No proposto ensaio teórico, compreendemos que a polissemia do termo “esporte” tende a contribuir para uma visão generalizada de “esportivização” das práticas corporais, dificultando o desenvolvimento de processos educativos por meio dessas práticas. Na educação ambiental, essa realidade fica evidente pela predominância de práticas de esportes integradas a uma natureza “distante”, nas quais se espera que o ser humano desenvolva uma consciência “ecologicamente correta”, visão simplista e preservacionista, que contribui para uma relação fragmentária entre ser-humano e mundo. Nesse sentido, utilizaremos preferencialmente a nomenclatura ecomotricidade, definida como práticas corporais desenvolvidas com intencionalidade, relacionada a processos educativos de reconhecimento das relações ser humano-meio ambiente, que primam pela sinergia entre educação ambiental, motricidade humana e pedagogia dialógica. Nesse ensaio desenvolvemos essa sinergia no plano teórico, abrindo um caminho para futuros estudos que pretendam desenvolver essa proposta na prática.
Original Title
Ecomotricidade: sinergia entre educação ambiental, motricidade humana e pedagogia dialógica (Motriz, 2009)
No proposto ensaio teórico, compreendemos que a polissemia do termo “esporte” tende a contribuir para uma visão generalizada de “esportivização” das práticas corporais, dificultando o desenvolvimento de processos educativos por meio dessas práticas. Na educação ambiental, essa realidade fica evidente pela predominância de práticas de esportes integradas a uma natureza “distante”, nas quais se espera que o ser humano desenvolva uma consciência “ecologicamente correta”, visão simplista e preservacionista, que contribui para uma relação fragmentária entre ser-humano e mundo. Nesse sentido, utilizaremos preferencialmente a nomenclatura ecomotricidade, definida como práticas corporais desenvolvidas com intencionalidade, relacionada a processos educativos de reconhecimento das relações ser humano-meio ambiente, que primam pela sinergia entre educação ambiental, motricidade humana e pedagogia dialógica. Nesse ensaio desenvolvemos essa sinergia no plano teórico, abrindo um caminho para futuros estudos que pretendam desenvolver essa proposta na prática.
No proposto ensaio teórico, compreendemos que a polissemia do termo “esporte” tende a contribuir para uma visão generalizada de “esportivização” das práticas corporais, dificultando o desenvolvimento de processos educativos por meio dessas práticas. Na educação ambiental, essa realidade fica evidente pela predominância de práticas de esportes integradas a uma natureza “distante”, nas quais se espera que o ser humano desenvolva uma consciência “ecologicamente correta”, visão simplista e preservacionista, que contribui para uma relação fragmentária entre ser-humano e mundo. Nesse sentido, utilizaremos preferencialmente a nomenclatura ecomotricidade, definida como práticas corporais desenvolvidas com intencionalidade, relacionada a processos educativos de reconhecimento das relações ser humano-meio ambiente, que primam pela sinergia entre educação ambiental, motricidade humana e pedagogia dialógica. Nesse ensaio desenvolvemos essa sinergia no plano teórico, abrindo um caminho para futuros estudos que pretendam desenvolver essa proposta na prática.
confirmado pela prpria experincia de que, se minha inconcluso, de que sou consciente, atesta, de um lado, minha ignorncia, me abre, de outro, o caminho para conhecer (FREIRE, 1996, p.153) Esportes de Aventura, Esportes na Natureza, Esportes Radicais, Esportes em Integrao com a Natureza, so algumas das denominaes encontradas na literatura especializada 1 e na mdia em geral para classificar as atividades
1 Para um aprofundamento sobre as diferentes nomenclaturas e autores consultar Munster (2004). esportivas realizadas na natureza distante do meio urbano. Reconhecemos, conforme Betti (2001, p.159), que o termo esporte bem mais amplo hoje do que em sua clssica definio, relacionada a competio, comparao de desempenhos, busca da vitria ou recorde, etc, pois, de acordo com o autor, hoje h ampla polissemia do fenmeno esporte, particularmente em decorrncia da mdia, fazendo com que tal fenmeno transcenda aquela definio referente ao esporte espetculo ou de rendimento, sendo por vezes associado s prticas de tai chi chuan, yoga, capoeira, entre outras. Motriz, Rio Claro, v.15 n.4 p.987-995, out./dez. 2009 Artigo de Reviso Ecomotricidade: sinergia entre educao ambiental, motricidade humana e pedagogia dialgica Cae Rodrigues 1 Luiz Gonalves Junior 2 1 Doutorando do Programa de Ps-Graduao em Educao da UFSCar, So Carlos, SP, Brasil 2 Professor Associado do Departamento de Educao Fsica e Motricidade Humana e do Programa de Ps-Graduao em Educao da UFSCar, So Carlos, SP, Brasil Resumo: No proposto ensaio terico, compreendemos que a polissemia do termo esporte tende a contribuir para uma viso generalizada de esportivizao das prticas corporais, dificultando o desenvolvimento de processos educativos por meio dessas prticas. Na educao ambiental, essa realidade fica evidente pela predominncia de prticas de esportes integradas a uma natureza distante, nas quais se espera que o ser humano desenvolva uma conscincia ecologicamente correta, viso simplista e preservacionista, que contribui para uma relao fragmentria entre ser-humano e mundo. Nesse sentido, utilizaremos preferencialmente a nomenclatura ecomotricidade, definida como prticas corporais desenvolvidas com intencionalidade, relacionada a processos educativos de reconhecimento das relaes ser humano-meio ambiente, que primam pela sinergia entre educao ambiental, motricidade humana e pedagogia dialgica. Nesse ensaio desenvolvemos essa sinergia no plano terico, abrindo um caminho para futuros estudos que pretendam desenvolver essa proposta na prtica. Palavras-chave: Educao ambiental. Motricidade humana. Pedagogia dialgica. Ecomotricidade. Sinergia. Ecomotricity: synergy between environmental education, human motricity and dialogic pedagogy Abstract: In the proposed theoretical essay, we understand that the polysemy of the term sport has a tendency to contribute to a generalized view that associates all corporal practices with sportive practices, making the development of educative processes through these practices difficult. In environmental education, this reality is evident by the predominance of sportive practices carried out in a "distant" nature, hoping that the participant will develop an ecologically correct conscience, a simplistic approach that contributes to a fragmental relation between human-beings and the world. In this sense, we will use the nomenclature ecomotricity, defined as corporal practices developed with intentionality, associated with educative processes of recognition of the relation human being-environment, that support the synergies between environmental education, human motricity and dialogic pedagogy. In this essay, we developed this synergy in theory, opening the way for future practical studies. Key Words: Environmental education. Human motricity. Dialogic pedagogy. Ecomotricity. Synergy. C. Rodrigues; L. Gonalves Junior Motriz, Rio Claro, v.15, n.4, p.987-995, out./dez. 2009 988 Betrn (2003) justifica o uso da expresso Atividades Fsicas de Aventura na Natureza (AFAN) como tentativa de fugir da polissemia esporte para referir-se a esse conjunto de prticas, considerando-as representativas da atualidade e diferentes do esporte, pelo modelo corporal que se baseiam, pela motivao e condies de sua prtica, pelos objetivos ou meios utilizados para o seu desenvolvimento. As AFAN so prticas individuais que se fundamentam geralmente no deslizamento sobre superfcies naturais, nas quais o equilbrio dinmico para evitar as quedas e a velocidade de deslocamento, aproveitando as energias da natureza (elica, das ondas, das mars, dos cursos fluviais ou a fora da gravidade), constituem os diversos nveis de risco controlado nos quais a aventura se baseia. (BETRN, 2003, p.165). Neste ensaio, por entendermos que a polissemia do termo esporte tende a contribuir para uma viso generalizada de esportivizao 2 das prticas corporais, e por acreditarmos na possibilidade do desenvolvimento de um trabalho de educao ambiental por meio dessas prticas corporais, utilizaremos preferencialmente a nomenclatura ecomotricidade (termo proposto por LEITE 3 et al., 2006). Entendemos por ecomotricidade prticas corporais desenvolvidas com intencionalidade 4 , relacionada a processos educativos de reconhecimento das relaes ser humano-meio ambiente, que primam pela sinergia entre educao ambiental, motricidade humana e pedagogia dialgica. O objetivo desse ensaio desenvolver essa sinergia no plano terico, sustentando-se especialmente nas abordagens crticas de educao ambiental, na cincia da motricidade humana e na pedagogia dialgica. A busca por esta sinergia decorre de dois pontos primordiais: a crise ambiental contempornea e a concepo de corpo no mundo. A carncia de estudos sobre essas sinergias justifica o interesse pelo estudo,
2 Supervalorizao da competio e do elemento espetacular- visual costumeiro no mbito do esporte de rendimento, vinculado ao interesse da exibio de performance para outrem ou de busca esttica compulsiva ao aspecto fsico massificado e padronizado pelos meios de comunicao, em detrimento da realizao de prticas corporais autnomas e significativas, desenvolvidas pelo prazer desencadeado por elas mesmas, com satisfao pessoal intrnseca. 3 O termo ecomotricidade aparece exclusivamente em um resumo intitulado Percepes Discentes sobre o Projeto Ecomotricidade, apresentado na sesso de psteres do XIV Congresso de Iniciao Cientfica da Universidade Federal de So Carlos, em 2006. Buscamos nesse ensaio ampliar a definio do termo, propondo uma reflexo sobre as sinergias entre educao ambiental, motricidade humana e pedagogia dialgica. 4 Comportamento corpreo-mundano e existencial, no qual se constitui e reconstitui o mundo significado (FIORI, 1986, p.4) entendendo-se a relevncia cientfica (lacuna na literatura) e social (tica ambiental) dessas possveis relaes. A Experincia de Mundo Ningum deixa seu mundo, adentrado por suas razes, com o corpo vazio ou seco. Carregamos conosco a memria de muitas tramas, o corpo molhado de nossa histria, de nossa cultura; a memria, s vezes difusa, s vezes ntida, clara, de ruas da infncia, da adolescncia; a lembrana de algo distante que, de repente, se destaca lmpido diante de ns, em ns, um gesto tmido, a mo que se apertou, o sorriso que se perdeu num tempo de incompreenses, uma frase, uma pura frase possivelmente j olvidada por quem a disse (FREIRE, 2005b, p.32). Uma das principais peculiaridades do ser humano est em sua historicidade, fruto do que vivencia, fruto de suas experincias. Ser humano que histria, que memria, que cultura, que, sendo relao, social. O homem e a mulher esto sempre presentes em tudo o que fazem, carregando em suas aes toda sua histria, escrita pelas imprevisveis pinceladas da experincia. Segundo Larrosa Bonda (2002, p.21), a experincia o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. No o que se passa, no o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porm, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. [...] Nunca se passaram tantas coisas, mas a experincia cada vez mais rara. O excesso de informaes, de opinies, de trabalho e a escassez de tempo que compem o cotidiano do ser humano so os principais fatores de supresso da experincia, que necessita de um momento de interrupo (LARROSA BONDA, 2002). Pois exatamente na experincia do ser humano, em sua historicidade relacional sendo-com-os-outros-ao- mundo, construindo uma identidade, que reafirma essa forma de ser no mundo, que gostaramos de nos apoiar para buscar a origem do problema em questo nesse texto: a relao fragmentria estabelecida pela lgica social vigente entre ser humano e mundo e a crise ambiental contempornea. Entendemos que a crise ambiental contempornea , em grande parte, resultante de uma relao desintegrada entre a sociedade e o meio ambiente, sustentada por uma compreenso de mundo que aponta para uma lgica de dominao do ser humano sobre a natureza (GUIMARES, 2004). Segundo S Ecomotricidade Motriz, Rio Claro, v.15, n.4, p.987-995, out./dez. 2009 989 (2005), a cultura industrial capitalista moderna, fortemente ligada a uma ideologia individualista, construiu uma representao mecnica de ser humano, desenraizado e desligado de seu contexto e que desconhece as relaes que o tornam humano. Esse modelo de sociedade reflete numa forma de existir no mundo que foca a parte sobre o todo, impulsionando o individualismo, a desigualdade, a violncia, a perda da afetividade, do amor, da capacidade de se relacionar do um com o outro (social), do um com o mundo (ambiental) (GUIMARES, 2004, p.26). Essa relao no s constitui uma das principais causas da crise ambiental como a maior dificuldade para superar os problemas ambientais e sociais contemporneos (S, 2005). A educao ambiental alicerada nessa viso de mundo fragmentada, simplificada, que, focando na parte, perde a riqueza das complexas relaes manifestadas numa viso ntegra da realidade, o que Guimares (2004) denomina de educao ambiental conservadora. Uma educao que se fundamenta numa lgica simplista que compreende a sociedade como o resultado da soma de seus indivduos, quando, na verdade, a realidade complexa no pode ser reduzida soma das partes como totalidade, pois a educao relao e se d no processo e no, simplesmente, no sucesso da mudana comportamental de um indivduo (GUIMARES, 2004, p. 27). Ao se abrir para o mundo e aos outros, o ser confirma sua inquietao, curiosidade, inconcluso em permanente movimento, inaugurando com seu gesto a relao dialgica (FREIRE, 1996). Relao que se estabelece como uma ponte entre o ensinar e o aprender (FREIRE, 2005b), e que se funda no dilogo permanente entre os homens e mulheres sendo- uns-com-os-outros-ao-mundo. Essa busca permanente que homens e mulheres fazem no mundo em que e com que esto, uns com os outros, essa busca pelo Ser Mais (FREIRE, 1992, p.23), compreende outra educao, uma viso que contrape na base os pilares da educao conservadora. Uma educao problematizadora, libertadora, com pilares construdos nos [...] ideais democrticos e emancipatrios do pensamento crtico aplicado educao (CARVALHO, 2004, p.18), ideais defendidos e em grande parte construdos pelo educador Paulo Freire. Pois na tenso entre essas duas vises distintas de educao, conservadora e crtica, e na busca por uma relao que supere a viso fragmentria entre ser humano-meio ambiente, que nos apoiamos para construir uma viso ntegra entre ser humano e mundo, ressaltando as possveis colaboraes da motricidade humana, da educao ambiental e da pedagogia dialgica nesse processo. Educao Ambiental, Motricidade Humana e Pedagogia Dialgica Voc pode tirar o menino da selva, mas no a selva do menino. (padrasto de Mogli, na animao de 2003 da Walt Disney Mogli: o menino lobo 2) As prticas de educao ambiental voltadas formao de uma conscincia ambientalista limitada, conservacionista e/ou preservacionista ainda so muito comuns, ou seja, uma conscincia restrita a aspectos naturalistas, que desconsidera os meios socioculturais produzidos pelas populaes (CASCINO, 2000). Isso fica evidente quando observamos as prticas de esportes em integrao com a natureza e os estudos do meio, prticas educacionais em integrao com a natureza. Cada vez mais, cria-se um apelo conservacionista ligado s prticas esportivas em integrao com a natureza, uma conscientizao ambientalmente correta para manter o local de privilgio, onde so desenvolvidas as prticas, conservado para futuras incurses, assim como um discurso de sensibilizao sustentado pela necessidade de conservao do meio ambiente. Os estudos do meio caminham nesse mesmo sentido, na maioria das vezes restringindo-se a atividades de sensibilizao, que primam pela conservao de uma natureza distante, bela e frgil. Mesmo reconhecendo a importncia das atividades de sensibilizao e de identificao com o meio para o processo de educao ambiental, a grande crtica em relao a essa abordagem est relacionada viso fragmentria resultante de um discurso que urge pela conservao/preservao de uma natureza distante, que desconsidera o meio urbano, assim como o prprio corpo, como parte no menos importante dessa natureza, contribuindo para o C. Rodrigues; L. Gonalves Junior Motriz, Rio Claro, v.15, n.4, p.987-995, out./dez. 2009 990 distanciamento das relaes ser humano-meio ambiente. Por outro lado, algumas abordagens pedaggicas ps-modernas compreendem a educao ambiental como: [...] um momento da educao que privilegia uma compreenso dos ambientes de maneira no excludente, no maniquesta. Ou seja, que privilegia as relaes democrticas que respeitam o indivduo e o grupo, buscando na reapropriao da natureza pelo homem a reconstruo de valores em ambos, permitindo que novas necessidades coexistam no respeito e na harmonia, no conflito e na incorporao das divergncias, no constante encontro/desencontro promovido pelo dilogo (CASCINO, 2000, p.60). Essas abordagens buscam uma relao ser humano-meio ambiente mais significativa do que simplesmente a admirao por uma natureza bela, o respeito por uma natureza distante ou a preservao de uma natureza frgil, mas, alm de tudo isso, o reconhecimento da natureza transformada, dos meios socioculturais produzidos pelas populaes, e da prpria corporeidade numa relao dialgica, uma busca mais desafiante do que a conscientizao para aes ambientalmente corretas, uma maneira diferente de estar no mundo. Relao que perpassa pela maneira como homens e mulheres se relacionam com o mundo. O ser humano no no mundo, ele est sendo ao mundo. Somos seres histrico-sociais, capazes de comparar, de valorar, de intervir, de escolher, de decidir, de romper, por tudo isso, somo seres ticos, e estar sendo a condio, entre ns, para ser (FREIRE, 1996). No estamos sendo sozinhos ao mundo, e essa a principal caracterstica social do ser humano, sendo-com- os-outros-ao-mundo, o ser humano ser de relaes. Nessa relao comunicativa h transferncia, ou seja, o ser humano se transforma, e tambm transforma os outros e o mundo (FREIRE, 1983). Mais do que um ser no mundo, o ser humano se tornou uma Presena no mundo, com o mundo e com os outros. Presena que, reconhecendo na outra presena como um no-eu se reconhece como si prpria (FREIRE, 1996, p.20). Por ser relao, o ser humano um ser incompleto, pois necessita do outro. Por ser relao, o ser humano um ser dialgico, pois vivencia o dilogo. Ser dialgico empenhar-se na transformao constante da realidade (FREIRE, 1992, p. 43). Nessas qualidades: de intervir, de transformar, de fazer, de sonhar, de constatar, de comparar, de avaliar, de valorizar, de decidir, de romper, no certo que o ser humano ser decente, que ser justo, que sempre respeitar, que nunca mentir, que no ter inveja. Mas este o prazer de ser humano, de no viver um mundo predeterminado, de no poder se eximir das responsabilidades de criar seu prprio destino, de fazer histria com os outros em um tempo de possibilidades e no de determinismo (FREIRE, 1996). Por no viver no determinismo, o ser humano no pode escapar responsabilidade tica no seu mover-se no mundo como puro produto. E no domnio da deciso, da avaliao, da liberdade, da ruptura, da opo, que se instaura a necessidade da tica e se impe a responsabilidade (FREIRE, 1996, p.20). No viver o determinismo, ser capaz de observar, de comparar, de avaliar, de escolher, de decidir, de intervir, de romper, de optar em ser tico, ou em transgredir a tica, traz consigo a responsabilidade da possibilidade, da opo, da escolha. tica aqui compreendida segundo Chau (1995), como campo constitudo pelos valores e pelas obrigaes que formam os contedos das condutas morais, isto , as virtudes; sendo o ser responsvel a reconhecer-se como autor da ao, avaliar os efeitos e conseqncias dela sobre si e sobre os outros, assumi-la como suas conseqncias, respondendo por elas. Conseqentemente, embora toda tica seja universal do ponto de vista da sociedade que a institui (universal porque seus valores so obrigatrios para todos os seus membros), est em relao com o tempo e a histria, transformando-se para responder a exigncias novas da sociedade e da cultura, pois somos seres histricos e culturais e nossa ao se desenrola no tempo. Neste sentido, como diz Freire (2005b), aos homens e as mulheres sempre possvel ser mais. Entende Dussel (2003) que uma tica ecolgica deve ser sustentvel e solidria, havendo necessidade de consensualidade intersubjetiva, sendo exercida, em ltima anlise, no respeito ao direito universal de sobrevivncia de todos os seres humanos, especialmente dos mais afetados e excludos: dos pobres do presente e das futuras geraes (p.23). Tece Ecomotricidade Motriz, Rio Claro, v.15, n.4, p.987-995, out./dez. 2009 991 assim crtica ao sistema capitalista vigente que, ao buscar de modo insacivel vida boa para alguns, atravs do aumento da taxa de lucro, destri continuamente a possibilidade de vida boa para todos e todas, ou seja, da permanncia e desenvolvimento da Vida na Terra. Explicita Dussel (2003, p.30): [...] quando, sob o manto de uma vida boa vigente, a vida fica impossvel, transformando- se empiricamente em opressora, dominadora, repressora sobre alguns membros, ou irresponsvel quanto aos efeitos que sofrero as geraes futuras, deixa de ter validade ou legitimidade para os oprimidos presentes e futuros. Torna-se aos olhos dos excludos (ou de seus defensores) como uma pretensa vida boa, porque nega a vida. [...] esta contradio entre o princpio universal da vida, concretamente pretendida (o princpio do esplendor do Egito faranico), e o que real e empiricamente acontece (a misria e morte dos escravos). Podemos assim considerar como pressuposto central que integra a tica ambiental a relao dialgica com o meio, e com o outro, que con- vive neste meio. Neste processo, torna-se fundamental o papel da educao que reconhece e forma o ser humano em suas mltiplas dimenses. Nesta viso importante uma proposta educacional que envolva esperana e amorosidade (FREIRE, 1996, 2005a, 2005b) como meta a ser perseguida no processo educativo e como estrutura do agir humano, inconcluso e incompleto e, portanto, vir a ser. A educao ambiental uma possibilidade para um pensamento amplo, uma vez que questiona os valores e modelos vigentes, e prope relacionamentos mais harmnicos entre os seres humanos e destes com os demais seres vivos e o planeta, em ltima instncia, nossa casa, do grego oikos, que tambm origina a palavra eco de ecologia (BRANDO, 2005). O ser humano inconcluso, assim como inacabado. Ser inconcluso, pois est em constante evoluo, em busca permanente do seu prprio crescer, constantemente transformando-se e, assim, transformando (e vice e versa). A nica constncia a mudana. Ser inacabado, pois no perfeito. Inacabamento que vida, pois prprio da experincia vital (FREIRE, 1996). Ser inconcluso e inacabado, o que nos torna igual a todas as coisas do universo, com a diferena que ns temos a conscincia de que somos incompletos, inconclusos e inacabados, o que gera uma tenso permanente que, movida pela curiosidade ingnua e crtica, constri o ncleo fundamental no qual se sustenta o processo da educao. A educao possvel para o homem, porque este inacabado e sabe-se inacabado. Isto leva-o sua perfeio (FREIRE, 1983, p.27). Pode-se concluir que o indivduo , ou melhor, est sendo-com-os-outros-ao-mundo, encontrando significados nas organizaes sociais que o condicionam (mas no o determinam), construindo-se, assim, ser social, ser de relaes, ser dialgico, pela impossibilidade de se abster das responsabilidades implcitas nessas relaes, ser tico. Consciente de ser incompleto, inconcluso, inacabado, busca, pela curiosidade e criticidade prprias da experincia vital, ser mais. Inconcluso da qual nasce o mpeto de criao do ser humano, mpeto ontolgico, que autentica os processos da educao (FREIRE, 1983). Nesse sentido, o ser humano no s constata o que ocorre nesse mundo que est sendo, mas, como subjetividade curiosa, inteligente, interferindo na objetividade com que dialeticamente se relaciona, intervm como sujeito de ocorrncias, sendo-com-os-outros-ao- mundo. No sou apenas objeto da Histria mas seu sujeito igualmente. No mundo da Histria, da cultura, da poltica, constato no para me adaptar mas para mudar (FREIRE, 1996, p.85). O ser humano no est descomprometido com o mundo, como se nada tivesse que ver com o mundo, um l fora e distante mundo, alheado de ns e ns dele (FREIRE, 1996, p.86). Todo pensar refere-se realidade, e na linguagem, forma de expresso desse pensamento marcado direta ou indiretamente pela realidade, [...] no pode ser rompida a relao pensamento- linguagem-contexto ou realidade (FREIRE, 1992, p.70). Apesar da crescente adeso de pessoas a esta concepo, que percebe ser e mundo de modo integral e relacional, a viso preservacionista e conservadora ainda predominante, tanto no mbito educacional quanto nas prticas de lazer em contato com a natureza. Viso fragmentria, que separa o ser humano de uma natureza que est distante, enfatizando uma relao de dominao do homem e da mulher sobre uma natureza frgil, que precisa ser preservada. Nessa concepo, C. Rodrigues; L. Gonalves Junior Motriz, Rio Claro, v.15, n.4, p.987-995, out./dez. 2009 992 espera-se que, pelo contato com a natureza, o indivduo crie uma conscincia de preservao pelo meio, protegendo o lugar onde desenvolve atividades educativas ou de lazer. H realmente uma probabilidade disso ocorrer, porm essa abordagem relativamente simplista comparada viso crtica da relao dialgica entre ser humano e mundo. Simplista porque se prende, na maior parte, a um conceito de natureza original, ou meio natural, uma viso que considera uma natureza distante, sem influncia do ser humano, desconsiderando uma viso mais ampla e no segmentada de natureza, viso na qual o ser humano no est na natureza, mas natureza, e as interferncias e transformaes resultantes das relaes dos homens e mulheres sendo-com- os-outros-ao-mundo tambm so parte dessa natureza. Ao considerar uma natureza distante, o indivduo a vivencia como uma fuga de sua realidade urbana cotidiana, desprezando a possibilidade de reconhecer-se enquanto natureza e de incorporar os valores da tica ambiental para seu cotidiano das cidades. As abordagens crticas de educao ambiental discutem sobre a necessidade da cotidianidade 5 das prticas ambientais, da incorporao dos valores ambientais no cotidiano do ser humano independente de onde esteja, seja numa rea de preservao, no meio rural ou no meio urbano. Alm disso, as prticas preservacionistas apiam-se num apelo de sensibilizao ambiental que, no geral, no est associado s razes dos problemas ambientais, afastando-se do significado maior da sustentabilidade, da transformao de uma realidade que complexa, e de um contexto que mais amplo, o da coletividade. Mas o aspecto mais preocupante da abordagem preservacionista a questo de que despreza o potencial maior de um possvel caminho pela motricidade humana para um trabalho de educao ambiental: a relevncia do movimento na formao da identidade do indivduo, e as possveis relaes dessa educao corporal para uma educao ambiental crtica, transformadora e emancipatria.
5 Segundo Gutirrez e Prado (2000), o sentido e as prticas de aprendizagem produtivas encontram-se na vida cotidiana, pois, partindo de condutas inditas construdas pedagogicamente, na vivncia cotidiana que ocorrero as transformaes em prol de relaes sustentveis entre os equilbrios dinmicos e interdependentes da natureza e o desenvolvimento humano. Uma vez que o ser humano no est na natureza, natureza, a educao ambiental comea nas relaes imbudas na motricidade, relaes pela qual o ser humano deve ultrapassar o viver, deve existir, que mais do que estar no mundo, estar com ele, numa dialogao eterna do ser humano com o ser humano, do ser humano com o mundo (FREIRE, 2000). Segundo Sampaio (2006, p. 96), o primeiro ambiente no qual vivemos nossa corporeidade e a partir dela fazemos nossa experincia de ser no mundo. O corpo tempo, motricidade, fala, espao, no o [...] simples resultado das associaes estabelecidas no decorrer da experincia, mas uma tomada de conscincia global de minha postura no mundo intersensorial (MERLEAU- PONTY, 1996, p.143). O corpo movimento, e pelo movimento o ser humano se comunica, se expressa, cria, aprende, interage com o meio fsico e social. O movimento no o pensamento de um movimento, e o espao corporal no um espao pensado ou representado (MERLEAU-PONTY, 1996, p.192). Isso porque no estou diante de meu corpo, eu sou corpo, assim como no penso o espao e o tempo, no estou no espao e no tempo, como se fossem uma soma de pontos justapostos, eu habito o espao e o tempo, sou no espao e no tempo (MERLEAU-PONTY, 1996). importante saber que no sou Chronos, isto , um tempo delimitado por mensuraes provenientes das pesquisas da cincia ntica que se esquece do Ser e das suas possibilidades. importante saber que somos Kairs, isto , um tempo vivido numa determinao consciente e efetiva da nossa existncia. Uma conscincia que tempo e que indica novas direes (MARTINS, 1991). Nesse tempo e espao, o corpo se movimenta, e o faz por intermdio de uma conscincia sustentada por um arco-intencional (pois toda conscincia de algum ou de alguma coisa), o que nos permite compreender a motricidade enquanto intencionalidade original (MERLEAU-PONTY, 1996). Segundo Manuel Srgio (2003), a conscincia imbuda de intencionalidade e o corpo dotado de movimento, ao integrarem-se numa unidade humana, formam uma significao existencial, onde doador e nos dado um relacionamento dialtico entre o organismo, o pensamento e o Mundo que est a (p.6). Citando ainda outra obra de Manuel Srgio: O ser humano est todo na motricidade, numa contnua abertura realidade mais radical da Ecomotricidade Motriz, Rio Claro, v.15, n.4, p.987-995, out./dez. 2009 993 vida. E no s a motricidade assume assim um carcter fundador, como dela e nela nasce uma ontologia nova, onde o que mais importa no so as performances de ordem fsico- desportiva, mas o que se , numa cumplicidade primordial com a minha prpria ontognese, como ente que se faz e se renova quer individual, quer social e politicamente (1999, p.18). Para romper a crise ambiental contempornea, muito se fala sobre a importncia da conscientizao ambiental, mas a conscincia no pode ser vista isoladamente, como algo que pode ser moldada de acordo com os valores requisitados, pois, de acordo com Merleau-Ponty (1996): [...] a conscincia projeta-se em um mundo fsico e tem um corpo, assim como ela se projeta em um mundo cultural e tem hbitos: porque ela s pode ser conscincia jogando com significaes dadas no passado absoluto da natureza ou em seu passado pessoal [...]. Enfim, esses esclarecimentos nos permitem compreender sem equvoco a motricidade enquanto intencionalidade original. [...] a motricidade no como uma serva da conscincia, que transporta o corpo ao ponto do espao que ns previamente nos representamos. Para que possamos mover nosso corpo em direo a um objeto, primeiramente preciso que o objeto exista para ele (p.192-193). Pensar a motricidade humana em relao ao meio ambiente, o que denominamos nesse ensaio como ecomotricidade, significa o reconhecimento e a incorporao dos problemas ambientais, o que significa que o indivduo no s compreenda quais so os problemas ambientais contemporneos, mas reconhea-os enquanto problemas que so seus. Pensar a corporeidade em movimento em relao ao meio ambiente significa buscar um reconhecimento comum a todos: o sentimento de que no vive numa natureza que distante, mas que natureza em sua prpria corporeidade. Consideraes Pensar na ecomotricidade muito mais do que uma maneira de ver o mundo, um estar no mundo, um existir no mundo, enquanto natureza. Mas o passo mais importante para se pensar a ecomotricidade a urgncia de uma educao ambiental que se desvincule da viso preservacionista, olhar fragmentria sobre as relaes entre ser humano e mundo, e que se aproprie da viso crtica, olhar que enxerga essa relao de forma ntegra. Ecomotricidade alicerada na diversidade, pois a riqueza do processo educativo reside em larga medida no facto de, felizmente, sermos todos diferentes (ROSRIO, 1999). Nas palavras de Umberto Eco, "[...] a beleza do cosmos dada no s pela unidade na variedade, mas tambm pela variedade na unidade" (2003, p.24). Ecomotricidade que se apia na esperana, pois, como nos diz Freire (1992), no possvel buscar sem esperana. esperana que faz parte da natureza humana, pois inacabado, e consciente de ser inacabado, o ser humano est inevitavelmente predisposto busca, tornando a esperana uma espcie de mpeto natural possvel e necessrio, assim como condimento indispensvel experincia histrica (FREIRE 1996, p.81). Mas ter esperana no significa esperar. Ao contrrio, ter esperana ativo, e esperar passivo, tornando-se necessrio, segundo Paulo Freire, a criao de um novo verbo: esperanar 6 . O ser humano um ser pedaggico, e um ser esperanoso, mas enquanto necessidade ontolgica, a esperana precisa da prtica par tornar-se concretude histrica. por isso que no h esperana na pura espera, nem tampouco se alcana o que se espera na espera pura, que vira, assim, espera v (FREIRE, 2005b, p.11). Ecomotricidade alicerada na sinergia entre educao ambiental, motricidade humana e pedagogia dialgica, que espera (do verbo esperanar), em relao s questes ambientais, muito mais do que o simples conhecimento sobre a atual crise ambiental contempornea, espera o reconhecimento e a incorporao dessa crise como parte do ser-ai- no-mundo. Espera mais do que aes ambientalmente corretas para a preservao de uma natureza distante, espera uma educao que busca romper os paradigmas sustentados pela relao dicotmica entre ser humano e natureza. Ecomotricidade que supere a racionalidade que separa o ser humano em corpo e mente, em motor e cognitivo, pois a totalidade da existncia humana no pode ser descrita nem pela dicotomia entre corpo e esprito, nem pela separao entre ser humano e mundo
6 Referncia retirada da palestra de Jos Eustquio Romo, ministrada no VI EDUCERE: Congresso Nacional de Educao, realizada na PUCPR (Curitiba, PR), no dia 6 de novembro de 2006. C. Rodrigues; L. Gonalves Junior Motriz, Rio Claro, v.15, n.4, p.987-995, out./dez. 2009 994 (TREBELS, 2003, p.259). Ecomotricidade pelo perceber, definida por Merleau-Ponty, durante a Socit Franaise de Philosophie, como tornar presente qualquer coisa, com a ajuda do corpo (apud SRGIO, 2003, s/p). Isso porque eu no sou um sujeito isolado, sem mundo, mas sim nele ancorado, por meio de meu corpo, e dele fao o horizonte no qual me comunico perceptivamente com as coisas (TREBELS, 2003, p.259). Assim, concordamos com Schwartz (2006) ao destacar que a simples ao de realizar prticas corporais na natureza no gera, por si s, uma sensibilizao das pessoas para com o meio natural, pois toda ao implica no tratamento educativo que o indivduo ou o grupo recebe quando inicia a atividade, bem como suas atividades e comportamentos posteriores a ela. Bem como com Munster (2004) ao expor que: A natureza no deve ser encarada como um simples cenrio para a prtica esportiva, mas deve ser focalizada sob uma viso dinmica e sistmica, onde a participao humana se estabelece a partir de uma interao consciente e harmoniosa com o meio ambiente, assegurando um desenvolvimento sustentvel (p.21). Em outras palavras necessrio desenvolver uma viso que seja alm da preservacionista, pois no apenas no cuidado no meio natural, ou nas paisagens artificialmente naturais, como mais frequentemente se tem visto nos anncios relacionados ao ecoturismo e/ou ao turismo rural (CAMPANHOLA e SILVA, 2002; LUCHIARI, 2002) que se desenvolve uma tica ambiental, preciso que o sujeito desenvolva percepo de que, independente de estar em um meio urbano, rural ou natural, trata-se de um mesmo planeta do qual ele faz parte no sendo-uns-com-os-outros- ao-mundo. Ser este, portanto, integral, que se faz e refaz nas relaes de intersubjetividade com os outros seres, tendo como pano de fundo o contexto do mundo (GONALVES JUNIOR e SANTOS, 2006). Considerando a perspectiva da ecomotricidade, ora proposta, entendemos relevante a sinergia entre educao ambiental, motricidade humana e pedagogia dialgica, pois mais significativo do que aprender sobre a natureza aprender na natureza, no aquela distante e frgil, mas a natureza que vivenciamos dia-a-dia, pelas nossas experincias, na qual ser e mundo esto dialeticamente sendo. Nesse ensaio desenvolvemos essa sinergia no plano terico, abrindo um caminho para futuros estudos que pretendam desenvolver essa proposta na prtica Referncias BETRN, J. O. Rumo a um novo conceito de cio ativo e turismo na Espanha: as atividades fsicas de aventura na natureza. In: MARINHO, Alcyane; BRUHNS, Helosa T. Turismo, lazer e natureza. So Paulo: Manole, 2003. p.157-202. BETTI, M. Educao fsica e sociologia: novas e velhas questes no contexto brasileiro. In: CARVALHO, Yara M.; RUBIO, Katia (org.). Educao fsica e cincias humanas. So Paulo: Hucitec, 2001. p.155-169. BRANDO, C. R. Comunidades aprendentes. 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Washington Luiz, Km 235 Monjolinho 13565-905 So Carlos SP Brasil Telefone: (16) 3351-8294 Ramais 8766 / 8769 e-mail: luiz@ufscar.br Recebido em: 10 de fevereiro de 2009. Aceito em: 03 de abril de 2009. Motriz. Revista de Educao Fsica. UNESP, Rio Claro, SP, Brasil - eISSN: 1980-6574 - est licenciada sob Licena Creative Commons
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