You are on page 1of 26

Eu, Manuel Inácio, quero

ser santo!

Ricardo Ferreira de Almeida


Eu, Manuel Inácio, quero ser santo!

PERSONAGENS
MANUEL INÁCIO, o Santo
SALOMÉ, a Mulher
CUSTÓDIO, o Padre
ALVARO, o Regedor
DONA JULIETA, o Elemento do Júri
AMÉLIA, uma mulher
POLÍCIA, o amante de Salomé

2
Eu, Manuel Inácio, quero ser santo!

QUADRO I
A acção passa-se em Lamas d’Olo, aldeia de Vila Real, durante o período de selecção das
aldeias-tipo transmontanas para participarem no concurso promovido pelo SPN da ALDEIA
MAIS PORTUGUESA DE PORTUGAL, em 1938. Tasca de aldeia, lugar de todas as cenas.

PADRE
Já estão cá todos? Ora bem… marquei este encontro para vos transmitir algo de enorme
importância…
AMÉLIA (interrompendo)
Não me diga que o Manuel de Borbela se vai casar com a Aninhas do Bilhó?!
PADRE
Nada disso! O que nos traz aqui hoje é algo muito mais importante para a nossa aldeia do
que qualquer casamento que possa existir nos próximos cem anos!
AMÉLIA
Mas olhe que o casamento deles seria muito importante para a aldeia… é só namoro,
namoro, mas quanto a casamentos, nada! Anda uma mãe a fazer o enxoval para uma filha
durante uma vida a fio para que ela leve alguma coisinha que se veja, e não há modos de
desfazer isso…
ALVARO (interrompendo)
Cale-se lá agora com os casamentos e deixe-nos ouvir! Diga o que é senhor Padre, se faz
favor…
PADRE
Ora bem! O Governo está a organizar um concurso sobre a Aldeia Mais Portuguesa de
Portugal e irá atribuir um prémio à aldeia que vencer! Sabendo que Lamas d’Olo tem todas
as hipóteses de ganhar, vamos participar nesse concurso!
AMÉLIA
Nós? E então o casamento?
PADRE
Esqueça o casamento agora, mulher! Lamas d’Olo, juntamente com a aldeia de Alturas do
Barroso, irão defender a nossa querida região de Trás-os-Montes!
ALVARO
Concurso? O que é um concurso?
PADRE
Um concurso é como se fosse um jogo de futebol, só que sem bola nem jogadores, nem
balizas nem golos!
ALVARO
Olha que rico jogo! Havia de ter uma tal piada… É preciso pagar ou fazer alguma coisa para
participar?
PADRE
Não, não é preciso nada disso! O concurso de que vos falo consiste, fundamentalmente, em
elevar o espírito da gente portuguesa no conhecimento do que é e realmente vale, como
grupo étnico, como meio cultural, como força de produção, como capacidade civilizadora,
como unidade independente no concerto das nações. Clamar, gritar incessantemente o que
é contra o que se diz ser; repor constantemente as coisas no terreno nacional, referi-las
sempre à nação…
ALVARO
E é por causa disso que participamos no concurso, por causa da nação?
PADRE
É exactamente isso… a nação é para nós sobretudo uma entidade moral, que se formou
através de séculos pelo trabalho e solidariedade de sucessivas gerações, ligadas por

3
Eu, Manuel Inácio, quero ser santo!

afinidades de sangue e de espírito, e a que nada repugna crer que esteja atribuída no plano
providencial uma missão específica no conjunto humano…
AMÉLIA
Pode ser que seja, mas se não houver golos, duvido muito que alguém vá ver…
PADRE
Ó mulher, cale-se e não diga disparates…. Nós vamos mostrar o que é nosso, o que é típico
da nossa aldeia! Os nossos traços de portugalidade! Ainda não entenderam?
ALVARO (apático)
E o que é a portugalidade?
PADRE
A portugalidade é a nossa característica enquanto povo, o que nos diferencia dos outros
povos da Europa.
AMÉLIA
E o que é a Europa, senhor padre?
PADRE
A Europa é o nosso continente, onde vivemos! Há mais quatro ainda, a África, a América, a
Ásia e… portanto… o Japão…
AMÉLIA
Isso é que é preciso senhor padre, isso é que é preciso!
PADRE
É preciso o quê?
AMÉLIA
Que haja pão! Não é o que o senhor padre diz lá no altar? Dai-nos o pão-nosso de cada dia,
que haja pão para todos!
PADRE
Ó mulher, você veio aqui hoje para me martirizar? Já não me chegam estas complicações e
você ainda tem de vir com as suas graçolas? Prestem bem atenção! De acordo com este
regulamento, as provas a que nos temos de submeter devem ter em conta “a maior
resistência oferecida a decomposições e influências estranhas e o estado de conservação
no mais elevado grau de pureza das características seguintes: 1º Habitação; 2º Mobiliário e
alfaia doméstica; 3º Trajo; 4º Artes e indústrias populares; 5º Formas de comércio; 6º Meios
de transporte (terrestres, marítimos ou fluviais); 7º Poesias, contos, superstições, jogos,
canto, música coreografia, teatro, festas e outras usanças; 8º Fisionomia topográfica e
panorâmica”. E agora o melhor de tudo… o regulamento diz que à aldeia escolhida “será
atribuído o prémio Galo de Prata, símbolo que corresponderá a um melhoramento de
utilidade pública. Ficará ainda com o direito de o colocar no campanário da igreja da
freguesia”. Que acham?
ALVARO
Peço desculpa por interromper senhor padre, mas ainda não estou totalmente
esclarecido… quer dizer então que temos de mostrar que existe portugalidade em todas as
nossas casas, caras, carros, contos, hábitos…
PADRE
Isso! Está a ver? Este está atento!
ALVARO
Eu posso mostrar a portugalidade na comida! A minha Lurdes faz uma Chanfana como
poucos!
PADRE
Não, isso não pode ser. A Chanfana não é um prato típico de Trás-os-Montes… Se ainda me
dissessem o “Vitela Assada com Batatas no Forno”, vá lá que não vá… Uma coisa é a vitela,
outra é a cabra! Antes de mais, vamos ver ponto por ponto. Habitação? Quem se oferece
para abrir a casa?
AMÉLIA

4
Eu, Manuel Inácio, quero ser santo!

Posso ser eu… só quero que me avisem antes para prender o cão e limpar o estrume da loja
do reco…
PADRE
Combinado… mobiliário e alfaia doméstica, alguém se oferece?
ALVARO
Eu… tenho um arado, dois carros de bois e umas quantas gadanhas… se forem precisas
mais coisas, levamos as do Zé da Gracinda e ninguém no povo há-de recusar em
contribuir… mas senhor Padre, permita-me que passemos adiante. E música? Pode-se
apresentar?
PADRE
Claro que sim! Aqui está, no ponto sete! Poesias, contos, superstições, jogos, canto, música
coreografia, teatro, festas e outras usanças…
ALVARO
Eu até toco umas coisatas…
PADRE
Olha, que boa usança! Tu queres entrar no concurso?
ALVARO
Eu por mim não me oponho a nada… mas não quero ir à baliza!
PADRE
Mas que baliza? Esquece o futebol, não é nada disso! Um concurso é outra coisa, entendes?
AMÉLIA
O senhor padre garante que ele não apanha umas boladas?
PADRE
Não há cá boladas nem meias boladas, mulher! Olha lá, tu queres tocar umas modinhas
quando o Senhor Doutor António Ferro vier cá a nossa aldeia?
ALVARO
Pode ser então…
PADRE
Então está combinado e não se fala mais nisso! Diz-me lá agora, que modas sabes tu tocar?
ALVARO
Eu estive cá a pensar… eu deixei para aqui uma flauta, comprei-a uma vez na feira… E se
tocássemos umas modas ao som da flauta?
PADRE
E tu amanhas-te?
ALVARO
Dou-lhe um jeito… Se o senhor padre quiser ouvir…
AMÉLIA
E eu posso cantar!
PADRE
Não! Deixe-o ouvir para chegarmos a uma conclusão. Ora bota lá a ver se serve! (Álvaro
toca)
AMÉLIA
Não está mal… já só faltam os Pauliteiros…
PADRE
Mas que pauliteiros? O Alvão não é zona de pauliteiros! Isso e lá para Miranda do Douro!
AMÉLIA
Lá se te foi ao ar a flauta…
ALVARO
Se calhar ninguém vai notar a diferença… isso é tudo flautas e saias…
PADRE
Bem… Flauta, ainda vá que não vá, mas saias…
ALVARO

5
Eu, Manuel Inácio, quero ser santo!

Também posso tocar cavaquinho…


PADRE
Pois, mas se calhar os do Minho vão pensar na mesma coisa…É um risco, mas podemos
tentar… ora bota lá uma das tuas a ver se aprova… (Álvaro toca e canta. Amélia acompanha-
o)
ALVARO
Ora ai está! Vai ser mesmo isto!
PADRE
Não, não pode ser… O cavaquinho não é típico daqui de cima… temos de arranjar qualquer
coisa, nem que sejam uns bombos…
ALVARO
Ora nem mais! Eu posso tocar caixa! O Zé das Cabras, o Chico Reco e Garcia tocam os outros
bombos!
PADRE
Tu achas?
ALVARO
Claro que sim! Íamos fazer história!
PADRE
Bem… vamos ver isso… o Zé das Cabras quando está com a bebedeira, não se aguenta! E
não quero correr riscos desnecessários. Imagina que temos cá o governo em peso e ele
desata aos gritos, a dizer que se quer matar?
AMÉLIA
Olha, que se mate! Sempre podemos apresentar a nossa forma de enterrar os mortos.
PADRE
Ai valha-me Deus! Tu estás maluca mulher? Isso diz-se?
AMÉLIA
Desculpe senhor Padre…
PADRE
Tu trata mas é de arranjar pessoas para a Procissão, um rapaz para o Baptismo, quatro
mulheres para cantarem as Janeiras, três rapazes solteiros para fazerem os Casamentos dos
Compadres e das Comadres, a Ti Felismina para contra umas histórias, os que vão tocar
bombo para ajudarem na Matança do Reco, duas equipas para jogarem ao Pau… Ah, e diz
ao Joaquim Oleiro para fazer mais dez potes de barro porque são para oferecer às damas…
AMÉLIA
Sim senhor, senhor padre… vou já tratar disso… (Amélia sai)
SALOMÉ (entrando, bate em Amélia)
Ai senhor Padre, ainda bem que o encontro!
PADRE
Então mulher? O que te aconteceu para apareceres aqui tão espavorida?
SALOMÉ
É o meu Manuel, que não me apareceu para jantar ainda!
PADRE
Olha que essa? E tu sabes onde é que ele esteve durante a tarde?
SALOMÉ
Foi ali para os lados do Bilhó, com os burros…
PADRE
Acalma-te, mulher! Vais ver que se atrasou um pouco e quando chegares a casa já estará à
tua espera!
SALOMÉ
Mas senhor Padre, ele nem veio almoçar!
PADRE
Mau!

6
Eu, Manuel Inácio, quero ser santo!

SALOMÉ
Quanto ao almoço, até que adivinhava que não viria, mas ao jantar…
ALVARO
Eu tenho notado que ele anda bastante estranho… Já nem tem cuidado com aquilo que
veste, sempre tão mal amanhado…
SALOMÉ
Qual quê? Isso são lá coisas dele…
ALVARO
Coisas dele? Então não és tu quem tem o dever de olhar pela casa? Tu deixas o teu homem
andar assim vestido, como um pelintra?
PADRE
Olha lá Salomé, não é isso que se pede a uma mulher quando casa… O cabeça de casal tem
de ser a imagem da família… Já viste o que podem pensar de ti, mulher?
SALOMÉ
Que pensem o que quiserem! Está visto que casei com um doido!
PADRE
Então mulher? Tu desatas a chamar nomes ao teu marido? O que te deu?
SALOMÉ
Deu uma coisa muito má! Aquele desgraçado desde que lhe deram lá aquelas manias, não
traz sustento nenhum para casa…
ALVARO
Mas de que manias estas tu a falar?
SALOMÉ
Aquelas manias que a Acção Católica Rural lhe meteu na cabeça…
PADRE
Mas que vem a ser isto mulher?
ALVARO
Se não fosse minha prima, ia jurar que estava possessa pelo diabo…
SALOMÉ
Não se trata de diabos, mas sim de santos!
PADRE
Alto lá! Essas coisas não são para cá chamadas! Tu estás mal mulher… Agora confundes
santos com demónios?
SALOMÉ
Quem o confundiu que o ature! O meu Manuel Inácio agora diz que é santo!
PADRE
Como?
SALOMÉ
É isso mesmo, santo! Por ler tanto aqueles manuais que lhe deixaram, sobre a vida dos
santos, deu-lhe na cabeça que a Serra do Alvão teria de ser novamente evangelizada. A
princípio até achei graça, ia ser mulher de um santo…mas depois, quando começaram a
faltar batatas, couves e carne, vi que o caso estava mal parado…
PADRE
Mas isso é mesmo verdade?
SALOMÉ
É o que lhe digo… esta manhã, quando o vi sair com os burros, pensei que estivesse
melhor, que aquela mania de ser santo já lhe tivesse passado… Disse-me que ia trabalhar
para os prédios do Malaquias da Alice…
ALVARO
Olha que esta… Não será melhor sairmos por aí, a ver se o encontramos?
AMÉLIA
Os lobos podem-se ter atirado a ele ou aos animais…

7
Eu, Manuel Inácio, quero ser santo!

PADRE
Que o diabo seja surdo, cego e mudo! Tu estás maluca? Desde que chegaste não tens dito
nada a não ser asneiras! Cala-te, agoirenta!
SALOMÉ
Ele tem uma prima ali na Anta… pode ter parado para beber um copo…
MANUEL (entrando)
Ora muito boas noites! Que Deus esteja convosco!
TODOS (automaticamente)
Ele está no meio de nós…
PADRE (dando conta da irracionalidade)
Ora essa, mas quem é que é o padre aqui?
SALOMÉ
Ai Manuel, por onde andaste que nem sequer viste almoçar nem jantar?
MANUEL
Sossega mulher, não tenhas pena de mim… Eu sou um servo do divino e dedico-me a
pregar a fé pelas serranias do Alvão… Ainda há pouco uns lobos se abeiraram de mim,
pedindo-me um pouco de carinho e compreensão e eu atendi-os como só um santo o pode
fazer…
ALVARO
Tu não me digas que lhes entregaste os burros?
MANUEL
Meu bom Álvaro que tanto te preocupas com o teu mestre, tu serás um dia meu apóstolo…
Irás escrever sobre todos os meus feitos, irás espalha-los pelos sete continentes, irás fazer a
profissão de fé, seguirás a luz…
SALOMÉ (interrompendo, aflita)
Ó homem, onde deixaste os animais?
MANUEL (placidamente)
O animais estão bem, não te preocupes…
SALOMÉ
Mas onde, que não os vejo?
MANUEL
Os burros estão nas cortes do Ti Malaquias da Alice. Vendi-os para construir um Mosteiro no
Bobal. Será aí, na construção a partir da pedra bruta, que iniciarei o meu martírio até atingir
a santidade…
SALOMÉ
Ai homem, tu foste vender os animais?
MANUEL
Mulher… tu lembra-te da vida de Santa Cristina que recusou toda a riqueza que o pai lhe
queria dar… Este manda vergastá-la e atirá-la ao mar. Depois, foi metida num caldeirão de
azeite a ferver até ser mutilada e morta! Foi considerada santa! Como vês, as riquezas nada
importam nesta vida…
SALOMÉ
Pois isso! E agora como é que vou transportar a lenha para a vender em Vila Real? No
caldeirão da santa?
ALVARO
Eu posso te alugar os meus burros…
AMÉLIA
Ou o macho… mas é mais caro…
PADRE
Calem-se todos! Eu estarei a ficar louco? Será que estou a ouvir bem?
MANUEL

8
Eu, Manuel Inácio, quero ser santo!

Meu bom amigo Custódio, um dia os irmãos da tua confraria irão venerar-me como o único
santo transmontano… São Manuel Inácio, advogado das injustiças…
PADRE
Advogado dos tolos, isso é que é! Dos tolos! (procurando com que se acalmar)
SALOMÉ
Ó homem, anda para casa… Amanhã vou a casa do Ti Malaquias tentar desfazer o que
fizeste…
ALVARO
Se quiseres companhia, podes levar os meus burros…
SALOMÉ (aflita, quase chorando)
Eu tenho de arranjar um forma de dar a volta a isto… ai os meus ricos burros…
MANUEL
Impossível…
SALOMÉ (atónita)
Como impossível?
MANUEL
Já usei o dinheiro… Já comprei o terreno e iniciei o meu martírio…
SALOMÉ (desfalecendo)
Ai homem que nos desgraçaste a vida!
ALVARO
Mas de que martírio estás tu a falar?
MANUEL
Amanhã mesmo começarei a partir aquelas fragas de imenso granito para construir o
Mosteiro de São Manuel Inácio, bem perto do Bobal… Esse será o primeiro, mas não o
único instante do meu martírio.
PADRE
Quer dizer que ainda há mais?
MANUEL
Sim. A partir também de amanhã, passarei a usar apenas esta pele de cabra, quer chova,
neve ou faça sol…
SALOMÉ
Tu endoideceste homem! Ó Senhor Padre Custódio, veja se põe mão nisto, pela alma do
criador!
PADRE
Isto é um caso muito difícil, que me deixou deveras tonto… Onde já se viu, um santo em
Lamas d’Olo? E logo o Manuel Inácio… só há uma explicação: anda aqui o diabo! Este
homem é um herege!
AMÉLIA (gritando)
Chamem a PIDE que está aqui um herege!
SALOMÉ
Não, a polícia não! Pelas alminhas, a polícia não! Se ele me falha, não tenho de comer. E com
o trabalho que tenho, andar na vezeira e na roda da rega, não ganho para comprar uma
capucha! (chora compulsivamente)
ALVARO
O Manuel, ouve lá, tu dás-te bem aqui com a tua Salomé?
PADRE
Mas que conversas vêm a ser estas?
ARMINDO
Pergunto sem ofender ninguém, senhor Padre! Sei de um caso, ali para os lados de Vila
Real, que uma mulher embruxou o homem para poder ficar com as suas posses…
SALOMÉ (acordando)
Mais bruxa é a tua mulher que tos anda a pôr com sabe Deus quem!

9
Eu, Manuel Inácio, quero ser santo!

AMÉLIA
Olha lá a mãe dos burros! Ainda te assento uns sopapos nos olhos que até vês os burros a
dobrar!
PADRE
Vamos acabar com a discussão imediatamente! Mas o que te terá acontecido a esta gente
que deu em ficar toda doida e desunida numa altura em que temos de nos unir?
SALOMÉ
Foi ele que começou!
MANUEL
Meus irmãos, as lutas não levam a lado nenhum… Lembrem-se do mártir Beato de
Líbano…
PADRE (interrompendo-o)
Está calado! Aqui quem fala de mártires e de santos sou eu e mais ninguém! Eu é que andei
a estudar no Seminário em Vila Real!
AMÉLIA
Isto é a fim do mundo!
PADRE
Não te admito que abras mais a boca para pronunciar o nome do Senhor em vão…
ALVARO (que entretanto esteve a magicar)
Ó senhor padre, acalme-se… tive cá uma ideia…
PADRE
Que ideia?
ALVARO
Ainda não viu que isto podia ser um grande trunfo?
PADRE
Em que é que estás a pensar?
ALVARO
Estou a pensar que este louco veio mesmo a calhar…
PADRE (incrédulo)
Mesmo a calhar? Para que? Não é aquilo que eu estou a pensar?
ALVARO
É isso mesmo… um santo…
PADRE
Um santo em Lamas d’Olo…
ALVARO
Esse santo dar-nos-ia a vitória…
PADRE
Não! (meditando) Achas que sim?
ALVARO
Tenho a certeza que a vitória seria nossa! Vamos, convença-o…
PADRE
Achas que sim?
ALVARO
Tenho a certeza que sim!
PADRE
E não será pecado, fazer troça dos pobres de espírito?
ALVARO
Mas que ideia tão antiquada… nós queremos ganhar, por isso vamos utilizar todos os
nossos trunfos, já que nem a flauta nem o cavaquinho nos servem de nada! Vá, vamos
convence-lo…
PADRE (astuto)

10
Eu, Manuel Inácio, quero ser santo!

Bem, eu gostava de falar a sós com o Manuel… importam-se de se retirar? Além disso, a
reunião já acabou…
AMÉLIA
Então eu vou-me indo… ainda tenho de ir buscar o rebanho que anda ali para cima da
Eira… até amanhã a todos…
PADRE (a sós com Manuel)
O Manuel, tu, à parte dessas manias, muito dignas aliás, de quereres ser santo, sabes tocar
cavaquinho?
MANUEL
O único instrumento que sei tocar é a garganta. Ainda há pouco estive a entreter uns
passarinhos, sozinhos no ninho, enquanto a mãe procurava comida…
ALVARO (interrompendo)
Desculpe-me lá senhor padre, mas eu peço a palavra… O Manuel, nós precisávamos que tu
te mostrasses ao senhor doutor António Ferro… Olha lá, tu já fizeste algum milagre?
PADRE
Bem… vamos brincar, mas sem ofender o que é sagrado!
ALVARO
Calma senhor padre… ò Manuel, tu já sabes que para seres considerado santo, não te basta
andar a pregar pela serra fora e a falar com os passarinhos… por isso, se queres ser mesmo
santo, reconhecido e canonizado pelo Papa, precisávamos que fizesses um milagre para
que toda a gente te possa considerar como tal…
MANUEL
Um milagre?
ALVARO
Sim, um milagre. Diz-me lá, lembras-te de alguma coisa que tenhas feito, meia estranha e
difícil de compreender?
MANUEL
Estranha e difícil de compreender?
ALVARO
Sim, estranha e difícil de entender…
MANUEL (pensa um pouco)
Sim. Ontem à noite a minha Salomé fez castanhas cozidas para o jantar. Quando estava a
dormir, deu-me a volta à barriga e tive de vir à rua baixar-me. Mas a vontade era tão grande,
que antes de chegar à rua, dei um peido tão grande que assustou a vizinhança toda!
ALVARO
E isso é lá algum milagre?
MANUEL
Era milagre se não tivesse cagado nas calças, porque pensei que era peido e afinal era
merda!
SALOMÉ
O único milagre que ele fez foi o ter transformado burros em calhaus!
ALVARO
Querias que o homem construísse um mosteiro com a palha dos burros, não?
MANUEL
Ainda não fiz nenhum milagre, mas posso muito bem vir a fazê-lo…
ALVARO
Ora assim é que se fala! Podes fazer o tal milagre para daqui a um mês?
MANUEL
Eu não prometo nada, mas vou tentar… depende de muita coisa…
ALVARO (dando-lhe umas notas, às escondidas)
Se precisares de alguma coisa, conta comigo!
MANUEL

11
Eu, Manuel Inácio, quero ser santo!

Contarei então…
ALVARO
Assim é que se fala! Então, está combinado?
MANUEL
Combinado… eu vou evocar as forças do senhor…
PADRE
Espero bem que se esteja a referir a outro senhor qualquer… porque o Senhor, está no céu!
ALVARO (disfarçando)
Sim, claro… está no céu…no meu, no dele, em todo o lado…
SALOMÉ
Olha que esta… qual de vós os dois é o mais maluco? Eu não vou deixar que…
ALVARO (em voz baixa)
Sossega Salomé… se isto correr bem, terás dinheiro para comprar quatro burros, dois
machos e uma carroça! Se tudo correr bem, ficaremos ricos!
SALOMÉ
Mas com quê?
PADRE
Sossega… na altura to direi… o Galo de Prata já cá canta!

12
Eu, Manuel Inácio, quero ser santo!

QUADRO II
Reunidos para a chegada de um elemento do júri, que irá avaliar o que foi visto. Passaram
quatro meses. Recebem-na, entoando umas quadras bajuladoras.

DONA JULIETA (entrando com padre)


Gostei muito de vos ver. Foi uma experiência deveras enriquecedora e que só veio
confirmar a importância que todas as regiões portuguesas têm no caminho para a
portugalidade… só me desagradou o estrume nas ruas e o intenso cheiro a urina que me
deixou os sapatos meios sujos… mas pronto, faz parte da vossa cultura local e contra isso
não há argumentos…
PADRE
Senhora Doutora Julieta, fico muito contente por ter apreciado todas as nossas actividades
e o genuíno folclore transmontano… já me sabe dizer para quando está prevista a decisão
final do vencedor do concurso?
DONA JULIETA
Agora terei que reunir com o restante júri e assim que deliberarmos, caso Lamas d’ Olo
vença o concurso, vocês serão os primeiros a saber! Fica prometido!
PADRE
Eu proponho um brinde!
DONA JULIETA
Isso mesmo, brindemos!
PADRE
Brindemos a Lamas de Ôlo e ao senhor presidente do conselho, professor António
Salazar…
DONA JULIETA
Óptimo! Então vá… Quem vive?
PADRE
Salazar, Salazar, Salazar!
DONA JULIETA
Quem manda?
PADRE
Salazar, Salazar, Salazar! Viva Salazar! Senhora doutora, espero que tudo tenha sido do seu
agrado, a comida, a dormida, o clima…
DONA JULIETA
Sim, foi tudo do meu agrado…Gostei bastante de molhar os pés no rio… algo frio, mas é
mais um exemplo de portugalidade…
PADRE
Esperamos também que o alojamento tenha sido do seu agrado…
DONA JULIETA
De noite tive frio… mas sem frio não se faz a serra, e para ter calor ia para o Algarve…
PADRE
Pois, isso é… isto não é o Algarve, apesar dos velhos dizerem “Nove meses de Inverno e
três meses de Inferno!”
DONA JULIETA
Credo! Que o diabo seja surdo e mudo! Antes o Inverno na serra com todas as cabras,
estrume e frio que as labaredas do Inferno! Cruzes, canhoto!
PADRE
E as novenas? Os casamentos?
DONA JULIETA
Muitíssimo católicos, como é prescrito pelo Senhor Professor…
PADRE
E a música?

13
Eu, Manuel Inácio, quero ser santo!

DONA JULIETA
Muitíssimo afinada, com os compassos bem marcados…
PADRE
E as pessoas?
DONA JULIETA
Muitíssimo educadas, como manda o decoro… aliás, devo dizer que as regras de boa
educação deveriam ser a matriz cultural de uma civilização!
SALOMÉ (entrando aos gritos, aflita)
Ai, raios partam o caralho senhor Padre, venha ver isto!
PADRE
O que foi?
SALOMÉ
O Álvaro está possuído pelo demónio!
DONA JULIETA
Ai valha-me aqui São Bartolomeu!
PADRE
Mas o que é isso? Pelo Demónio? Como o sabes tu?
SALOMÉ
Está-se a espumar todo pela boca e a dizer uns palavrões infernais!
PADRE
Eu vou ver isso e traze-lo para aqui!
DONA JULIETA
Mas quem é esse Álvaro?
SALOMÉ (fingindo-se aflita)
Ele nunca foi muito bom da cabeça, e desde que lhe venderam o macho piorou… e o diabo
aproveitou-se dessa fraqueza!
DONA JULIETA (principiando a ter medo)
Ora diabo, que diabo… mas há lá algum diabo aqui?
SALOMÉ
Ai isso é que há! Assume várias formas para enganar os mais imprudentes e quando se vai a
ver, toma lá que estás endemoninhado!
DONA JULIETA
Não, não pode ser! Jesus está comigo e não me deixa cair em tentação! Não há diabo
nenhum, nunca houve nem nunca haverá!
SALOMÉ
É o que eu lhe digo, foi o diabo! Como é que acha que me desapareceram os meus burros?
Foi tudo tentação do chifrudo, do cabrão, do pantomineiro!
DONA JULIETA
Ora essa agora…
PADRE
Abram alas que aí vêm o tentado pelo diabo!
(Álvaro entra aos gritos, fingindo-se possuído)
AMÉLIA
Ai que o meu homem que está possuído pelo demónio!
DONA JULIETA
Está possuído? Como assim? Isso foi há muito tempo?
AMÉLIA
Eu sei lá! Íamos a passar ali na leira e ouvimos um estalido num tronco. Vai de seguida,
começo a ouvir chapadas por todos os lados, dados por mãos invisíveis e não se via de onde
vinham! E olhe que ainda levei um bom par de lambadas nas ventas e um pontapé bem
assente no olho do cú!
PADRE

14
Eu, Manuel Inácio, quero ser santo!

Acalma-te homem!
ALVARO
Satanás! Barzebú!
SALOMÉ
O senhor padre tem de o exorcizar, senão ele ainda se parte todo com estes espasmos!
AMÉLIA
Isto é um caso para um exorcista e dos bons! Veja lá se resolve este problema rapidamente,
senhor padre!
PADRE
Eu não sei se consigo… tenho medo que os meus poderes não sejam suficientemente
fortes para o vergar! Só um santo é que lhe pode valer!
DONA JULIETA
Um santo?
PADRE
Sim, um santo!
SALOMÉ
O único santo que conheço é o Manuel Inácio!
AMÉLIA
Ai, valham-me aqui os santos Manuel Inácio e Bartolomeu, que venham salvar o meu
homem!
PADRE
O Bartolomeu já se foi... o único que nos pode salvar é o primeiro!
DONA JULIETA
Então evoquem lá esse Manuel Inácio de quem nunca ouvi falar!
ALVARO
Não, Manuel Inácio não! Não, não!
PADRE
Vê como o possuído pelo demónio receia o poder deste santo?
DONA JULIETA
Mas onde é que ele está? Vamos evocá-lo já para que desapareça daqui o diabo, raios o
partam!
SALOMÉ
Escusamos de o fazer. Vamos antes chamá-lo. Mora já ali em baixo! Volto já, aguentem mais
um pouco que eu não me demoro nada!
DONA JULIETA
O quê? Um santo Em Lamas d’Olo?
PADRE
Então a senhora doutora não sabia? Também foi falta de lembrança nossa… nós temos cá
um santo, aqui em Lamas d’Olo!
AMÉLIA
É o marido daquela que o foi chamar…
DONA JULIETA
E para que é que a deixaram ir? Nesse caso, como esposa dele, já o podia ter curado…
sendo santa!
AMELIA
Essa também é santa, mas pouco…
DONA JULIETA
Ai, raios partam a minha sorte! Vir de tão longe para me encontrar com o diabo!
PADRE
Eu vou tentar compor a situação com os meus fracos poderes de exorcista… seguram-lhe
nas pernas, que eu vou dar o meu melhor… (eles seguram, ele esperneia) Por São
Bartolomeu e São Manuel Inácio, profeta iluminado de Lamas d’Olo, Anta e Bobal, sai diabo!

15
Eu, Manuel Inácio, quero ser santo!

ALVARO
Não saio, já disse que não! Tira-me as patas, porco!
PADRE
Não blasfemes diante de mim, Satanás! Ordeno-te que abandones este espírito, que pela
sua pobreza intelectual te apoderaste!
ALVARO
Pobre de espírito é a porca da tua mãe!
MANUEL INÁCIO (entrando)
Alto, não mexam em mais nada! Cheguei eu, chegou a salvação! (Álvaro dá um grito de
medo)
SALOMÉ (tocando uma campainha)
Aleluia, aleluia!
MANUEL INÁCIO
Contem-me lá como o encontraram?
AMÉLIA
Fui eu que o encontrei… ia apanhar as minhas cabras que vinham da vezeira e deparei-me
com ele a falar com um chibo grande…
DONA JULIETA
Um chibo? Era o diabo, valha-me Deus! Esconjurasse-o!
AMÉLIA
Eu bem que o esconjurei… mas depois espetou-me umas lambadas nas bentas!
SALOMÉ
Foi… a ela deu-lhas na cara e a ele foi no cu…raios partam o diabo!
MANUEL INÁCIO
Calados! Ninguém diz esse nome sujo na minha presença! Vão me buscar um balde de água
fria enquanto eu me preparo com a minha acólita para o exorcismo.
PADRE
O meu rico santinho, valei-nos mais uma vez!
MANUEL INACIO
Irmão Custódio, não temas nada que chegou a salvação! Agarra-lhe nas pernas e prepara-te
para contar!
ALVARO
Manuel Inácio, não!
MANUEL INÁCIO
Ouve servo de Satanás, este é o meu primeiro apóstolo, São Custódio do Bobal. Quando ele
tocar a campainha pela quinta vez, sairás do corpo deste pobre de espírito.
ALVARO
Não!
MANUEL INACIO
Olha que se não sais a bem, sais a mal!
ALVARO
Nunca!
MANUEL INÁCIO
Vamos começar a contar!
ALVARO
Não!
AMÉLIA
Ai não? Levas uns pontapés no olho que sais como uma seta!
MANUEL INÁCIO
Tragam a água! Toca a campainha! Começa a contar!
PADRE (toca)
Uma… duas… três…

16
Eu, Manuel Inácio, quero ser santo!

ALVARO
Não saio!
PADRE (tocando)
Quatro… e cinco….
ALVARO
Não saio!
MANUEL INÁCIO
Então sais à porrada! (bate-lhe com um pau e no fim despeja-lhe o balde de água)
ALVARO
Ah… onde estou? Quem és tu?
MANUEL INÁCIO
Sou Manuel Inácio, o santo que fez o seu primeiro milagre!
PADRE
Milagre! Milagre!
DONA JULIETA
Milagre…
SALOMÉ
O meu marido fez um milagre! Venham todos ver. O meu marido fez um milagre!
DONA JULIETA (incrédula)
Como é possível? Um santo, em Lamas d’Olo? Graças a Deus… (rezam em conjunto,
acendem velas)
PADRE
É milagre! Ouça lá senhora doutora, quantos pontos costumam dar por um santo?
DONA JULIETA
Isso é coisa… é coisa para ser pensada… um santo exorcista em Trás os Montes… Onde já
se viu isto?
PADRE
Nas aldeias que já viu, alguma tinha santos assim, como o nosso Manuel Inácio?
DONA JULIETA
Que eu saiba, nenhuma. A não ser os santos que toda a gente conhece, como Santo
António, São João e São Pedro.
AMÉLIA
Olha que aqui nós não ligamos muito a esses santos. Quando é a festa do Santo António em
Vila Real, só meia dúzia de pessoas é que vão. E o mesmo se passa com a Feira dos
Pucarinhos, por alturas do São Pedro. Já do São João, nunca tal ouvimos falar… Apenas
veneramos o São Manuel Inácio…
MANUEL INÁCIO
Vou-me embora meus amigos… o meu dever está cumprido e não suporto adulações sobre
o meu nome… Sou um santo simples, que faz o bem pelo amor ao próximo, sem esperar
retribuição de qualquer espécie…
PADRE
Bem dito seja!
SALOMÉ (tocando o sino)
Aleluia, aleluia!
MANUEL INÁCIO
Permitam que me retire… ainda tenho de partir um enorme calhau no Bobal para começar
a construir o meu mosteiro…
DONA JULIETA
Um mosteiro? Ninguém me tinha dito nada sobre esse mosteiro! Onde fica?
MANUEL INÁCIO

17
Eu, Manuel Inácio, quero ser santo!

Onde ficará! No Bobal. Ainda não está construído, mas em breve vai ficar pronto. Meu bom
amigo e meu primeiro apóstolo, deixo-te na paz do senhor…e da senhora doutora. Tratem
bem deste infeliz… (saem)
PADRE
O que me diz senhora doutora?
DONA JULIETA
Digo que está aqui um sério candidato à vitória final. Primeiro um santo, depois um
mosteiro… Vou preparar as minhas coisas que ainda hoje quero ir dormir ao Tocaio, a Vila
Real. Esta coisa do diabo e do exorcismo deixaram-me em baixo. Vou contar tudo aos meus
parceiros do júri e quando deliberarmos sobre o resultado final, eu próprio me incumbirei
de vos contactar. Bem, até uma próxima vez! (sai cheia de medo)
PADRE
Não pode ir sem beber mais um chazinho de carqueja!
DONA JULIETA
Não… guarde o chá para si… eu tenho de ir mesmo, tenho ali o carro à espera… adeus e
até breve…
ALVARO (vendo que ela partiu, rindo-se com todos)
Óptimo! Correu tudo como previsto! Caiu como uma patinha! Fiz bem de endemoninhado
ou não fiz?
PADRE
Um primor! Dou-te os meus parabéns!
ALVARO
Sabe como é senhor padre, eu já fiz teatro…é outra qualidade!
SALOMÉ
E eu?
PADRE
Primorosa! Uma santa como manda a lei da madre igreja!
ALVARO
Eu quase que me punha de joelhos, a rezar à tua frente! (dá-se conta do abuso)
PADRE
Agora, nem uma palavra a respeito disto, ouviram?
SALOMÉ
Por mim, pode dormir descansado! Não abrirei a boca para nada! Nem a boca, nem nada…
ALVARO
Finalmente, serei o regedor mais importante de Portugal!
PADRE
E eu, o padre de uma freguesia que tem um santo vivo!
SALOMÉ
E eu, a mulher de um santo que recuperou os burros!
ALVARO
E eu, o primeiro a ser curado!
AMÉLIA (entrando)
Olhe, por mim está tudo bem, desde que não me dêem mais pontapés no cu…

18
Eu, Manuel Inácio, quero ser santo!

QUADRO III
Juntos no mesmo local, passadas duas semanas.

PADRE
Já passaram duas semanas e não há modos de sabermos os resultados…
ALVARO
Será que alguém desconfiou de qualquer coisa?
PADRE
Tu nem digas uma coisa dessas! Lá se vai a minha reputação e meu emprego… Se alguém
sabe de toda esta tramóia de santos e meios santos, eu é que sofrerei as consequências…
ALVARO
E eu não? Investi todo o meu dinheiro na recuperação da Casa do Povo para receber os
convidados e para pagar a procissão do santo e agora, fico de mãos a abanar?! Não… Era
demais! E o pior era ficarem a saber que eu fui possuído pelo demónio sem o ter sido… que
dirão de mim? Que sou um fraco de espírito…
PADRE
Tudo o que se faz, desfaz-se! E não podemos perder tempo e ansiar por uma resposta, seja
ela qual for. Temos de dar a volta ao mal.
ALVARO
Desfazer o que fizemos, depois de tanto trabalho? Não me parece bem!
PADRE
Não te parece bem? E parece-te melhor que descubram tudo e chegue aos ouvidos do
senhor professor Oliveira de Salazar? Ou do Papa?
AMÉLIA
Isso é que era azar… chegar aos ouvidos do Salazar…
ALVARO
Senhor professor Salazar! Dobra a língua! É senhor professor, presidente do conselho!
AMÉLIA
Já cá não está quem falou.
ALVARO
E se continuas a falar assim, não voltas nem a “falar” nem a “cá estar”!
PADRE
Calma, vamo-nos concentrar. Vamos dar as mãos e rezar a todos os santos…
AMÉLIA
Sim, a todos os santos e ao maior deles todos, Manuel Inácio.
ALVARO
E lá está ela com as graçolas!
PADRE
Vamos ter de resolver este assunto rapidamente… mas como esconder isto? Só se ele
morresse… ou desaparecesse… ou se escondesse… esconder… esconder… raptar…
ALVARO
Está a pensar o mesmo que eu?
AMÉLIA
Em que estão a pensar os dois?
PADRE
É isso mesmo! Vamos raptar o Manuel Inácio. Escondemo-lo por uns tempos, até que esta
coisa da aldeia mais portuguesa de Portugal fique esquecida… aliás, nem é preciso raptá-
lo… escondemo-lo lá no Bobal, no tal mosteiro…
ALVARO
E se ganhamos e o júri quer ver o santo e o mosteiro? Como descalçamos a bota?
PADRE

19
Eu, Manuel Inácio, quero ser santo!

Pois é… muito arriscado… temos mesmo de o raptar e escondê-lo dos olhos de toda a
gente…
AMÉLIA
Boa ideia… fingimos que morreu e ressuscitou passados dois ou três meses…
PADRE
Herege! Mas que heresia! Quem ressuscitou foi Cristo, o nosso salvador!
AMÉLIA
Pois foi, mas o Manuel Inácio, para que seja também o nosso salvador, tem de desaparecer
e ressuscitar daqui a uns meses… senão, nem o salvador de todos nós nos salva… nem ele,
nem ninguém!
ALVARO
Olhe que ela é capaz de ter razão… se nos queremos salvar, fingimos que o Manuel Inácio
morre e ressuscita… e essa coisa de santidade, fica só cá pela terra e ninguém precisa mais
de saber…
PADRE
Heresia! Como é que se pode comparar aquele ferrador de burros ao nosso salvador?
ALVARO
O Manuel Inácio ou nos salva ou nos condena… não podemos agora nega-lo como Pedro
fez com Jesus…
PADRE
Tudo bem, mas ele não é o nosso salvador! (ouve-se um galo a cantar) Raios partam esta
história da santidade… e agora? Ajudem-me, que estou perdido…
ALVARO
Olhe, se não desaparece a bem, desaparece a mal…
PADRE
Que dizes tu?
ALVARO
Podemos acusa-lo à Policia… um comunista, que conspira contra o regime. Pior que isso,
que se quer fazer passar por santo.
AMÉLIA
Como, se os comunistas são ateus?
ALVARO
Alto lá… tu andas muito bem informada sobre os comunistas… onde é que aprendeste
isso, dos “tateus”?
AMÉLIA
Qual tateus nem meios tateus! Ouve lá: como é que ele pode ser santo e comunista ao
mesmo tempo? Se um comunista é ateu, não acredita em Deus, logo não pode querer ser
santo! É óbvio, digo eu…
PADRE
Bem… andas muito letrada para os meus gostos… andas a ler umas coisas estranhas… o
barbudo, talvez… cuidado com os livros, mulher… não queiras saber de mais… não queiras
passar além da chinela, sapateiro…
ALVARO
Parece-me que a polícia vai ter de trazer a carrinha maior…
AMÉLIA
Senhor regedor, cuidado com as ameaças… olhe que eu sei de tudo e posso facilmente
contar a verdade ao senhor professor Oliveira de Salazar… Além disso, o senhor padre
fingiu que era apóstolo de Manuel Inácio!
PADRE
Parem já com essas lérias! O Manuel Inácio não é santo, não foi nem nunca o será e isto é
ponto assente! A única coisa de verdade é que temos de resolver esta situação para nos
salvarmos!

20
Eu, Manuel Inácio, quero ser santo!

AMÉLIA
E se a mulher dá com a língua nos dentes? Linguaruda como é…
ALVARO
Vai também para o mosteiro! De quarentena.
PADRE
Isso era o cúmulo! Andávamos nós a pagar para que os dois pombinhos se divertissem
durante os meses, sozinhos e a comer o que nos lhes levássemos!?
ALVARO
É preferível que sejam eles a comer com a boca do que nós todos com um moca pelas
costas abaixo…
POLICIA (entrando)
Boas tardes! Podem me informar onde posso encontrar um tal de Manuel Inácio?
ALVARO (assustado, como todos)
Desculpe, importa-se de repetir?
POLICIA
Eu perguntei por um tal de Manuel Inácio!
ALVARO
Desculpe, pensei que me pedia um cálice de bagaço…
PADRE (interrompendo)
Desculpe senhor polícia, eu informo-o. Quem procura afinal?
POLICIA
Procuro um senhor que tem por nome Manuel Inácio da Silva. Conhecem-no?
PADRE
É filho de quem?
POLICIA
Segundo o que aqui diz, é filho de Abílio Venâncio e Aparecida dos Anjos. Conhecem-no?
ALVARO
Será que é da família do Manacha? Eles tinham um Manuel na família…
PADRE
Sinto muito… Não conhecemos nenhum Manuel Inácio…
POLICIA (incisivo)
Como é que não conhecem se ali em baixo no lavadouro me disseram que ele mora aqui em
Lamas d’Olo?
ALVARO
Ai foi?
POLICIA
Foi!
PADRE
Ah… sim, sim… o Manuel Inácio, esse? Lembro-me perfeitamente…pois… olhe, não faço
ideia onde anda… nós falamos muito pouco, sabe?
ALVARO
Eu raramente falava com ele… sempre com os burros, para baixo e para cima…
AMÉLIA
Eu nunca o vi de frente, sempre de costas a ir-se com os burros… nem sei se usa bigode ou
não, se usa peruca, corte à francesa ou escovinha…
POLICIA
Vejam lá se reconhecem a cara dele. É este?
ALVARO (observando)
Parece-me que sim… ora veja lá senhor padre…
PADRE
Visto assim, até parece que o estou a conhecer… conheces?
ALVARO

21
Eu, Manuel Inácio, quero ser santo!

A cara não me é estranha…


PADRE
Vendo assim… mas aconteceu alguma coisa, ele fez alguma coisa para ser procurado pela
polícia?
POLICIA
Fez sim, e isso vai trazer uns amargos de boca a muita gente…
PADRE (medroso)
Ai sim… mas o que foi que esse tal Manuel Inácio fez?
POLICIA
Este indivíduo fingiu que era santo e exorcista e levantou o pandemónio na rua direita em
Vila Real, durante a Feira dos Pucarinhos. De um momento para o outro, um indivíduo de
Vila Cova, perto da Campeã, começou a espumar e a contorcer-se no chão. Vai daí, o tal
Manuel Inácio resolveu aplicar uma das suas curas, entretanto famosas na Bila…
PADRE
Ai sim?
POLÍCIA
Sim… essas curas famosas eram combinadas, todas! Com o do Vila Cova, foram vinte e tal
os seus cúmplices, sem esquecer a Amélia de Gache, famosa pelo aparecimento da Senhora
das Candeias no muro do Seminário, o Figueiredo de Tojais, que andou a vender água do
Rio Jordão no Pioledo, e o Alcides da Cigarrosa, que com ajuda do mentor vendeu lugares
no céu com direito a estacionamento quando tivessem carro, em toda a Rua dos Ferreiros!
ÁLVARO
Então ele tinha cúmplices?
POLÍCIA
Sim, muitos. Os conhecidos já lhe deitamos a mão, os desconhecidos ainda estão a ser
investigados.
AMÉLIA
Desconhecidos? Ainda os há?
POLÍCIA
E não são poucos!
PADRE
Fique descansado que se eles aparecerem por aqui nós deitamos-lhe as mãos!
POLÍCIA
Não é preciso ir mais longe! Os outros aldrabões estão aqui! Vocês!
AMÉLIA
Nós?
POLÍCIA
Sim, vocês! Eu sei de tudo!
PADRE
Como sabe de tudo? Apenas Deus sabe de tudo!
POLÍCIA
Eu sei de tudo!
SALOMÉ (entrando)
Acácio?
POLÍCIA
Salomé?
PADRE (admirado)
Salomé?
ALVARO (certo da ligação entre os dois)
Salomé…
AMÉLIA (rindo)
Salomé…

22
Eu, Manuel Inácio, quero ser santo!

PADRE
Alto lá! Já entendi tudo! Quem lhe contou o que todos sabemos, foi ela! Salomé, sua
traidora!
POLÍCIA
Tudo, que tudo?
PADRE
O caso do santo, por causa do concurso! Não minta ou chamo a polícia!
POLÍCIA
A polícia aqui, sou eu!
ALVARO
Mas tem superiores, e eu tenho amigos na Pide! Vem para aqui fazer chantagens com a
colaboração dessa aí que se fingia de santa? Olhe que se dá mal!
POLICIA
Não sei do que estão a falar… façam favor de me acompanhar…
ALVARO
Acompanhamos, acompanhamos… mas é aos pontapés até Borbela!
POLICIA
Veja lá como é que fala! Olhe que eu sou a autoridade! Posso prende-los a todos!
AMÉLIA
Quem o prende pela goela somos nós, se não se cala!
POLICIA
Vocês não me queriam ver do avesso…
PADRE
Parem já com isso! Que degradante… que desgraça… ao que chegou a nossa aldeia…
SALOMÉ
Eu posso explicar…
PADRE
Cale-se! Não explica nada… Salomé….
POLICIA
Eu posso explicar…
PADRE
Chega de explicações! Já entendi tudo… tu querias denunciar-nos… mas porquê?
SALOMÉ
Juro que não, que não fui eu…
AMÉLIA
Fui eu! Descobri todas as tuas patranhas e apanhei-te com a boca na botija!
SALOMÉ
Amélia?
MANUEL INÁCIO (entrando)
Salomé?
POLÍCIA
Olha o gatuno! Apanhem-no!
MANUEL INÁCIO (querendo entrar em luta)
Gatuno? Olha o ladrão de mulheres dos outros! Anda cá que te escacho em dois!
SALOMÉ
Manuel, pára por favor!
MANUEL INÁCIO
Então agora paro? E tu, paraste alguma vez enquanto eu estava em Vila Real?
POLICIA
Está preso! Pare imediatamente!
MANUEL INÁCIO
Era o que querias! Eu preso na cadeia e tu cá fora com ela, não era?

23
Eu, Manuel Inácio, quero ser santo!

PADRE
Parem todos, já! Está visto que a nossa aldeia se transformou numa Sodoma! É o castigo
pela mentira! Perdão Senhor, perdoa-nos os nossos pecados e leviandades!
AMÉLIA
Nem um auto de fé nos salva!
PADRE
Temos de resolver isto, hoje! Não podemos deixar que esta história que todos nós
conhecemos, saia lá para fora! Era o fim da aldeia e das nossas carreiras!
ALVARO
É preciso arranjar uma solução, imediatamente.
POLICIA
A solução é prendê-lo, foi responsável por inúmeros enganos!
MANUEL INÁCIO
Já a minha solução é espetar-te umas sacholadas no lombo, para olhares apenas para o que
te pertence!
AMÉLIA
Concordo, mas distribuídas pelos dois! E ainda hão-de ser poucas!
SALOMÉ
A minha solução é o divórcio… prefiro um polícia a um santo…
ALVARO
Divórcio? Estás maluca? A solução é chamar a Pide e acusar estes três…
AMÉLIA
E a Pide não lhes vai perguntar mais nada? E se sabem do que nós todos fizemos?
PADRE
A solução é deixar tudo como estava antes do concurso! Eu continuo a rezar missa, tu a
servir copos, o Manuel Inácio e a Salomé a lavrarem com os burros e o senhor Acácio longe
daqui a fazer a ronda até ao cabo da vila! E se não aceitarem esta solução, raios me partam
se não vos excomungo a todos e nenhuma indulgência vos salvará!
MANUEL INÁCIO
Não, eu não quero andar mais com os burros! Estou farto! Prefiro ir para o Brasil e andar a
vender pão pelas ruas… já tenho quem me dê o dinheiro para o barco… e é preferível
andar descalço pelas ruas que estar sujeito a chegarem-me a roupa ao pêlo.
POLÍCIA
Pois então eu estou disposto a fingir que não vi nada e quando chegar à esquadra digo que
Manuel Inácio não se encontra em lado nenhum, desde que possa levar Salomé comigo
para Vila Real… confesso que estou apaixonado pela sua mulher, meu senhor…
MANUEL INÁCIO
Por mim tudo bem, senhor polícia… eu lá arranjarei uma carioca que me faça feliz e não me
ponha os cornos…
POLICIA
Então está combinado e não se fala mais nisso… eu fico com a sua mulher e você vai em
liberdade para o Brasil…
AMÉLIA
Olha que é bem melhor… pelo menos não entende nada…
POLICIA
Então, boa sorte com a sua nova esposa Manuel, que eu cá me amanharei com a sua o
melhor que puder…
MANUEL INÁCIO
Olhe senhor polícia, trate-a bem! Ela não é mulher de comer muito, mas é asseada e sabe
como poucas orientar as cabras no monte…ora mostra lá como fazes para chamar as
cabras…
POLÍCIA

24
Eu, Manuel Inácio, quero ser santo!

Em Vila Real não há cabras, aquilo é uma cidade a preceito…


MANUEL INÁCIO
Mesmo assim, trate-a bem que ela é boa mulher. Então adeus, Salomé. Tu trata bem do teu
novo marido e já sabes, não lhe desobedeças porque já lhe dei autorização para te arrear se
te portares mal.
SALOMÉ
Então boa sorte lá no Brasil, Manuel… e que todos os santos te ajudem que eu cá me
amanharei como puder…
MANUEL INÁCIO
Então adeus a todos. A partir de agora, estou em lugar incerto!
PADRE
Então, enterramos aqui esta história e fazemos as pazes?
ARMINDO
É melhor…
PADRE
Sem ressentimentos?
TODOS (a contragosto)
Sim…
PADRE
Então peguem nos copos e façamos um brinde… A Lamas de Ôlo e a todas as aldeias
transmontanas! Agora, todos para casa e não há discussão!

Bebem os copos e saem lentamente do tasco, cabisbaixos e aceitando a determinação do


Padre.

25
Eu, Manuel Inácio, quero ser santo!

A peça EU, MANUEL INÁCIO, QUERO SER SANTO, recupera uma temática nunca abordada em
teatro: o Concurso da Aldeia Mais Portuguesa de Portugal, promovido pelo Estado Novo na
década de 30 do século passado. Ficcionando o ambiente da altura, coloca em acção
personagens características do mundo rural de então, numa comédia de costumes que
pretende discutir as formas como se administrava o poder durante a ditadura fascista de
Oliveira Salazar.

NOTA SOBRE O AUTOR


Ricardo Ferreira de Almeida tem 37 anos. Nasceu em Angola, vive em Portugal.

26

You might also like