Sinais dos tempos

Ingrid Betancourt

Você está Livre!

Um-dó-li-tá, quem está livre, livre está! Por João Moura

Era uma vez uma franco-colombiana candidata à vice-presidência da

Colômbia chamada Ingrid Betancourt. No dia 23 de Fevereiro de 2002
decidiu entrar numa zona desmilitarizada, onde o exército colombia-
no não podia garantir a sua segurança. Apesar dos avisos dos milita-
res do último posto de controlo, resolveu avançar. ➤

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➤ Queria dialogar com os líderes das
Forças Armadas Revolucionárias da
Colômbia (FARC) e não inocentemente,
capitalizar esse encontro em populari-
dade e em votos.
O aventureirismo político custou-lhe
caro, bem como aos seus companhei-
ros de aventura. Mais de seis anos de
cativeiro na selva em condições sub-
humanas, várias vezes foi dada como
gravemente doente e até mesmo morta.
Era um risco que corria pela sua ambi-
ção política e pela sedução da populari-
dade. A visão de si mesma a negociar a
paz com a guerrilha cegou-a, levando-a
a avaliar mal o risco e a desvalorizar a
sua própria importância enquanto mo-
eda de troca, na qualidade de refém. E
que a guerrilha não se dispôs a partici-
par nessa sessão fotográfica, também
já sabemos.
Só no Ocidente aburguesado, onde
desde há muito tempo não acontece
nada, é que a moda revolucionária se
veste com t-shirts compradas numa
qualquer feira de Carcavelos, estampa-
das com aquela foto de “Che” Guevara,
que tornou famoso o mexicano Alberto
Korda em 1960.
Herbert Marcuse, filósofo alemão e um
dos gurus do Maio de 68, afirmou com
alguma piada: “O Capitalismo é um
sistema que primeiro se apropria da tua
revolução e depois vende-ta de volta”.
Passados alguns dias sobre a operação
de resgate, Ingrid ainda não conseguia
acreditar que havia sido salva de uma
forma tão extraordinária quanto espec-
tacular. Pudera. Nem ela, nem nós.
Uns dias depois do raid libertador, a
imprensa suíça denunciou que afinal te-
riam sido pagos 20 milhões de dólares
pelo resgate. Todos os intervenientes
desmentiram. Compreensivelmente. Se
há país onde o sigilo bancário é sagra-
do, esse país é a Suíça.
Ingrid Betancourt estava acorrentada
juntamente com outros 14 prisioneiros,
entre militares, polícias e aqueles a
que muito eufemisticamente a imprensa
ocidental designou como “consultores
de segurança” americanos.
Quando os reféns pensavam que iriam
ser transferidos para outra base das
FARC por ordem do comandante Al-
fonso Cano, surpresa das surpresas:
afinal aqueles tipos “vestidos de palha-
ços com t-shirts do “Che” Guevara” que
se faziam transportar num helicóptero
branco de uma Organização Humanitá-
ria Inexistente, não eram senão agentes
dos Serviços Secretos colombianos
infiltrados que tinham acabado de os
resgatar às FARC!
Parecia uma brincadeira de crianças:
Um-dó-li-tá, cara de amendoá, um
segredo colorido, quem está livre... livre
está!
- Você está livre, disseram-lhe.
Com o sistema de comunicações da
guerrilha comprometido pelos recentes
ataques do exército que decapitaram
significativamente as FARC e a desor-
ganização daí resultante, o comandante
da célula guerrilheira responsável pelos
reféns não teve como confirmar a vera-
cidade das ordens recebidas de alguém
que se fez passar por Alfonso Cano,
imitando-lhe a voz.
O sucesso desta operação será previ-
sivelmente o trampolim de que o presi-
dente Álvaro Uribe necessitava para re-
lançar a discussão sobre a sua eventual
candidatura a um terceiro mandato ou,
em alternativa, devido ao desgaste que
a sua imagem tem sofrido nos últimos
tempos, lançar a pré-candidatura do
seu Ministro Juan Manuel Santos. O
encenador que resgatou a Senadora.
Ou seja, tentar mudar a imagem do re-
gime, salvaguardando que, no fim, tudo
fique exactamente na mesma.
As palavras de gratidão dirigidas ao
presidente Alvaro Uribe, por Ingrid Be-
tancourt logo após a libertação, foram
rapidamente desviadas para o presiden-
te francês Nicolas Sarkozy, que assim
capitalizou os dividendos políticos de ➤
ELES & ELAS 53
 Ingrid Betancourt
➤ uma causa que herdou de Dominique
de Vilepin, ex-Ministro dos Negócios
Estrangeiros francês e ex-professor de
Ingrid Betancourt em Paris. Sarkozy por
seu turno pareceu nem notar a seme-
lhança entre os ideais libertários de In-
grid Betancourt para o povo da Colôm-
bia e os defendidos pelos estudantes
franceses no longínquo mês de Maio
de 1968, cujas influências nefastas, no
entender do presidente francês, deviam
ser expurgadas da sociedade, de uma
vez por todas.
Hugo Chavez, o único homem que con-
segue falar com a Bíblia na mão direita
e a Constituição Bolivariana na esquer-
da, sentado sobre um barril de petróleo,
foi o primeiro a tentar explorar a impo-
pularidade crescente criada pela polí-
tica externa dos EUA, apontando para
a crise em que mergulharam as econo-
mias ditas neo-liberais e justificando a
crise financeira mundial como resultado
de uma má avaliação do risco de crédi-
to nos EUA; a crise energética como o
resultado das incontornáveis políticas
de cartel praticadas a nível global no
sector dos combustíveis fósseis e, por
fim, a crise alimentar como resultado da
especulação sobre os cereais em grão,
no mercado de futuros, motivada pela
concorrência emergente da indústria
dos bio-combustíveis (supostamente
mais amigos do ambiente) no mercado
tradicional das matérias-primas da in-
dústria alimentar. E no entanto a política
externa dos EUA não mudou assim tanto
nos últimos anos, apenas se tornou
mais visível, pois a globalização e as
novas tecnologias de informação leva-
ram a que o mundo se tornasse plano,
tendo deixado de ser possível enganar
toda a gente, durante o tempo todo.
Hugo Chavez tem procurado reinven-
tar o discurso revolucionário, em parte
devido à escassez de vozes críticas
que se apresentem como alternativas
credíveis, tendo emergido como uma
espécie de polo aglutinador de países
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não alinhados, num fenómeno cuja
influência continental ameaça expan-
dir-se para além das tradicionais fron-
teiras da revolução Bolivariana. Chavez
negociou com as FARC a libertação
das senadoras Clara Rojas, directora
de campanha de Ingrid Betancourt em
2002, e Consuelo González. As provas
dos financiamentos foram encontradas
no computador do comandante Raul
Reyes, abatido recentemente no Equa-
dor, juntamente com outras 24 pessoas,
pelo exército colombiano, numa acção
de bombardeamento com contornos
genocidas. Esta acção foi vista por al-
guns observadores como uma manobra
de antecipação à tão anunciada quanto
adiada libertação unilateral de prisionei-
ros por parte das FARC que Reyes ale-
gadamente se preparava para negociar
com uma delegação Franco-Suíça. Já
aquando da libertação de Clara Rojas
e de Consuelo González, houve quem
acusasse Alvaro Uribe de ter tentado
dificultar o processo de libertação das
duas senadoras para diminuir a im-
portância da mediação de Chavez. Do
ataque às FARC em território equatoria-
no, resultou um conflito diplomático por
violação pela Força Aérea colombiana
da soberania territorial do Equador, que
“já tinha sido avisado por Bogotá” e
alegadamente nada fez, para impedir a
permanência de elementos considera-
dos perigosos para a segurança nacio-
nal colombiana no seu território.
O apoio de Hugo Chavez às FARC fazia
parte da sua estratégia de poder a nível
regional, que visava isolar Alvaro Uribe,
a quem designa de “um peão ao serviço
dos EUA”. Mas aquilo que se observa
é que o discurso das FARC em termos
de conteúdo ideológico é confrangedo-
ramente pobre. Num país com mais de
50% de pobres é fácil recrutar mão-
de-obra mesmo para o trabalho mais
sujo. Militares corruptos, paramilitares
e guerrilheiros dividem entre si “o bolo”
resultante do tráfico de droga. ➤
➤ As FARC controlam as plantações e
os laboratórios escondidos na selva; os
paramilitares e os militares corruptos
garantem a logística e a segurança dos
canais de escoamento e exportação. Os
agricultores locais quando questionados
sobre a alternativa de plantar mandioca
em vez de coca, fazem-nos o desenho:
"Um quilo de coca vale e 3.000 no mer-
cado, enquanto que um quilo de man-
dioca vale apenas e 10. Começaremos
a cultivar mandioca quando os “gringos”
começarem a snifá-la..."
As plantações estão localizadas no
meio da selva montanhosa em locais
remotos e de difícil acesso, territó-
rios maiores e geograficamente mais
acidentados do que a Suíça que não
estão controlados pelo exército. Por
aqui se percebe a dificuldade que os
EUA encontraram para localizar os
3 reféns americanos mesmo com o
recurso a satélites espiões e à força
aérea. Não parece haver assim lugar
à esperança numa resolução do con-
flito, até porque, enquanto houver um
guerrilheiro no activo isso representa
uma derrota para o exército, e mesmo
que as FARC há muito tenham deixa-
do de acalentar esperanças de chegar
ao poder, enquanto houver um guerri-
lheiro que resista, as FARC não estão
derrotadas.
O plano hegemónico da Colômbia para
a região, desenhado e patrocinado por
Bill Clinton, levou a um sobre-armamen-
to da Colômbia, que possui actualmen-
te um poder de militar superior ao do
Brasil e da Argentina juntos e que pode
pôr em causa o equilíbrio de forças na
região.
Para Fidel Castro, que venha o diabo e
escolha. Se, por um lado, os EUA e o
capitalismo neo-liberal são os suspeitos
do costume, por outro, já percebeu que
as FARC de revolucionárias nada têm.
O ex-guerrilheiro, ex-revolucionário
e ex-ditador, censurou as FARC pelo
recurso ao sequestro de civis.
Mas mesmo assim ainda há quem
tenha opinião diferente sobre as FARC,
nomeadamente dentro do PCP. Miguel
Urbano Rodrigues, jornalista do “Avan-
te”, escritor e professor, afirma que, em
certas zonas da Colômbia, a chegada
do exército, coíncide com a fuga das
populações para a selva. Ele esteve
lá, na selva colombiana com os seus
camaradas das FARC e publicou no
“Avante” entrevistas com os seus prin-
cipais líderes. Elogia-lhes o carácter, a
dignidade, o porte aristocrático e a cul-
tura literária daqueles homens e ques-
tiona se os guerrilheiros prisioneiros do
estado colombiano estarão de tão boa
saúde e a ser “tão bem” tratados como
os reféns das FARC evadidos, resgata-
dos ou libertados.
Enquanto a Colômbia se congratulava
com o êxito dos seus serviços secre-
tos, reforçados por americanos e isra-
elitas, numa operação de resgate que
Hollywood não desdenharia ter filmado,
os EUA, a França, bem como a gene-
ralidade do mundo ocidental, congratu-
lavam-se com “mais uma vitória sobre
sobre o terrorismo”.
E por mais que a estética revolucio-
nária venda filmes e t-shirts do Che
Guevara a nostálgicos pseudo-revo-
lucionários pós-modernos, a verdade
é que é impossível, em consciência,
designar de outra forma, quem se
dedica à produção e tráfico de droga,
à extorsão e à cobrança coerciva de
impostos ilegais – ao melhor estilo
das máfias –, ao sequestro e assassi-
nato de civis.
Aqueles, como Miguel Urbano Rodri-
gues, que acreditam que a Colômbia
é um narco-estado repressor e assas-
sino, percebem que esta operação de
resgate constituiu um duro golpe na
capacidade negocial das FARC que
transformaram a esperança na troca de
prisioneiros e na negociação da paz,
numa bela recordação de um futuro que
afinal não cantará. n
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