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Fui então pelo lado esquerdo, com o coração nas mãos e a olhar sempre de
um lado para o outro. Felizmente não apareceu ninguém e eu cheguei a
horas, sã e salva, à escola. Às vezes penso que os comentários do meu avô
é que me causam esta insegurança. Afinal, não tinha sido assim tão difícil.
O meu avô era um homem com 80 anos, baixo, carrancudo e de mal com a
vida. Está sempre a dizer que o nosso mundo já não é o que era, que já
ninguém pode dormir de porta aberta e que sair à rua até dá medo. Coisas
de avô. Eu não vejo maldade nenhuma no que ele vê!
Aliás, a minha mãe está sempre a discutir com ele porque ele diz que nos
deitamos muito tarde, que não temos horários para nada, que ela não me
soube educar e mais um monte de coisas sem sentido que lhe vão
passando pela cabeça ao longo do dia. Já para não falar na sua doentia
admiração pelo “Doutor Oliveira Salazar que tanto fez bem ao nosso país e
Capítulo I Andreia Carrilho Um olhar sobre Abril
a quem nunca souberam dar valor”. Francamente avô, o relógio não pára
por sermos retrógrados!
Hoje em dia não há ninguém que não compre “coisas supérfluas”, que não
tenha uns óculos ou uma mala que, na verdade, não fazem falta e que
nunca vão usar.
O que vale é que já estamos em Abril e daqui a dois dias faço anos. Não me
vão impedir de comprar uma ou duas pecinhas de roupa novas. Vou fazer
16 anos e quero uma festa em grande, digna de uma princesa! E claro que,
para isso, tenho que me vestir a rigor.
Desde que me lembro que quero fazer 16 anos, sempre achei que os anos
pares eram bons para mim. Aos 10 fiz a minha primeira viagem, aos 12 fui
ao meu primeiro concerto, aos 14 namorei com o Tiago, agora aos 16 tem
que ser ainda melhor!
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Capítulo I Andreia Carrilho Um olhar sobre Abril
Às vezes pergunto-me porque será que ele deu tanta importância ao Sr.
Oliveira Salazar se ele só fez mal às pessoas. Perseguia todos os que não
estavam a seu favor, a população vivia continuamente ressaltada, com
medo do que pudesse dizer ou até mesmo pensar, as mulheres quase que
eram vistas como máquinas, como criadas que os homens sustentavam
para, ao final do dia, terem tudo pronto. Como é que as mulheres
conseguiam amar assim? A minha avó sempre pareceu gostar tanto do meu
avô, mas não sei como aguentava aquele rancor todo e aquela revolta que
ele transmite sempre que fala.
Talvez hoje seja o dia ideal para o confrontar com esse assunto. Vou
esperar pelo jantar de logo à noite para falar com ele.
Eram oito horas da noite, o meu avô chegava agora da terra para o meu
jantar de aniversário. Ele ia aproveitar o meu dia de anos para ficar uns dias
cá em casa e fazer umas análises no médico de família.
O jantar era bacalhau com natas, o meu prato favorito, mas estava tão
ansiosa com a conversa que ia ter com o meu avô que só queria que todos
acabassem de comer o mais depressa possível.
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Capítulo I Andreia Carrilho Um olhar sobre Abril
- Eu sei que o dia de hoje tem um significado muito especial para ti, tal
como para mim. Eu sei que hoje se comemoram 35 anos desde a Revolução
dos Cravos. – Disse.
- Sim, é verdade. Mas o que queres saber sobre isso? – Perguntou, ansioso e
com aquela expressão enrugada no rosto.
- Escuta com atenção: Quando era mais novo, tinha eu a tua idade, já o
Salazar estava há mais de 10 anos no poder e eu cresci a ouvir os teus
bisavós, revoltados com as decisões do Governo, questionarem-se sobre as
promessas que tinham ouvido, mas sem nunca manifestarem isso com
ninguém. Aquela altura era muito crítica para nós, para os do povo. O
dinheiro mal chegava para alimentar todos os filhos e as luxúrias estavam,
completamente, fora de questão. Não podíamos frequentar a escola
durante muito tempo, porque havia muito trabalho para se fazer, lá na
terra. Acabei por frequentar até à quarta classe que julgo ter sido bem
diferente da tua. Os tempos eram difíceis e as regras tinham que ser
seguidas à risca. – Contou.
- Então mas se era tão mau, porque é que apoias tanto o Doutor Salazar? –
Perguntei, confusa.
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Capítulo I Andreia Carrilho Um olhar sobre Abril
- Mas mudou assim tanta coisa? – Perguntei, cada vez mais interessada.
- Claro que sim, minha filha! Certamente saberás que as mulheres nunca
trabalhariam, isso era dever dos homens. A tua avozinha fez tanto por mim,
minha querida. Antigamente, antes da revolução, nunca poderias estar a ter
esta conversa comigo de consciência tranquila. – Completou.
- Espera mãe, deixa-me perguntar uma última coisa ao meu avô. – Dirigi-me
ao meu avô e perguntei: - Foi por isso que partiste para a África do Sul?
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Capítulo I Andreia Carrilho Um olhar sobre Abril
caminhamos para um fosso do qual vai ser muito complicado sair. Não peço
que Salazar volte, mas, pelo menos, que haja um Messias salvador da
Pátria, que tenha o poder de abrir os olhos aos portugueses, para que estes
vejam o que, realmente, é Portugal. Portugal está sujo, apagado e acabado.