Professional Documents
Culture Documents
Recepção
de
um
espectáculo
dos
Artistas
Unidos
segundo
o
esquema
antropológico
da
“ampulheta”
proposto
por
Patrice
Pávis
Filipa
Albuquerque
ÂMBITO
Trabalho
realizado no âmbito
do seminário Teorias da Encenação do Mestrado em
Teatro ‐ especialização em Teatro e Comunidade, ministrado pela professora Eugénia
Vasques
Novembro
de
2009
[SEIS
PERSONAGENS
À
PROCURA
DE
AUTOR]
2
Algumas
considerações
iniciais
O
espectáculo
em
análise
mostra
a
abordagem
dos
Artistas
Unidos
da
peça
de
Pirandello
Seis personagens à procura de autor.
Uma
reflexão
sobre
a
arte
teatral,
sobre
a
verdade
e
a
verosimilhança
da
representação,
através
do
confronto
entre
personagens,
actores,
encenador
e
autor.
Personagens
sem
estória
irrompem
num
ensaio
de
uma
peça
de
teatro
e
confrontam
encenador
e
actores
com
a
sua
“existência”.
Aquilo
a
que
alguns
encararam
como
uma
bom
truque
teatral
revela‐se
mais
do
que
um
mero
artifício
em
palco.
A
estória
dos
seis
personagens
é
melodramática
e
aparece‐nos
interrompida
por
reflexões
filosóficas
sobre
o
teatro,
a
representação,
a
escrita
dramática,
a
cena,
a
encenação,
num
claro
confronto
entre
o
real
e
o
ficcional,
a
verdade
e
a
sua
representação.
A
acção
da
peça
parece‐nos
ser
a
“
tomada
do
palco”,
o
assalto
à
cena.
“Actores
“e
“personagens”
confrontam‐se
pela
conquista
de
um
espaço.
Uns
com
objectivos
da
apresentação
teatral,
como
a
bilheteira
e
a
performance;
outros
para
conquistar
aí
a
sua
própria
existência,
o
seu
próprio
ser,
afirmar
os
seus
direitos.
Neste
confronto,
alternam‐se
o
drama
e
a
comicidade
de
forma
fluida,
sem
que
se
verifiquem
cortes.
Um
todo
de
reflexão,
tragédia
e
comédia
em
harmonia
num
mesmo
espaço.
Recepção
através
do
Esquema
de
Patríce
Pávis
3
–
Objectivo
dos
Adaptadores
Jorge
Silva
Melo,
encenador
deste
espectáculo,
assume
este
projecto
como
um
desafio,
confessando‐nos
uma
vontade,
que
vem
de
longe,
de
mergulhar
neste
complexo
universo
de
Pirandello,
onde
se
projectam
sobre
o
palco
os
processos
da
consciência
do
autor.,
renascendo,
assim,
um
teatro
poético
de
fantasia
e
de
contemplação,
em
oposição
ao
realismo
moderno.
“
Confesso:
Seis Personagens à Procura de Autor
é
uma
das
muito
poucas
peças
que,
tendo
já
visto
feitas
e
extraordinariamente
(a
encenação
de
Klaus
Michael
Grüber
de
1981,
na
Freie Volksbuhne
de
Berlim,
com
cenografia
de
Titina
Maselli,
será
um
dos
três,
quatro
mais
belos
espectáculos
que
vi),
sempre
quis
fazer.
Pois
sempre
me
quis
meter
neste
novelo,
enredar‐me
nesta
cama
de
gato.”
(MELO,
[SEIS
PERSONAGENS
À
PROCURA
DE
AUTOR]
3
Jorge
Silva,
in Programa do espectáculo,
Teatro
S.
Luís,
temporada
2009‐2010)
É,
então,
objectivo
do
autor
do
espectáculo
dar‐nos
a
conhecer
a
singularidade
desta
peça,
revelando
um
autor
que,
na
sua
aceitação
do
palco,
o
libertou
das
imposições
do
realismo
moderno,
abrindo
o
caminho
a
uma
nova
possibilidade
de
procura
de
uma
poesia
moderna
do
teatro.
4
‐
Trabalho
de
adaptação
Assistimos
a
uma
adaptação
da
peça
de
Pirandello
para
os
dias
de
hoje.
Os
figurinos
e
os
objectos
de
cena
têm
características
que
nos
remetem
para
os
dias
de
hoje,
bem
como
o
movimento
dos
corpos
e
a
forma
de
falar
dos
vários
elementos
da
companhia
de
teatro
apresentada.
Registámos
essa
intencionalidade
ao
acentuar
dois
planos
temporais:
um
tempo
real
e
um
tempo
ficcional.
Um
tempo
real
dado
pela
entrada
dos
espectadores
em
cena
e
pela
criação
de
um
momento
inicial
em
que
actores
fingem
estar
a
viver
o
tempo
do
público
e
um
tempo
ficcional
que
se
inicia
com
a
subida
do
elevador
e
a
entrada
em
cena
da
“família”
.
Num
palco
à
italiana,
como
é
o
do
Teatro
S.
Luís,
feito
para
demonstrar
o
que
é
ficcional,
criam‐se
mecanismos
(
também
eles
ilusórios!)
de
criar
a
sensação
de
um
espaço
e
tempo
reais.
A
subida
no
elevador
poderia,
assim,
ver‐se
como
a
ascensão
dos
personagens
(da
ficção)
ao
momento
e
espaços
reais,
ao
espectáculo,
tempo
e
espaço
em
que
encontram
actores
e
personagens.
Trata‐se
de
vir
ao
de
cima,
tal
como
a
verdade
que
se
diz
ser
como
o
azeite,
que
acaba
por
vir
acima.
5
‐
Trabalho
preparatório
dos
autores
Ao
nível
do
trabalho
de
actor
o
espectáculo
está
longe
de
homogéneo.
Distinguem‐
se
claramente
duas
formas
de
estar
em
palco.
Julgamos
ter
havido
duas
preparações
diferentes
para
os
actores
que
representam
a
companhia
teatral
e
os
actores
que
representam
a
família
de
personagens
em
busca
de
autor.
Para
os
primeiros
parece
ter
existido
um
trabalho
de
preparação
mais
cuidado
de
improvisação
e
fisicalidade.
O
segundo
naipe
de
actores
cria‐nos
a
impressão
de
não
ter
feito
uma
preparação
colectiva,
verificando‐se
interpretações
individuais
pouco
articuladas
com
as
restantes,
mesmo
dentro
do
mesmo
grupo.
[SEIS
PERSONAGENS
À
PROCURA
DE
AUTOR]
4
Nalguns
trabalhos
de
actor
houve
uma
representação
de
excesso,
com
traços
exagerados
que
não
conseguiram,
na
nossa
opinião,
criar
a
sensação
que
pretendiam.
A
situação
mais
exemplar
foi
a
da
representação
da
“enteada”,
que
recorreu
a
um
registo
exagerado
da
(por
vezes
gritada)
e
no
trabalho
de
corpo
criou
uma
forma
quase
mecânica
de
andar,
mas
sem
a
coerência
que
se
exigia.
No
grupo
dos
“personagens”
pareceu‐nos
haver
alguns
problemas
de
dicção
e
projecção
da
voz
o
que
veio
a
prejudicar
a
performance
e
a
compreensão
do
texto
por
parte
do
público.
Este
facto
foi
bastante
evidente
na
representação
de
João
Perry.
Numa
conversa,
posterior,
com
alguns
actores
dos
Artistas
Unidos,
essa
situação
foi‐
nos
justificada
pelo
facto
do
actor
estar
há
muito
tempo
a
fazer
televisão
e
ter
estado,
durante
a
execução
da
peça
a
desempenhar
as
duas
funções
de
actor
de
teatro
e
televisão.
Segundo
alguns
elementos
dos
AU,
a
função
enquanto
actor
de
televisão
teria
prejudicado
a
sua
prestação
no
palco.
6
–
Escolha
de
uma
forma
teatral
Apesar
do
espectáculo
não
nos
aparecer
como
uma
miscelânea
de
géneros
e
estilos
de
representação,
o
facto
é
que
a
representação
não
revela
um
todo
homogéneo
e
até
coerente.
Duas
formas
distintas
que
distinguem,
também,
actores
e
personagens.
Os
figurantes
apresentam‐se
com
demasiados
clichês,
apresentação
do
óbvio
como
se
o
público
não
fosse
capaz
de
entender
a
mensagem
ou
decifrar
a
sua
subtileza.
A
primeira
parte
do
espectáculo
é
disso
exemplo.
Um
tempo
demasiadamente
longo
de
reprodução
de
diversas
funções
desempenhadas
habitualmente
pelas
profissões
ligadas
ao
teatro.
O
início
da
peça
adquiriu
uma
forma
infantil
e
infantilizada
de
encarar
os
espectadores.
Numa
sala
como
o
Teatro
S.
Luís,
encontrar‐se‐iam
possibilidades
de
abordagem
da
encenação
mais
interessantes.
A
forma
teatral
parece
próxima
de
um
teatro
de
exposição
onde
os
elementos
vão
aparecendo
como
numa
montra
filtrada
por
um
vidro.
O
palco
mostrou‐se
como
uma
caixa
fechada,
um
mini‐teatro
encerrado
sobre
si
próprio
onde
se
foi
desenrolando
a
acção,
o
que
nos
leva
à
interrogação
sobre
a
existência
de
uma
quarta
parede.
Na
nossa
perspectiva
essa
parede
existiu
e
foi
mais
ou
menos
constante,
salvo
nalgumas
situações
pontuais,
em
que
se
tentou,
de
forma
[SEIS
PERSONAGENS
À
PROCURA
DE
AUTOR]
5
que
soou
artificial,
implicar
o
público
na
representação.
A
título
de
exemplo
desta
situação
poderemos
referir
um
momento
em
que
o
encenador
se
aproxima
da
boca
de
cena
e
se
interroga
olhando
de
frente
para
o
público.
Outra
característica
que
achámos
relevante,
foi
o
facto
de
se
optar
por
algumas
situações
de
flash
com
uma
intenção
de
criar
um
impacto
e
até
um
efeito
de
estranhamento.
Referimo‐nos,
por
exemplo,
à
entrada
da
actriz
Mariema,
que
aparece
de
rompante
através
de
uma
plataforma
móvel
desnivelada.
Pareceu‐nos
que
a
entrada
foi
excessivamente
vagarosa,
tendo‐se
perdido
o
efeito
surpresa
pretendido.
Ficou
uma
cena
demasiadamente
lenta,
quase
penosa.
No
entanto,
registamos
com
alegria
a
integração
de
actores
identificados
com
outros
tempos
e
até
outros
registos,
no
teatro
contemporâneo.
Apesar
de
nos
parecer
que
essa
não
foi
a
intenção
do
encenador,
o
ambiente
da
peça
remeteu‐nos
para
um
tempo
distante
e
longínquo,
impressão
que
nos
foi
dada
sobretudo
através
da
representação
do
grupo
de
personagens.
O
modo
de
representar
dos
elementos
do
grupo
de
“personagens”
faz
lembrar
as
antigas
representações
do
Teatro
D.
Maria
e
talvez
seja
esse
o
motivo
desta
impressão
que
fica
de
um
ambiente
antigo
e
distante.
De
uma
forma
geral,
o
modo
de
representação
foi
muito
diverso
indo
desde
uma
forma
naturalista
até
uma
forma
exagerada
e
quase
grotesca
(sem
se
ter
alcançado
a
beleza
do
grotesco).
7
–
Representação
teatral
Pensamos
que
nesta
peça
não
se
aplica
a
representação
teatral
de
uma
cultura.
Haverá
a
representação
do
universo
de
um
autor
‐
Pirandello
–
mas
pensámos
ser
mais
correcto
abordar
esse
elemento
no
quarto
passo
do
esquema
de
Pávis.
8
–
Adaptadores
de
recepção
O
espectáculo
permite
criar
alguns
paralelismos
com
a
vida
real,
quer
por
via
do
próprio
tema
e
texto,
quer
pela
abordagem
cénica,
mais
actual
e
adaptada
aos
nossos
dias.
A
recepção
vai
sendo
desenvolvida
a
vários
níveis.
A
reflexão
sobre
a
realidade
dramática
da
vida
da
família
de
personagens;
o
confronto
entre
realidade
e
ficção
[SEIS
PERSONAGENS
À
PROCURA
DE
AUTOR]
6
que
é
constante
e
que
permite
uma
reflexão
mais
profunda
sobre
a
existência
de
cada
um
de
nós
e
a
reflexão
sobre
arte,
interpretação
e
representação
teatral.
A
peça
requer
alguns
conhecimentos
prévios
do
pensamento
filosófico
para
que
se
compreenda
o
alcance
do
texto
de
Pirandello.
Sem
uma
legibilidade
imediata
e
fácil,
o
espectáculo
permite
uma
reflexão
filosófica
sobre
a
vida,
a
ficção
e
a
arte.
9
–
Legibilidade
A
peça
não
tem
uma
legibilidade
fácil,
até
porque
o
próprio
texto
não
é
fácil,
o
que
dificulta
a
compreensão
de
todos
os
elementos
presentes,
implícitos
e
explícitos,
na
peça.
Existe
uma
necessidade
de
saber
filosófico
prévio
que
auxilie
o
entendimento
da
complexidade
do
texto.
A
dicção
e
pouca
projecção
de
voz
de
alguns
actores
dificultaram
a
compreensão
do
texto
e,
consequentemente,
a
sua
legibilidade.
Esta
foi
também
prejudicada
por
uma
representação
exagerada
por
parte
de
alguns
actores
e
que
criou
um
elemento
de
perturbação.
O
número
elevado
de
actores
em
cena
e
a
sua
presença
constante
resultou,
igualmente,
como
foco
de
distracção
da
acção
principal.
11
–
Sequências
dadas
ou
antecipadas
A
peça
pareceu‐me
bastante
mais
hermética
do
que
esperávamos.
Já
conhecíamos
o
texto
o
que
poderia
ter
sido
um
elemento
facilitador,
contudo
a
representação
monocórdica
e
maçuda
da
primeira
parte
da
peça
não
correspondeu
às
expectativas
que
levávamos
e
criou
um
clima
de
aborrecimento
que
apenas
foi
atenuado
na
segunda
parte
do
espectáculo.
A
segunda
parte
da
peça
cumpriu
melhor
as
expectativas
que
levávamos,
tendo
sido
mais
dinâmica
e
tendo‐se
visto,
da
parte
dos
actores,
representações
mais
interessantes.
Apesar
de
esperarmos
mais
dos
Artistas
Unidos,
o
espectáculo
cumpriu
sem
surpreender.
[SEIS
PERSONAGENS
À
PROCURA
DE
AUTOR]
7
Breve
conclusão
Esta
abordagem
dos
Artistas
Unidos
de
uma
das
peças
mais
famosas
de
Pirandello
esteve
longe
de
ser
espantosa,
tendo,
contudo,
conseguido
manter‐nos
atentos,
sobretudo
a
partir
da
segunda
metade
do
espectáculo.
Algumas
opções
cénicas
não
resultaram
bem
e
verificou‐se
um
desequilíbrio
entre
as
prestações
dos
diversos
autores,
que
pareciam
querer
sobressair
a
todo
o
custo,
criando
algumas
situações
de
representação
muito
forçada.
O
espectáculo
resultou
pouco
homogéneo,
conseguindo
fazer‐se
a
identificação
de
géneros
de
representação
e
opções
cénicas
entre
o
grupo
de
figurantes,
o
grupo
da
trupe
de
teatro
e
o
grupo
dos
personagens.
O
texto
poderia
ter
tido
maior
legibilidade
se
um
trabalho
prévio
de
voz
tivesse
sido
feito
e
se
a
representação
fosse
mais
dinâmica
e
menos
fechada
sobre
si
mesma.
O
objectivo
de
Jorge
Silva
Melo
não
parece
ter
sido
conseguido
na
sua
totalidade,
sobretudo
porque
a
sua
fasquia
era
demasiadamente
alta.
O
novelo
estava
demasiadamente
emaranhado
e
o
gato
continuará
confortavelmente
enrolado
na
sua
cama,
até
que
outro
encenador
se
resolva
a
desmanchar‐lhe
o
ninho
e
revelar
Pirandello
em
toda
a
sua
força
e
genialidade.
[SEIS
PERSONAGENS
À
PROCURA
DE
AUTOR]
8
Ficha
Técnica