
Já se vê um balãosinho…
Balãosinho, balãosinho,
Não há graça como a tua.
Balãosinho, balãosinho
Redondinho como a Lua.

João Villaret

Pequena Morte

Morrer de amor, morrer devagar


E ressuscitar
Morrer um pouco, nascer outra vez
Reviver talvez
Fala comigo desconhecido
Tão diferente e tão parecido

Filme de amor com beijo no fim


Em Technicolor
Último aviso, partida iminente
Frio Morno Quente
Último embarque rumo ao Paraíso
Primeiro dente do siso
Não me abandones nesta margem
Eu sou parte da viagem
Morrer de amor, morrer devagar
E ressuscitar
Morrer um pouco, nascer outra vez
Reviver talvez
Fala comigo desconhecido
Tão diferente e tão parecido
Perto de mim, mais longe do corpo
No lugar do morto
Vira-me do avesso, amor
Corta-me aos pedaços
Eu cresço e desapareço
Seguindo os meus próprios passos
Eu cresço e desapareço
Não me abandones nesta margem
Eu sou parte da viagem
Capitão Coração
Sempre fora de mão
Morrer de amor, morrer devagar
Filme de Amor com beijo no Fim
Em Technicolor

Clã

Procissão

Vou-vos dizer “Procissão”, festa na aldeia:

Tocam os sinos na torre da igreja,


Há rosmaninho e alecrim pelo chão.
Na nossa aldeia que Deus a proteja!
Vai passar a procissão.

Mesmo na frente, marchando a compasso,


De fardas novas, vem o solidó.
Quando o regente lhe acena com o braço,
Logo o trombone faz pó-pó-pó, pó-pó-pó-pó!

Olha os bombeiros, tão bem alinhados!


Que se houver fogo vai tudo num fole.
Trazem ao ombro brilhantes machados,
E os capacetes rebrilham ao sol.

Tocam os sinos na torre da igreja,


Há rosmaninho e alecrim pelo chão.
Na nossa aldeia que Deus a proteja!
Vai passando a procissão.
Olha os irmãos da nossa confraria!
Muito solenes nas opas vermelhas!
Ninguém supôs que nesta aldeia havia
Tantos bigodes e tais sobrancelhas!

Ai, que bonitos que vão os anjinhos!


Com que cuidado os vestiram em casa!
Um deles leva a coroa de espinhos.
E o mais pequeno perdeu uma asa!

Tocam os sinos na torre da igreja,


Há rosmaninho e alecrim pelo chão.
Na nossa aldeia que Deus a proteja!
Vai passando a procissão.

Pelas janelas, as mães e as filhas,


As colchas ricas, formando troféu.
E os lindos rostos, por trás das mantilhas,
Parecem anjos que vieram do Céu!

Com o calor, o Prior vai aflito.


E o povo ajoelha ao passar o andor.
Não há na aldeia nada mais bonito
Que estes passeios de Nosso Senhor!

Tocam os sinos na torre da igreja,


Há rosmaninho e alecrim pelo chão.
Na nossa aldeia que Deus a proteja!
Já passou a procissão.

António Lopes Ribeiro


Saluti a Vincenzo

Isto de a gente sorrir, de cabeça inclinada


sobre o ombro direito,
para uma tela sarapintada
sem forma nem jeito,
só porque tem luz,
só porque tem cor,
é signo de graça,
é sinal de amor.

António Gedeão
Sete anos de pastor Jacob servia

Sete anos de pastor Jacob servia


Labão, pai de Raquel, serrana bela;
Mas não servia ao pai, servia a ela,
E a ela só por prémio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,


Passava, contentando-se com vê-la;
Porém o pai, usando de cautela
Em lugar de Raquel lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos


Lhe fora assim negada a sua pastora,
Como se a não tivera merecida,

Começa de servir outros sete anos,


Dizendo: - Mais servira, se não fora
Para tão longo amor tão curta a vida.

Luís de Camões
Toada de Portalegre

Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros;
Morei numa casa velha,
Velha, grande, tôsca e bela,
À qual quis como se fôra
Feita para eu morar nela…

Cheia dos maus e bons cheiros


Das casas que têm história,
Cheia da ténue, mas viva, obsidiante memória
De antigas gentes e traças,
Cheia de sol nas vidraças
E de escuro nos recantos,
Cheia de mêdo e sossego,
De silêncios e de espantos,
- Quis-lhe como se fôra
Tão feita ao gôsto de outrora
Como ao do meu aconchêgo.

Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De montes e de oliveiras,
Do vento suão queimada,
(Lá vem o vento suão!,
Que enche o sono de pavores,
Faz febre, esfarela os ossos,
Dói nos peitos sufocados,
E atira aos desesperados
A corda com que se enforcam
Na trave de algum desvão…)
Em Portalegre, dizia,
Cidade onde então sofria
Coisas que terei pudor
De contar seja a quem fôr,
Na tal casa tôsca e bela
À qual quis como se fôra
Feita para eu morar nela,
Tinha, então,
Por única diversão,
Uma pequena varanda
Diante duma janela.

Tôda aberta ao sol que abraza,


Ao frio que tolhe e gela
E ao vento que anda, desanda,
E sarabanda, e ciranda
Derredor da minha casa,
Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros;
Era uma bela varanda,
Naquela bela janela!

Serras deitadas nas nuvens,


Vagas e azúis da distância,
Azúis, cinzentas, lilases,
Já roxas quando mais perto,
Campos verdes e amarelos,
Salpicados de oliveiras,
E que o frio, ao vir, despia,
Rasava, unia
Num mesmo ar de deserto
Ou de longínquas geleiras,
Céus que lá em cima, estrelados,
Boiando em lua, ou fechados
Nos seus turbilhões de trevas,
Pareciam engulir-me
Quando, fitando-os suspenso
Daquele silêncio imenso,
Sentia o chão a fugir-me,
- Se abriam diante dela
Daquela
Bela
Varanda
Daquela
Minha
Janela,
Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros;
Na casa em que morei, velha,
Cheia dos maus e bons cheiros
Das casas que têm história,
Cheia da ténue, mas viva, obsidiante memória
De antigas gentes e traças,
Cheia de sol nas vidraças
E de escuro nos recantos,
Cheia de mêdo e sossego,
De silêncios e de espantos,
À qual quis como se fôra
Tão feita ao gôsto de outrora
Como ao do meu aconchêgo…

Ora agora,
Que havia o vento suão
Que enche o sono de pavores,
Faz febre, esfarela os ossos,
Dói nos peitos sufocados,
E atira aos desesperados
A corda com que se enforcam
Na trave de algum desvão,
Que havia o vento suão de se lembrar de fazer?

Em Portalegre, dizia,
Cidade onde então sofria
Coisas que terei pudor
De contar seja a quem fôr,
Que havia o vento suão
De fazer,
Senão trazer
Àquela
Minha
Varanda
Daquela
Minha
Janela,
O documento maior
De que Deus
É protector
Dos seus
Que mais faz sofrer?

Lá num craveiro, que eu tinha,


Onde uma cepa cansada
Mal dava cravos sem vida,
Poisou qualquer sementinha
Que o vento que anda, desanda,
E sarabanda, e ciranda
Achara no ar perdida,
Errando entre terra e céus…,
E, louvado seja Deus!,
Eis que uma fôlha miüdinha
Rompeu, cresceu, recortada,
Furando a cepa cansada
Que dava cravos sem vida
Naquela
Bela
Varanda
Daquela
Minha
Janela
Da tal casa tôsca e bela
À qual quis como se fôra
Feita para eu morar nela…

Como é que o vento suão


Que enche o sono de pavores,
Faz febre, esfarela os ossos,
Dói nos peitos sufocados,
E atira aos desesperados
A corda com que se enforcam
Na trave de algum desvão,
Me trouxe a mim que, dizia,
Em Portalegre sofria
Coisas que terei pudor
De contar seja a quem fôr,
Me trouxe a mim essa esmola,
Êsse pedido de paz
Dum Deus que fere… e consola
Com o próprio mal que faz?

Coisas que terei pudor


De contar seja a quem fôr
Me davam então tal vida
Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros;
Me davam então tal vida
- Não vivida!, sim morrida
No tédio e no desespêro,
No espanto e na solidão,
Que a corda dos derradeiros
Desejos dos desgraçados
Por noites do tal suão
Já várias vezes tentara
Meus dedos verdes suados…

Senão quando o amor de Deus


Ao vento que anda, desanda,
E sarabanda, e ciranda,
Confia uma sementinha
Perdida entre terra e céus,
E o vento a traz à varanda
Daquela
Minha
Janela
Da tal casa tôsca e bela
À qual quis como se fôra
Feita para eu morar nela!

Lá no craveiro, que eu tinha,


Onde uma cepa cansada
Mal dava cravos sem vida,
Nasceu essa acàciazinha
Que depois foi transplantada
E cresceu, dom do meu Deus!,
Aos pés lá da estranha casa
Do largo do cemitério,
Frente aos ciprestes que em frente
Mostram os céus,
Como dedos apontados
De gigantes enterrados…

Quem desespera dos homens,


Se a alma lhe não secou,
A tudo transfere a esperança
Que a humanidade frustrou
E é capaz de amar as plantas,
De esperar nos animais,
De humanizar coisas brutas,
E ter criancices tais,
Tais e tantas!,
Que será bom ter pudor
De as contar seja a quem fôr!

O amor, a amizade, e quantos


Mais sonhos de oiro eu sonhara,
Bens deste mundo!, que o mundo
Me levara,
De tal maneira me tinham,
Ao fugir-me,
Deixado só, nulo, vácuo,
A mim, que tanto esperara
Ser fiel,
E forte,
E firme,
Que não era mais que morte
A vida que então vivia,
Auto-cadáver…

E era então que sucedia


Que em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros;
Aos pés lá da casa velha
Cheia dos maus e bons cheiros
Das casas que têm história,
Cheia da ténue, mas viva, obsidiante memória
De antigas gentes e traças,
Cheia de sol nas vidraças
E de escuro nos recantos,
Cheia de mêdo e sossego,
De silêncios e de espantos,
- A minha acácia crescia.

Vento suão!, obrigado


Pela dôce companhia
Que em teu hálito empestado,
Sem eu sonhar, me chegava!

E a cada raminho novo


Que a tenra acácia deitava,
Será loucura!..., mas era
Uma alegria
Na longa e negra apatia
Daquela miséria extrema
Em que vivia,
E vivera,
Como se fizera um poema,
Ou se um filho me nascera.

José Régio

Vamos Esta Noite

Vamos
Para a Montanha-Russa
Vamos
Ao Carrossel
Vamos
Subir o Pão de Açúcar
Vamos juntos
Lamber o Céu

Vamos
Dançar até cair, ir
Juntos vamos
Morrer de rir

Esta noite é só pra nós


Hoje não terá depois
Hoje não terá porquês
Esta noite é pra vocês
Virem comigo
Até ao fim
Para o fim do Mundo

Vamos
Perder a hora certa
Vamos
Pisar no chão
Vamos
Deixar a porta aberta
Juntos vamos
Para Plutão

Hoje não terá amanhã


Hoje o Mundo é nosso clã
Hoje não terá talvez
Esta noite é pra vocês
Virem junto
Até ao Fim do Fim de tudo

Clã

Vou dar de beber à dor

Foi no domingo passado que passei


À casa onde vivia a Mariquinhas.
Mas está tudo tão mudado
Que não vi em nenhum lado,
As tais janelas que tinham tabuinhas.
Do rés-do-chão ao telhado
Não vi nada, nada, nada
Que pudesse recordar-me a Mariquinhas.
E há um vidro quebrado e isolado
Onde havia as tabuinhas.

Entrei e onde era a sala agora está


À secretária um sujeito que é lingrinhas.
Mas não vi colchas com barra,
Nem viola nem guitarra,
Nem espreitadelas furtivas das vizinhas.
O tempo cravou a garra
Na alma daquela casa
Onde às vezes petiscávamos sardinhas;
Quando em noites de guitarra e de farra
Estava alegre a Mariquinhas.

As janelas tão garridas que ficavam


Com cortinados de chita às pintinhas,
Perderam de todo a graça
Porque é hoje uma vidraça
Com cercaduras de lata às voltinhas.
E lá p'ra dentro quem passa
Hoje p'ra ir aos penhores
Entregar ao usuário umas coisinhas.
Pois chega a esta desgraça toda a graça
Da casa da Mariquinhas.

P'ra terem feito da casa o que fizeram,


Melhor fora que a mandassem p'rás alminhas
Pois ser casa de penhor
O que foi viveiro de amor,
É ideia que não cabe cá nas minhas.
Recordações de calor
E das saudades o gosto
Eu vou procurar esquecer…
Numas ginjinhas.
Pois dar de beber à dor é o melhor
Já dizia a Mariquinhas.
Alberto Janes

Conclusão

Estes foram os poemas que escolhi. Embora alguns deles


possam ser lugares-comuns, gosto deles devido à visão que dão
sobre alguns factores da vida; da própria vida e de simples
acontecimentos.
Tal como tinha dito na introdução, quando terminei esta
selecção de poemas, tinha já poemas a mais seleccionados, por isso
tive que optar. Os outros, ficam para outra antologia.

Índice

Introdução

1.Amor é um fogo que arde sem se ver


2.Anti-Anne Frank
3.De Tarde
4.Deslumbramentos
5.É pau, e rei dos paus, não marmeleiro
6.Eu estou bem
7.Eu não sou boa a não ter aquilo que quero
8.Já te Falei
9.Leilão (Reformatação)
10.Menina Gorda (Reformatação)
11.Não posso ter tudo
12.O Génesis
13.O Melro
14.Os Balõesinhos (Reformatação)
15.Pequena Morte
16.Procissão (Reformatação)
17.Saluti a Vincenzo
18.Sete anos de pastor Jacob servia
19.Toada de Portalegre
20.Vamos esta noite

Poema Bónus:
21.Vou dar de beber à dor (Reformatação)

Conclusão

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