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A Voz na Can¢ao Popular Brasileira UM ESTUDO SOBRE A VANGUARDA PAULISTA REGINA MACHADO Atelié Editorial Copyright © 20 by Regina Machado Direitos reservados ¢ protegidos pela Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. E proi- bida a reprodugio total ou parcial sem autorizagio, por escrito, da editora. Dados Internacionais de Catalogagao na Publicagao (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Machado, Regina A Voz na Cangao Popular Brasileira: Um Estudo sobre a Vanguarda Paulista | Regina Machado, - Cotia, SP: Atelié Editorial, 201. ISBN: 978-85-7480-543-6 1. Cangdes 2. Musica popular ~ Brasil 3. Técnica vocal 4. Vanguarda (Estética) ~ Sao Paulo (SP) I. Titulo. 10-06766 CDD-781.630981 indices para catalogo sistematico: 1. Expressio vo: Mis |: Vanguarda Paulista: Brasil: popular: Ensaios 781.630981 Direitos reservados & Areité EprTorrat Estrada da Aldeia de Carapicuiba, 897 6709-300 - Cotia - SP ‘Telefax: (11) 4612-9666 wwwatelie.com.br atelie@atelie.com.br Printed in Brazil 2011 Foi feito o depésito legal Sumario Agradecimentos .......... 0.00 e eee eee ees 9 Quem Canta Seus Dotes Suplanta - Luiz Tatit........... ll Introdugao. 15 1, Vocalidades Multiplas: Referéncias para o Canto......... 23 O Canto e os Cantar. 23 Referéncias Vocais na Histéria da Cangao Popular Brasileira Midiati A Cangdo e a Expressdo Vocal .... 0. eee cee eee eee eee 40 2_A Cena Musical na S40 Paulo dos Anos 1980 ea Vanguarda Paulista... 2... 45 Uma Alternativa Musical... AS A Vanguarda Paulista... 00... 0.00 cece eevee eee eee 52 As Propostas Musicais da Vanguarda Paulista ........... 56 A Parceria entre Compositores e Intérpretes na Vanguarda Paulista........... 0.222 e cece eee cece eee 59 A VOZ NA CANGAO POPULAR BRASILEIRA 3. Elementos para Analise do Comportamento Vocal....... 63 PAPAMETOS . 6... eee eee eet 63 Vocabulario Técnico-vocal .... 1... 00eee cece eee eeee ees 65 A Semiética como Instrumento Complementar ai 2 4, Selegio do Repertorio ¢ as Anilises.................-..- 79 Os Discos, as Vozes e a Escolha das Cangées ............- 79 Luiz Tatit (Grupo RUMO) .... 2.1 eee ee eee 81 Itamar Assumpc¢dao (Banda Isca de Policia) .............. 91 Arrigo Barnabé (Banda Sabor de Veneno)..............+ 96 N&O . 101 Teté Espindola ... 0.0.6.0 e ee eee eee 107 Suzana Salles.........0.0ccce cece eee ccc eee cece ees 112 ConsideragGes Finais..... 0.01... eee 121 Bibliografia ... 0.0... oc cece ee eeeeee eens ee eeeseeeseeees 125 Sobre a Autora ...... 0... c cece cece cece eect eee ee 129 Agradecimentos Ao meu orientador, Prof. Dr. José Roberto Zan, por acolher o meu projeto. A Profa. Dra. Marcia Taborda ¢ 4 Profa. Dra. Adriana Gia- rolla Kayama pelas criticas e comentarios que realizaram como integrantes da banca na defesa desta dissertacao. A Silvia Regina Ferreira pelo apoio constante, pelo olhar cri- tico e afetuoso. A minha familia pelo apoio em todos os meus trabalhos. As cantoras Suzana Salles, Na Ozzetti ¢ Vania Bastos pela atencao e amizade com que me atenderam todas as vezes em que as solicitei. Aos misicos e amigos Dante Ozzetti, Mario Manga e Gal Oppido pelas conversas repletas de informacées importantes. Ao compositor Arrigo Barnabé pelo depoimento dado para a realizacao desta pesquisa. Ao amigo e violonista Flavio Apro pelo auxilio musical na analise de Londrina. A VOZ NA CANGAO POPULAR BRASILEIRA Ao compositor e professor Luiz Tatit pela generosidade com que me recebeu, e também pelas obras, musical e académica, que se tornaram indispensaveis a esta pesquisa. Aos meus alunos de graduagao em Musica Popular do Ins- tituto de Artes da Unicamp e também aos alunos do Canto do Brasil Atividade e Ensino Musical, por me estimularem, direta ou indiretamente, a pensar a questao da voz na musica popular. A amiga e cantora Tuca Fernandes pela partitura da musi- ca Londrina de Arrigo Barnabé e pelas conversas sobre o fazer musical. A amiga e fonoaudidloga Andréa Chakur por esclarecer as minhas duvidas sobre a fisiologia da voz, equilibrando visao téc- nica e sua grande sensibilidade musical. E finalmente a todos aqueles que como integrantes da cha- mada Vanguarda Paulista realizaram essa musica que me tocou desde a primeira vez que a ouvi, no inicio dos anos 1980, e que se tornou meu objeto de estudo, sendo antes de mais nada, objeto da minha admiragao. 10 Quem Canta Seus Dotes Suplanta Interpretar uma cangao significa desvendar seus valores latentes e trazé-los ao ouvinte no decorrer da execugao. O compositor que se langa como intérprete das préprias cangdes tem boas chances de revelar uma parte expressiva desses valores, mas nem mesmo ele chega a esgotar as possibilidades de sentido inscritas na obra. Sao as diversas interpretagées que prolongam a vida das cangées, sobretu- do quando mobilizam aspectos sensiveis da relagao entre melodia ¢ letra que ja estavam ali desde 0 ato de composigao mas em estado dormente. Sao os intérpretes que despertam esses conteudos. A pretexto de examinar as vozes que veicularam as propostas de inovacdo musical dos grupos paulistanos dos anos 1980, os re- presentantes da chamada “vanguarda paulista”, Regina Machado acaba elaborando um trabalho pioneiro de investigacao do papel do canto na formagao de todo o nosso repertorio popular midié co. Realmente, a independéncia dessas bandas em relagao ao mer- cado de disco da época propiciou a exploragao de recursos vocais distantes do padrao vigente e, ao mesmo tempo, comprometidos cae A VOZ NA CANGAO POPULAR BRASILEIRA com as necessidades expressivas de cada cangao. As solugées ar- tisticas que dai brotaram foram decisivas para sugerir a autora cri- térios descritivos até entao desconhecidos no ambito das praticas vocais ou das aulas de canto voltadas 4 producao de consumo. Sem desprezar a tradicional “técnica vocal” ensinada nos conservatérios ou nas escolas de m sica, Regina consegue definir sua fungao e seus limites na breve historia da cangao brasileira, que comegou com 0s aparelhos de gravacao aqui introduzidos ja do periodo republicano. Pouca coisa dessa técnica caracterizou de fato o trabalho dos cantores que fundaram nosso repertério cancional. Baiano, Francisco Alves, Carmen Miranda, Mario Reis, Aracy de Almeida, Orlando Silva e tantos outros forjaram, eles sim, uma técnica de canto que nao consta dos manuais de iniciagdo, mas que foi inteiramente absorvida pelo arqui-intér- prete Joao Gilberto e redistribuida a seus sucessores nas ultimas cinco décadas de musica brasileira. Autores-cantores como Chi- co Buarque, Roberto Carlos, Caetano Veloso, Djavan, Cazuza, Arnaldo Antunes e cantoras como Nara Leao, Gal Costa, Marisa Monte ou Adriana Calcanhoto sao herdeiros diretos desse modo de cantar que até hoje nao foi devidamente estudado. Ao analisar as relag6es entre composic¢ao e interpretacao nas experiéncias sonoras, por vezes extremas, dos artistas do Lira Paulistana, do compositor-performer Arrigo Barnabé, e, especial- mente, das cantoras Na Ozzetti, Teté Espindola, Suzana Salles e Vania Bastos, a autora deparou-se com as duas outras relagoes que inevitavelmente se apresentam nas pesquisas sobre a cancao: 0 elo entre melodia ¢ letra ¢ as oscilagdes entre recursos musicais e recursos prosddicos. Levando em conta a atuagao simultanea do que chamou de niveis fisico, técnico e interpretativo, Regina ica as expressdes, as ampliacdes e mesmo as modificagdes 12 Introdugao Durante os mais de vinte anos em que venho me dedicando ao oficio do canto, seja através da realizagao artistica ou da atividade didatica, inimeras vezes deparei com a falta de um pensamento formal sobre a técnica vocal ¢ os referenciais estéticos dirigidos para a utilizacao da voz na cangao popular brasileira que pudesse direcionar um estudo sobre o assunto. O meu processo de formagao vocal, como o de muitos outros cantores populares de minha geragao, passou exclusivamente pela técnica lirica, obrigando-me sempre a realizar os ajustes neces- sarios 4 musica que fazia profissionalmente e que nada tinha a ver com aquele referencial estético estudado. A partir dessa necessida- de e da observacao de meus proprios alunos, além da busca de co- nhecimento sobre a histéria da voz na musica popular brasileira, dei pular brasileiro urbano, fazendo um mapeamento das realizagoes icio a uma investigacao das abordagens vocais no canto po- vocais e dos referenciais est¢ticos presentes nos diversos momen- tos dessa can¢ao, valendo-me da escuta de fonogramas originais. 15, A VOZ NA CANGAO POPULAR BRASILEIRA Pude, entao, organizar uma cronologia da voz na cangao brasileira, observando as transformagées ocorridas desde o inicio das gravacées elétricas até hoje. A partir dai foi possivel observar que o canto popular urbano midiatizado construiu, ao longo dos anos e dentro desse ambiente estético, comportamen- tos especificos para a voz. Este estudo foi estruturado com o objetivo de desenvolver nao um método de ensino do canto popular, mas um mate- rial que suscitasse uma refle sobre a voz na cangao popular, criando uma metodologia de pesquisa e aprendizado a partir da escuta e andlise do comportamento vocal, que possibilitasse ao cantor compreender a trajetéria histrica e estética na qual ele, mesmo sem saber, estaria inserido. No decorrer desses estudos pude entrar em contato com o trabalho da cantora e professora de canto Maria Conciglia Lator- re', cuja obra traga um historico da voz na cangao brasileira até a Bossa Nova e formata uma proposta de ensino do canto popular a partir da escuta de épocas ¢ da vivéncia dessas condutas vocais, além da incorporagao de elementos do canto Werbek (Escola do Desvendar da Voz)’. 1, Maria Conciglia R. Latorre, A Estética Vocal no Canto Popular do Brasil: Uma Perspectiva Histérica da Performance de Nossos Interpretes e da Escuta Contemporanea, e suas Repercus- ses Pedagogicas. Dissertagao de mestrado apresentada no Instituto de Artes da Unesp sob orientago da Profa, Dra. Marisa T. O. Fonterrada. Pedagogia vocal desenvolvida por Valborg Werbeck-Svardstrém que entende o estudo do canto como libertagdo ¢ nao formagdo da voz, € associa 0 processo ao desenvolvimento espiritual, encontrando elementos comuns na Ciéncia Espiritual Antroposéfica (Rudolf Steiner). “O Canto Werbeck nao se preocupa apenas com o resultado final artistico, mas sobretudo com 0 processo pelo qual se chega a esse resultado, abrindo assim um espectro de possibilidades na esfera pedagigica, terapéutica ¢ artistica. Ele ndo submete o cantor a um modelo externo mas faz com que descubra suas possibilidades fisiologicas, sensiveis, ‘mentais ¢ espirituais, levantando os véus que podem encobrir a vor de cada um” (idem). 16 INTRODUGAO O ponto de intersecao entre os nossos trabalhos, pude cons- tatar, dava-se no ambito da escuta de épocas para a construcao de um contexto histérico vocal; porém, conforme referéncia ante- rior, o objetivo deste trabalho nao era constituir-se como método de ensino, mas sim como um material que possibilitasse pensar 0 canto popular no Brasil tendo como foco a andlise do comporta- mento vocal na Vanguarda Paulista. A escolha por esse periodo da musica popular brasileira deu- -se pela constatagao de que durante o referido movimento os re- cursos vocais, bem como a concepgio estética da voz, muito além de manter um vinculo com a tradi¢ao da cangao popular, fato ob- servavel através da andlise de trabalhos de alguns grupos, como 0 RUMO, por exemplo, revelou novas possibilidades de realizagao técnica ¢ interpretativa a partir da compreensio dos padrées en- toativos da lingua falada, como também do aproveitamento de elementos trazidos das vanguardas musicais europeias. Dessa forma, 0 emprego da voz pelos cantores e composito- res da Vanguarda Paulista revelava novos caminhos para a voz midiatizada, juntando tradigéo e modernidade, intuicao e racio- nalidade, oferecendo um vasto material para a andlise, e também uma possibilidade de abordar com maior profundidade um as- sunto que somente ha pouco tempo passou a ser tema de estudos académicos: 0 canto popular. A abordagem das anilises, além de envolver um procedimen- to de avaliacao técnico-vocal, necessitava tecer a juncao entre comportamento da voz e os contetidos da cangao para que, dessa forma, fosse possivel demonstrar 0 emprego das vocalidades a servico da construcao de sentidos. ‘Ao tomar contato com a obra do compositor e professor Luiz Tatit, conclué que aquele seria o melhor caminho para fundamen- y A VOZ NA CANGAO POPULAR BRASILEIRA tagao tedrica, fazendo uso da semidtica tensiva como ferramenta de anilise da relagdo melodia/letra, presente nos trabalhos do professor, ¢ transpondo essa abordagem para o Ambito da realizacao vocal. Além das leituras realizadas, pude frequentar como ouvinte a disciplina ministrada por Luiz Tatit, “Semidtica Aplicada 4 Cangao Popular”, ofere a aos alunos do curso de pés-graduagao em Le- tras da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciéncias Humanas da USP. O fato de frequentar essa disciplina me permitiu ter acesso pratico 4 abordagem adotada por Luiz Tatit em seus livros, tornando mais proxima a possibilidade de transposi¢do desta para o ambiente da realizagao vocal, mesmo sendo eu completamente iniciante no que se refere 4 compreensao e ao conhecimento da semidtica. Definida a metodologia para o tratamento das andlises, resta- va pensar 0 corpo do texto de forma a garantir minimamente um desenvolvimento que conduzisse a uma clareza sobre 0 compor- tamento da voz na cangao popular midiatizada e as contribuigées da Vanguarda Paulista nas transformacées ocorridas nesse com- portamento vocal. Como o termo Vanguarda Paulista se aplica a varios trabalhos musicais realizados na cidade de Sao Paulo no inicio dos anos 1980, seria necessario proceder a um recorte de observacao do proprio grupo, enfocando os trabalhos nos quais a questao vocal fosse real- mente diferenciada. Apos um longo periodo de escutas, conclui que esse diferencial estava presente nas vozes das cantoras Na Ozzetti, Suzana Salles, Teté Espindola e Vania Bastos, por onde inici © processo de analise. No entanto, em pouco tempo pude constatar ientao que também havia padroes novos de vocalidades na realizacao mu- sical de alguns compositores. Assim, as vozes de Arrigo Barnabé, Luiz, Tatit e Itamar Assumpgio, pelo que revelavam sobre 0 com- portamento vocal, tornaram-se também objetos de anillise. 18 INTRODUGAO Definidos os fonogramas que seriam analisados, parti para a estruturagao geral da dissertacao. No primeiro capitulo, procurei mapear os diversos ambien- tes para o canto, abordando brevemente 0 canto erudito, 0 canto popular midiatizado e os cantos étnicos, no intuito de estabelecer parametros para compreender técnica ¢ esteticamente 0 universo que irfamos abordar. Durante as inimeras leituras realizadas para a pesquisa, pude entrar em contato com o fascinante livro Demetrio Stratos - Em Busca da Voz-misica, de Janete El Haouli. Este livro tornou-se uma referéncia importante nao somente pelas reflexdes aponta- das em torno do cantar, mas também pela maneira ao mesmo tempo rigorosa e apaixonada com que foi escrito. Na bibliografia levantada, pude constatar que os textos mais apaixonados e envolventes sobre o canto nao eram escritos por cantores, nem tampouco por professores de canto, o que me fez refletir sobre como a abordagem técnica poderia se tornar fria e distante da realizagao pratica. Isto foi um dos fatores que me fizeram permanecer na busca para construcao de anialises que nao se apresentassem apenas como reflexao sobre compor- tamento técnico, mas principalmente que apontassem algo na observacao dos sentidos e emotividades construidos pela voz na execugao musical. Dando sequéncia a elaboracao do primeiro capitulo, propus um pequeno levantamento histérico e técnico sobre as princi- pais vozes da cangao popular midiatizada, enfocando os desem- penhos mais significativos na construgao dessa sonoridade, que tinha a fala como fonte de produgao musical. O contetido de inovagao trazido pelo cantor foi o que nor- teou a construgado dessa pontual cronologia vocal. 19 1 Vocalidades Multiplas: Referéncias para o Canto O CANTO E OS CANTARES A combinagéo de musica e fala na expres- sao tinica do canto tem um poder inigualavel, transmitindo sentimentos de grande elevagéo ou de pungéncia quase insuportavel. Yenupi MENUHIN e Curtis Davis, A Miisica do Homem. O canto se apresenta como a manifestagao musical primeira na historia da humanidade (Menuhim & Davis, 1990, p. 7), contex- tualizando rituais religiosos ou de paganismo, sofrendo transfor- magoes constantes através do tempo, agindo como um elemento constitutivo e também como agente critico e canal expressivo da sociedade da qual é fruto. Desde os chamados cantos étnicos 4 musica europeia, che- gando a musica popular midiatizada, tém sido muitos os enfo- ques de produgao vocal, resultando em diferentes universos de expressao ¢ miltiplas abordagens técnico-vocais. 23 A VOZ NA CANGAO POPULAR BRASILEIRA Para o cantor, popular ou erudito, a relagdo com o seu instru- mento se estabelece, inicialmente, de maneira intuitiva, criando muitas vezes a imagem da naturalidade do cantar, ou seja, de um cantar tio organico quanto a fala, que é realizado sem esforco aparente, mesmo que o contetido musical expresse virtuosismo. A manutencao dessa naturalidade sera buscada sempre pelo cantor, fazendo-se valer, para isso, do desenvolvimento técnico que pode ser conquistado através de um estudo formal, ou pela experiéncia adquirida através da atividade profissional, como foi para a maio- ria dos cantores populares no Brasil até pouco tempo atras. O voltar-se para dentro, desenvolvendo essa capacidade a partir do refinamento da percep¢ao, ¢ 0 ponto de partida da ini- ciagao do cantar que vai exigir um completo dominio do me- canismo respiratorio, do controle muscular abdominal e inter- costal, do ajuste fonatério e articulatério, possibilitando que o instrumento-voz responda de maneira adequada quando solici- tado, superando toda e qualquer intempérie emocional ou fisica que se apresente, equilibrando palavras e sons musicais sobre a ténue linha da emissao. Embora o cantor popular tenha se orientado, durante muito tempo, a partir de elementos intuitivos, herdamos do canto lirico re- feréncias para a realizagao vocal, como a nogao de poténcia, beleza e capacidade dramatica que sao constituintes do chamado belcanto'. A nomenclatura para as diversas vozes masculinas e femini- nas ¢ seus subgrupos’, de acordo com a tessitura, qualidade tim- 1. “Tee pela agilidade nas ornamentagées ¢ fraseado, Termo de origem italiana referente & arte ¢ A técnica do canto que se firmou na segunda metade do século XVI" (Wikipedia 2006 — Itélia, tradugio livre pela autora) virtuosistica caracterizada pela passagem homogénea de um sub-registro a outro, 2. Embora essa nomenclatura varie de autor para autor, em linhas gerais temos para as vozes femininas: soprano (ligeiro, lirico e dramatico); mezzo-soprano (ligeiro e dramético) ¢ con- 24 VOCALIDADES MULTIPLAS: REFERENCIAS PARA © CANTO bristica, leveza ou peso etc., vem também do grande teatro da Opera (Tranchefort, 1983). Na musica populara possibilidade de mudanca da tonalidade da cangao torna irrelevante esse tipo de classificagao. O que im- porta é a capacidade do cantor de conhecer a sua voz e de saber escolher a tonalidade que melhor exponha 0s atributos vocais e a capacidade interpretativa, atendendo as necessidades da cangao. E no caminho de conhecimento e desenvolvimento técnico da voz, 0 trajeto percorrido é, hoje em dia, bastante semelhante para ambos, divergindo, no entanto, nos objetivos estéticos pretendidos, pois os ideais pregados pelo belcanto nao sao adequados a cangao popular, cuja emissao se processa proxima 4 fala, evidenciando a relacao entre texto, melodia e articulacao ritmica, bem como 0 em- prego de vocalidades que reforgam a construgao dos sentidos. No belcanto, a beleza e 0 virtuosismo da execugao vocal sobre- poem-se, na maioria das vezes, a inteligibilidade do texto cuja ga- rantia de compreensao da-se, no caso da pera, pela existéncia do libreto. Assim, a voz esta livre para mostrar-se plena, servindo ex- clusivamente ao virtuosismo da execugdo musical e a construgdo de uma expressao pautada pela aplicagao de recursos técnicos. HA na voz uma espécie de indiferenga relativa a palavra: no canto, por exemplo, chega-se a certos momentos em que a voz somente modula sons desprovidos de existéncia linguistica: fralalé ou alguns puros vocalizes’. Existem formas de canto cuja particularidade é a auséncia da lingua ou, pelo menos, uma certa tendéncia da voz a dissociar os elementos da lin- guagem que ela transmite. O que importa mais profundamente a voz é que tralto. [4 para as vozes masculinas a classificagao é a seguinte: tenor (ligeito, bufo, lirico e dramético); baritono (leve, verdiano e baixo) e baixo (cantante, profundo e bufo). 3. Exercicio para treinamento da vo?, no qual o cantor executa trechos melédicos com vogais ¢ vogais articuladas por consoantes. 25 A VOZ NA CANGAO POPULAR BRASILEIRA a palavra da qual ela é veiculo se enuncie como uma lembranga; que esta palavra, enquanto traz certo sentido, na materialidade das palavras ¢ das frases, evoque (talvez muito confusamente) no inconsciente daquele que a escuta um contato inicial, que se produziu na aurora de toda vida, cuja marca se apagou em nés, mas que, assim reanimada, constitui a figura de uma promessa para além nao sei de que fissura (Zumthor, 2005, p. 64). Nesta citacao do medievalista Paul Zumthor, que se revela um grande conhecedor apaixonado pela voz, podemos referen- ciar muitos aspectos do canto lirico. Dentro desse universo, no entanto, essa referéncia jé apresenta algumas variantes, solicitan- do do cantor uma execugao na qual haja intengées atreladas ao texto, como no caso do Lied’ e, principalmente, vemos a busca de novas vocalidades nas realizagdes contemporaneas, em que o contetdo musical das palavras passa a ser utilizado como ele- mento interpretativo, valendo-se inclusive de gritos e sussurros que redimensionam 0 papel da voz na realizacao musical. Ja para o cantor popular a palavra é elemento fundamental da construgao do som e do sentido. A voz, portadora do contet- do melédico da cangdo, somam-se 0 som ¢ a ritmica da pala- vra, criando um terceiro ambiente sonoro, resultante da fusao do componente musical com o linguistico, possibilitando que © cancionista-intérprete, ao equilibrar essas tensdes, estabeleca uma comunicagao com 0 ouvinte, garantindo a sua eficacia’. 4, “Durante o periodo romantico, houve um rico florescimento da cangao, especialmente do Lied alemao, para vor solo ¢ piano (o plural é Lieder ~ “cangoes”).(...] Numa composigao des- se tipo, o autor, naturalmente tem mais facilidade de adaptar 0 canto as mudangas que Vio se processando no caratere no teor dramatico dos versos, ¢ de espelhar isso, com certos detalhes, no piano. Um importante aspecto da maioria dos Lieder é que o acompanhamento de piano indo se contenta em ser mero ‘suporte’ do canto. Ao contrério, voz piano dividem igualmente a responsabilidade da miisica” (Roy Bennett, Unta Breve Historia da Muisica, p. 58). 5. Oconceito de eficdcia na cangao & amplamente desenvolvido por Luiz Tatit em varias de suas obras, 26 VOCALIDADES MULTIPLAS: REFERENCIAS PARA © CANTO Estes cantos tradicionais revelam-se como fonte de novos comportamentos, capazes de “libertar a voz dos muros do conven- to do belcanto” (Stratos, 1987-1988, apud El Haouli). Essa busca pela auséncia de limites e novas possibilidades de realizagao sao ob- servaveis também no trabalho de alguns cantores que privilegiam a experimentacao como finalidade na produgao vocal: Meredith Monk, Theophilo Mayer e Demetrio Stratos sio alguns exemplos, O cantor e performer egipcio-italo-grego Demetrio Stratos realizou uma profunda pesquisa sobre a voz, submetendo-se a se tornar ele proprio um laboratorio de experimentagao vocal, movido pelo reconhecimento de que “a voz ¢ hoje na musica, um canal de transmissao que nao transmite mais nada”*. Em Deme- trio Stratos encontramos o cantor que liberta 0 exercicio da voz para além da palavra, explorando sonoridades e criando novas percepgées e sentidos, baseados na necessidade de resgatar 0 po- der expressivo da voz através de vocalidades nao padronizadas. De volta ao ambiente da musica erudita, a inquieta te na obra dos compositores da Segunda Escola de Viena - Arnold Schoenberg, Anton Webern e Alban Berg - vai abrir, dentro da musica europeia, novas expresses da vocalidade. Especialmen- te com Schoenberg, que ¢ 0 inventor ou “descobridor”, como ele mesmo preferia ser chamado, do sprechgesang, o canto falado. presen- E como se a entonagdo melddica, necessdria para a emissdo vocdlica, sofresse as consequéncias desse “rompimento” com a tonalidade classica, dando vazao a deslizes microcrométicos em que notas fixas de referéncia absoluta cedessem lugar a uma continua transi¢io harménico-intervalar, em sintonia plena com os anseios da dita “atonalidade” essencialmente 8, Demetrio Stratos, “Diplophonie et autre”, Demetrio Stratus - em Busca da Voz-misica, Janete El Haouli. 29 A VOZ NA CANGAO POPULAR BRASILEIRA vagante, e que faziam eco a postica perambulante da ultima tonalidade. Elevado a paradigma da escritura vocal no célebre Pierrot Lunaire de 1912, 0 canto-falado efetuava, assim, curiosamente, uma sintese historica entre o atonalismo emergente e 0 canto dos cabarés vienenses, tao admirado por Schoenberg (Menezes, 1999). Observamos aqui a utilizacgao da voz no universo da musica erudita sendo refeito a partir de novas referéncias composicio- nais geradas pelo rompimento com o tonalismo, e, no caso do sprechgesang, pela incorporagao de elementos da fala na musica. E notério também 0 transito estabelecido entre os diversos ambientes de criacdo, como nos mostra a citacao anterior sobre a presenca dos cantos de cabaré no Pierrot Lunair de Schoenberg, revelando um dado comum entre compositores pertencentes a universos musicais tao diferentes. Assim, pudemos constatar que a voz, “unico instrumento comum a todas as civilizagdes musicais” (Schaeffer, 1998), tem sido objeto de constantes buscas e transformag¢ées, resgatando de tempos em tempos o caminho expressivo que pode parecer imo- bilizado pelo estabelecimento das culturas e também pela forte influéncia da industria cultural. Na pesquisa aqui desenvolvida, que se debruga sobre as voca- lidades na Vanguarda Paulista, movimento musical ocorrido na cidade de Sao Paulo, no final da década de 1970, observamos como essa inquietagao composicional, 0 acesso 4 formagao académica, bem como 0 aprofundamento dos estudos da linguistica e da se- mi6tica contribuiram para a produgao de novas referéncias na canc¢ao popular, produzindo comportamentos vocais inovadores dentro do universo da can¢ao popular midiatizada. Verificare- mos também a contribuicao dos cantores que, com sua formagao e desenvolvimento pessoais diferenciados, trouxeram novos da- 30 VOCALIDADES MULTIPLAS: REFERENCIAS PARA © CANTO dos para a realizagao musical, contribuindo definitivamente para aampliagao das possibilidades da voz na cancao popular. REFERENCIAS VOCAIS NA HISTORIA DA CANGAO POPULAR BRASILEIRA MIDIATIZADA Partindo da escuta de fonogramas para a observacao sobre ele- mentos técnicos e estéticos no canto popular midiatizado, pude- mos constatar que algumas vozes, por suas condutas técnicas e musicais inovadoras, poderiam marcar pontualmente a historia da voz na can¢ao popular, estabelecendo as bases para aquilo que Julio Diniz denominou uma “genealogia do canto no Brasil” (Di- niz, 2003). Gragas a industria fonografica, grande parte dessa historia esta devidamente registrada, possibilitando um estudo dos refe- renciais estéticos nos diferentes momentos da cangao industriali- zada, nao apenas no que se refere 4 execugao vocal, mas também 4 utilizagao de determinados tipos de acompanhamento instru- mental que redimensionam as concep¢oes de arranjo, bem como a relagado da voz com os instrumentos acompanhadores. Ao realizarmos esse levantamento pontual sobre a voz no Brasil, pretendemos apontar os elementos que fundamentam uma tradi¢ao para o canto popular e, ao mesmo tempo, identifi- car as contribuicoes trazidas pelas vozes da Vanguarda Paulista, ressaltando, no entanto, que as novas formas de utilizagao da voz nao substituem as ja existentes, porém se somam a elas, amplian- do cada vez mais 0 universo de vocalidades da cangao popular. Com a sedimentagio do samba como género musical, fato que ocorreu entre os anos 20 ¢ 30 do século passado, pudemos 31 A VOZ NA CANGAO POPULAR BRASILEIRA verificar que a referéncia estética para a realizacao vocal passou a utilizar mais acentuadamente os parametros da fala, produzindo uma emissio vocal mais coloquial e com menos utilizagao de vi- brato, valorizando a articulacao ritmica e a execucao do fraseado musical em detrimento da poténcia e da dramaticidade, carac- teristicas da seresta e em que se observavam mais claramente as influéncias do belcanto sobre a cangao popular. Essa nova maneira de articulacao ritmica, expressao e emis- sao vocal podem estar associadas diretamente a fixacao do “es- tilo moderno” (Sandroni, 2001), ou seja, ao samba cujo padrao ritmico se distancia do maxixe, caracteristico do “estilo antigo” (idem), cujo compositor mais representativo é Sinhé, grande in- centivador do cantor Mario Reis (1907-1981), uma das principais teferéncias vocais do periodo, cuja articulagao ritmica mais enri- jecida, provocando pontuacées finalizadoras a cada frase, exalta- va a presenca do maxixe, tornando menos fluida a realizagao do fraseado ritmico, mas ja estabelecendo padrées entoativos vincu- lados a fala na realizagdo da melodia. O novo padrao ritmico estabelecido pelos compositores do Estacio de Sa” torna a execugao musical menos rigida, e essa ma- leabilidade é transportada ao canto, produzindo uma intengao de danga através da expressao vocal. O elemento conhecido como swingue se estabelece na cangao brasileira urbana a partir desse estilo moderno de samba que vé a execugao da sincopa refeita a partir da influéncia dos elementos da cultura e da mtisica negra. O cantor Luiz Barbosa (1910-1938) é um dos representantes dessa modernidade, tendo gravado muitos compositores decla- 9. Bairro da cidade do Rio de Janeiro, conhecido reduto de sambistas como Ismael Silva, Bide € Nilton Bastos, responsiveis por introduzir um novo padrao ritmico & célula matriz do samba (ver Sandroni, op. cit.). 32 VOCALIDADES MULTIPLAS: REFERENCIAS PARA © CANTO radamente identificados com esse samba pés-Estacio, como é 0 caso de Noel Rosa (1910-1937) e Orestes Barbosa (1893-1966), entre outros. Luiz Barbosa foi um dos primeiros a introduzir o breque no samba e teve, além disso, como marca de suas inter- pretacgGes o batuque no chapéu de palha. Embora haja muitas divergéncias sobre essas questdes referen- tes aos estilos do samba naquele periodo, a escuta de fonogramas é bastante elucidativa nesse caso, tornando possivel perceber, a partir dela, as diferencas entre as realizagGes nao sé no que se refere 4 ques- tao vocal, mas a realizagao musical de maneira ampla. Em seu livro Feitigo Decente, Carlos Sandroni, tratando desse assunto, cita os au- tores Silva e Oliveira Sobrinho, cujo texto, embora possa aparentar certo trato simplista a questdo das relacées musicais e classes sociais, parece encaminhar um pensamento esclarecedor sobre esse fato. A palavra samba, portanto, durante algum tempo designou dois géne- ros musicais de origens distintas e bastante caracterizadas, para os musicos de formago profissional, que em geral sabiam ler na pauta, pertencentes 4 baixa classe média, frequentadores dos ranchos e dos teatros populares, como Donga e Sinhé, samba era sindnimo de maxixe, tiltimo estagio abrasi- leirado da polca europeia. Para os negros mesticos descendentes de escravos, era um género novo, tiltimo estagio abrasileirado do batuque angolense, que eles propunham ensinar a sociedade nacional por meio do movimento das escolas de samba (Silva ¢ Oliveira Sobrinho in Sandroni, op. cit.). A cantora Carmen Miranda é outro ponto de referéncia e que fundou bases para 0 canto que se configuraria depois dela. Certa- mente foi a primeira cantora a fazer uso do elemento entoativo, fazendo ouvir a fala no canto e associando, pela primeira vez, a construcdo de uma imagem que se relacionasse com a expressio do sentido musical e poético. Seu gesto vocal estava diretamente ligado 33 A VOZ NA CANGAO POPULAR BRASILEIRA Eu estava entao (década de 50) muito descontente com aqueles vibra- tos dos cantores ~ Mariiiiina moreeeeena Mariiiina vocé se pintooooou ~ e achava que nao era nada disso. Uma das misic s que despertaram, que me mostraram que podia tentar uma coisa diferente foi Rosa Morena, do Caymmi. Sentia que aquele prolongamento de som que os cantores davam prejudicava o balango natural da mtisica. Encurtando o som das frases, a letra cabia certa dentro dos compa: ficava flutuando. Eu podia mexer com toda a estrutura da musica, sem precisar alterar nada. Outra coisa com que eu nao concordava era as mudangas que os cantores faziam em algu- mas palavras, fazendo 0 acento do ritmo cair em cima delas para criar um balango maior. Eu acho que as palavras devem ser pronunciadas da forma mais natural possivel, como se estivesse conversando. Qualquer mudanga acaba alterando o que o letrista quis dizer com seus versos. Outra vantagem dessa preocupagao é que, as vezes, vocé pode adiantar um pouco a frase e fazer as vezes com que caibam duas ou mais num compasso fixo. Com isso pode-se criar uma rima de ritmo. Uma frase musical rima com a outra sem que a misica seja artificialmente alterada. [...] Geralmente, 0 cantor se preocupa com a voz emitida da garganta e sobe muito, deixando o violéo = ou qualquer outro instrumento de acompanhamento ~ falando sozinho 14 embaixo. E preciso que a voz se encaixe no violao com a precisao de um golpe de caraté, e a letra nao perca sua coeréncia pottica””, E possivel considerar que a primeira grande inovacao, além da propria realizagio musical, produzida por Joao Gilberto tenha sido refletir sobre o cantar. No ambito da can¢ao popular mi- diatizada, principalmente naquele momento, a construcao de um pensamento critico pelos cantores nao era uma pratica regular. A reflexdo sobre 0 canto ¢ o redimensionamento de um comporta- mento vocal, a partir de uma insatisfacdo com a estética reinante, traduziu 0 que parecia ser também o desejo de realizacao de al- guns compositores, tornando esse trabalho de equilibrio da voz, 10. Joao Gilberto, em entrevista a Térik de Souza e Elifas Andreatto, Apud Walter Garcia, Bim Bont a Contradigao sem Confltos de Joao Gilberto. 36 VOCALIDADES MULTIPLAS: REFERENCIAS PARA © CANTO prolongamento da fala no canto e sintese polirritmica entre voz e violao, uma referéncia para a sua propria geracao. Outro fato importante a destacar é que a intimidade expres- sa pela jun¢do voz/violio redimensionou toda a relacao entre a voz € os instrumentos acompanhadores, numa relagao de maior equilibrio, na qual ela ja nao esta mais isolada a frente de tudo, mas somada ao componente instrumental. Ao mesmo tempo o canto falado denota o entendimento de Joao Gil- berto da forma artistica que produz: sua voz se equilibra no limite entre © canto e a fala, uma linha que divide o nascimento e a morte da propria cangdo. Dai que o baiano rebaixe, necessariamente, a poténcia musical do canto (cuja emissdo, por natureza, se lana para atingir longe) ao nivel da palavra falada (por caracteristica, de pouco alcance). No entanto, uma vez, que a esséncia da cangao é 0 modo como se diz alguma coisa, a compreen- sao dessa linguagem ainda mantém a voz bossa-nova em primeiro plano, equilibrando-se, dessa forma, a proximidade entre a voz e 0 violdo (e de- mais instrumentos) com a natureza solista da cangao (Garcia, 1999). Esse redimensionamento da voz através de uma aparente simplificagdo do cantar possibilitou que muitos compositores se tornassem os intérpretes de sua propria obra, j4 que nao era mais necessdrio possuir uma voz diferenciada, potente e capaz de in- terpretagdes carregadas como se observava nas fases anteriores. O elemento vital tornava-se, naquele momento, a capacidade de controle vocal, fossem quais fossem as possibilidades da voz e a expressio combinada dos conteudos da letra e da melodia, como é notério em Joao Gilberto. A partir de meados dos anos 1960, os muitos acontecimen- tos testemunhados em todo 0 mundo, como a contracultura, a revolucao sexual, os Beatles etc., abriram muitas novas possibili- dades para a musica popular também no Brasil. A exploracao de 37 A VOZ NA CANGAO POPULAR BRASILEIRA todas as vertentes estéticas vistas até aqui somadas 4s influéncias trazidas pelo rock, que colocava o grito como mais uma possibi- lidade expressiva no canto, vio, mais uma vez, redimensionar as possibilidades estéticas para a voz na cangao. A incorporagao da guitarra na musica brasileira trouxe o elemento da estridéncia que também se fazia presente na voz. A performance dos can- tores passou a ser vital na complementacao da expressao vocal, pois a musica ja nao era apenas som, mas um espetaculo cénico transmitido pelo grande veiculo da época: a televisao. © auge dessa combinagio se deu com os tropicalistas, que bus- cavam reinventar a musica brasileira a partir da incorporagao de elementos transgressores para 0 periodo, que traziam para a reali- zacao musical transformagées em toda a concepgao, desde o for- mato das composigdes, ao arranjo e, principalmente, a execucao. A questao da performance pode ser pensada como 0 inicio da influéncia da televisio que naquele momento comegava a ser © mais importante veiculo de propagagao da musica, obrigando os cantores a pensar na construgao de uma imagem associada a criagdo musical. Os compositores Caetano Veloso e Gilberto Gil, no que se refere 4 performance, sao os mais representativos desse momen- to, pois entendiam que uma mtsica que se pretendia revolucio- naria em contetdo deveria também ser revolucionaria na forma. Este talvez tenha sido o grande embate entre os tropicalistas e os compositores da chamada MPB, que produziam uma musica engajada politicamente, mas formalmente conservadora. A cantora Gal Costa, musa do tropicalismo, tornou-se, pela incorporagao de todos esses elementos, a principal voz desse pe- riodo. Se no inicio de sua carreira, em meados de 1964, estava cada com a emissao “joaogilbertiana”, no final dessa déca- 38 VOCALIDADES MULTIPLAS: REFERENCIAS PARA © CANTO da assumiu de vez a estridéncia, valendo-se de seu registro agudo, criando duelos entre voz e guitarra, como na grava¢ao original de Meu Nome E Gal, composta especialmente para ela por Roberto e Erasmo Carlos. O visual da cantora na época também refor- ¢a esses contetidos e, juntamente com Caetano e Gil, revela-se pioneira na criagdo de uma atitude performatica, fazendo uso de elementos polemizadores, como a utilizacao de figurinos absolu- tamente inusitados e a exploracdo de uma sexualidade ambigua. Os tropicalistas realizaram a vinculagdo de texto e melodia, explo- rando o dominio da entoagao, o deslizar do corpo na linguagem, a mate- rialidade do canto e da fala, operados na conexao da lingua e sua dicgao, ligados ao infracédigo dos sons que subjazem & manifestagao expressiva. No canto brilham significagdes que provém da fricgao da lingua, ocupan- do suas diferengas, “dizendo” o que ela nao diz. £ um jogo estranho a co- municagao, 4 representacao dos sentimentos, enfim, a expresso ~ feito do fluxo das duragées, intensidades e pulsacées, presentificando o corpo no sistema de diferengas (descontinuidades) que constitui a lingua. Pela entoagao, inflexdes ¢ gestos vocais, o canto intensifica o desejo, ressaltando também o ritual na musica, manifestado na danga e no sexo ~ e é aqui que melhor se apreende a rela do corpo na substancia viva do som tensiona a lingua cantada, levando ao ultrapassamento dos fenémenos decorrentes de sua estrutura, como \Go entre o erdtico e o politico, Esta inscrigao estilos de interpretagao, idioletos dos compositores, mudangas ritmicas, variagGes de timbres (Favaretto, 1996, p. 32). Ainda na década de 1960, o surgimento das vozes de Elis Regina e Maria Bethania pode ser considerado marco de uma nova performance cénico-vocal. Tanto uma quanto outra fa- ziam uso da voz a servigo de uma expressao dramatica, igno- rando qualquer tipo de comportamento vocal preestabelecido, e nao aceitando nenhum dos inumeros rétulos que a industria 39 A VOZ NA CANGAO POPULAR BRASILEIRA fonografica e a propria critica quiseram lhes impingir. Consi- derando ainda a questao da performance, seriam exatamente elas a iniciar uma transformagao no espetaculo musical, incor- porando ao show elementos da linguagem teatral, inclusive a propria diregdo cénica. A CANGAO E A EXPRESSAO VOCAL Além de abordar a questao vocal propriamente dita, gostariamos de estabelecer os parametros para o que é a realizagao musical denominada cangdo. Em seu livro A Cangdo, Eficacia e Encanto, 0 compositor Luiz Tatit inicia exemplificando com uma definigéo dada por Almirante": Mais uma vez ficou provado que o éxito da miisica popular depende e quase exclusivamente do valor intrinseco de sua melodia e da graga e ins- piragdo de seus versos. Arranjos, gravagdes trabalhadas etc., naturalmente ajudam... mas sao simples acessérios... (Almirante apud Tatit, 1986, p. 1). Embora no prosseguimento de seu texto Luiz Tatit classifi- que de obsoleta a afirmagao de Almirante, chamando a atencao para o papel do arranjo como agente transformador da cangao, em outro trecho corrobora a opiniao do radialista: Se pedirmos a alguém que cantarole uma cangao para que a possamos identificar, certamente ouviremos uma linha melédica com trechos da letra ou LL. Apelido pelo qual era conhecido Henrique Foréis, radialista, cantor e pesquisador da mi ca popular brasileira, cujo acervo pessoal constitui hoje 0 acervo do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro. 40 A VOZ NA CANGAO POPULAR BRASILEIRA Refletindo sobre a questo das adequacées tematicas no exercicio da composic¢ao, e destacando a compatibilizacao entre letra e musica como elemento primordial na construgao dos sen- tidos e eficacia da comunicagio, pudemos observar que cangdes que abordam conflitos amorosos, por exemplo, tendem a anda- mentos mais lentos, contornos melédicos que se desenvolvem num tracado que conduz a um pice, coincidente com o ponto extremo do conflito expresso no texto, o que permite também ao cantor uma maior amplitude dramatica. E 0 momento em que a dinamica da execugao normalmente cresce e a voz exp6e os atri- butos de beleza e dramaticidade. Essas cangdes de predominio melédico, muitas vezes asso- ciadas a contetidos passionais, encontraram melhores expres- sdes através das tessituras vocais mais graves e de timbres cujos corpos sonoros sao mais densos. Nao foi a toa que no periodo que antecedeu o segundo grande momento da cancao brasilei- ra’, que é caracterizado pela renovacao do samba-cangao, com predominancia de temas amorosos, ocorreu também o apareci- mento de um niimero bastante significativo de cantores de vozes graves ou médio-graves, como, por exemplo, Dick Farney, Nora Ney, Elizeth Cardoso e Angela Maria, entre outros. Ja as cangdes de predominio ritmico tendem a conteudos mais leves ou mesmo irdnicos, como se pode conferir em muitos sambas da chamada Epoca de Ouro, ou ainda em algumas obras da Bossa Nova, em que a complementagao vocal se da através de 12. Varios autores, dentre os quais Zuza Homem de Mello e Jairo Severiano, dividem a mitsica popular brasileira em perfodos. Segundo estes dois autores essa divisao estabelece que o pri- meiro grande periodo da miisica midiatizada no Brasil vai de 1917 a 1945 e é conhecido por “Bpoca de Ouro”. Jé 0 perfodo que vai de 1946 a 1957, que ficou conhecido como periodo da Renovagio do Samba-Cancio, é considerado um momento de transigdo entre a tradigio ¢ a modernidade na misica popular brasileira que é inaugurada pela Bossa Nova. 42 VOCALIDADES MULTIPLAS: REFERENCIAS PARA © CANTO vozes mais agudas, carater timbristico menos denso, corpo sono- ro menos pronunciado, solicitando do cantor uma valorizacado da articulacao ritmica e da entoagao. Na Epoca de Ouro, as vozes de Aracy Cortes, Carmen Miranda, Araci de Almeida e Mario Reis poderiam exemplificar bem esse tipo de ocorréncia, assim como na Bossa Nova as cantoras Nara Leao, Claudete Soares e Doris Monteiro, além, é claro, de Joao Gilberto, 0 responsavel pela reinvencao desse modelo vocal. Dessa forma, vemos associado as transformagées ocorridas na cangio popular o surgimento de novas vozes em conjun- ¢a0 com os componentes estéticos de cada época, assimilando influéncias que estabelecem tracos comuns entre todas elas, sem, no entanto, perder o espaco da expressao individual, aquilo que a particulariza e a torna singular, configurando uma contribuicdo unica para a realizacao artistica. A voz humana é, na verdade, o espaco privilegiado (eidético) da dife- renga: 0 espago que escapa a todas as ciéncias, pois nenhuma ciéncia (fisio- logia, historia, estética, psicandlise) é capaz de esgotar a voz: classifiquem, comentem historicamente, sociologicamente, esteticamente, tecnicamente a misica, restard sempre algo, um suplemento, um lapso, um som dito que se designa a si préprio: a voz (Barthes, 1990). 43 A VOZ NA CANGAO POPULAR BRASILEIRA Mesmo com a grande segmentacao da industria fonografica no periodo, a profissionalizacao da fase de criagao do disco nao am- pliou a acessibilidade a esse ambiente para qualquer trabalho que pretende: industria se disponibilizava a correr um risco planejado quando inseria um novo produto no mercado, Dessa forma, 0 tinico ca- pontar novos caminhos estéticos e musicais, pois a minho para alguns artistas identificados com propostas que nao se enquadravam naquelas orientadas pela grande industria do disco era partir para a producao independente. Na cidade de Sao Paulo, esse segmento tornou-se 0 meio possivel para muitos musicos, compositores ¢ intérpretes que produziam um trabalho nao afinado com os referenciais estéti- cos predominantes no grande mercado fonografico, Reuniram- -se artistas de tendéncias muito diversas, movidos pelo reconhe- cimento de sua situacao nesse mesmo mercado. E, na tentativa de superar as dificuldades técnicas e financeiras para a produgao do disco, era muito comum que musicos e intérpretes participassem dos trabalhos uns dos outros, produzindo certa unidade ética, ainda que houvesse iniimeras divergéncias estéticas. Assim, se o grande mercado fonografico buscava a segmen- tacdo no sentido de garantir a ampliacao do consumo, o setor de producao independente apresentava também uma gran- de segmentagao resultante da diversidade artistica congrega- da em torno da viabilizagao da produgao executiva e musical dos trabalhos. Dessa maneira, podemos entender a categoria “alternativo” como uma referéncia a toda a producao musical realizada com recursos proprios, de artistas isoladamente ou de pequenos selos independentes, e sem acesso a grande midia, assim unidos por uma condigao pratica de existéncia e ndo por uma opgio estética 46 2 A Cena Musical na Sao Paulo dos Anos 1980 e a Vanguarda Paulista UMA ALTERNATIVA MUSICAL As categorias vanguarda, alternativo, inde- pendente e marginal foram e ainda sao usadas para se referir a toda uma geragdo que se es- tabeleceu em Sao Paulo e produziu a partir da cidade. Tais denominagaes, em certa medida elaboradas e divulgadas pela imprensa paulis- tana, passaram com o tempo a fazer parte do repertorio dos agentes do campo artistico. [...] A nogao de ser alternativo é a expresséo que melhor retrata a atmosfera daquele pertodo. Ela foi a solugaio encontrada por muitos artistas para produzir e veicular seus trabalhos diante do quadro desfavordvel de aceitagao de novas propostas por parte das indtistrias culturais, so- bretudo aquelas diretamente relacionadas com a drea musical. Ela aparece também como a melhor qualificagéo para designar a sociabili- dade da regiao. LagRTE FERNANDO DE OLIVEIRA, Em um Pordo de Sao Paulo, 45

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