Antologia poética
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Até 1962, quando esta antologia foi lançada, a obra poética de Carlos Drummond de Andrade, então com 60 anos, era formada pelos seguintes livros: Alguma poesia, Brejo das almas, Sentimento do mundo, José, A rosa do povo, Novos poemas, Claro enigma, Fazendeiro do ar, Viola de bolso, Viola de bolso novamente encordoada, A vida passada a limpo e Lição de coisas. Todos hoje são clássicos da nossa literatura.
Para tornar esta coletânea algo especial, já bastaria o fato de o próprio Drummond haver selecionado os poemas que a compõem. Mas a maneira como ele a organizou, dividindo-a em seções temáticas, faz dela um verdadeiro mapa da sensibilidade do poeta, que indica os caminhos não apenas de sua produção passada, mas também do que ainda estava por escrever.
São ao todo nove seções, com poemas sobre: 1) o indivíduo; 2) a terra natal; 3) a família; 4) os amigos; 5) o mundo social e político; 6) o amor; 7) a própria poesia; 8) divertimentos poéticos; 9) a condição existencial.
A esta amplitude temática, rara em qualquer escritor, soma-se uma grande variedade formal e notável competência técnica, o que faz de Drummond, sem dúvida, um dos poetas mais completos da língua portuguesa de ontem e de hoje.
As novas edições da obra de Carlos Drummond de Andrade têm seus textos fixados por especialistas, com acesso inédito ao acervo de exemplares anotados e manuscritos que ele deixou. Em Antologia poética, o leitor encontrará um posfácioda cantora e compositora Zélia Duncan, e também bibliografias selecionadas de e sobre Drummond; e a seção intitulada "Na época do lançamento", uma cronologia dos três anos imediatamente anteriores e posteriores à primeira publicação do livro.
Bibliografias completas, uma cronologia de vida e obra do poeta e as variantes no processo de fixação dos textos encontram-se disponíveis por meio do código QR localizado na quarta capa deste volume.
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Book preview
Antologia poética - Carlos Drummond de Andrade
POSFÁCIO DE
ZÉLIA DUNCAN
nova edição
Editora Record. Rio de Janeiro, São Paulo.2022
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
A566a
Andrade, Carlos Drummond de, 1902-1987
Antologia poética [recurso eletrônico] / Carlos Drummond de Andrade; posfácio Zélia Duncan. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Record, 2022.
recurso digital
Formato: epub
Requisitos do sistema: adobe digital editions
Modo de acesso: world wide web
ISBN 978-65-5587-502-7 (recurso eletrônico)
1. Poesia brasileira. 2. Livros eletrônicos. I. Duncan, Zélia. II. Título.
22-76497
CDD: 869.1
CDU: 82-1(81)
Meri Gleice Rodrigues de Souza – Bibliotecária – CRB-7/6439
Carlos Drummond de Andrade © Graña Drummond
www.carlosdrummond.com.br
Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou transmissão de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia autorização por escrito.
Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
Direitos exclusivos desta edição reservados pela
EDITORA RECORD LTDA.
Rua Argentina, 171 – Rio de Janeiro, RJ – 20921-380 – Tel.: (21) 2585-2000.
Produzido no Brasil
Cópia não autorizada é crime. Respeite o direito autora. ABDR Associação brasileira de direitos reprográficos. Editora filiada.ISBN 978-65-5587-502-7
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SUMÁRIO
Nota da primeira edição
um eu todo retorcido
Poema de sete faces [ap]*
Soneto da perdida esperança [ba]
Poema patético [ba]
Dentaduras duplas [sm]
A bruxa [jo]
José [jo]
A mão suja [jo]
A flor e a náusea [rp]
Consolo na praia [rp]
Idade madura [rp]
Versos à boca da noite [rp]
Indicações [rp]
Os últimos dias [rp]
Aspiração [ce]
A música barata [lc]
Estrambote melancólico [fa]
Nudez [vl]
O enterrado vivo [fa]
uma província: esta
Cidadezinha qualquer [ap]
Romaria [ap]
Confidência do itabirano [sm]
Evocação mariana [ce]
Canção da Moça-Fantasma de Belo Horizonte [sm]
Morte de Neco Andrade [fa]
Estampas de Vila Rica [ce]
Prece de mineiro no Rio [vl]
a família que me dei
Retrato de família [rp]
Os bens e o sangue [ce]
Infância [ap]
Viagem na família [jo]
Convívio [ce]
Perguntas [ce]
Carta [ce]
A mesa [ce]
Ser [ce]
A Luis Mauricio, infante [fa]
cantar de amigos
Ode no cinquentenário do poeta brasileiro [sm]
Mário de Andrade desce aos infernos [rp]
Viagem de Américo Facó [fa]
Conhecimento de Jorge de Lima [fa]
A mão [lc]
A Federico García Lorca [np]
Canto ao homem do povo Charlie Chaplin [rp]
na praça de convites
Coração numeroso [ap]
Sentimento do mundo [sm]
Lembrança do mundo antigo [sm]
Elegia 1938 [sm]
Mãos dadas [sm]
Congresso Internacional do Medo [sm]
Nosso tempo [rp]
O elefante [rp]
Desaparecimento de Luísa Porto [np]
Morte do leiteiro [rp]
Os ombros suportam o mundo [sm]
Anúncio da rosa [rp]
Contemplação no banco [ce]
Canção amiga [np]
amar-amaro
O amor bate na aorta [ba]
Quadrilha [ap]
Necrológio dos desiludidos do amor [ba]
Não se mate [ba]
O mito [rp]
Caso do vestido [rp]
Campo de flores [ce]
Escada [fa]
Estâncias [np]
Ciclo [vl]
Véspera [vl]
Instante [vl]
Os poderes infernais [vl]
Soneto do pássaro [vl]
O quarto em desordem [fa]
Amar [ce]
Entre o ser e as coisas [ce]
Tarde de maio [ce]
Fraga e sombra [ce]
Canção para álbum de moça [ce]
Rapto [ce]
Memória [ce]
Amar-amaro [lc]
poesia contemplada
O lutador [jo]
Procura da poesia [rp]
Brinde no banquete das musas [fa]
Oficina irritada [ce]
Poema-orelha [vl]
Conclusão [fa]
uma, duas argolinhas
Sinal de apito [ap]
Política literária [ap]
Os materiais da vida [vl]
Áporo [rp]
Caso pluvioso [vb]
tentativa de exploração e de interpretação do estar-no-mundo
No meio do caminho [ap]
Os mortos de sobrecasaca [sm]
Os animais do presépio [ce]
Cantiga de enganar [ce]
Tristeza no céu [jo]
Rola mundo [rp]
A máquina do mundo [ce]
Jardim [np]
Composição [np]
Cerâmica [lc]
Relógio do Rosário [ce]
Domicílio [fa]
Canto esponjoso [np]
O arco [np]
Especulações em torno da palavra homem [vl]
Descoberta [lc]
Eterno [fa]
Maralto [vb]
A um hotel em demolição [vl]
A ingaia ciência [ce]
Segredo [ba]
Vida menor [rp]
Resíduo [rp]
Movimento da espada [rp]
Intimação [lc]
Canto negro [ce]
Os dois vigários [lc]
Elegia [fa]
Posfácio, por Zélia Duncan
Cronologia: Na época do lançamento (1959-1965)
Bibliografia de Carlos Drummond de Andrade
Bibliografia sobre Carlos Drummond de Andrade (seleta)
Índice de primeiros versos
Nota
* Abreviaturas dos livros: Alguma poesia [ap], Brejo das almas [ba], Sentimento do mundo [sm], José [jo], A rosa do povo [rp], Novos poemas [np], Claro enigma [ce], Viola de bolso [vb], Fazendeiro do ar [fa], A vida passada a limpo [vl] e Lição de coisas [lc]. [N. do E.]
ANTOLOGIA POÉTICA
NOTA DA PRIMEIRA EDIÇÃO
Ao organizar este volume, o autor não teve em mira, propriamente, selecionar poemas pela qualidade, nem pelas fases que acaso se observem em sua carreira poética. Cuidou antes de localizar, na obra publicada, certas características, preocupações e tendências que a condicionam ou definem, em conjunto. A Antologia lhe pareceu assim mais vertebrada e, por outro lado, espelho mais fiel.
Escolhidos e agrupados os poemas sob esse critério, resultou uma Antologia que não segue a divisão por livros nem obedece a cronologia rigorosa. O texto foi distribuído em nove seções, cada uma contendo material extraído de diferentes obras, e disposto segundo uma ordem interna. O leitor encontrará assim, como pontos de partida ou matéria de poesia: 1) O indivíduo; 2) A terra natal; 3) A família; 4) Amigos; 5) O choque social; 6) O conhecimento amoroso; 7) A própria poesia; 8) Exercícios lúdicos; 9) Uma visão, ou tentativa de, da existência.
Algumas poesias caberiam talvez em outra seção que não a escolhida, ou em mais de uma. A razão da escolha está na tônica da composição, ou no engano do autor. De qualquer modo, é uma arrumação, ou pretende ser.
c. d. a.
Rio de Janeiro, 1962.
UM EU TODO RETORCIDO
POEMA DE SETE FACES
Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.
As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.
O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.
O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.
Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.
Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.
Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.
SONETO DA PERDIDA ESPERANÇA
Perdi o bonde e a esperança.
Volto pálido para casa.
A rua é inútil e nenhum auto
passaria sobre meu corpo.
Vou subir a ladeira lenta
em que os caminhos se fundem.
Todos eles conduzem ao
princípio do drama e da flora.
Não sei se estou sofrendo
ou se é alguém que se diverte
por que não? na noite escassa
com um insolúvel flautim.
Entretanto há muito tempo
nós gritamos: sim! ao eterno.
POEMA PATÉTICO
Que barulho é esse na escada?
É o amor que está acabando,
é o homem que fechou a porta
e se enforcou na cortina.
Que barulho é esse na escada?
É Guiomar que tapou os olhos
e se assoou com estrondo.
É a lua imóvel sobre os pratos
e os metais que brilham na copa.
Que barulho é esse na escada?
É a torneira pingando água,
é o lamento imperceptível
de alguém que perdeu no jogo
enquanto a banda de música
vai baixando, baixando de tom.
Que barulho é esse na escada?
É a virgem com um trombone,
a criança com um tambor,
o bispo com uma campainha
e alguém abafando o rumor
que salta de meu coração.
DENTADURAS DUPLAS
A Onestaldo de Pennafort
Dentaduras duplas!
Inda não sou bem velho
para merecer-vos...
Há que contentar-me
com uma ponte móvel
e esparsas coroas.
(Coroas sem reino,
os reinos protéticos
de onde proviestes
quando produzirão
a tripla dentadura,
dentadura múltipla,
a serra mecânica,
sempre desejada,
jamais possuída,
que acabará
com o tédio da boca,
a boca que beija,
a boca romântica?...)
Resovin! Hecolite!
Nomes de países?
Fantasmas femininos?
Nunca: dentaduras,
engenhos modernos,
práticos, higiênicos,
a vida habitável:
a boca mordendo,
os delirantes lábios
apenas entreabertos
num sorriso técnico,
e a língua especiosa
através dos dentes
buscando outra língua,
afinal sossegada...
A serra mecânica
não tritura amor.
E todos os dentes
extraídos sem dor.
E a boca liberta
das funções poético-
-sofístico-dramáticas
de que rezam filmes
e velhos autores.
Dentaduras duplas:
dai-me enfim a calma
que Bilac não teve
para envelhecer.
Desfibrarei convosco
doces alimentos,
serei casto, sóbrio,
não vos aplicando
na deleitação convulsa
de uma carne triste
em que tantas vezes
me eu perdi.
Largas dentaduras,
vosso riso largo
me consolará
não sei quantas fomes
ferozes, secretas
no fundo de mim.
Não sei quantas fomes
jamais compensadas.
Dentaduras alvas,
antes amarelas
e por que não cromadas
e por que não de âmbar?
de âmbar! de âmbar!
feéricas dentaduras,
admiráveis presas,
mastigando lestas
e indiferentes
a carne da vida!
A BRUXA
A Emil Farhat
Nesta cidade do Rio,
de dois milhões de habitantes,
estou sozinho no quarto
estou sozinho na América.
Estarei mesmo sozinho?
Ainda há pouco um ruído
anunciou vida a meu lado.
Certo não é vida humana,
mas é vida. E sinto a bruxa
presa na zona de luz.
De dois milhões de habitantes!
E nem precisava tanto...
Precisava de um amigo,
desses calados, distantes,
que leem verso de Horácio
mas secretamente influem
na vida, no amor, na carne.
Estou só, não tenho amigo,
e a essa hora tardia
como procurar amigo?
E nem precisava tanto.
Precisava de mulher
que entrasse nesse minuto,
recebesse este carinho,
salvasse do aniquilamento
um minuto e um carinho loucos
que tenho para oferecer.
Em dois milhões de habitantes,
quantas mulheres prováveis
interrogam-se no espelho
medindo o tempo perdido
até que venha a manhã
trazer leite, jornal e calma.
Porém a essa hora vazia
como descobrir mulher?
Esta cidade do Rio!
Tenho tanta palavra meiga,
conheço vozes de bichos,
sei os beijos mais violentos,
viajei, briguei, aprendi.
Estou cercado de olhos,
de mãos, afetos, procuras.
Mas se tento comunicar-me,
o que há é apenas a noite
e uma espantosa solidão.
Companheiros, escutai-me!
Essa presença agitada
querendo romper a noite
não é simplesmente a bruxa.
É antes a confidência
exalando-se de um homem.
JOSÉ
E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?
Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?
E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio – e agora?
Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?
Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!
Sozinho no escuro
qual bicho do mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?
A