Vanguarda europeia e modernismo brasileiro
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Esta edição ampliada de Vanguarda europeia e modernismo brasileiro, de Gilberto Mendonça Teles, acrescida de novo prefácio, é lançada em meio às comemorações do centenário da Semana de Arte Moderna de 1922. O evento é considerado o marco inaugural do modernismo no Brasil. Grande parte dos intelectuais e artistas que estiveram à frente desse movimento tinham vivido na Europa após a Primeira Guerra Mundial e enfim traziam ideias e técnicas que lá se desenhavam desde as últimas décadas do século XIX.
Gilberto Mendonça Teles apresenta um rico panorama dos movimentos modernistas, uma viagem em companhia de textos de artistas que foram capazes de antever os sopros da mudança ainda no século XIX — como Charles Baudelaire, Arthur Rimbaud e Stéphane Mallarmé —, nomes que protagonizaram as vanguardas europeias — como André Breton, Vladimir Maiakovski e Tristan Tzara —, expoentes do modernismo brasileiro — como Mário de Andrade, Oswald de Andrade, João Cabral de Melo Neto e Murilo Mendes — e, enfim, aqueles que marcaram um momento mais experimental da arte brasileira — como Décio Pignatari e Wlademir Dias-Pino.
Vanguarda europeia e modernismo brasileiro é um título que convida leitores e leitoras a compreender os caminhos de um dos movimentos artísticos mais importantes do século XX, responsável por refletir sobre um novo sentido para o homem no mundo e por ajudar na construção desta percepção: o que é ser moderno.
"[…] Gilberto Mendonça Teles apresenta peças essenciais do processo ao reunir […] os manifestos vanguardistas da Europa e do Brasil. […] este livro oferecefornece-nos o ponto de partida obrigatório de qualquer pesquisa." – Paulo Rónai
"[…] o livro organizado por G. M. Teles propicia uma compreensão mais amadurecida do que foi em 1922 […] o espírito da modernidade brasiliera: resposta consciente às incitações feitas ao Homem por seu tempo." – Laís Corrêa de Araújo.
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Book preview
Vanguarda europeia e modernismo brasileiro - Gilberto Mendonça Teles
21ª edição
José OlympioRio de Janeiro | 2022
Copyright © Gilberto Mendonça Teles
Todos os esforços foram feitos para localizar os autores dos textos reproduzidos neste livro. A editora compromete-se a dar os devidos créditos em uma próxima edição, caso os autores as reconheçam e possam provar sua autoria. Nossa intenção é ilustrar as ideias aqui publicadas, sem qualquer intuito de violar direitos de terceiros.
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
T275v
Teles, Gilberto Mendonça, 1931-
Vanguarda europeia & modernismo brasileiro [recurso eletrônico]: apresentação e crítica dos principais movimentos vanguardistas / Gilberto Mendonça Teles. – 1. ed. – Rio de Janeiro: José Olympio, 2022.
recurso digital
Formato: epub
Requisitos do sistema: adobe digital editions
Modo de acesso: world wide web
ISBN 978-65-5847-079-3 (recurso eletrônico)
1. Literatura – História e crítica. 2. Literatura brasileira – História e crítica. 3. Modernismo (Literatura) – Brasil. 4. Livros eletrônicos. I. Título.
22-75374
CDD: 869.09
CDU: 821.134.3.09(81)
Camila Donis Hartmann – Bibliotecária – CRB-7/6472
Este livro foi revisado segundo o Novo Acordo da Língua Portuguesa.
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Reservam-se os direitos desta edição à
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ISBN 978-65-5847-079-3
Produzido no Brasil
2022
Sumário
Introdução inédita: As vanguardas no Brasil e na Hispano-América
O ensaísmo de Mendonça Teles, por Ivan Junqueira
Nota para a 20ª edição
Nota para a 19ª edição
Nota para a 11ª edição
Tempo e vanguarda, por Ângelo Monteiro
Nota para a 10ª edição
Nota para a 6ª edição
Nota para a 3ª edição
I. INTRODUÇÃO
II. A BELLE ÉPOQUE
Correspondências — Baudelaire, 1857
Alquimia do verbo — Rimbaud, 1873
Arte Poética — Verlaine, 1884
Manifesto Decadente — Anatole Baju, 1886
Manifesto Simbolista — Jean Moréas, 1886
Prefácio a Un coup de dés — Mallarmé, 1897
Manifesto Unanimista — Jules Romains, 1905
III. A VANGUARDA EUROPEIA
O Futurismo
O Futurismo — Marinetti, 1909
Manifesto técnico da literatura futurista — Marinetti, 1912
Suplemento ao Manifesto técnico da literatura futurista — Marinetti, 1912
Manifesto da mulher futurista — Valentine de Saint-Paul, 1912
O Expressionismo
Fim do mundo
— Jakob van Hoddis, 1911
Arte: nova secessão — Arthur Drey, 1911
Os Selvagens
da Alemanha — Franz Marc, 1912
Expressionismo na poesia — Kasimir Edschmid, 1918
O Cubismo
A Antitradição Futurista — Apollinaire, 1913
O Cubofuturismo
Bofetada no gosto público — D. Burliuk, A. Kruchënik, V. Maiakovski e V. Klebnikov, 1912
O Dadaísmo
Manifesto do Senhor Antipirina — Tristan Tzara, 1916
Manifesto Dadá — Tristan Tzara, 1918
Proclamação sem pretensão — Tristan Tzara, 1919
O Espiritonovismo
O Espírito Novo e os poetas — Apollinaire, 1918
O Espírito Novo — Vários autores, 1920
O Surrealismo
Manifesto do Surrealismo — André Breton, 1924
Segundo Manifesto do Surrealismo — André Breton, 1930
O Neovanguardismo
Manifesto para uma poesia nova, visual e fônica — Pierre Garnier, 1962
A Vanguarda Portuguesa
Ode triunfal — Álvaro de Campos, 1914
Manucure — Mário de Sá-Carneiro, 1915
Manifesto anti-Dantas — José de Almada-Negreiros, 1915
Ultimatum — Álvaro de Campos, 1917
Ultimatum futurista — José de Almada-Negreiros, 1917
IV. O MODERNISMO BRASILEIRO
A Emoção Estética na Arte Moderna — Graça Aranha: conferência na Semana de Arte Moderna, 1922
Arte Moderna — Menotti del Picchia: conferência na Semana de Arte Moderna, 1922
Klaxon, 1922
A Poética de Mário de Andrade — Síntese dos textos
Prefácio Interessantíssimo
, 1921
A escrava que não é Isaura
, 1924-1925
O Movimento Modernista
, 1942
O Espírito Moderno — Graça Aranha: conferência na Academia Brasileira de Letras, 1924
Manifesto da Poesia Pau-brasil — Oswald de Andrade, 1924
A Arte Moderna — Joaquim Inojosa: carta-manifesto aos diretores da revista Era Nova, 1924
A Revista
Para os céticos — Carlos Drummond de Andrade, 1925
Para os espíritos criadores — Martins de Almeida, 1925
Terra Roxa e Outras Terras, 1926
Manifesto Regionalista de 1926/1952
Centro Regionalista — Programa (de 1926)
O Manifesto Regionalista de 1926/1952 — Gilberto Freyre
Festa — Tasso da Silveira, 1927
Manifesto do Grupo Verde de Cataguases — Vários autores, 1927
Manifesto Antropófago — Oswald de Andrade, 1928
Manifesto Nhengaçu Verde-Amarelo — Vários autores, 1929
Textos do Leite Criôlo
Leite Criôlo — Guilhermino César, 1929
Convite — Achiles Vivacca, 1929
Procura da Poesia — Carlos Drummond de Andrade, 1944
Manifesto para não ser lido, da revista Joaquim, 1946
Orfeu — Lêdo Ivo, 1947
Poesia e Composição — A Inspiração e o Trabalho de Arte — João Cabral de Melo Neto: conferência na Biblioteca de São Paulo, 1952
V. O EXPERIMENTALISMO
Plano-piloto para Poesia Concreta — Vários autores, 1958
Manifesto Neoconcreto — Vários autores, 1959
Poema-Práxis (Manifesto didático) — Mário Chamie, 1961
Nova linguagem, nova poesia (Manifesto da Poesia Semiótica) — Décio Pignatari e Luiz Angelo Pinto, 1964
Poema-Processo
Proposição — Wlademir Dias-Pino, 1967
Parada — opção tática — Wlademir Dias-Pino, 1972
Bibliografia
Fortuna crítica deste livro
Índice onomástico
Bibliografia do autor/org.
Introdução inédita
AS VANGUARDAS NO BRASIL E NA HISPANO-AMÉRICA
Gilberto Mendonça Teles
Nas Notas para as edições anteriores de Vanguarda europeia e modernismo brasileiro, tratei apenas da apresentação dos textos manifestos, isto é, textos proclamados como manifestos pelos escritores vanguardistas das décadas de 1920 a 1940. Agora publico os estudos que fiz sobre eles e a partir deles, juntando-os num só texto. Um deles publicado em parte em A retórica do silêncio, em 1979; outro, resumido em aulas na universidade e lido em conferências em várias partes do Brasil, onde me chamavam para falar sobre vanguarda literária, tanto no Brasil como na América Espanhola, a propósito dos seis volumes de Vanguardia latinoamericana, que publicamos, Klaus Müller-Bergh e eu, pela Iberoamericana, em Madri.1
Ao possível leitor devo explicar aqui algo da terminologia com que tenho tratado da matéria vanguardista, principalmente da acepção com que uso a expressão América Latina e seus desdobramentos em Latino-América, América Latina, América Portuguesa, América Espanhola e América Francesa, além do hispano-americano, que aparece várias vezes.
O essencial está na seguinte distinção: emprego Latino-América, ou América Latina, ou latino-americano (em espanhol Latinoamérica e latinoamericano) quando estou me referindo a povos de culturas portuguesa, espanhola e francesa. Se digo apenas Hispano-América (como no título desta introdução), a referência é somente a povos de cultura espanhola. Embora sejam claros os sentidos dos dois termos, me pareceu oportuna essa repetição terminológica.
AS VANGUARDAS EUROPEIAS
Ao lado dos movimentos literários mais conhecidos na literatura ocidental no século XIX, é preciso mencionar uma série de rompimentos estéticos, documentados através de experiências isoladas de escritores como Whitman, Poe, Baudelaire, Lautréamont, Rimbaud, Verlaine e Mallarmé, cujas obras assinalam as rupturas individuais que, retomadas, desenvolvidas e intensificadas por outros escritores, motivaram o aparecimento de tendências mais ou menos coletivas, como o decadentismo, o simbolismo, o romanismo (não o romantismo) e o unanimismo, que, com exceção do parnasianismo e do simbolismo, relativamente pouca atenção têm merecido dos historiadores da literatura. Centrados em Paris, mas com fortes vínculos a movimentos análogos em outras capitais europeias, esses movimentos refletiram, de certo modo, as três tendências culturais da época: o otimismo da belle époque diante do novo século; o pessimismo do fin de siècle, finitude que costuma acompanhar a passagem dos séculos; e, em atitude mais ou menos conciliadora, a preocupação neoclássica do romanismo, movimento que tentava reconduzir a França e os países de línguas neolatinas pelos caminhos da tradição latina. Havia assim, na Europa artístico-literária do fim do século XIX, certo equilíbrio entre as forças de integração e as de desintegração cultural, repartidas entre uma visão totalizante e uma visão fragmentária do universo, como se pode ver em vários setores da filosofia e da ciência, com notáveis repercussões nas teorias linguísticas e literárias que, por sua vez, marcaram profundamente a poética e a retórica do século XX.
Dessa dialética entre o grande e o pequeno, entre o homem e a sociedade, entre o passado e o presente, entre a guerra e a paz, é que vão surgir os grandes movimentos da vanguarda literária da Europa, notadamente o futurismo, o expressionismo, o cubismo, o dadaísmo, o espiritonovismo e o surrealismo. Para efeito de suas repercussões na América Latina, esses movimentos podem ser agrupados em duas frentes opostas e, de certa forma, complementárias, uma vez que a renovação literária era o princípio comum que os identificava. Se o futurismo e o dadaísmo representam o lado mais radical e destruidor
dos novos processos literários, o expressionismo, o cubismo, o esprit nouveau e o surrealismo podem ser vistos como ordenadores de uma nova realidade, percebida através do processo geral da destruição
que caracterizou todas essas vanguardas da época da Primeira Guerra Mundial.
Síntese das duas vertentes e, também, reedição, ou prolongamento, ou incorporação dos propósitos da obra de Winkelmann e Schliemann, do neoclacissismo ou do romanismo do fim do século, surge (ou ressurge) a tendência conciliadora de Apollinaire, o qual, nos últimos meses de 1918, redigiu o texto conhecido como o seu testamento estético, L’Esprit nouveau et les poètes
, procurando equilibrar o exagero dos vanguardistas (de que ele foi um dos principais representantes com Calligrammes em 1916) com a passividade dos escritores tradicionais:
O espírito novo que se anuncia pretende antes de tudo herdar dos clássicos um sólido bom senso, um espírito crítico seguro, concepções seguras sobre o universo e sobre a alma humana, e o sentido do dever que despoja os sentimentos e limita ou contém as suas manifestações.
Em homenagem a Apollinaire fundou-se em 1920 a revista L’Esprit Nouveau, desenvolvendo-se nela uma teoria poética que procurava conciliar o passado e o presente, entre o irracionalismo dadaísta, que chegava ao fim, e o psicanalismo surrealista, que se iniciava e iria se prolongar, depois de 1930, na mistura de marxismo e psicanálise e numa espécie de paradoxo teórico que excitou a imaginação criadora de muitos escritores. É dessa revista que vão sair as principais ideias estéticas do modernismo brasileiro, o que lhes dá características especiais, principalmente quando comparadas com o modernismo e as vanguardas hispano-americanas.
A grande contribuição de todos esses movimentos foi a da renovação da linguagem literária, a que se liga naturalmente a renovação dos temas e das técnicas do que se queria como nova poesia. É sobre a linguagem que vão atuar os primeiros manifestos futuristas, as tentativas de pulverização dos dadaístas e, depois, as forças mágicas da metáfora e do automatismo psíquico dos surrealistas. Embora historicamente anterior ao manifesto do primeiro surrealismo, o modernismo brasileiro e as vanguardas hispano-americanas, bem como as antilhanas, de expressão francesa, vão receber influência de todos esses movimentos, assimilando-os, transformando-os ou superando-os nas suas realizações práticas de produção literária, adequando a sua filosofia renovadora à realidade cultural latino-americana.
Desde a última década do século XIX, quando Mallarmé publicou as suas experiências com o poema-livro Un coup de dés, abriu-se o processo de renovação da literatura, o qual seguia de perto o que se passava nos domínios da arte e da ciência, como a pintura com o impressionismo, da física com a radiotividade e, ainda nas artes plásticas, com a descontinuidade ganhando dimensões comparáveis à que, na linguagem, correspondia a força da construção nominal em face da construção verbal, que até então predominava.
Aludindo ao alto desenvolvimento da linguagem literária de Mallarmé, Roland Barthes escreve em Le Degré zéro de l’ecriture que o autor de Un coup de dés foi o Hamlet da literatura ocidental
(cf. o final do Hamlet — "The rest is silence"), sugerindo que depois dele só havia mesmo o silêncio para a linguagem poética tradicional. Imagem perfeita para abranger de uma só vez a altitude da poesia de Mallarmé e toda a desestruturação que as vanguardas do século XX trouxeram para a literatura. Um ciclo de experimentações atravessou os escombros da Primeira Guerra Mundial, expandiu-se para o Novo Mundo e recrudesceu depois da Segunda Guerra, mas agora sem a força criadora inicial.
Referimo-nos aqui à nova vanguarda europeia e latino-americana que surgiu depois de 1945, retomando tendências esparsas e contínuas na poesia desde 1850. Nerval, Rimbaud, Mallarmé, os futuristas, os dadaístas, os letristas e muitos neo e pós-modernistas reativam elementos e formas dos primeiros tempos, com experiências que se dizem novas na poesia e na linguagem poética. O objetivo foi sempre o de escapar à língua como simples instrumento de comunicação. Assim, com o desenvolvimento da linguística (Saussure), da semiótica (Peirce) e da teoria da informação (Moles), descobriram-se as novas possibilidades estruturais da linguagem. Passava-se da língua-comunicação para a língua-realização. Daí os vários novos grupos de poesia dita experimental, todos eles empenhados em fazer do poema um objeto verbal, semiótico ou visual. Pierre Garnier distingue dois períodos no aparecimento desses grupos: os poetas que tiveram consciência de que a língua não é somente um meio de comunicação, considerando-a como matéria (a metalinguagem); e os que consideravam que a língua, como toda matéria, pode ser transformada em energia (a poesia espacial/visual). Dentre esses grupos merecem destaque os seguintes que, bem observados, são radicalizações de um e outro aspecto tradicional na poesia:
a) O poema visual: as letras, o letrismo, a matéria da própria escrita (os grafemas), a ortografia, as siglas, os logotipos, enfim, tudo o que fonética ou tipograficamente concorre para a visualização do poema, que adquire assim valores plásticos, na linha horaciana do Ut pictura poiesis, que, por sua vez, assimila experiências de Símias de Rodes e Teócrito, no século III a.C.
b) O poema fonético: exploração poética de todos os elementos sonoros da palavra e da frase, fora até das convenções linguísticas, na mais legítima percepção poundiana da melopeia. Daí o papel relevante das pronúncias, dos acentos, das articulações, do ritmo, da rima, das assonâncias, da leitura rápida, das pausas, da fragmentação da palavra etc.
c) O poema multidimensional: cinematográfico, tátil, espacial, figurativo, sonoro etc. Para ler o poema pluridimensional o leitor deve se deslocar, jogar com o corpo em volta do objeto-poema, que é também definido como um espaço silencioso à espera do leitor.
d) O poema semântico: utiliza a língua não como expressão de ou expressão para, mas de uma maneira vulgar, a título indicativo, como receitas, ordens de serviço, enfim, um daqueles recursos de que o poeta brasileiro Manuel Bandeira se valeu como dessensibilizantes
para perder o gosto natural que tinha pelos versos metrificados. Os resultados do poema semântico serão estáticos (estado de alma) ou gestuais (movimentos corporais). Trata-se de um ritual de leitura, em que os leitores se transformarão em intérpretes e realizadores da própria poesia.
e) Mas há ainda o poema cinético: o movimento é que comanda a apreciação do leitor-espectador diante de uma forma prévia que se deforma e se transforma até reencontrar a forma primitiva. Afinal, total liberdade perante a linguagem.
Uma excelente amostra dessas possibilidades poéticas pode-se ler no Petite fabrique de littérature [I e II], de A. Duchesne e Th. Leguay, manual destinado ao ensino da literatura no Segundo Ciclo e no Superior, na França. Ali se arrolam os seguintes processos de criação e de recre(i)ação literária:
o plágio (a cópia), o pastiche, a paródia, os retoques, a tradução (a adaptação), os textos homófonos, supressões (ocultamento de letras, palavras ou versos), a expansão, as permutações, os cortes, as colagens, as definições, os sentidos antigos, o texto falsificado, o centão, a silabada/a cacofonia, a introdução de letras, a inseminação de frases iniciais, títulos, textos para serem continuados pelo leitor, a página arrancada, o livro comido pelas traças, o texto fendido, os acasos, os ludismos, o hipograma, os sons repetidos, o nome escondido, o logorallye, a liponimia, as palavras que se vão repetindo de uma frase à outra, a disposição da página e do volume, os caligramas, a braquilogia, a poliglossia, o texto livre, os temas que se inventam a si mesmos, as hipóteses, os textos extravagantes, os inventários fúteis, dicionários, os falsos provérbios, os textos paralelos, os paradoxos, as imaginações, os animais e as personagens inventadas, as utopias, as ucronias e não sei que mais expedientes.
A forma de expressão de todos esses movimentos de vanguarda — isto é, de atualização da linguagem (que se quer poética) no sentido de uma analogia com os avanços das ciências —, o tom de proclamação e o sentido revolucionário de sua própria linguagem acabaram por reativar um tipo de texto até então de uso mais político e filosófico: o manifesto, que, com as vanguardas, adquire estatuto de gênero, valendo como documento para a história literária e valendo por si mesmo como texto literário, quando não provinha do próprio poema, como é o caso da Arte poética
, de Vicente Huidobro, ou da Consideração do poema
, de Carlos Drummond de Andrade. Tão importante se tornou no aparecimento e na difusão das vanguardas, sobretudo do futurismo, que não há nenhum movimento de renovação literária sem o seu manifesto, muitas vezes mais bombástico que esteticamente necessário. Assim foi na Europa como na América Latina.
A palavra manifesto, conforme escrevi em A retórica do silêncio, já existia no latim e está ligada a manus (mão); e a festus (por fastus), o sagrado, o festivo, indicando desde o início o caráter sagrado
e festivo de uma proclamação, de um texto programático, feito (escrito) por quem deseja mostrar ao povo e ao público especial de determinada classe (geralmente política, artística e literária) o sentido sagrado
(para os seus criadores) e a importância
das novas ideias, procurando, assim, chamar a atenção para o movimento. É interessante a ênfase que se põe na função conativa da linguagem dos manifestos: é como se o seu autor (ou autores), ciente de que serão benéficos à crítica ao status quo e à propagação da nova maneira de agir, se sentisse na obrigação de dar uma satisfação ao público, pedindo-lhe desculpas por obrigá-lo a mudar de ideias e de gostos. Geralmente o manifesto expõe sinteticamente os pontos essenciais da nova ideologia (ou contra-ideologia?), sempre visando, no fundo, a atrair a simpatia e as afinidades estéticas e espirituais dos leitores.
Importante documento para o estudo das tendências e dos movimentos artísticos e literários, principalmente dos mais revolucionários, o manifesto é um discurso misto de linguagem (de criação) e metalinguagem (de crítica), uma vez que se vale da linguagem poética para apresentar e divulgar ideias teóricas e críticas sobre as artes e a literatura, como nos famosos manifestos futuristas de Marinetti, nos dadaístas de Tzara e nos de Oswald de Andrade, no Brasil. Nesse tipo de discurso paralelo, o jogo da linguagem e da metalinguagem tem-se verificado de três maneiras:
a) A linguagem é totalmente crítica, metalinguística, como no manifesto unanimista, de Jules Romains, Os sentimentos unânimes e a poesia
.
b) A linguagem literária, com forte intencionalidade poética, serve de introdução e de conclusão à linguagem crítica, que ocupa o centro do texto, como nos manifestos do futurismo.
c) A linguagem poética e a linguagem crítica se fundem na produção de um texto novo, fragmentário e descontínuo em si mesmo, um exemplo de renovação e vanguarda, como nos manifestos de Manuel Maples Arce, do México, com o Comprimido estridentista
, ou como o Plano-piloto para poesia concreta
, no Brasil. Neste último se lê, em post scriptum, a frase de Maiakovski, para quem sem forma revolucionária não há arte revolucionária
.
Pode-se dizer, portanto, que existem hoje um gênero e um estilo expressos pelo manifesto, texto que muitas vezes se torna mais importante como expressão teórica do que pelas obras produzidas pelo redator do manifesto, como é o caso conhecido de Marinetti.
O MITO DAS VANGUARDAS
Não é coincidência o fato de que, ao lado ou a seguir aos movimentos de vanguarda, tenha surgido uma tendência quase coletiva de se estudar os mitos, como se as duas pontas da tradição — o novo e o velho — devessem mostrar-se na sua totalidade cultural. Se houve inúmeros manifestos de vanguarda literária, cada um com a ideia de mudar a literatura e as formas de visão e expressão do mundo, houve também, simultaneamente, uma pluralidade de estudos sobre o mito, cada cientista desejando descobrir um sentido especial dele, como na sistematização culturalista das formas simples de André Jolles; na visão estruturalista e antropológica de Lévi-Strauss; na linguística de Greimas e de Brémmond; na sociológica de Mielietinski; na semiótica de Roland Barthes e na abordagem psicanalítica de Julia Kristeva, dentre inúmeras outras que compõem as principais investigações e análise do mito na atualidade.
Para Lévi-Strauss, em Análise estrutural dos mitos
, publicado na sua Antropologia estrutural, de 1958, quando o mito começa a perder o seu suporte cosmogônico, coletivo, começa também a esgarçar-se e a repetir-se, transformando-se em simples narrativa, em estória
, em conto popular, diminuindo consideravelmente o seu poder simbólico, fazendo-se cada vez mais individual até que se vê transposto para uma forma em direção à oralidade, tornando-se finalmente puro signo verbal, as formas simples estruturadas por André Jolles e conhecidas como literatura oral ou oratura.
É mais ou menos o que vai escrever Julia Kristeva em Le texte du Roman (1970), onde trata da transformação do símbolo em signo, ou seja, do esvaziamento do símbolo, como se deu na passagem da Antiguidade clássica para o Helenismo ou no fim da Idade Média, quando a forma teocêntrica do Cristianismo começa a ceder à visão antropocêntrica do Humanismo. A verticalidade da linguagem simbólica, em que o significante se faz transparente para a manifestação do conteúdo mítico, que, por força de mudanças culturais, perde o seu suporte e cede lugar à horizontalidade da linguagem comum. Esta se torna democrática, pondo em ação a liberdade de expressão e abrindo o espaço do imaginário para as formas que se querem literárias e que de tempos em tempos se rebelam e se intitulam de vanguarda.
E é por aí que se chega à mitificação de alguns termos da história literária, como moderno, modernismo, modernidade e vanguarda, além da falta de bom senso teórico em termos como neovanguarda, antivanguarda e pós-vanguarda, assim como se dá com o discutido pós-moderno, muito a gosto de professores e críticos apressados que amam as novidades. Não basta se dizer moderno
se o texto (poema) não documentar
, não mostrar sinais de algo novo, no tratamento do tema, das formas e da técnica na construção dos poemas, ainda que trabalhando com formas tradicionais, como o soneto, por exemplo.
Acho também importante rever a pluralidade de sentidos que envolvem as definições de modernidade e dos seus cognatos moderno e modernismo, além do termo vanguarda, que goza de grande prestígio na atualidade, falando-se de suas resistências e dissidências
. Não há dúvida de que são termos líquidos, no sentido da obra do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, Modernidade líquida, de 2001. Para ele, a passagem do século XX para o XXI é representada por uma literatura inquieta, móvel, adaptável às fortes mudanças culturais, como se dá com os líquidos no recipiente sociocultural. Daí a metáfora da "modernidade líquida em oposição a uma
modernidade sólida, do passado. Acontece que, a meu ver, todo início de um movimento literário é sempre
líquido", indeciso e sem nome, só a posteriori a crítica o define e o solidifica. É o que se deu com o termo modernismo, usado a torto e a direito depois da Semana de Arte Moderna, no Brasil de 1922. Na verdade, no Brasil, só depois de 1926 a palavra modernismo começou a substituir o polêmico e apressado futurismo dos jornais.
Penso que para melhor compreender o arco de significações desses termos é preciso partir da noção de Modernidade, vendo-a como todo período da História em que o homem é concebido como indivíduo autônomo, como centro do mundo ou, como queria Protágoras, como a medida de todas as coisas. É quando se dá o triunfo do Individualismo e, com ele, um corte epistemológico, uma ruptura com o modo de viver e de pensar a vida e o mundo. Pelo menos procura-se essa cisão. Mas logo o que era visto apenas como tradicional e velho vai se mesclando com o que se quer novo e atual, criando-se nas ciências, nas artes e na literatura o pensamento de uma nova realidade, que será discutida por longos anos. Isso se dá toda vez que o símbolo se esvazia e se torna signo, linguagem horizontal, na qual o indivíduo pode expressar livremente as suas ideias. É nesses períodos que a literatura adquire a sua plena liberdade de expressão.
A Modernidade ocidental se deixa ver hoje em três fases: a do Classicismo do século XVI; a do Iluminismo do século XVIII; e a do Romantismo-Realismo do século XIX para o XX, a qual se vem desdobrando até os nossos dias. Assim, o adjetivo moderno não passa de uma das faces, de uma das características da Modernidade em determinada época, em função dos efeitos superficiais da moda e até mesmo devido a um rompimento com o tempo que parece não fazer mais sentido, mas que se deixa recuperar nas memórias, nos romances e na poesia, além de impregnar a produção intelectual da sua época. É o que se tem verificado em vários momentos da literatura ocidental.
É claro que o termo modernismo se emprega atualmente para designar os movimentos artísticos e literários dos séculos XIX e XX. É uma decorrência de ideias e movimentos culturais anteriores como os da belle époque, do fin de siècle, do decadentismo, do romanismo e do unanimismo, como já dissemos anteriormente e está exposto neste livro.
Os limites desse período vão da morte de Mallarmé (1898) ao livro de Oswald Splengler, Decadência do Ocidente, de 1918, intervalo que documenta a fragmentação da unidade literária com os manifestos das várias vanguardas que se denominaram futurismo, expressionismo, cubismo, cubo-futurismo, dadaísmo e surrealismo, este posterior à nossa Semana de Arte Moderna. A literatura tradicional (a romântico-realista) passa a conviver e a suportar o aparecimento das experimentações do vanguardismo do início do século, asseguradas pelos seus manifestos. Devagar ela os vai assimilando.
É do sentido do universal expresso na metáfora dos pontos cardeais que surge o mito das vanguardas como o novo e o melhor. Quando se quer dizer que uma ideia, um movimento, uma criação é boa, diz-se que ela é de vanguarda, como se a simples enunciação desse termo transformasse tudo em boa novidade. Nem sempre se dá conta de que o que parece novo já tinha sido experimentado pouco tempo atrás. É o que Alceu Amoroso Lima mostrou em Quadro sintético da literatura brasileira, de 1959, quando diz que a nova geração de escritores — a de 1945 — simplesmente retomava temas e técnicas do primeiro momento do modernismo brasileiro, exprimindo-as numa linguagem compatível com a angústia dos novos (dos novos novos
) diante do espetáculo da Segunda Guerra Mundial e do sentido da redemocratização do país.
Os jornais e revistas que surgiram em várias cidades do Brasil, em face da ditadura de Vargas, proclamavam a necessidade do novo e do melhor, que, afinal, quase sempre ficavam no mesmo em relação ao que se pensava e se queria como uma nova linguagem. É por aí que correm as resistências
e dissidências
nas (im)possíveis poéticas de vanguarda
, expressão que, a meu ver, vanguardizou
o termo poética e criou uma curiosa antítese, melhor, uma contradição entre o significado maior de poética e o de vanguarda. Os sentidos de invenção e de experimentação, que caracterizam o termo vanguarda, parecem dar-se mal diante das regras canônicas de uma verdadeira Poética, no sentido da incompleta mas fundadora poética de Aristóteles.
A história
do modernismo no Brasil oficializou
didaticamente um modelo de leitura crítica que nem sempre corresponde à realidade hermenêutica dos documentos e dos próprios textos literários. A década de 1920 foi uma época em que a difusão do modernismo se fez com o aparecimento de revistas e entrevistas pelos quatro pontos do território latino-americano e motivou nova visão teórica expressa pelos manifestos e editoriais que acrescentavam ingredientes da cultura regional à divulgada pelos primeiros modernistas de São Paulo e Rio de Janeiro. Mas toda a forte difusão das vanguardas começou a enfraquecer por volta de 1930, quando os tempos políticos e ideológicos motivavam outros caminhos para a produção literária. Com o original Manifesto antropófago, de Oswald de Andrade, em 1928, as ideias teóricas são imediatamente substituídas por uma produção literária que misturava modernismo e tradição. O mesmo ocorreu em todos os países da América Espanhola.
A expansão (a difusão) das ideias novas, a partir de São Paulo e do Rio de Janeiro, na direção do Nordeste, do Norte, do Sul e do Centro-Oeste, teve como resultado lógico a criação de revistas que se queriam e se diziam modernas em cada Estado: a revista publicava o seu editorial, que fazia o papel de um novo pequeno manifesto
, divulgando o sentido do novo vindo de São Paulo, acrescido, porém, de elementos da cultura regional que, assim, acrescentavam novo viés de interpretação da modernidade brasileira. Mas os estudiosos — críticos e professores — desprezavam (e continuam desprezando) os elementos regionais e trabalhavam com os provenientes da mídia e das editoras do litoral, principalmente de São Paulo. O intelectual dos outros estados vê tudo o que se publica no litoral como o certo, o correto — o que nem sempre é verdade: a maior parte é apenas republicação do existido.
Assim, preocupada com o espaço cultural Rio-São Paulo (ao qual se integrou o de Belo Horizonte), a crítica e a historiografia literária do Brasil não foram ainda capazes de ver a importância dos jornais, revistas e entrevistas regionais, com escritores velhos e novos, a partir de 1930. Todos eles discutiram o tema da modernidade sem adequá-los à cultura brasileira. A maior parte desse material continua inexplorada por muitos pesquisadores universitários de sua região, mais preocupados em estudar os autores... já estudados.
Além disso, é preciso chamar a atenção para o fato de que no fim do século XX ocorreu e vem ocorrendo um duplo fenômeno centralizador
, sobretudo nas áreas de estudos universitários. De um lado, pode-se dizer que houve e ainda há uma espécie de ditadura
exercida pelo fascínio mítico de um dos últimos movimentos, como o Poesia Concreta e suas diversificações. (Para Mário Quintana, em Trecho de entrevista
: — Mas por que falar em poesia concretista? Diga-se ‘concretismo’, apenas, e estará ressalvada a poesia.
) Essa ditadura
castrou a jovem inteligência pelo interior do Brasil: em vez de estudar a Poesia, o novato, mal informado, passou a navegar pela facilidade minimalista do poema (concreto / práxis), como também ocorreu com a moda dos haicais, alastrada pelo país. E de outro, uma universidade como a USP, pela sua posição no ranque das universidades brasileiras, atraiu professores de outras áreas do país, os quais, por força de ideologias nitidamente uspianas
, continuam a repetir um tipo de estudo de fontes primárias, mas sem o sentido crítico nacional que se espera de muitas dissertações de mestrado e até de teses doutorais, o que é fácil de se documentar no simples exame desse material publicado. A maioria dessas teses, quando editadas, continua a repetir um tipo de estudo discutível. Só o talento individual do novo pesquisador e a sua sensibilidade crítica podem encontrar uma saída desse modelo histórico-didático, que se vê amparado pelas editoras do litoral — na verdade, as grandes vilãs de uma nova história literária do modernismo brasileiro.
MODERNISMO E VANGUARDA NO BRASIL
A literatura brasileira, tal como as vanguardas hispano-americanas e a dos povos francófonos do Caribe, somente alcançou a sua maturidade expressiva a partir da segunda década do século XX, no momento em que as principais literaturas da Europa já haviam experimentado a ruptura de seus vários manifestos de vanguarda, a partir de 1908, com o futurismo e o expressionismo e, depois, com o cubismo, o dadaísmo, o espiritonovismo
e mesmo o surrealismo. Embora historicamente anterior ao surrealismo, o modernismo brasileiro, iniciado em 1922, recebe influência de quase todos esses movimentos. Mas são as ideias futuristas e o pensamento teórico da revista L’Esprit Nouveau, que sintetizou depois da guerra o sentido de renovação do futurismo, as principais fontes da primeira poética do modernismo brasileiro.
O modernismo surge como um processo de rompimento com o passado próximo, acentuadamente parnasiano-simbolista. É, nesse sentido, o grande restaurador de um romantismo repensado, ampliado e atualizado numa nova visão estética da cultura brasileira. Isso explica a importância que os novos escritores vão dispensar ao regionalismo, transportando-o do campo para a cidade e procurando dar-lhe dimensões universais, como nos poetas da década de 1920, nos romancistas do Nordeste, na ficção criadora de Guimarães Rosa e na poesia de Lêdo Ivo e João Cabral de Melo Neto. Isso explica também a ambiguidade fundamental do modernismo: a ruptura com o passado, enquanto esse passado significou fechamento cultural; mas é também transformação das forças mais autênticas da tradição brasileira.
É oportuno esclarecer que o movimento literário que na América Espanhola se conhece por modernismo nada tem a ver com o modernismo brasileiro. O hispano-americano teve início no fim do século XIX e de certa maneira se confundiu com as formas parnasianas e simbolistas. Com exceção de rupturas pessoais como a de Vicente Huidobro, simultaneamente no Chile e em Paris, só a partir de 1921 as vanguardas europeias se fizeram sentir em vários países hispano-americanos. Constituem os seus movimentos de vanguarda (ou neomodernismo). Neste sentido o modernismo brasileiro se equivale à vanguarda (e à neovanguarda hispano-americana).
Os Prelúdios Futuristas
Apesar de o primeiro manifesto futurista haver sido publicado no Brasil em junho de 1909 (Rio Grande do Norte) e em dezembro do mesmo ano (Bahia), e apesar de algumas reações a respeito do futurismo, somente dez anos depois as ideias vanguardistas de Marinetti atingiram realmente os escritores brasileiros, velhos e novos. Os primeiros viam no futurismo um sinal de loucura, proveniente da guerra, confundindo sob o nome de futurismo a maioria dos -ismos conhecidos na época. Os segundos, principalmente os jovens de São Paulo (lugar da grande concentração de italianos imigrados), viam no futurismo o signo da renovação literária e artística. O termo servia para identificar qualquer tentativa de renovação e foi aplicado primeiramente pelos defensores da tradição e da ordem cultural para assinalar os artistas que desviavam dessa ordem. Depois os novos o aceitaram e passaram a assimilar os seus postulados estéticos para, afinal, desprezá-lo depois da Semana de Arte Moderna (S.A.M.).
Num artigo intitulado O futurismo
, Menotti del Picchia (sob o pseudônimo de Hélios) elogia, em 1920, a obra de Marinetti, falando da nova corrente literária, já quase vitoriosa na Europa
e na força expressional desse poeta que é — para mim — um dos mais fortes e sugestivos que hei conhecido
. Os artigos de Oswald de Andrade, em 1921, não só exibem traços estilísticos do manifesto de Marinetti como se transformaram muitas vezes em defensores do futurismo. Em Na maré das reformas
, Menotti escreve que:
A vida multiforme e absorvente, maravilhosa na sua complexidade, violenta na sua tragédia e na sua vertigem, a vida do século XX, com fábricas e bolchevismo, com o sangue ainda quente derramado no holocausto da grande guerra, pede outra técnica para a sua representação, outra expressão verbal para a sua extrinsecação artística.
Em maio de 1921, Oswald escreve O meu poeta futurista
, referindo-se a Mário de Andrade e a sua Pauliceia desvairada, ainda inédita. O artigo termina com estas palavras: Bendito esse futurismo paulista, que surge companheiro da jornada dos que aqui gastam os nervos e o coração na luta brutal, na luta americana, bandeirantemente.
Entretanto, Mário de Andrade, já por essa época ligado à revista L’Esprit Nouveau, não aceita a denominação de futurista e responde a Oswald de Andrade, perguntando:
Futurista por quê? Será só e unicamente porque o meu amigo [ele mesmo, Mário] admira certos corifeus do Futurismo e reconhece, no meio de suas erronias, os benefícios que o grupo nos veio trazer? [...] Quanto ao Futurismo brasileiro, ou por outra de São Paulo, Oswald de Andrade está mesmo convencido que ele existe?"
Oswald de Andrade volta à carga, dizendo que "os versos de Pauliceia desvairada são do mais chocante, do mais estuporante e, para mim, do mais abençoado futurismo".
A polêmica serviu para divulgar e popularizar o termo futurismo, que aparece na maioria dos textos jornalísticos da época. Oswald de Andrade e Menotti del Picchia são os grandes defensores do futurismo no Brasil. Menotti chega a escrever que:
O Futurismo dogmático e extremado [...] não morreu agora na Itália. Morreu há muito tempo... Isso não quer dizer que dele tivesse nascido o formidável surto de renovação estética, cujos ecos ressonaram até no Brasil.
Por essa altura (fim de 1921), o futurismo, apesar de impregnar o estilo e os temas dos novos, já começava a ser recusado. Mário de Andrade, já agora no seu Prefácio interessantíssimo
, reafirma que não é futurista:
Não sou futurista (de Marinetti). Disse e repito-o. Tenho pontos de contato com o futurismo. Oswald de Andrade chamando-me futurista, errou. A culpa é minha. Sabia da existência do artigo e deixei que saísse.
Tempos depois, em A escrava que não é Isaura
, e já ciente e consciente das ideias do espírito novo
, Mário escreve que mesmo os poetas que, em vários países da Europa,
Caminham por esta mesma estrada de construção que levará a Poesia a um novo período clássico não seguem juntos. Uns mais adiante. Outros mais atrás. Outros perdem-se nas encruzilhadas.
E, referindo-se a Marinetti:
E será preciso dizê-lo ainda? Marinetti que muitos imaginam o cruciferário da procissão, vai atrasadote, preocupado em sustentar seu futurismo, retórico às vezes sempre gritalhão.
Com a realização da Semana de Arte Moderna e depois da posição inequívoca de Mário de Andrade, muitos defensores e esteticamente beneficiários do futurismo começaram a combatê-lo, como é o caso de Menotti del Picchia, que, na conferência pronunciada na Semana de Arte Moderna (S.A.M.), disse que:
O termo futurista, com que erradamente a etiquetaram, aceitamo-lo porque era um cartel de desafio. [...] Eu, pessoalmente, abomino o dogmatismo e a liturgia da escola de Marinetti [...]. No Brasil, não há, porém, razão lógica e social para o futurismo ortodoxo, porque o prestígio de seu passado não é de molde a tolher a liberdade da sua maneira de ser futura.
Mas o interessante é que o exemplo que Menotti dá do estilo dos novos é inteiramente calcado na linguagem dos manifestos de Marinetti, como no seguinte trecho com certa intenção de poesia:
Pela estrada de rodagem da via-láctea, os automóveis dos planetas correm vertiginosamente. Bela, o Cordeiro do Zodíaco, perseguido pela Ursa Maior [pouco vista no Brasil], toda dentada de astros. As estrelas tocam o jazz band de luz, ritmando a dança harmônica das esferas. O céu parece um imenso cartaz elétrico, que Deus arrumou no alto, para fazer o eterno reclamo da sua onipotência e da sua glória.
Não é à toa que, no Manifesto de Paris, de 1924, Marinetti aponta discípulos no Brasil, entre os quais um De Andrade
, que tudo leva a crer que seja Oswald de Andrade, o mais irrequieto deles. Assim, pode-se dizer que o futurismo serviu para dar o impulso de renovação que faltava aos jovens escritores brasileiros. Mas sob o signo do futurismo havia também ecos expressionistas, cubistas e dadaístas e, até, como veremos a seguir, muita coisa do espírito novo, que de certa maneira sintetiza todas essas vanguardas. A sua função foi, como toda a obra de Marinetti, a de apenas abrir caminhos. Preparada e realizada a Semana de Arte Moderna, iniciou-se o processo de repulsão do futurismo, a ponto de Marinetti ser bastante vaiado, por velhos e novos, quando em 1924 passou pelo Brasil.
É bom lembrar que os novos de São Paulo já estavam mais ou menos agrupados por volta do início de 1920, ano em que Mário de Andrade redigiu a sua Pauliceia desvairada, que se tornaria o primeiro livro do modernismo brasileiro. Durante esse período, Mário lia seu livro para os amigos de São Paulo e do Rio de Janeiro; em agosto de 1921, começou a escrever a revisão crítica dos Mestres do passado
e, em dezembro, redigiu o Prefácio interessantíssimo
e a Carta
— em que o seu lado novo
escreve a seu lado conservador
—, colocando ambos os textos como abertura da Pauliceia desvairada, que seria publicado no ano seguinte:
A Mário de Andrade
Mestre querido.
Nas muitas horas breves que me fizestes ganhar
a vosso lado dizíeis da vossa confiança pela arte
livre e sincera... Não de mim, mas de vossa
experiência recebi a coragem da minha Verdade
e o orgulho do meu Ideal.
Permiti-me que ora vos oferte este livro que
de vós me veio. Prouvera Deus! nunca vos
perturbe a dúvida feroz de Adriano Sixte...
Mas não sei, Mestre, se me perdoareis a distância
mediada entre estes poemas e vossas altíssimas
lições... Recebei no vosso perdão o esforço
do escolhido por vós para único discípulo;
daquele que neste momento de martírio muito
a medo inda vos chama o seu Guia, o seu Mestre,
o seu Senhor.
Mário de Andrade
S. Paulo, 14 de dezembro de 1921
O ano de 1921 foi também quando Graça Aranha, diplomata e escritor de reputação nacional, que havia vivido vinte anos na Europa, volta definitivamente ao Brasil e, em contato com os novos de São Paulo, planeja a realização da Semana de Arte Moderna.
O Espírito Novo
/ Moderno da S.A.M.
Atentem para três aspectos que passaram despercebidos dos historiadores de nossa modernidade, aspectos que, vistos em profundidade, mostram como o modernismo brasileiro foi mesmo um prolongamento das ideologias vanguardistas da Europa, da França e da Itália, principalmente. A luta dos brasileiros, como de resto de todo escritor latino-americano, foi a de operar a adaptação dos temas e das formas do Velho Mundo às necessidades nacionais e culturais do Novo Mundo, receptor não de símbolos passivos, como nos tempos coloniais, mas de signos de renovação que, ligeiramente alterados, se tornaram eficazes na dinamização da literatura e das artes.
Preocupados com as relações com o futurismo, mas procurando antes negá-lo que assumir coerentemente as suas projeções no Brasil, os primeiros estudiosos da Semana de Arte Moderna não atentaram muito bem para as concepções teóricas de Mário de Andrade e de Graça Aranha, provenientes da visão sintetizadora e equilibrada de Apollinaire e de seus admiradores que se reuniram em torno da revista L’Esprit Nouveau. Ao futurismo de Menotti del Picchia e de Oswald de Andrade se opõe, ainda nos bastidores da Semana, o espírito moderno
de Graça Aranha e de Mário de Andrade. É esta a raiz mais sólida do modernismo, alimentando-o por dentro e não superficialmente como nas polêmicas mencionadas.
Os movimentos da vanguarda na Europa podem ser, de maneira mais ou menos didática, organizados em duas frentes que, sob certos aspectos, se opunham, embora unidas por um princípio comum de renovação literária. Se o futurismo e o dadaísmo representam as manifestações mais ruidosas e os objetivos mais destruidores
da tradição, o expressionismo e o cubismo apontam para o lado da construção
, das grandes sínteses psicológicas só percebidas na recomposição por parte do leitor ou do espectador. Entre as duas correntes vanguardistas surge (ou ressurge) a tendência clássica da revista L’Esprit Nouveau, mais da ordem da construção do que da destruição, e que vem, mais de perto, fecundar as primeiras teorias poéticas de Mário de Andrade. Mas o espírito novo é também uma tendência redutora da realidade e é dele que provém a dialética universalismo versus nacionalismo, que vai dividir os modernistas brasileiros.
É precisamente nessa redução que se opera a grande contribuição poética das vanguardas europeias, porquanto destruição e construção são as duas faces de uma mesma técnica de trabalhar a realidade, transformando-a em linguagem. É sobre a linguagem que atuam as primeiras forças destruidoras do futurismo e as tentativas de pulverização do dadaísmo, além das experiências de Mallarmé, cujas repercussões atingem tardiamente a poesia brasileira, como na poesia concreta e no poema-processo, em que a ideia de um projeto
ou de versões
não está longe da concepção formulada por Mallarmé no Préface
a Un coup de dés. É sobre a linguagem, ainda, que vão operar as forças mágicas da significação metafórica do expressionismo, a geometrização dos cubistas e, noutro plano, o irrealismo
de um movimento que, através da ciência ou da magia, pôde mais rigorosamente sondar a sub- ou a super-realidade da alma humana, como no caso do surrealismo. A filosofia do sentido modernista
na Semana de Arte Moderna tem, assim, as suas fontes na revista do Espírito Moderno, de onde Mário retirou a maioria das suas exposições teóricas presentes no Prefácio interessantíssimo
de Pauliceia desvairada, ampliado, mais tarde, para A escrava que não é Isaura
.
Mário de Andrade e a Revista L’Esprit Nouveau
Mário de Andrade lia e anotava a revista L’Esprit Nouveau, fundada em Paris em 1920 por Le Corbusier e Ozenfant, em homenagem a Apollinaire, morto em 1918, no mesmo ano em que escreveu o artigo-manifesto L’Esprit nouveau et les poètes
, onde as concepções de um mundo novo, pós-guerra, se alinhavam às de uma arte nova, nacional e universal ao mesmo tempo, e que deveria ser a expressão organizadora do mundo que se levantava dos destroços da Primeira Guerra Mundial. Daí a voz de Apollinaire, que havia ajudado a implantar a renovação a partir de 1908, texto que já citamos na parte I:
O espírito novo que se anuncia pretende, antes de tudo, herdar dos clássicos um sólido bom senso, um espírito crítico e seguro, apreciação de conjunto do universo e da alma humana e o sentido de dever que analisa os sentimentos e limita, ou antes, contém suas manifestações.
Os puristas, nome por que passaram a ser designados os pintores neo- ou anticubistas, foram os primeiros a carregar a bandeira do ideário de Apollinaire, desenvolvendo uma teoria poética conciliadora entre o passado e o presente, entre o irracionalismo dadaísta, que chegava ao fim, e o psicologismo surrealista, que se iniciava e preparava o manifesto de 1924.
É impossível que Mário de Andrade não conhecesse diretamente o testamento
de Apollinaire, publicado postumamente no Mercure de France e só divulgado em livro em 1946, um ano depois de sua morte. Entretanto, a maior parte do pensamento de Apollinaire se divulgou através da revista L’Esprit Nouveau, nos vinte volumes que a compõem no período de 1920 a 1925, quando desapareceu. Nela, Mário conheceu alguns teóricos que menciona no Prefácio interessantíssimo
, como Jean Epstein, Zdilas Milner, Paul Dermée, Georges Migot e Ribot. Foi nela que ele leu a Découverte de lyrisme
, de Paul Dermée; Le Phénomène littéraire
, de Jean Epstein, e La Création pure
, de Vicente Huidobro, indicando em nota de rodapé a sua fonte de leitura. Apesar do possível desconhecimento direto do texto do autor de Calligrames, há semelhanças entre a estrutura e o conteúdo do L’Esprit nouveau et les poètes
e os dois polos de A escrava que não é Isaura
: o do criador, além das preocupações com o verso livre, com a rima, com a temática nacional e com outros elementos da poética e da retórica, vistos em perspectiva de equilíbrio entre a tradição e o novo.
O pensamento literário de Mário de Andrade procurava assim harmonizar o pessimismo destruidor dos futuristas e dadaístas e o otimismo criador dos puristas ou espiritonovistas
, não tendo, realmente, muita vinculação com o futurismo, como ele diz, de Marinetti.
Graça Aranha e o Testamento de Apollinaire
Outro aspecto diz respeito à participação de Graça Aranha nos acontecimentos da Semana de Arte Moderna. Celebrado como romancista e membro da Academia Brasileira de Letras, o autor de Canaã viveu como diplomata na Europa desde o início do século XX e conheceu de perto a grande agitação intelectual da belle époque, assimilando, bem ou mal, o sentido da renovação dos grupos vanguardistas. É bem clara a influência francesa nas suas concepções estéticas, principalmente na preocupação com o espírito moderno
, ideia popularizada pelo futurismo, desenvolvida por Apollinaire e, após a morte deste, repercutida nos fundamentos teóricos da revista L’Esprit Nouveau.
Graça Aranha chegou ao Brasil trazendo um livro de ensaio, A estética da vida, e pregando justamente o espírito moderno
, expressão que se torna corrente na sua obra e na imprensa brasileira da época. Será, depois, o título de sua conferência na Academia Brasileira de Letras, em 1924, e do livro onde ele aparece em 1925. Aranha chegou em outubro de 1921 e em novembro já tomava parte em São Paulo na organização da Semana. Desde o início se colocou no centro do movimento de renovação das letras brasileiras, cujo ponto de repercussão pública foi a realização da Semana de Arte Moderna no Teatro Municipal de São Paulo, nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922, relacionando-a com os festejos do centenário da Independência do Brasil.
A conferência inicial foi proferida por Graça Aranha e se denominou A emoção estética da arte moderna
. Na segunda parte da mesma noite Ronald de Carvalho falou sobre A pintura e a escultura moderna no Brasil
. Na segunda noite, a da grande vaia do público, o conferencista foi o paulista Menotti del Picchia, que falou sobre Arte Moderna
. Dois anos depois, Graça Aranha pronunciava na Academia a sua famosa conferência sobre O espírito moderno
, sintagma que se tornou obsessivo no seu pensamento. Como se viu, o l’esprit nouveau
de Apollinaire correspondia à fase construtiva, de tendência ao equilíbrio entre tradição e renovação, o que fazia sentido sobretudo depois da guerra. Ao contrário de Graça Aranha, a conferência de Menotti del Picchia foi toda ela marinettiana, apesar de se dizer nela que abominava o dogmatismo e a liturgia da escola de Marinetti
. Mas Graça Aranha era herdeiro direto de Apollinaire, o que não exclui a hipótese de haver conhecido o cubismo no Brasil, segundo se propalava entre os seus adversários...
A S.A.M. e o Congrès de L’Esprit Moderne
Finalmente, o terceiro aspecto se refere ao nome da Semana de Arte Moderna (cf. as seções "Mário de Andrade e a Revista L’Espirit Nouveau e
Graça Aranha e o ‘Testamento de Apollinaire’ desta introdução). Sabe-se que ele foi sugerido em dezembro de 1921 por Graça Aranha e tudo indica que foi também
trazido" da Europa. Por volta de 1921, quando o dadaísmo já não fazia mais sentido (fora uma literatura de guerra) e as ideias de Apollinaire começavam a ganhar adeptos, Tristan Tzara e André Breton, juntamente com o grupo que se reunia em torno da revista L’Esprit Nouveau, programaram a realização de um Congrès de L’Esprit Moderne, a efetuar-se em Paris em março de 1922. O referido congresso tinha entre seus objetivos a defesa do espírito moderno
, o confronto de valores novos com os do passado e o debate sobre a volta do equilíbrio clássico. Como houve divergência por parte de Tzara, o congresso não chegou a realizar-se, tendo-se frustrado no fim de 1921, quando Graça Aranha já se encontrava no Brasil.
Ora, imaginando também uma espécie de congresso
(ou uma semana) em que, tal como na França, tomassem parte escritores, músicos e pintores, tudo leva a crer que Graça Aranha se valeu também dessa ideia de congresso. A coincidência do nome mais ainda se reforça com a coincidência das datas: o Congresso de Paris seria em março de 1922; a Semana brasileira foi programada para fevereiro do mesmo ano, de maneira a passar a perna no evento dos franceses...
Assim, tanto pela participação de Graça Aranha com pela de Mário de Andrade, a Semana de Arte Moderna, ponto de partida do que posteriormente se designou modernismo, foi uma consequência dos movimentos das últimas vanguardas europeias. De uma vanguarda posterior à guerra, quando o ímpeto destruidor de futuristas e dadaístas já se encontrava travado pela concepção ordenadora de um mundo novo, com a ideia de um espírito novo, isto é, moderno presidindo à mentalidade criadora, espírito que bafejou as teorias de Graça Aranha, influiu nas teorias de Mário de Andrade, na sua concepção poética, e motivou o nome do primeiro sarau
do modernismo brasileiro.
Raízes Europeias do Pau-Brasil
e da Antropofagia
Cabe agora uma palavra sobre as ideias de Oswald de Andrade a respeito dos dois manifestos literários mais radicais do modernismo na década de 1920. Para isso pode-se dizer que a Semana de Arte Moderna durou três anos, pois os anos de 1922 a 1925 foram de contínua assimilação de ideias novas, de polêmicas, de definições e até de perplexidade. No centro da agitação intelectual da época está a figura controvertida de Oswald de Andrade. Personalidade irrequieta e que havia sido um dos mais intransigentes defensores do futurismo, Oswald de Andrade se dá bem com a negatividade dadaísta e no primeiro número de Klaxon (1922) já esboça o conteúdo de sua Falação
em Pau-brasil, de 1924, texto de onde tiraria o seu Manifesto da poesia pau-brasil
, do mesmo ano, onde é fácil descobrir uma série de marcas estilísticas europeias fazendo fundo a uma teoria da literatura nacional. Na verdade, esse manifesto é uma síntese inteligente de elementos futuristas, dadaístas e até espiritonovistas. Num de seus trechos mais conhecidos se diz que
Não há luta na terra de vocações acadêmicas. Há só fardas. Os futuristas e os outros. Uma única luta — a luta pelo caminho. Dividamos: Poesia de importação. E a Poesia Pau-brasil, de exportação.
Consciente do sentido colonial da importação
, Oswald de Andrade procura transformar as influências estrangeiras em matéria-prima nacional, a ser, depois de trabalhada, remetida ao estrangeiro como influência brasileira. Por isso, ele luta agora pela síntese, pelo equilíbrio, pelo acabamento técnico e pela invenção, embora não tivesse talento estético para isso. Em vez da cópia ou do detalhe naturalista, como ele mesmo o diz noutro trecho do manifesto, revelando assim algumas ideias da revista