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Stonehenge tropical

Um círculo de pedras no norte do Amapá guarda uma


história intrigante sobre povos antigos da Amazônia.

por mariana petry cabral e joão darcy de moura saldanha


fotos de maurício de paiva

Os raios de sol
98  national geo graphic
atravessam• anove mbro
pedra 2009
do Furo e inundam de luz o círculo cerimonial. Para os arqueólogos, a m a pá   99
o lugar era usado em datas astronômicas especiais – assim como o famoso sítio britânico de Stonehenge.
a madrugada é uma bênção.
Essa é uma das poucas horas nessa região do
Amapá, logo acima da linha do equador, em que
o forte calor não impera. Nas redes espalhadas
pela casa da fazenda que serve de abrigo aos
pesquisadores, reina um conforto preguiçoso. A
noite chuvosa, contudo, deixa a equipe apreen-
siva. Afinal, a viagem até o sítio arqueológico
Rego Grande só tem um objetivo: observar os
caminhos do Sol no céu durante o solstício de
dezembro no lugar que, não à toa, ficou conhe-
cido como o “Stonehenge brasileiro”. A chuva,
portanto, não era bem-vinda.
O sítio Rego Grande, que recebeu o nome do
igarapé que o margeia, é formado por mais de
uma centena de blocos de granito. Assim como
o Stonehenge britânico, um dos mais intrigantes
sítios neolíticos do mundo, ele também deve ter
sido especial em seu tempo, quando foi palco
de cerimônias repletas de oferendas, algumas de
caráter astronômico. Lá e cá, ambos os lugares
foram usados em festas e cultos, e são obra da
vontade de seus construtores em marcar a paisa-
gem de maneira concreta. O Rego Grande, con-
tudo, data de mil anos, enquanto o Stonehenge
remonta a cerca de 4,5 mil anos.
A presença de megálitos em várias regiões do
planeta, e ao longo de muitos períodos da his-
tória, reforça a curiosidade sobre a semelhança
entre os dois sítios. “O megalitismo dispersou-se
em épocas diferentes. Foi um fenômeno global”,
diz o português Manuel Calado, da Universidade
de Lisboa, especialista nessa área da arqueologia
que estuda os monumentos de pedra.
Com mais de 30 metros de diâmetro, a estru-
tura quase circular do Rego Grande foi ideali-
zada no topo de uma colina, em um trecho que
fica no limite entre os campos alagados do litoral
e áreas de savana. “Assim como a paraense ilha
de Marajó, o Amapá era um dos maiores centros
de inovação cultural da Amazônia”, diz Stéphen
Rostain, arqueólogo francês que estuda sítios
O Amapá é considerado o estado brasileiro cujo ambiente natural foi o menos
na Guiana Francesa há quase 20 anos. De fato,
alterado desde o início da colonização: 98% das florestas estão em pé, e mais de
nos dois lados da foz do maior rio do mundo,
70% de seu território é área de conservação. Igarapés e rios são os caminhos para
muitos moradores, assim como foram para os engenheiros do Stonehenge — os
Mariana Petry Cabral e João D. de Moura Saldanha
blocos de rocha, contam os arqueólogos, vinham de pedreiras distantes do sítio.
são arqueólogos do Instituto de Pesquisas Científicas
e Tecnológicas do Estado do Amapá (Iepa). Maurício
de Paiva lançou em 2009 o livro Amazônia Antiga.

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a exuberância e a diversidade dos estilos cerâ- no fim do século 19. Depois, Curt Nimuenda-
micos demonstram que, no passado, múltiplas jú, etnólogo alemão que percorreu o Amapá na SÍTIO REGO GRANDE
culturas interagiram na região, deixando ali um década de 1920, também registrou mais de uma
imenso patrimônio arqueológico. A proximidade dezena deles. Na década de 50, Betty Meggers
Pedra que, alinhada à pedra
entre a costa amapaense e o arquipélago de Mara- e Clifford Evans, americanos que marcaram a do Furo, aponta o local exato
jó, usufruída pela população atual, também ser- arqueologia amazônica ao propor um quadro em que o Sol desponta
viu de elo entre os povos indígenas pré-coloniais. histórico da ocupação indígena na foz do rio no horizonte no solstício
de dezembro (abaixo).
A margem esquerda da foz do Amazonas e o sis- Amazonas, sugeriram que esses locais deviam Na tarde do solstício,
tema insular do Marajó, com sua grande diver- ser centros cerimoniais, construídos por índios a trajetória do Sol
sidade de ambientes e enorme rede fluvial, tal- originários da região circuncaribenha. Pedra do Furo
é perfeitamente
alinhada à lateral desta
vez tenham incentivado amplas redes de troca, Ao longo de todo esse litoral, até Caiena, pedra (embaixo).
criando contextos de desenvolvimento cultural capital da Guiana Francesa, se espalham sítios
que ainda hoje desafiam nossa compreensão. arqueológicos com um elemento comum: uma
cerâmica elaborada, ora pintada com delicados
na varanda da casa de madeira, onde passa- desenhos vermelhos sobre um fundo branco,
mos apreensivos aquela noite chuvosa, o clima ora gravada com incisões feitas na argila ainda
agora é de euforia. O céu claro promete sol, mas úmida. Betty Meggers e Clifford Evans chama-
a data marca a chegada da estação das chuvas – ram esse estilo cerâmico de aristé. Em escavação
que ali se inicia em dezembro e se estende até recente em uma antiga aldeia indígena 50 qui-
julho. O solstício era também uma ocasião má- lômetros ao sul do Rego Grande, no Retiro do
gica escolhida para diversas celebrações por ín- Padre, alguns fragmentos dessa cerâmica foram A roda cerimonial O solstício de
dios que viviam no âmbito da foz do Amazonas recolhidos. Nenhum deles tinha o vigor da deco- O alinhamento dezembro (nos dias 21 ou 22) era uma
das pontas destes
entre os séculos 1 e 18, muitos dos quais habi- ração das peças clássicas aristés, mas as técnicas dois blocos indica
data especial no calendário do povo que
tantes da costa norte do Amapá e parte do lito- de manufatura, a seleção da argila e as formas o ponto do idealizou o Rego Grande, assim como era
ral do território da atual Guiana Francesa. Nessa dos vasos eram do mesmo tipo. alvorecer. para outros grupos que viviam na região
região, o Projeto de Investigação Arqueológica O Retiro do Padre era uma aldeia pequena, da foz do Amazonas. (Para os que estão ao
na Bacia do Rio Calçoene, desenvolvido pelo com duas ou três casas identificadas pela ob- norte da linha do equador, o solstício é de
Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas servação de manchas no solo que marcam os inverno; para os que estão abaixo da linha,
do Estado do Amapá (Iepa), estuda o que so- lugares em que os esteios das moradias estavam é de verão.) Os arqueólogos acreditam que,
brou da vida desse povo. E o sítio Rego Grande fincados. Nas lixeiras, além dos fragmentos no Amapá, para marcar a data, os índios
é parte importante da história. miúdos de panelas quebradas, restam caroços dispuseram uma série de blocos de pedras
Os monumentos de pedra dispersos ao longo queimados de palmeiras frutíferas, como o açaí – os megálitos – no solo.
do litoral amapaense, entre os rios Araguari e e o tucumã, abundantes por toda a região – um Várias rochas são indicativas do caminho
Oiapoque, foram observados pela primeira vez lixo recolhido ao redor de fogueiras e descartado do Sol no céu. O alinhamento de duas delas
Pedra em forma
de prancha marca, no alvorecer do solstício, o ponto
(abaixo). exato em que o Sol “nasce”. Já um bloco
PN do
ÁREA GUIANA Cabo Orange com 2,5 metros de altura foi enterrado
ue

AMPLIADA FRANCESA EOiapoque de tal forma que suas faces maiores estão
oq

14h39 15h31 17h37


ap

OCEANO
(2006) voltadas para o sul e para o norte. No dia do
Oi

ATLA NTICO
Cal¸coene E solstício, essa rocha larga e fina, em forma
Igarap´e Rego
Grande
Rego Grande
O
O de prancha, não cria sombras em nenhuma
PN Montanhas Retiro
Amap´a de suas faces principais. A sombra que
do Tumucumaque do Padre Grande
existe nesse período tem a espessura
ari do bloco e se projeta para o leste (em
agu
Ar
PA AP oposição ao Sol, que está a oeste).
Macapa´ C Nas outras tardes do ano, ao se colocar
EQUADOR
nessa posição, no mesmo eixo do bloco,
A urna funerária achada no sítio Rego Grande OSítio arqueológico o Sol estará sempre mais ao norte, pois
Ilha de
(acima) é de um estilo comum em todo o litoral 0 km 107 Maraj´o Ao longo da tarde do solstício, o eixo da pedra espelha o solstício de dezembro marca a posição
do Amapá até a Guiana Francesa (mapa). a trajetória do Sol do topo do céu à linha do horizonte. austral máxima do Sol.

102  national geo graphic • nove mbro 2009 mapa e ilustrações de l.f. martini a m a pá   103
Houve um grande esforço de engenharia no sítio Rego Grande:
alguns dos blocos podem pesar mais de 4 toneladas.
na periferia da aldeia. No entorno do sítio, sobre a expectativa dos blocos ganhando dimensão, e
outras colinas, há mais vestígios de povoações. o círculo aparecendo, impõe reverência. Sempre
“Tem muita coisa perdida nesses morros”, con- uma emoção nova toma conta de nós.
ta Alzira Souza, esposa do capataz da fazenda, O trabalho na construção dos monumentos
quando lhe mostramos uma lâmina de machado de pedra exigiu não apenas força bruta mas
de pedra encontrada na escavação. também organização e controle político. Foi
Ao mesmo tempo que exploravam seu territó- necessária a coesão de muitas pessoas, além de
rio, os índios constituíam mitos para explicá-lo. liderança forte para reuni-las e convencê-las de
Figuras de animais representados nas cerâmicas que o esforço valia a pena. Encontrar os blocos
apontam cosmologias cheias de relações entre não devia ser tarefa fácil. Muitos certamente já
seres humanos e animais, em uma interação que estavam soltos sobre os afloramentos, mas as ci-
ainda hoje caracteriza o ideário indígena ama- catrizes encontradas em alguns lajedos mostram
zônico. Diferente do pensamento moderno oci- que vários blocos tiveram de ser extraídos. As
dental, que separa homens e animais, o chamado ferramentas e as técnicas empregadas são desco-
“perspectivismo ameríndio” aponta para uma nhecidas, mas detalhes nos megálitos sugerem
fluidez das formas humanas e não humanas que que os índios aproveitaram falhas na base das
não se encaixa na distinção entre cultura e natu- pedras para retirá-las. Uma vez soltos, os blocos
reza. A mistura dos motivos animais e humanos eram carregados até o topo das colinas – alguns
sugere, em vários potes, personagens híbridos. podem pesar mais de 4 toneladas –, onde um
Cobras, sapos e lagartos, aves e macacos, esforço de engenharia acontecia. A presença de
além de corpos e rostos humanos, são figuras jazidas de pedra com cicatrizes, além de outras
recorrentes nos potes cerâmicos, funerários ou dispostas na beira de rios, indica que parte do
não. No Rego Grande, os vasos com desenhos transporte dos blocos era feita em embarcações.
de répteis foram colocados em meio a blocos de As pedras não eram apenas fincadas no chão.
Do sítio Retiro do Padre, uma antiga aldeia na margem do rio Amapá Grande, brotam vestígios granito, enquanto aqueles com aves estavam no O cuidado na fixação delas, com uso de outras
(acima) de uma das quatro culturas que habitavam a região desde o século 10 até a chegada dos europeus. interior do monumento, afastados das pedras. menores para calçar os megálitos em posições
Em uma caverna ao sul de Macapá, um morador segura uma urna funerária (abaixo). A exposição das Mais que uma mimese do hábitat animal, essas definidas, exigiu planejamento e sabedoria.
peças a qualquer visitante torna os sítios vulneráveis, uma ameaça a um patrimônio ainda pouco estudado. práticas organizam e manipulam um jeito pró-
prio de dar sentido ao mundo, construindo luga- os megálitos foram idealizados por volta
res em que a memória do grupo fica inscrita. do ano 1000, quando alguma coisa aconteceu
A construção dos megálitos é também par- na vida daquele povo. Em algum momento hou-
te dessa apropriação da paisagem, ou seja, da ve o ímpeto de construir essas estruturas que
transformação de conhecimentos abstratos, de transformariam para sempre a composição das
histórias orais, em estruturas concretas. Mil anos paisagens. Diferentemente das aldeias, os monu-
depois, nós caminhamos de novo sobre o chão mentos de pedra não perecem – e seus arquite-
que os índios pisaram, à espera do alvorecer do tos bem sabiam disso. Uma vez concebidos, eles
dia do solstício. Na noite escura, percorremos passam a ser alvo do interesse de muitas gera-
os 300 metros que separam a casa de madeira ções posteriores, que talvez os ampliem e modi-
do sítio Rego Grande, sentindo a umidade do fiquem, repetindo práticas que, como em todas
capim molhado da chuva entrando nos sapatos. as culturas, reforçam e constroem identidades.
A colina onde está o sítio se destaca no relevo. As escavações no Rego Grande, iniciadas em
É uma caminhada tranquila até o alto e, ao lon- 2006, mostram isso: um local muito visitado e al-
go dos quase quatro anos de pesquisa no local, terado. Centenas de potes cerâmicos foram leva-
são incontáveis as vezes em que subimos para dos até lá. Alguns eram de fato urnas funerárias,
alcançar o topo onde as pedras foram colocadas. onde os ossos, em certos casos cremados, eram
Mesmo assim, a cada vez a sensação se repete: guardados. Mas a maior parte é de bacias, vasos,
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pratos e tigelas que serviram como oferendas,
talvez aos mortos. Alguns potes eram deixados
sobre os blocos, onde acabaram partidos ao rigor
do clima. Outros foram quebrados de propósito
mesmo – jogados dentro dos poços funerários.
Mas há também potes inteiros, enterrados em
pequenas valas ou arranjados em volta de urnas
funerárias, dentro dos poços. A maior parte das
vasilhas não tem sequer marcas de uso, como
se tivessem sido produzidas com um único fim:
servirem de oferta ao monumento.
Havia com certeza um controle do uso daque-
le espaço, regras a serem seguidas e datas para
celebrações. As urnas funerárias encontradas
mostram que nem todas as pessoas recebiam
o mesmo tratamento após a morte. “O número
limitado de urnas pode indicar que esses funerais
eram reservados a pessoas de alto status, como
chefes tribais ou de clãs”, sustenta o arqueólogo
francês Rostain, que pesquisou intensamente
a margem esquerda do rio Oiapoque. Para ele,
esses grupos estavam organizados em “uma con-
federação com um chefe soberano”, indicando
núcleos sociais hierarquizados que diferem das
sociedades indígenas atuais na região.
É possível que as hierarquias desses grupos
não fossem permanentes, ficando fortalecidas
em tempos de guerra ou em datas importantes,
como antropólogos já sugeriram ao explicar a
história de grupos indígenas atuais, entre eles
os palikurs, que vivem hoje na região do Baixo
Oiapoque. De acordo com essa teoria, pequenas
aldeias independentes acabariam reunidas, em
momentos específicos, sob a liderança de figuras
eminentes no cenário regional, juntando esfor-
ços para construir, por exemplo, monumentos
como o Rego Grande. O mesmo lugar em que
nós estávamos, naquela manhã após a chuva.
O Sol desponta no horizonte, exatamente no
ponto mais austral de sua rota cíclica anual entre
os dois hemisférios. O solstício se anuncia. En-
tão, uma viagem no tempo, uma volta ao mundo
dos povos que sedimentaram o sítio se materia-
É crepúsculo, e Lailson da Silva, zelador da fazenda onde fica o Stonehenge
liza sobre os blocos de rocha inclinados a nosso
brasileiro, segue para casa. Entre a população local, este é um dos lugares
redor. De novo, surgem as questões que tanto
conhecidos como “cemitérios de índios”, que costumam assombrar as pessoas
nos motivam: quem foram eles? Como viviam?
com visões inexplicáveis. “No meio da noite, uma luz vermelha sai das pedras”,
Como experienciavam o solstício?
conta Silva. A arqueologia, agora, pode interpretar melhor esse misterioso local.
Os antigos nos legaram os megálitos. E, na-
quele instante, a presença das rochas causa em
nós uma estranha sensação de companhia. j
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