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THE

SPOTLIGHT
O Ponto de Luz

Isabella Carvalho
1Você está histérica. Você está silenciosamente histérica e ainda assim cospe
solidão a cada palavra que desiste de dizer. Eu estou histérica. Passo a mão entre
os fios longos e lisos do meu cabelo, os jogando para trás, sem realmente me
importar com a posição deles sobre a minha cabeça. Numa escala de nove a dez,
a minha histeria ultrapassa quinze. Em qualquer jornal que eu toque, é notícia o
que eu menos quero ver, e, mesmo assim, eu mantenho as folhas grudadas aos
meus olhos, me forçando a fitar cada palavra alucinante pintada de preto na folha
cinza. Mais ou menos como eu. Cinza. E nem ligo pra que cor que a minha cara
apresenta, nem para as olheiras penduradas sob meus olhos, a única coisa que eu
quero é enfiar um estilete no meu pescoço para ver se o sangue continua
vermelho. Para, pelo menos, ver se o sangue continua.
Você quer.
Você tem.
E aí você perde. Quanto mais você tem, mais você perde. Por isso eu não
tenho nada, nada. Nada além de Nicola. E às vezes eu sinto como se nem a
tivesse. Quanto mais você tem, mais você perde. Por isso eu não sinto vontade de
ter muita coisa.
Demorou uma semana até que a coragem batesse contra o meu peito e me
jogasse sobre as malas para desfazê-las. E agora eu realmente moro na Austrália.
Sydney. Cidade bonita, ensolarada, tem muita coisa.
Tem muito a perder.
Meu quarto está repleto de roupas jogadas na cadeira, escrivaninha, e o meu
closet está uma bagunça. Meu cabelo está uma bagunça. Eu também estou, mas
não é como se eu me importasse para as roupas espalhadas dentro de mim (ou pra
qualquer metáfora que exemplifique essa bagunça humana que eu virei), um dia
eu teria que arrumá-las e colocar cada blusa no seu cabide. Ou talvez eu as
deixasse no chão. Faria o que cansasse menos. Então eu vou fuçar a porra do meu
closet por não ter nada pra fazer. Não na realidade, mas eu não sou uma das
pessoas mais ocupadas do mundo. Eu cutuco a madeira da parede do fundo do
meu closet e ela cai. Tiro de lá um diário do tamanho de uma capa de dvd, e um
pouco mais grossa que aquilo. As pontas das folhas estão meio amareladas e não
cheira exatamente a perfume, mas eu o coloco embaixo do braço e caminho até a
minha cama. A minha caneta está há um raio de pelo menos nove metros de
distância, mas isso não faz diferença. O diário não é meu, é de Nicola. Eu só
gosto de ler. Me manter dentro da história, por cultivar religiosamente essa
preguiça de começar uma nova.
Eu realmente achei que pudesse suportar, mas as dores de cabeça vêm
ficando mais fortes e eu estou há um passo de cair do penhasco.
Sempre tem uma hora pra tudo. Acho que é hora de desistir.
― Hey, Nic ― eu a cumprimento, assim que ela entra no quarto sem fazer
nenhum barulho.
― Eu pensei que tivesse parado de ler essa porcaria ― ela me retruca e a
única coisa que consigo fazer é dar de ombros, voltando a minha atenção para o
final da página, mas sem realmente deixar que o eco da sua voz se perca na
minha cabeça.
Ah, aquele sotaque reconfortantemente familiar...
Nota: Ei, Nicola, é a sua consciência, whoa! O que você acha de só aceitar
drogas do Sean, de agora para frente? É por pegar cocaína de outras pessoas
que você acorda em sofás diferentes todos os finais de semana.
― Eu achei que tivesse parado com a cocaína ― viro as folhas amarelas para
ela, com uma sobrancelha erguida, mas Nicola simplesmente dá de ombros, um
sorriso irônico brotando no canto do seu rosto.
A garota sabe me irritar.
Digo que eu estou cansada, que a minha cabeça dói e que ela seria minha
rainha se, por favor, pegasse um remédio para mim.
― Remédio não funciona.
Quando Nicola entreabria os lábios, conseguia toda e qualquer atenção vinda
de mim. Seus olhos, aquelas duas bolas completamente redondas e azuis que
alternavam entre o cinza e o ciano dependendo do seu humor, junto com a sua
voz doce, mas irônica e seca, me prendiam sempre a cada palavra dita.
Ela abusava.
Ela me hipnotizava.
E aí ela me fazia dormir antes de ir embora. Sempre me deixava quando o
sono batia. Quando eu tinha muito. É que quanto mais você tem, mais você
perde. Mas nesses momentos eu fico exausta o bastante para não pensar no
prejuízo, então acaba como se eu não tivesse perdido nada.
Mergulhada em sonhos abstratos e repetições constantes de quedas, eu
simplesmente não consigo abrir meus olhos. Tento uma, duas vezes. Tenho os
olhos costurados por dentro e isso me asfixia, até que de um modo controverso.
Três, quatro. Eu preciso sobreviver. Meus lábios também não se separam quando
eu tento puxar o ar pela boca. Cinco, seis. E por mais incrível que pareça, eu
continuo respirando com o nariz, a boca e os olhos costurados. Sete e eu
finalmente abro os olhos, Nicola não está ali. Vasculho o quarto inteiro com o
olhar, mas ela não aparece. Volto a juntar as pálpebras, buscando um sono de
qualidade, e Nicola está bem na minha frente, nítida como laranja no meio de
maçãs verdes. Ela não sai da minha cabeça.
Eu chamo a minha mãe em um grito abafado e lembro que ela não vai vir. A
não ser que eu tenha herdado o seu tumor no cérebro e passe a alucinar com
pessoas que já morreram. Eu finjo não ligar e enfio a cara no travesseiro, Nicola
ataca o chão calmamente enquanto se dirige até a cama e agora está do meu lado,
sussurrando grosseira contra o meu ouvido.
― Você realmente precisa parar de ler aquela porcaria.
E então eu sinto como se tivesse tudo, meu pai bate na porta. Eu vejo Nicola
sumir pelo closet, mas a sensação de ela estar apoiada no batente da porta, me
fitando como se eu fosse uma obra de arte, não passa. Ele caminha até mim e se
senta na beirada da minha cama sem saber que os meus olhos estão costurados
novamente. Um, dois. Eu não quero abrir.
― Helena, querida, você quer um café?
Não, otário, eu quero dormir. Eu preciso dormir. Dormir, sem ter pesadelos,
dormir sem Nicola, dormir sem minha mãe e, principalmente, sem perguntas
estúpidas.
― Mais tarde...
Ele me diz que, Helena, querida, vai ficar tudo bem e aí eu tenho certeza que
não vai. Três, quatro, cinco, seis. Sete e eu abro os meus olhos. Ele me fita com
aquelas órbitas estupidamente vermelhas de tanto chorar. É incrível como nós
precisamos apenas de um coração batendo e pulmões funcionando para conseguir
sobreviver. Mais incrível ainda, é que quando eles param, levam muito mais que
só alguém. O que esqueceram de avisar, é que quando alguém morre, você
simplesmente morre junto. Uma parte de você, eu quero dizer, porque outra parte
nasce. É a parte que só sabe reclamar e assistir a vida como se fosse um filme
mudo em preto e branco. Tedioso. Eu empurro o diário de Nicola para baixo do
meu travesseiro e sinto o meu pai levantar da cama para sair pela porta, e então
me viro de barriga para cima.
Você tem um coração batendo.
Você tem pulmões funcionando.
Você tem a vida inteira pela frente, mas aí você perde. Quanto mais você
tem, mais você perde. Por isso eu só tenho Nicola e seu diário, não me permito
perder nada além disso e de pulmões que ainda façam o coração bater.

2
Estupidez é relativo. E Nicola é altamente estúpida em algumas situações. Ela
não sabe como lidar com as drogas, por exemplo, e isso acontece desde que eu a
vi pela primeira vez. Estava sozinha, coberta por uma calça legging de marca que
cobria até um pouco de suas canelas e uma blusa branca qualquer. Primeiro ela
leva o dedo indicador até a narina direita e fecha a outra com os dedos da mão
desocupada, depois puxa o ar com a maior força que consegue e, antes mesmo
que eu possa contar dois segundos, ela abre um sorriso nitidamente malicioso,
mas talvez sem muita intenção. Desencosta o corpo da parede lentamente e
caminha até mim como se eu fosse o seu alvo e ela a rainha da Inglaterra,
passando um dos braços em torno de minha nuca e colando os lábios brilhosos
contra a minha bochecha. E ela nem me conhecia.
― Acha que eu não te vi olhando pra mim dali? ― a menina solta as palavras
contra a minha pele e eu rio baixo, movimentando a cabeça afirmativamente com
certa ironia.
Ta certo...
A garota é bonita, não me entenda mal, e desde então eu já achava os seus
olhos azuis os mais chamativos do planeta, mas quando você não gosta de uma
coisa, você simplesmente não gosta e ponto. Ela deu de ombros depois de
escorregar a língua por minha bochecha e saiu batendo os saltos baixos dos seus
sapatos de elfo pelos tacos no chão. O som dos violinos e banjos e de qualquer
parafernália céltica irlandesa parecia não ser alto o suficiente nem para abafar o
barulho de seus passos. Me virei de costas e ignorei os gritos que seus sapatos
ainda davam na outra direção. E foi assim que eu conheci Nicola O’Shea. Aliás,
é assim que a maioria dos jovens se conhece hoje em dia.
Eu estou com os braços apoiados no balcão de madeira, fitando o barman do
outro lado. Ele usa uma calça social preta e uma blusa azul escura com os dois
botões perto da garganta abertos e as mangas dobradas um pouco abaixo de seus
cotovelos, as veias saltando. Uma pessoa dessas pede pra gente olhar. Ele ergue
uma das sobrancelhas e eu posso sentir o canto de seus lábios se curvando em um
sorriso malicioso enquanto eu giro o canudo por entre as pedras de gelo do meu
copo praticamente vazio. Ele pergunta se eu vou querer mais alguma coisa dali e
meus olhos erguem até que encontrem os dele. Eu digo que quero qualquer coisa
gostosa e ele ri, caminhando até a bancada abarrotada de licor, vodka, sucos e
mais uma porção de inutilidades alcoólicas. Na volta, ele me dá não só o litro de
Guiness, como também uma piscadela dessas dignas de filme da década de 1940.
Um, dois, três, quatro. Não é o tempo nem de terminar o meu primeiro gole e
aquela garota se senta ao meu lado, a dos olhos estupidamente azuis. Ela gira o
corpo no banquinho, apoiando o cotovelo no balcão enquanto morde um palito
no canto da boca.
― Ele não é irlandês ― Ela anuncia inutilmente, me fazendo suspirar, como
se eu estivesse mesmo frustrada ― Ou você realmente acha que vai encontrar
uma família aqui? Isso nem parece um pub da Irlanda, pelo amor de Deus.
Ela gargalha, rodando o banquinho até ficar de frente para o balcão e eu a fito
com um ponto de interrogação no meio da cara que não se desfaz até que eu veja
o copo quase que vazio de Magners. Provavelmente o quarto, ou quinto.
Agora nós estamos jogadas sobre a minha cama. Ela, bagunçando o meu
cabelo por cima do edredom, eu, sem realmente prestar atenção nos seus
movimentos, esperando inconscientemente por um raio que parta a minha cabeça
em duas. Até que ela suspira e me puxa para si, fazendo o seu diário cair aberto
sobre um de meus travesseiros. O som, que antes era baixo, agora toma conta
todo o quarto, guiando os movimentos ágeis dos pés descalços de Nicola pelo
chão do meu quarto.
― Espero que você não esteja achando que vai mesmo ficar só olhando.
Ela contorna a minha cintura firmemente e junta as laterais dos nossos
corpos, ajustando a outra mão em sua própria cintura antes que possa tatear o
chão com as pontas dos pés, pulando a cada dois passos curtos enquanto me guia
em um círculo imaginário, fazendo com que eu a siga numa dança simples, mas
ainda assim, entusiasmada. Um, dois, um, dois, pula. E então ela se afasta e se
aproxima de novo, segurando as minhas mãos. Um, dois, um, dois, pula.
Inventando passos, girando, empinando o nariz e sapateando contra o carpete, ela
me guia também. Sempre me levando com ela. Era assim que Nicola fazia.
Eu nunca entendi o fato de eu ser a única amiga presente da vida de Nicola.
Além de Sean e Simon, por mais que eu nunca os classificaria como “amigos”.
Ela é o tipo de garota que hipnotiza, acho que quase que literalmente. Então ela
prende os olhos nos meus e sorri enquanto ainda me gira pelo quarto, acabando
por empurrar o seu corpo contra o meu na cama. E lá estamos nós de novo. Ela
por cima de mim, o rosto encaixado na curva do meu pescoço e as risadas entre
as palavras abafadas contra a minha pele.
― É por isso que você tem insônia. Você não tem vida.
Eu me pergunto se ela está sob o efeito de qualquer droga que seja e quando
tento afastar os nossos rostos, ela me fita com um olhar que poderia fritar um
ovo. Seu sorriso completamente desfeito.
― Você não pode ter os dois, Helena. Uma vida e insônia, eu digo. Viver
sonhando não é uma opção.
Algumas vezes Nicola me assusta. Não por ficar muito perto, quase me
beijar, ou por fazer a minha respiração descompassar quando surge do nada. Mas
por dizer, com tanta certeza, coisas sobre as quais eu não consigo entender.
― O que quer dizer?
― O que eu tento dizer desde sempre. Você precisa tirar o diário da sua fuça,
já pensou na hipótese de aquela porcaria estar te afetando? ― Com uma das
sobrancelhas erguidas, e o sorriso tomando conta de seu rosto novamente, ela não
parece a garota de cinco segundos atrás; e assim que ela se levanta e volta a
dançar, eu crio uma teoria completamente aceitável sobre transtorno bipolar.
Nós estávamos sentadas no chão do meu quarto, ela encostada à parede,
chupando alguma coisa com a boca fechada e eu com ambas as mãos espalmadas
contra a madeira embaixo de mim, pressionando a língua contra o papel, que, vez
ou outra, soltava um gosto meio azedo.
― Jesus, Nicola, eu achei que você usasse isso por causa do efeito.
Ela riu, engatinhou até mim e então bateu na minha cara. Sem muita força,
sem muito jeito, mas ainda assim.
― E eu uso, brilha. Você gostou mesmo? ― Ela segura o pingente entre o
indicador e o polegar, tentando fitá-lo com certa dificuldade ― Eu achei na rua...
Sabe, eu queria que tivesse um significado. Mas, cara... ― E então, uma pausa
enorme, como se ela tivesse sido colocada para hibernar ― Só pelo fato de estar
ali... Cruzando o seu caminho... Isso tem que ter algum significado. Certo?
Suas sobrancelhas ergueram em sinal de entusiasmo e eu fiz questão de
ignorar o seu lapso de lucidez para voltar a me apoiar sobre os pés. De uma
forma assustadoramente estranha, as cores brilhavam mais. E eu conseguia sentir
o ar contra a minha pele. Não o vento. O ar, átomos de oxigênio e nitrogênio
numa dança que cercava o meu corpo, uma coisa realmente absurda.
Assustadora, mas confortante. Isso, enquanto eu observava uma porta de vidro se
formar na minha frente. Por trás dela, conseguia enxergar, mesmo que sem muita
nitidez, cores muito fortes como vermelho, amarelo e verde. Alguns raios de luz
que passavam ligeiros na frente dos meus olhos. Algumas linhas de cor neon que
desenhavam na parede escura formas abstratas, sem nunca clarear o caminho.
Círculos, retas, retângulos. E eles me chamavam. Só me restava socializar.
Porcaria de ácido lisérgico.
Você dá um passo apreensivo para frente, hesitante, e a porta fica atrás de
você. A sola do sapato faz um barulho tímido contra a água espalhada pelo
chão. Mais um passo para frente e então, mais outro. De pouco a pouco, seus
pés criam uma velocidade, nunca no mesmo ritmo, até que você esteja
correndo, sem nem notar, sobre as poças de água mais grossas que a
humanidade já viu. O asfalto sob os seus pés clareia, adquirindo um tom
marrom de carvalho. Textura de carvalho. A água, ainda engrossando, quase
cobre os seus pés. Então você pensa em perguntar quem foi o imbecil que tirou
os seus sapatos, mas antes mesmo de abrir a boca, suas pernas param de correr
e, imediatamente, você sabe de onde vem o cheiro forte de ferro. E é aí que
você aperta os dedos dentro da meia ensangüentada.
O homem à sua frente tem um dos braços contornando o corpo de uma
mulher, a lâmina afiada contra seu peito. Ele desliza o metal pela pele branca,
cada vez mais pálida, da mulher que aninha em seu colo uma garotinha loira,
na esperança de transmitir à ela toda a confiança que ela já havia perdido. A
garota ergue o rosto, mas tem os olhos cobertos pelos dedos longos e finos de
sua mãe.
Você estica os dedos da mão, igualmente longos e finos, e os guia até os
olhos, os vendando enquanto sente uma gota grossa escorregar por sua testa.
Num ato de estupidez, você fita a cena à sua frente por entre os dedos e vê o
homem rasgando a pele da mulher, que ainda assim, contém os gritos e os
transforma em gemidos de dor enquanto o sangue bordô escorre por seus seios,
até alcançar o rosto da criança em seu colo.
Você puxa o ar e por mais que esteja entupida de oxigênio, não consegue
respirar. Deixa as mãos caírem ao lado do corpo e pisca. Uma vez e é o
bastante para o sangue se transformar em chuva mais uma vez. Antes que a
imagem simplesmente desapareça, você consegue encontrar voz para um grito
abafado, ao ouvir o homem dizer contra o cabelo ralo da mulher.
― Póilin, eu preferiria não ter que fazer isso.

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