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VIDA E OBRA DE MANUEL BAPTISTA CEPELOS

Por Pedro Nastri

Sobre a vida e obra de Manuel Baptista Cepelos, não há melhor legenda do que
este verso do próprio poeta:

O tempo é destruidor e os homens são perversos

Poucos poetas, na verdade, foram, como ele, vítimas da maldade dos homens e
da ação destruidora do tempo. Incompreendido pelos contemporâneos, Cepelos
caiu depois de morto, num lamentável e injusto ostracismo.
Durante mais de vinte anos não se falou dele e de sua obra, a não ser em ligeiras
e superficiais crônicas, geralmente escritas às pressas, sem nada trazerem de
novo para a compreensão do homem e da mensagem poética por ele deixada. Por
volta de 1940, porem, surgiu quem lhe viesse fazer justiça, reavivando-o na
memória dos homens, num trabalho a que todos os louvores são mesquinhos.
Refiro-me ao livro de Melo Nóbrega, volume honesto e puro de intenções, no qual
é narrada a triste existência do poeta, no mesmo tempo que se faz justiça à obra
que nos legou, obra que esta muito acima de tantas outras de incríveis medalhões
que circulam por ai, aureolados por falsas e imerecidas consagrações.
Pequena é a bagagem deixada por Cepelos. Cinco ou seis volumes, entre
poesias, crônicas, contos, alem de um romance e do poema dramático “Maria
Magdalena”. E dessa bagagem, o que realmente valerá a pena destacar? Um livro
pelo menos se impõe logo à nossa admiração e ao nosso entusiasmo: “O
Bandeirantes”. Bastaria, alias, este volume para consagrar qualquer poeta. O
restante, porem, esta longe de merecer completo desprezo. Sobretudo o poema
dramático “Maria Magdalena” e o livro de versos “Vaidades”.
A produção de Manuel Baptista Cepelos é explicada pela sua existência, toda ela
marcada pela desgraça e pela instabilidade de situações. A desgraça que o feriu
em cheio, quando em plena fase de intensa e alta produtividade, não só lhe veio
amargar os últimos anos de vida, como serviu, sem duvida alguma, para
amortecer-lhe o ímpeto criador, para levar ao seu temperamento sensível e
facilmente sugestionável, o desanimo e o desalento. É curta, embora acidentada,
a sua biografia. Convém resumi-la, para melhor compreendermos o poeta.
Nasceu a 10 de dezembro de 1872, em Cotia, município do Estado de São Paulo,
de pais humildes. Fez os primeiros estudos na classe lecionada pelo próprio pai e
segundo a própria família, foi arredio e “esquisitão”.Moço ainda, para evitar
impertinências do delegado da cidade, que se tornou acérrimo e gratuito inimigo
do rapaz tímido e bem comportado, veio para São Paulo, e chegando, alistou-se
como praça na Força Pública, então Corpo Municipal Permanente. Talentoso e
muito dedicado aos estudos, chegou rapidamente aos postos superiores. Aos
vinte e poucos anos já era capitão, tendo-se destacado quando da Campanha do
Paraná, em 1894. A folha de serviços que deixou, era uma das mais lisonjeiras
para um soldado. Quase duas dezenas de referencias elogiosas atestavam a
passagem do futuro cantor de “Os Bandeirantes” pelos diversos postos da carreira
militar. Suas tendências, no entanto, não se harmonizavam com a vida escolhida,
talvez um tanto impensadamente. Percebe isso e resolve mudar de rumo
enquanto ainda havia tempo. Ainda sargento, servindo na guarnição de Santa ita
do Passa Quatro, surpreendera a todos os amigos e conhecidos, saudando uma
cantora italiana de passagem pela cidade. Acontece que a veia literária, embora
entre paredes, manifestara-se no sargento Cepelos.
Em 1895, contando vinte e três anos de idade, inicia o curso de preparatórios, pelo
sistema em voga na época, isto é, os exames parcelados. Não abandona,
contudo, a farda. Somente ao completar 30 anos é que o canudo de bacharel
substituirá as divisas de capitão. Formado em direito, vai ser promotor em Apiaí.
Nestas alturas, suas atividades literárias já se confundem com suas atividades
militares, estudantis e jurídicas. Ainda cursando o preparatório, publica o poemeto
“A Derrubada”. Estréia medíocre, não prenunciando o poeta que ele viria a ser. E
por cumulo, inteiramente voltado para um tema no qual jamais conquistara sólidos
triunfos, jamais se sentiria à vontade. É fácil verificar que a natureza não foi, em
tempo algum, um rico filão para Cepelos. A mediocridade de “A Derrubada” foi
reconhecida pelo próprio autor, que mais tarde nem sequer a incluiu entre as
“obras publicadas”.
Deste folheto para o poema “O Cysne Encantado”, o passo é grande e os
progressos são notórios. Marco expressivo na evolução do poeta, este poema que
é “a biografia interior de um homem atormentado pelos problemas sociais da sua
época”,l como disse Melo Nóbrega teve a virtude de atrair para o autor as
atenções dos intelectuais mais em evidência, na Paulicéia. Mas o poema,
reconheçamos, é ainda medíocre. Pelo menos, lido agora tantos anos depois,
agora que o cisne branco como símbolo da felicidade sobre a terra, se nos
apresenta regularmente pelo uso abusivo que dele fizeram. Ao falarmos em
cisnes, o soneto de Julio Salusse vem logo à tona e o desejo de passarmos
adiante, para não cairmos em repetições me lugares comuns, torna-se imperativo.
Mesmo porque, se estamos aqui preocupados com a arte de Baptista Cepelos,
não será, evidentemente, por esse poema e sim pela grande obra que publicaria
quatro anos depois: “Os Bandeirantes”, seu melhor trabalho e um dos livros mais
significativos da poesia brasileira. Todo o convencionalismo do “Cysne” e toda a
mediocridade de “A Derrubada” cedem lugar a este grande poema no qual o autor
objetiva os melhores dotes poéticos de que é dotado. Verdadeira novidade para a
época, “Os Bandeirantes” surpreende pela naturalidade dos versos, pela precisão
das descrições, pelas riquezas das imagens, pelo vigor impressionante como que
fixa as situações e figuras, pela força poética, enfim, com que soube envolver os
cantos que o compõe. Força poética que o torna, aos nossos olhos, de atualidade
indiscutível e incontestável. Trata-se de um poema de exaltação da terra natal, de
um poema no qual cultua heróis e feitos legendários dos velhos bandeirantes que
formaram a nação, velhos bandeirantes plantadores de cidades e devastadores de
sertões:

“O que sobremaneira eleva o Bandeirante


A eterna gratidão de remotas idades
É o sulco que ele abriu, o sulco triunfante
Em que iam florescer as futuras cidades.”

Olavo Bilac, apadrinhando o volume, percebeu que estava em presença de algo


novo e, sem poder precisar com clareza aquilo que apenas pressentia, deixou
escrito no prefácio que o poeta lhe solicitara: “Baptista Cepelos parece-me ter
adivinhado ou descoberto um caminho novo”. E concluía com estas palavras:
“Este é, em suma, um livro que não se confundirá com o comum dos livros de
versos; é o livro de um legítimo, original e excelente poeta, a quem tenho orgulho
de saudar em primeira mão”.
Legitimo, original e e3xcelente poeta, não há duvida. Seja delineando o cenário
onde fará ressurgir seus heróis, seja cantando-os em seus feitos transbordantes
de audácia e intrepidez, ou seja, principalmente, evocando a alma da terra paulista
nas suas mais doces paisagens e suas mais caras tradições, a poesia de Cepelos
se impõe, penetra imediatamente na sensibilidade do leitor, conquista-lhe segura e
perdurável simpatia. Reparem como ele, debruçado às margens do centenário
Tietê, desabafa-se em confidências ao velho rio que tantas confidências já ouviu
de poetas que aqui viveram:

“De tarde, quando o sol poucos brilhos expande,


Sozinho, a meditar em tanto não sei quê,
Tomo o rumo da Luz, vou até a Ponte Grande,
Afim de conversar com o meu velho Tietê...

A cabeça recosto e, por cima da grade,


Vejo as águas em todo seu largo trajeto;
Então ele me conta a história da Cidade,
Como um velho guerreiro a distrair o neto...

Cofiando lentamente a barba de cem anos,


O bom velho me conta essa história, e também
Fala dos tempos de hoje e de seus desenganos
Mas não fica zangado e não xinga ninguém.

Refere-se às monções que ele, soberbamente


Tantas vezes levou, na faina das conquistas,
Escutando pulsar o coração valente
Daquela geração de valentes paulistas!

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Tem saudades também o desditoso Rio!


E então a sua voz é de cortar rochedo,
Quando, quase a chorar, num longo murmúrio,
Começa a recitar Álvares de Azevedo!
Muitas vezes, aqui, sob a calma divina
De um divino luar, cândido como um véu,
Castro Alves, levantando a cabeça leonina,
Se punha a interpelar as estrelas do céu!”

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Tão felizes como esses são os versos em que evoca Anchieta ou Tibiriçá, as
festas populares (São João, sobretudo) ou a guerra dos Emboabas, o feito de
Anhanguera ou a epopéia de Antonio Raposo Tavares.
“Os Bandeirantes” constituem, ainda hoje, uma das melhores e mais belas
representações poéticas do bandeirismo paulista. Interessante acentuar que
Cepelos não atinge, em momento algum, a épica, embora trate de feitos
verdadeiramente épicos. Ainda assim o poema esta longe de ser um pálido reflexo
das figuras e das ações dos bandeirantes. Estou que a força deste volume vem
mais do poder sugestivo que o poeta deu a seus poemas, do que propriamente da
força declaratória dos seus versos. Pedem eles, dessa maneira, em
grandiosidade, mas ganham, indiscutivelmente, em profundidade.
Mas é tempo de passarmos em revista o restante da produção de Baptista
Cepelos. Entre “Os Bandeirantes” e “Os Corvos” medeia o espaço de um ano. A
edição destes “trabalhos em prosa”, impressos na Tipografia Americana em 1907,
que tenho em mãos e creio ser a única, esta longe de contribuir para a glória do
poeta.
Melo Nóbrega, sempre muito bem informado passa por cima deste volume,
fazendo-lhe, indiretamente, uma única referência, sem esquecer, esta claro, de
relaciona-lo entre as obras do biografado. Naturalmente julgou que não valia a
pena deter-se nele, pois, tirando uma ou outra confissão de caráter autobiográfico,
pouco se salvará. Os títulos de algumas das croniquetas que o compões dizem
melhor do que qualquer comentário. “O nariz”, “A Morte do sabiá”, “As flores”, “O
lírio”, “As rosas”, “O boi”, “O sapo”, “Amigos”, “A flor azul”, e outras pelo estilo.
Como será fácil perceber, não passam de simples exercícios literários, que não
atingem nem mesmo a honesta mediocridade de “O cysne encantado”, a-pesar-de
literariamente superiores ao poemeto “A derrubada”. Acredito terem sido
compostos em período anterior à publicação de “Os bandeirantes”, embora
reunidos em volume somente um ano depois.
Com prefácio de Araripe Junior, volta o poeta ao cartaz em 1908, com o excelente
livro de versos “Vaidades”. Nesta obra encontramos um Cepelos preocupado com
problemas sociais, fato anotado por Araripe Junior que o classifica timidamente de
“escritor de instintos sociais”. Não será difícil conceder a Baptista mais do que
isso. Podemos, sem exagero, classifica-lo como precursor desta poesia social tão
em moda, naqueles tempos. São exemplos claros e convincentes poemas como
“Crianças pobres”, “Amas de leite”, “Os ladrões” e, sobretudo, “O operário”,
estrofes compostas a propósito de uma greve e concluído com esta significativa
quadra:

“Deixa o poeta sonhar, se desdenhas do poeta;


Um dia saberás o teu erro qual foi;
Ter a força do leão, a coragem do atleta,
Unida à estupidez impassível do boi...”

Sobre o romance “Vil metal”, sabemos simplesmente que foi editado em 1910 pela
Livraria Cruz Coutinho, do Rio de Janeiro. Melo Nóbrega nada adianta sobre o
conteúdo desta obra de Cepelos, o que não deixa de causar espécie. É o último
livro impresso na vida do autor e logo um romance. Nossas pesquisas resultaram
inúteis. Não conseguimos sequer saber o tema e o desenvolvimento dado, nem
mesmo se existem exemplares por ai.
Tanto o poema dramático “Maria Magdalena”, como a série de contos extraviada e
que teria o título de “Sensações da vida”, não receberam as glórias de brochura,
por mais modestas que fossem. “Maria Magdalena” apareceu na Revista do Brasil,
segunda fase, em quatro números. Esse poema dramático foi representado ainda
em vida de Baptista Cepelos, pela Cia. Cristiano de Souza, no teatro Trianon do
Rio. Deixa-nos ele a impressão de que o teatro não era o gênero indicado para os
fins visado pelo autor. Soa-nos falso, excessivamente declamatório, embora se
possam destacar verdadeiros e belos poemas do texto. Poemas independentes da
contextura desta trajetória bíblica, escrita e levada à cena num período de grave
crise moral para o poeta. Crise que se prendia à perda da noiva, assassinada pelo
próprio pai em circunstâncias que transtornaram, para sempre, a vida do poeta.
Esse crime que abalou tão profundamente a sociedade paulistana pelas figuras
nele envolvidas trouxe a Cepelos toda a sorte de magoas e dissabores. Hiper-
emotivo, triste e arredio, inimigo das cabotinadas e das situações de destaque,
viu-se, de uma hora para outra, envolvido num crime a que toda a cidade se
voltava curiosa e sôfrega dos mais íntimos detalhes. Não mais pode suportar a
vida em São Paulo. Transferiu-se para o Rio de Janeiro, abandonando todos os
interesses aqui, para ir sofrer na então capital do País, os azares de uma vida de
pobre sem emprego. Anos duros e terríveis suportou o poeta, amparado por raros
amigos. Entre esses raros e fiéis amigos, é justo, mencionar Martim Francisco.
Mas, como o próprio poeta reconhecia num verso, “para quem sofre, a própria
compaixão é uma ironia”. O remédio era entregar-se ao trabalho intelectual como
único derivativo para as fundas tristezas que o mortificavam, como única fonte
para as poucas alegrias que a vida lhe proporcionaria daí para diante. Podia
exclamar, ao fim de cada jornada:

“Na arte do verso, que me esgota a vida,


Vejo a minha alegria e o meu tormento.”.

O pior, porém, já estava vencido e quando tudo parecia mudar em seu favor, com
o sucesso de “Maria Magdalena” no teatro e a nova promotoria conseguida graças
aos esforços de Martim Francisco, eis que o inesperado vem abalar a opinião
pública pelo estranho achado de uns meninos, lá pelos fundos da rua Pedro
Américo. Um corpo caído de cabeça para baixo “pendendo para o lado do peito,
numa posição horrível. Coágulos de sangue empastavam-lhe as feições. Na
superfície anfratuosa da pedreira, um rastro escuro indicava o trajeto macabro”.
Era o corpo de Baptista Cepelos. Até hoje não se sabe se foi um crime, suicídio ou
acidente. A situação do poeta, depois de anos negros, anos nos quais foi obrigado
a ganhar a própria subsistência em vagos e mesquinhos expedientes (redação de
jornais, da reportagem à crônica social), afastava a idéia de suicídio. Fora
nomeado recentemente, promotor em Cantagalo. Preparava-se, mesmo, para
tomar posse do cargo. Um recital de “Maria Magdalena”, em seu benefício, a ser
realizado um dia depois, viria reforçar suas finanças. Nota-se que todos os
ingressos já estavam vendidos. Neurastenia acumulada a partir da perda da
noiva? Acidente? Crime? Mas que nos importam, agora, as causas da morte?
Mais interessante será nos atentarmos para a obra literária por ele deixada ainda
à espera de estudos e interpretações. E batermos por uma rendição critica dessa
obra, uma vez que tais estudos e interpretações são impossíveis de ser
realizados, pela extrema raridade dos volumes constantes do seu espólio literário.
Basta acentuar que a última edição de “Os bandeirantes”, a terceira, é de 1911 e
“Vaidades”, de 1908. A geração de hoje está, dessa maneira, praticamente
impossibilitada de travar conhecimento com um dos grandes poetas do Brasil.
Vicente de Carvalho, tão parco em elogios aos irmãos de ofício, ao ser interrogado
em uma enquête patrocinada pelo “O Commércio de São Paulo”, a quem daria o
título de maior poeta paulista daqueles tempos, declarou hesitar entre Vensceslau
de Queiroz, Amadeu Amaral e Baptista Cepelos, o “das rimas fulgurantes e das
ricas imagens”. Não creio que se possa fazer maiores elogios ao autor de “Os
bandeirantes”.

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