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José Américo Miranda

(Organizador)

Diretoria da Faculdade de Letras


Prof.ª Eliana Amarante de Mendonça Mendes

Vice-Diretora
Prof.ª Verônika Benn-Ibler

Projeto Gráfico da Capa


Glória Campos

Preparação e revisão do texto


José Américo Miranda
POESIA BRASILEIRA
ÉPOCA BARROCA Acabamento
I Humberto Mendes
ANTOLOGIA

Endereço para correspondência:


FALE/UFMG – Setor de Publicações
Av. Antônio Carlos, 6627 – sala 3025
31.270-901. Belo Horizonte/MG
Belo Horizonte Fone/Fax: (31)3499-6007
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Sumário

EUSÉBIO DE MATOS ................................................................... 5


GREGÓRIO DE MATOS .............................................................. 10
MANUEL BOTELHO DE OLIVEIRA ............................................. 25
BERNARDO VIEIRA RAVASCO .................................................. 45
quando às leis do preceito obediente,
EUSÉBIO DE MATOS e de amor obrigado,
Cristo, filho de Deus onipotente,
À INSTITUIÇÃO do Santíssimo Sacramento vendo chegada a hora da partida,
na Ceia de Quinta-Feira Santa ao tempo desejado
SONETO de dar com sua morte aos homens vida,
busca a Getsêmani, para os ensaios
Pertendeis hoje, ó Deus sacramentado, de mortas flores, e eclipsados maios.
em branca nuve, aos olhos escondido,
livrar ausente a queixa de esquecido, Em profundo silêncio o Horto estava,
lograr presente a glória de lembrado. que já de sentimentos prevenido;
a mais fragante flor não respirava;
Buscais amante as almas disfarçado, via-se todo o monte revestido
sendo, quando encoberto e escondido, de emaranhados troncos,
segredo expostamente encarecido, gadelha excelsa dos penedos broncos,
vida na morte, alívio no cuidado. que, tecendo entre [si] frondosos laços,
eram das nuvens verdes embaraços,
Mas causa este prodígio, este protento, cujas folhas, sendo línguas de esmeraldas,
de mistério maior, e mais profundo, mudas se viam todas, e emparelhadas;
assombros ao melhor entendimento: um pouco antes [intérpretes do vento,]
porque só as movia o sentimento,
Em o que vejo com razão me fundo; [c’o zéfiro brando que corria,]
porque sendo um segredo o sacramento [nem a mais leve delas se movia,]
sei, que se há de guardar por todo o mundo. vendo atrever-se a tempestade humana
do campo à flor mais linda e soberana.

AOS DESMAIOS, e Angústias, As aves, que com músicas sonoras,


que Teve Cristo Senhor Nosso, eram do dia alegres percursoras,
e Suores de Sangue no Horto de Getsêmani, deixando o doce agrado dos raminhos,
Quando Foi a Orar ao Eterno Pai temerosas estavam nos seus ninhos.
SILVA
As ovelhas, que o monte coroavam
Já sepultava os apolíneos raios no mais oculto vale se escondiam;
em túmulos de neve o sol ardente, e os filhos, que medrosos não berravam,
e em contínuos desmaios, nas tetas afagando adormeciam;
por ausência da clara luz febéia, que sendo então o sentimento justo
a república estava de Amaltéia; fez amor maternal tréguas c’o susto.
a negra noite, a natural cortina
correndo aos brancos raios de [Lucina], O leão valeroso
só por se opor do céu às luzes belas, na cova se ocultava temeroso,
de nublado se armou contra as estrelas; vendo o supremo Leão, Deus verdadeiro,

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que tornado estava manso Cordeiro. Parava o rio a líquida corrente,
sendo, em confusão tanta ali somente,
as cristalinas águas de uma fonte
lágrimas que chorava todo o monte.

Neste pois, com desvelo e com cuidado,


Cristo, de amor dos homens obrigado,
ocultando divinos resplandores,
com mistério profundo,
por dar a melhor luz a todo o mundo,
mandando ao Pai divinos pensamentos,
as glórias disfarçou, pediu tormentos.

Pronto o espírito estava,


alerta, vigilantes os sentidos;
tímida a humanidade,
posta nas mãos do Pai toda a vontade;
e os tormentos cruéis tão prevenidos,
que o sangue que nas veias se ocultava,
na consideração de pena tanta,
banhando flor a flor, e planta a planta,
tão liberal e pródigo corria
que roxas primaveras produzia.

Agora, ó doce Bem, meu Deus, agora,


é mais que bronze quem de dor não chora;
paguem, paguem, meus olhos nunca enxutos,
a vosso amor de lágrimas tributos;
quebre-se o coração do peito adentro,
[já que do coração padece o centro.]

Ai, meus doces Amores,


bem receava eu que esses rigores
haviam malograr vossas finezas,
pois, com tão vis baixezas,
trazem já por costume ou por ofício
anexa a ingratidão ao benefício.

Mas como assim, tormentos dilatados,


os quereis padecer antecipados?
porém o vosso amor, pelo que vejo,
quer que o achem armado de desejo,

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mostrando nesse sangue, que derrama, GREGÓRIO DE MATOS
que nunca sofre dilações quem ama.

Como, pois, me dilato À canseira da vida humana


em amar-vos, meu Bem, cega loucura!
serei de bronze feito, ou pedra dura! Carregado de mim ando no mundo,
mas se de bronze o coração tivera, E o grande peso embarga-me as passadas,
nesse fogo de amor o derretera; Que como ando por vias desusadas,
e se de pedra o coração julgara, Faço crescer o peso e vou-me ao fundo.
de sentimento o coração quebrara;
pois sei que em vossa morte (que portento!) O remédio será seguir o imundo
quebrar as pedras pôde o sentimento. Caminho onde dos mais vejo as pisadas,
Que as bestas juntas andam mais ornadas
Como, logo, é possível Do que anda só o engenho mais fecundo.
não sentir eu, sentindo o insensível?
mas se em vossos tormentos considero, Não é fácil viver entre os insanos,
esse milagre só de vós espero: Erra quem presumir que sabe tudo,
fazei, Amor, que o sinta de tal sorte Se o atalho não soube de seus danos.
que, imaginando sempre em vossa morte,
de uma dor, que no peito amante cabe, O prudente Varão há-de ser mudo,
a minha vida em vossa morte acabe. Que é melhor neste mundo, mar de enganos,
Ser louco c’os demais que só sisudo.

Contemplando nas cousas do mundo desde o seu retiro, lhe atira com o
seu ápage, como quem a nado escapou da tormenta Soneto

Neste mundo é mais rico o que mais rapa:


Quem mais limpo se faz tem mais carepa;
Com sua língua, ao nobre o vil decepa:
O velhaco maior sempre tem capa.

Mostra o patife da nobreza o mapa:


Quem tem mão de agarrar, ligeiro trepa;
Quem menos falar pode, mais increpa:
Quem dinheiro tiver, pode ser papa.

A flor baixa se inculca por tulipa;


Bengala hoje na mão, ontem garlopa:
Mais isento se mostra o que mais chupa.

Para a tropa do trapo vazo a tripa,

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E mais não digo, porque a musa topa O branco era um marau que veio aqui:
Em apa, epa, ipa, opa, upa. Ela é uma índia de Maré,
Cobepá, aricobé, cobé, paí.
À cidade da Bahia
Soneto Ao Conde de Ericeira D. Luís de Meneses pedindo louvores ao Poeta,
não lhe achando ele préstimo algum
Triste Bahia! ó quão dessemelhante
Estás e estou do nosso antigo estado! Um soneto começo em vosso gabo,
Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado, Contemos esta regra por primeira;
Rica te vejo eu já, tu a mi abundante. Já lá vão duas e esta é a terceira,
Já este quartetinho está no cabo.
A ti trocou-te a máquina mercante,
Que em tua larga barra tem entrado, Na quinta troce agora a porca o rabo,
A mim foi-me trocando, e tem trocado, A sexta vá também desta maneira;
Tanto negócio e tanto negociante. Na sétima entro já com grã canseira,
E saio dos quartetos muito brabo.
Deste em dar tanto açúcar excelente
Pelas drogas inúteis, que abelhuda Agora nos tercetos que direi?
Simples aceitas do sagaz brichote. Direi que vós, Senhor, a mim me honrais,
Gabando-vos a vós, e eu fico um rei.
Oh se quisera Deus que de repente
Um dia amanheceras tão sisuda Nesta vida um soneto já ditei,
Que fora de algodão o teu capote! Se desta agora escapo, nunca mais;
Louvado seja Deus, que o acabei.
Aos principais da Bahia, chamados os caramurus
No sermão que pregou na Madre de Deus Dom João Franco de
Há coisa como ver um paiaiá Oliveira, pondera o Poeta a fragilidade humana
Mui prezado de ser caramuru,
Descendente de sangue de tatu, Na oração que desaterra...........................aterra,
Cujo torpe idioma é cobepá? Quer Deus que a quem está o cuidado.....dado
Pregue que a vida é emprestado...............estado,
A linha feminina é carimá, Mistérios mil que desenterra....................enterra.
Muqueca, pititinga, caruru,
Mingau de puba, vinho de caju Quem não cuida de si que é terra.............erra,
Pisado num pilão de Pirajá. Que o alto Rei por afamado.....................amado
E quem lhe assiste ao desvelado..............lado
A masculina é um aricobé, Da morte ao ar não desaferra...................aferra.
Cuja filha cobé c’um branco paí
Dormiu no promontório de Passé. Quem do mundo a mortal loucura..........cura,
À vontade de Deus sagrada....................agrada

11 12
Firmar-lhe a vida em atadura.................dura.
Mote
Ó voz zelosa que dobrada.......................brada, A mais formosa, que Deus.
Já sei que a flor da formosura.................usura
Será no fim desta jornada.......................nada. Eu com duas Damas vim
de uma certa romaria,
uma feia em demasia,
À instabilidade das cousas do Mundo sendo a outra um Serafim:
e vendo-as eu ir assim
Nasce o Sol e não dura mais que um dia,
sós, sem amantes seus,
Depois da luz se segue a noite escura,
lhes perguntei, Anjos meus,
Em tristes sombras morre a formosura,
que vos pôs em tal estado?
Em contínuas tristezas a alegria. A feia diz, que o pecado,
a mais formosa, que Deus.
Porém se acaba o Sol, por que nascia?
Se é tão formosa a luz, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura? Define a sua cidade.
Como o gosto da pena assim se fia?
MOTE
Mas no Sol e na luz falte a firmeza, De dous ff se compõe
Na formosura não se dê constância, esta cidade a meu ver,
E na alegria sinta-se tristeza. um furtar, outro foder.

Começa o mundo enfim pela ignorância, GLOSA


E tem qualquer dos bens por natureza 1
A firmeza somente na inconstância. Recopilou-se o direito,
e quem o recopilou
com dous ff o explicou
Aos capitulares do seu tempo por estar feito, e bem feito:
por bem digesto, e colheito
DÉCIMA
só com dous ff o expõe,
e assim quem os olhos põe
A nossa Sé da Bahia, no trato, que aqui se encerra,
com ser um mapa de festas,
há de dizer, que esta terra
é um presépio de bestas,
de dous ff se compõe.
se não for estrebaria:
várias bestas cada dia
2
vemos, que o sino congrega, Se de dous ff composta
Caveira mula galega, está a nossa Bahia,
o Deão burrinha parda,
errada a ortografia
Pereira besta de albarda,
a grande dano está posta:
tudo para a Sé se agrega.
eu quero fazer aposta,

13 14
e quero um tostão perder, Quais são seus doces objetos?..............Pretos
que isso a há de perverter, Tem outros bens mais maciços?..........Mestiços
se o furtar e o foder bem Quais destes lhe são mais gratos?........Mulatos.
não são os ff que tem Dou ao demo os insensatos,
esta cidade a meu ver. dou ao demo a gente asnal,
que estima por cabedal
3 Pretos, Mestiços, Mulatos.
Provo a conjetura já
prontamente como um brinco:
Bahia tem letras cinco
que são BAHIA,
logo ninguém me dirá
que dous ff chega a ter,
pois nenhum contém sequer,
salvo se em boa verdade
são os ff da cidade
um furtar, outro foder.

Torna a definir o poeta os maos modos de obrar na governança da


Bahia, principalmente naquela universal fome, que padecia a cidade.

EPÍLOGOS
1
Que falta nesta cidade?...................Verdade
Que mais por sua desonra...............Honra
Falta mais que se lhe ponha............Vergonha.
O demo a viver se exponha,
por mais que a fama a exalta,
numa cidade, onde falta
Verdade, Honra, Vergonha.

2
Quem a pôs neste socrócio?............Negócio
Quem causa tal perdição?................Ambição
E o maior desta loucura?.................Usura.
Notável desaventura
de um povo néscio, e sandeu,
que não sabe, que o perdeu
Negócio, Ambição, Usura.

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4 8
Quem faz os círios mesquinhos?.........Meirinhos O açúcar já se acabou?..................Baixou
Quem faz as farinhas tardas?..............Guardas E o dinheiro se extinguiu?.............Subiu
Quem as tem nos aposentos?..............Sargentos. Logo já convalesceu?....................Morreu.
Os círios lá vêm aos centos, À Bahia aconteceu
e a terra fica esfaimando, o que a um doente acontece,
porque os vão atravessando cai na cama, o mal lhe cresce,
Meirinhos, Guardas, Sargentos. Baixou, Subiu, e Morreu.

5 9
E que justiça a resguarda?................Bastarda A Câmara não acode?.......................Não pode
É grátis distribuída?.........................Vendida Pois não tem todo o poder?..............Não quer
Que tem, que a todos assusta?..........Injusta. É que o governo a convence?...........Não vence.
Valha-nos Deus, o que custa, Quem haverá que tal pense,
o que El-Rei nos dá de graça, que uma Câmara tão nobre
que anda a justiça na praça por ver-se mísera, e pobre
Bastarda, Vendida, Injusta. Não pode, não quer, não vence.

6
Que vai pela clerezia?.....................Simonia Descreve o que era naquele tempo a cidade da Bahia
E pelos membros da Igreja?............Inveja Soneto
Cuidei, que mais se lhe punha?.......Unha.
A cada canto um grande conselheiro
Sazonada caramunha!
enfim que na Santa Sé Que nos quer governar cabana e vinha;
o que se pratica, é Não sabem governar sua cozinha,
E podem governar o mundo inteiro.
Simonia, Inveja, Unha.
Em cada porta um bem freqüente olheiro
7
Que a vida do vizinho e da vizinha
E nos Frades há manqueiras?............Freiras
Em que ocupam os serões?...............Sermões Pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha,
Não se ocupam em disputas?............Putas. Para o levar à praça e ao terreiro.

Muitos mulatos desavergonhados,


Com palavras dissolutas
Trazidos sob os pés os homens nobres,
me concluís na verdade,
Posta nas palmas toda a picardia,
que as lidas todas de um Frade
são Freiras, Sermões, e Putas.
Estupendas usuras nos mercados,
Todos os que não furtam muito pobres:
E eis aqui a cidade da Bahia.

17 18
Destes avaros mofinos
que põem na mesa pepinos
Benze-se o poeta de várias ações que observa na sua pátria Letras de toda a iguaria isenta,
com seu limão e pimenta,
Destes que campam no mundo
porque diz que queima e arde:
sem ter engenho profundo,
Deus me guarde.
e, entre gabos dos amigos,
os vemos em papa-figos Que pregue um douto sermão
sem tempestade, nem vento: um alarve, um asneirão,
Anjo bento. e que esgrima em demasia
quem nunca lá na sofia
De quem com letras secretas soube por um argumento:
tudo o que alcança é por tretas, Anjo bento.
baculejando sem pejo,
por matar o seu desejo, Desse santo emascarado
desde a manhã té a tarde: que fala do meu pecado
Deus me guarde. e se tem por Santo Antônio,
mas em lutas com o demônio
Do que passeia farfante, se mostra sempre cobarde:
muito prezado de amante, Deus me guarde.
por fora luvas, galões,
insígnias, armas, bastões, Que atropelando a justiça
por dentro pão bolorento: só com virtude postiça,
Anjo bento. se premie o delinqüente,
castigando o inocente
Destes beatos fingidos, por um leve pensamento:
cabisbaixos, encolhidos, Anjo bento.
por dentro fatais maganos,
sendo nas caras uns Janos,
que fazem do vício alarde: Reprovações
Deus me guarde.
Se sois homem valoroso,
Que vejamos teso andar Dizem que sois temerário,
quem mal sabe engatinhar, Se valente, espadachim,
muito inteiro e presumido, E atrevido, se esforçado.
ficando o outro abatido
Se resoluto – arrogante,
com maior merecimento:
Se pacífico, sois fraco,
Anjo bento.
Se precatado – medroso,
E se o não sois – confiado.

Se usais justiça, um Herodes,

19 20
Se favorável, sois brando,
Se condenais, sois injusto, Se virtuoso – fingido,
Se absolveis, estais peitado. E hipócrita se beato,
Se zeloso – impertinente,
Se vos dão, sois um covarde, E se não, sois um pastrano.
E se dais, sois desumano,
Se vos rendeis, sois traidor, Se sois sisudo – intratável,
Se rendeis – afortunado. Se sois devoto, sois falso,
Pertinaz, se defendente,
Se sois plebeus, sois humilde, Se argüinte, porfiado.
Soberbo, se sois fidalgo,
Se sois segundo, sois pobre, Se discreto – prevenido,
E tolo se sois morgado. E se não, sois insensato,
Se sois modesto, sois simples,
Se galeais, sois fachada; E se o não sois, sois um diabo.
E se não – não sois bizarro,
Se vestis bem, sois grã-moda, Se sois gracioso, sois fátuo,
Se mal vestis, sois um trapo. E se não sois, um marmanjo,
Se sois agudo – tresledes,
Se comeis muito, guloso, E se o não sois, sois um asno.
E faminto, se sois parco,
Se comeis bem, regalão, Se não compondes, sois néscio,
E se mal, nunca sois farto. Se escreveis, sois censurado,
Se fazeis versos, sois louco,
Se não sofreis, imprudente, E se o não fazeis, sois parvo.
Se sofreis, sois um coitado,
Se perdoais, sois bom homem, Se previsto – feiticeiro,
E se não sois – um tirano. E se não, desmazelado,
Se verdadeiro – bom homem,
Se brioso, tendes fumos, Muito humilde, se sois lhano.
E se não, sois homem baixo,
Se sois sério, descortês, Se robusto, sois grosseiro,
Se cortês, afidalgado. Se dedicado, sois brando,
Se descansado – ocioso,
Se defendeis, sois amigo, Se para pouco, sois tranco.
Se o não fazeis, sois contrário,
Se sois amigo, suspeito, Se sois gordo, sois balofo,
Se o não sois – afeiçoado. Sois tísico, se sois magro,
Se pequeno, sois anão,
Se obrais mal, sois ignorante, E gigante, se sois alto.
Se bem obrais, foi acaso,
Se não servis, sois isento, Se sois nobre, sois pelão,
E se servis, sois criado. E se oficial, sois baixo,

21 22
Se solteiro – extravagante, À despedida do mau governo que fez este governador
Se noivo, sois namorado. Soneto

Se corado, figadal Senhor Antão de Sousa de Meneses,


Descorado, se sois alvo, Quem sobe a alto lugar, que não merece,
Se grande nariz – judeu, Homem sobe, asno vai, burro parece,
Se trigueiro, sois mulato. Que o subir é desgraça muitas vezes.

Se liberal, sois perdido, A fortunilha autora de entremezes


E se o não sois, sois escasso, Transpõe em burro o herói, que indigno cresce:
Se sois pródigo, vicioso, Desanda a roda, e logo o homem desce,
E avarento, se poupado. Que é discreta a fortuna em seus reveses.

Se não despendeis – mesquinho, Homem sei eu que foi vossenhoria,


Se despendeis, sois mui largo, Quando o pisava da fortuna a roda,
Se não gastais – miserável, Burro foi ao subir tão alto clima.
Se gastais – esperdiçado.
Pois vá descendo do alto, onde jazia;
Se honesto sois, não sois homem, Verá quanto melhor se lhe acomoda
Impotente, se sois casto, Ser home em baixo, do que burro em cima.
Se não namorais, fanchono,
Se o fazeis, sois estragado.

Se não luzis, não sois gente,


Se luzis, sois mui pregado,
Se pedis, sois pobretão,
E se não, fazeis Calvários.

Se andais devagar – mimoso,


Se depressa, sois cavalo,
Mal-encarado, se feio,
Se gentil, efeminado.

Se falais muito, palreiro,


Se falais pouco, sois tardo,
Se em pé, não tendes assento,
Preguiçoso, se assentado.

E assim não pode viver


Neste Brasil infestado,
Segundo o que vos refiro,
Quem não seja reprovado.

23 24
MANUEL BOTELHO DE OLIVEIRA Se acaso gosta o cristalino agrado.

Iras de Anarda castigadas – Soneto VI


Ponderação do rosto e olhos de Anarda
Do cego deus, Anarda, compelido Soneto X
Vejo teu rosto, e digo meu tormento;
Digo para favor do sentimento, Quando vejo de Anarda o rosto amado,
Vejo para recreio do sentido; Vejo ao céu e ao jardim ser parecido;
Porque no assombro do primor luzido
As rosas de teu rosto desabrido, Tem o sol em seus olhos duplicado.
De teus olhos o esquivo luzimento;
Este fulmina logo o raio isento Nas faces considero equivocado
Estas espinham logo ao deus Cupido. De açucenas e rosas o vestido;
Porque se vê nas faces reduzido
Porém para experiências amorosas, Todo o império de Flora venerado.
Quando de amor as ânsias atropelas,
As perfeições se mudam deslustrosas; Nos olhos e nas faces mais galharda
Ao céu prefere quando inflama os raios,
Porque tomando amor vingança delas, E prefere ao jardim, se as flores guarda:
Nos rigores te afeia as lindas rosas,
Nas iras te escurece as luzes belas. Enfim dando ao jardim e ao céu desmaios,
O céu ostenta um sol; dous sóis Anarda,
Um maio o jardim logra; ela dous maios.
Vendo a Anarda depõe o sentimento – Soneto VII

A Serpe, que adornando várias cores, Ao sono


Com passos mais oblíquos, que serenos, Soneto XIII
Entre belos jardins, prados amenos,
É maio errante de torcidas flores; Quando em mágoas me vejo atribulado,
Vem, sono, a meu desvelo padecido,
Se quer matar da sede os desfavores, Refrigera os incêndios do sentido,
Os cristais bebe coa peçonha menos, Os rigores suspende do cuidado.
Porque não morra cos mortais venenos,
Se acaso gosta dos vitais licores. Se no monte Cimério retirado
Triste lugar ocupas, te convido
Assim também meu coração queixoso, Que venhas a meu peito entristecido,
Na sede ardente do feliz cuidado Porque triste lugar se tem formado.
Bebe cos olhos teu cristal fermoso;
Se querem noite escura teus intentos,
Pois para não morrer no gosto amado, E se querem silêncio; nas tristezas
Depõe logo o tormento venenoso, Noite e silêncio tem meus sentimentos:

25 26
Que não possa abrandar ûa alma austera
Porque triste e secreto nas ternezas, O que abranda ao rochedo, ao tronco, à fera!
É meu peito ûa noite de tormentos,
É meu peito um silêncio de finezas.

Encarece a fineza do seu tormento


Soneto XIX

Meu pensamento está favorecido,


Quando cuida de Anarda o logro amado;
Ele se vê nas glórias do cuidado,
Eu me vejo nas penas do sentido.

Ele alcança o fermoso, eu o sofrido,


Ele presente vive, eu retirado;
Eu no potro de um animal atormentado,
Ele no bem, que logra, presumido.

Do pensamento está muito ofendida


Minha alma, do tormento desejosa,
Porque em glória se vê, bem que fingida:

Tão fina pois, que está por amorosa,


De um leve pensamento arrependida,
De um vão contentamento escrupulosa.

Encarecimento dos rigores de Anarda


Madrigal VI

Se meu peito padece,


O rochedo mais duro se enternece;
Se afino o sentimento,
O tronco se lastima do tormento;
Se acaso choro e canto,
A fera se entristece do meu pranto;
Porém nunca estas dores
Abrandam, doce Anarda, teus rigores.
Oh condição de um peito!
Oh desigual efeito!

27 28
Ao mesmo [véu de Anarda] Comparações no rigor de Anarda
Madrigal X Décima

Se me encobres, tirana, Quando Anarda me desdenha


De teu rosto gentil a luz ufana, Afetos de um coração,
Julga meu pensamento É diamante Anarda? não,
Que hás de dar bem ao mal, gosto ao tormento; Não diamante, porque é penha:
Sendo esse linho, se padeço tanto, Penha não, porque se empenha,
Às chagas atadura, lenço ao pranto. Qual áspid seu rigor forte;
Áspid não, que tem por sorte
Ser qual tigre na crueza:
Conveniências do rosto e peito de Anarda Tigre não, que na fereza
Madrigal XIX Tem todo o império da Morte.
Teu rosto por florido
Com belo rosicler se vê luzido; Comparação dos gigantes com os pensamentos amorosos
Teu peito a meus amores Décima
Brota agudos rigores;
Uniste enfim por bens e penas minhas Ao céu de Anarda lustroso
No rosto rosas e no peito espinhas. Com montes de vãos intentos
Subiram meus pensamentos
Gigantes, no ardor queixoso;
Sono pouco permanente Fulminou logo o penoso
Décima Castigo de desfavores
Apesar de altos primores;
Quando, Anarda, o sono brando Que em merecidos desmaios
Quer suspender meus tormentos, Seus rigores foram raios
Condenando os sentimentos,
Etnas foram meus ardores.
Os desvelos embargando;
Dura pouco, porque quando
Cuido que em belo arrebol Eco de Anarda
Estou vendo teu farol, Décima
Foge o sono à cova fria;
Porque lhe amanhece o dia, Entre males desvelados,
Porque lhe aparece o sol. Entre desvelos constantes,
Entre constâncias amantes,
Entre amores castigados;
Entre castigos chorados,
E choros, que o peito guarda,
Chamo sempre a bela Anarda
E logo a meu mal, fiel,
Eco de Anarda cruel

29 30
Só responde ao peito que arda. Logrando o cabelo a barca,
(Se bem feliz, o não furta)
Um por véu de ouro se jacta,
Outra por Argo se inculca.
Anarda passando o Tejo em uma barca
Romance I Ardem chamas nágua, e como
Vivem das chamas, que apura,
O cristal do Tejo Anarda São ditosas Salamandras
Em ditosa barca sulca; As que são nadantes turbas.
Qual perla, Anarda se alinda,
Qual concha, a barca se encurva. Meu peito também, que chora
De Anarda ausências perjuras,
Se falta o vento, Cupido O pranto em rio transforma,
Batendo as asas com fúria, O suspiro em vento muda.
Zéfiro alenta amoroso,
Aura respira segura.
A um grande sujeito invejado e aplaudido
Aumenta o Tejo seus logros, Soneto II
Que com tanta fermosura
Cristal em seu colo bebe, Temerária, soberba, confiada,
Ouro em seu cabelo usurpa. Por altiva, por deusa, por lustrosa,
A exalação, a névoa, a mariposa,
Se bem nas águas copiado, Sobe ao sol, cobre o dia, a luz lhe enfada.
Ali se viam confusas
Ondas de ouro no cabelo, Castigada, desfeita, malograda,
E do cristal ondas puras. Por ousada, por débil, por briosa,
Ao raio, ao resplandor, à luz fermosa,
Já deixa o nome de rio, Cai triste, fica vã, morre abrasada.
Oceano se assegura,
Pois a branca Tétis logra, Contra vós solicita, empenha, altera,
Pois o claro sol oculta. Vil afeto, ira cega, ação perjura,
Forte ódio, rumor falso, inveja fera.
Corta o aljofre escumoso,
Que como Vênus se julga, Esta cai, morre aquele, este não dura,
Ufano se incha o aljofre, Que em vós logra, em vós acha, em vós venera,
Cândida se ri a escuma. Claro sol, dia cândido, luz pura.

De seus olhos foge o rio,


À vida solitária
Que pois nele a vista ocupa,
Soneto IX
Evitar seus olhos trata,
Fugir às chamas procura. Que doce vida, que gentil ventura,

31 32
Que bem suave, que descanso eterno, Secretário do Estado do Brasil
Da paz armado, livre do governo, Soneto XV
Se logra alegre, firme se assegura!
Idéia ilustre do melhor desenho
Mal não molesta, foge a desventura, Fostes entre o trabalho sucessivo,
Na primavera alegre, ou duro inverno, E nas ordens do Estado sempre ativo
Muito perto do céu, longe do inferno, Era o zelo da Pátria o vosso empenho.
O tempo passa, o passatempo atura.
Ostentastes no ofício o desempenho
A riqueza não quer, de honra não trata, Com pronta execução, discurso vivo,
Quieta a vida, firme o pensamento, E formando da pena o vôo altivo,
Sem temer da fortuna a fúria ingrata: Águia se viu de Apolo o vosso engenho.
Despede a morte, cegamente irada,
Porém atento ao rio, ao bosque atento, Contra vós ûa seta rigorosa,
Tem por riqueza igual do rio a prata, Mas não vos tira a vida dilatada:
Por aura honrosa tem do bosque o vento.
Que na fama imortal e gloriosa,
À morte do reverendo padre Antônio Vieira Se morrestes como Águia sublimada,
Soneto XIV Renasceis como Fênix generosa.

Fostes, Vieira, engenho tão subido, Ponderação da morte do padre Antônio Vieira,
Tão singular e tão avantejado, e seu irmão Bernardo Vieira Ravasco
Que nunca sereis mais de outro imitado, ao mesmo tempo sucedidas
Bem que sejais de todos aplaudido. Soneto XVI
Nas sacras Escrituras embebido, Criou Deus na celeste Arquitetura
Qual Augustinho; fostes celebrado; Dous luzeiros com giro cuidadoso,
Ele de África assombro venerado, Um que presida ao dia luminoso,
Vós de Europa portento esclarecido. Outro que presidisse à noite escura.

Morrestes; porém não; que ao Mundo atroa Dous luzeiros também de igual ventura
Vossa pena, que aplausos multiplica, Criou na terra o Artífice piedoso;
Com que de eterna vida vos coroa; Um, que foi da Escritura Sol famoso,
Outro, Planeta da ignorância impura.
E quando imortalmente se publica,
Em cada rasgo seu a fama voa, Brilhando juntos um e outro luzeiro,
Em cada escrito seu ûa alma fica. Com sábia discrição, siso profundo,
Não podia um viver sem companheiro.
À morte de Bernardo Vieira Ravasco, Sucedeu justamente neste mundo,
Que fenecendo aquele por primeiro,

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Este também feneça por segundo. São do amor marés vivas;
E se nas mortas menos a conhece,
Maré de saudades lhe parece.
A um ilustre edifício de colunas e arcos Vista por fora é pouco apetecida,
Soneto XVII Porque aos olhos por feia é parecida;
Porém dentro habitada
Essa de ilustre máquina beleza,
É muito bela, muito desejada,
Que o tempo goza, e contra o tempo atura;
É como a concha tosca e deslustrosa,
É soberbo primor da arquitetura,
Que dentro cria a pérola fermosa.
É pródigo milagre da grandeza.
Erguem-se nela outeiros
Fadiga da arte foi, que a Natureza Com soberbas de montes altaneiros,
Inveja de seus brios mal segura; Que os vales por humildes desprezando,
E cada pedra, que nos arcos dura, As presunções do Mundo estão mostrando,
É língua muda da fatal empresa. E querendo ser príncipes subidos,
Ficam os vales a seus pés rendidos.
Não teme da fortuna os vários cortes, Por um e outro lado,
Nem do tempo os discursos por errantes, Vários lenhos se vêem no mar salgado;
Arma-se firme contra as leis das sortes. Uns vão buscando da Cidade a via,
Outros dela se vão com alegria;
Que nas colunas e arcos elegantes, E na desigual ordem
Contra a fortuna tem colunas fortes, Consiste a fermosura na desordem.
Contra o tempo fabrica arcos triunfantes. Os pobres pescadores em saveiros,
Em canoas ligeiros,
Fazem com tanto abalo
A ilha de Maré Do trabalho marítimo regalo;
TERMO DESTA CIDADE DA BAHIA Uns as redes estendem,
SILVA E vários peixes por pequenos prendem;
Que até nos peixes com verdade pura
Jaz em oblíqua forma e prolongada Ser pequeno no Mundo é desventura:
A terra de Maré toda cercada Outros no anzol fiados
De Netuno, que tendo o amor constante, Têm aos míseros peixes enganados,
Lhe dá muitos abraços por amante, Que sempre da vil isca cobiçosos
E botando-lhe os braços dentro dela Perdem a própria vida por gulosos.
A pretende gozar, por ser mui bela. Aqui se cria o peixe regalado
Nesta assistência tanto a senhoreia, Com tal sustância e gosto preparado,
E tanto a galanteia, Que sem tempero algum para apetite
Que, do mar, de Maré tem apelido, Faz gostoso convite,
Como quem preza o amor de seu querido: E se pode dizer em graça rara
E por gosto das prendas amorosas Que a mesma natureza os temperara.
Fica maré de rosas, Não falta aqui marisco saboroso,
E vivendo nas ânsias sucessivas, Para tirar fastio ao melindroso;

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Os polvos radiantes, Por nenhûa província se trocara.
Os lagostins flamantes, As cidras amarelas
Camarões excelentes, Caindo estão de belas,
Que são dos lagostins pobres parentes; E como são inchadas, presumidas,
Retrógrados cranguejos, É bem que estejam pelo chão caídas.
Que formam pés das bocas com festejos, As uvas moscatéis são tão gostosas,
Ostras, que alimentadas Tão raras, tão mimosas;
Estão nas pedras, onde são geradas; Que se Lisboa as vira, imaginara
Enfim tanto marisco, em que não falo, Que alguém dos seus pomares as furtara;
Que é vário perrexil para o regalo. Delas a produção por copiosa
As plantas sempre nela reverdecem, Parece milagrosa,
E nas folhas parecem, Porque dando em um ano duas vezes,
Desterrando do Inverno os desfavores, Geram dous partos, sempre, em doze meses.
Esmeraldas de Abril em seus verdores, Os Melões celebrados
E delas por adorno apetecido Aqui tão docemente são gerados,
Faz a divina Flora seu vestido. Que cada qual tanto sabor alenta,
As fruitas se produzem copiosas, Que são feitos de açúcar, e pimenta,
E são tão deleitosas, E como sabem bem com mil agrados,
Que como junto ao mar o sítio é posto, Bem se pode dizer que são letrados;
Lhes dá salgado o mar o sal do gosto. Não falo em Valariça, nem Chamusca:
As canas fertilmente se produzem, Porque todos ofusca
E a tão breve discurso se reduzem, O gosto destes, que esta terra abona
Que, porque crescem muito, Como próprias delícias de Pomona.
Em doze meses lhe sazona o fruito, As melancias com igual bondade
E não quer, quando o fruto se deseja, São de tal qualidade,
Que sendo velha a cana, fértil seja. Que quando docemente nos recreia,
As laranjas da terra É cada melancia ûa colmeia,
Poucas azedas são, antes se encerra E às que tem Portugal lhe dão de rosto
Tal doce nestes pomos, Por insulsas abóboras no gosto.
Que o têm clarificado nos seus gomos; Aqui não faltam figos,
Mas as de Portugal entre alamedas E os solicitam pássaros amigos,
São primas dos limões, todas azedas. Apetitosos de sua doce usura,
Nas que chamam da China Porque cria apetites a doçura;
Grande sabor se afina, E quando acaso os matam
Mais que as da Europa doces, e melhores, Porque os figos maltratam,
E têm sempre a ventagem de maiores, Parecem mariposas, que embebidas
E nesta maioria, Na chama alegre, vão perdendo as vidas.
Como maiores são, têm mais valia. As Romãs rubicundas quando abertas
Os limões não se prezam, À vista agrados são, à língua ofertas,
Antes por serem muitos se desprezam. São tesouro das frutas entre afagos,
Ah se Holanda os gozara! Pois são rubis suaves os seus bagos.

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As fruitas quase todas nomeadas De sorte que por graça, ou por tributo,
São ao Brasil de Europa trasladadas, É fruto, é como pão, serve em conduto.
Porque tenha o Brasil por mais façanhas A pimenta elegante
Além das próprias fuitas, as estranhas. É tanta, tão diversa, e tão picante,
E tratando das próprias, os coqueiros, Para todo o tempero acomodada,
Galhardos e frondosos Que é muito avantejada,
Criam cocos gostosos; Por fresca e por sadia,
E andou tão liberal a natureza À que na Ásia se gera, Europa cria:
Que lhes deu por grandeza, O mamão por freqüente
Não só para bebida, mas sustento, Se cria vulgarmente,
O néctar doce, o cândido alimento. E não o preza o Mundo,
De várias cores são os cajus belos, Porque é muito vulgar em ser fecundo.
Uns são vermelhos, outros amarelos, O marcujá também gostoso e frio
E como vários são nas várias cores, Entre as fruitas merece nome e brio;
Também se mostram vários nos sabores; Tem nas pevides mais gostoso agrado
E criam a castanha, Do que açúcar rosado;
Que é melhor que a de França, Itália, Espanha. É belo, cordial, e como é mole,
As pitangas fecundas Qual suave manjar todo se engole.
São na cor rubicundas Vereis os ananases,
E no gosto picante comparadas Que para rei das fruitas são capazes;
São de América ginjas disfarçadas. Vestem-se de escarlata
As pitombas douradas, se as desejas, Com majestade grata,
São no gosto melhor do que as cerejas, Que para ter do Império a gravidade
E para terem o primor inteiro, Logram da croa verde a majestade;
A ventagem lhes levam pelo cheiro. Mas quando têm a croa levantada
Os araçases grandes, ou pequenos, De picantes espinhos adornada,
Que na terra se criam mais ou menos Nos mostram que entre Reis, entre Rainhas
Como as peras de Europa engrandecidas, No há croa no Mundo sem espinhas.
Com elas variamente parecidas, Este pomo celebra toda a gente,
Também se fazem delas É muito mais que o pêssego excelente,
De várias castas marmeladas belas. Pois lhe leva aventagem gracioso
As bananas no Mundo conhecidas Por maior, por mais doce, e mais cheiroso.
Por fruto e mantimento apetecidas, Além das fruitas, que esta terra cria,
Que o céu para regalo e passatempo Também não faltam outras na Bahia;
Liberal as concede em todo o tempo, A mangava mimosa
Competem com maçãs, ou baonesas, Salpicada de tintas por fermosa,
Com peros verdeais ou camoesas, Tem o cheiro famoso,
Também servem de pão aos moradores, Como se fora almíscar oloroso;
Se da farinha faltam os favores; Produze-se no mato
É conduto também que dá sustento, Sem querer da cultura o duro trato,
Como se fosse próprio mantimento; Que como em si toda a bondade apura,

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Não quer dever aos homens a cultura. Os aipins se aparentam
Oh que galharda fruita, e soberana Coa mandioca, e tal favor alentam,
Sem ter indústria humana, Que tem qualquer, cozido, ou seja assado,
E se Jove as tirara dos pomares, Das castanhas da Europa o mesmo agrado.
Por ambrosia as pusera entre os manjares! O milho, que se planta sem fadigas,
Com a mangava bela a semelhança Todo o ano nos dá fáceis espigas,
Do macujé se alcança; E é tão fecundo em um e em outro filho,
Que também se produz no mato inculto Que são mãos liberais as mãos de milho.
Por soberano indulto: O arroz semeado
E sem fazer ao mel injusto agravo, Fertilmente se vê multiplicado;
Na boca se desfaz qual doce favo. Cale-se de Valença, por estranha
Outras fruitas dissera, porém basta O que tributa a Espanha,
Das que tenho descrito a vária casta; Cale-se do Oriente
E vamos aos legumes, que plantados O que come o gentio, e a lísia gente;
São do Brasil sustentos duplicados: Que o do Brasil quando se vê cozido
Os mangarás que brancos, ou vermelhos, Como tem mais substância, é mais crescido.
São da abundância espelhos; Tenho explicado as fruitas e legumes,
Os cândidos inhames, se não minto, Que dão a Portugal muitos ciúmes;
Podem tirar a fome ao mais faminto. Tenho recopilado
As batatas, que assadas, ou cozidas, O que o Brasil contém para invejado,
São muito apetecidas; E para preferir a toda a terra,
Delas se faz a rica batatada Em si perfeitos quatro AA encerra.
Das Bélgicas nações solicitada. Tem o primeiro A, nos arvoredos
Os carás, que de roxo estão vestidos, Sempre verdes aos olhos, sempre ledos;
São lóios dos legumes parecidos, Tem o segundo A, nos ares puros
Dentro são alvos, cuja cor honesta Na tempérie agradáveis e seguros;
Se quis cobrir de roxo por modesta. Tem o terceiro A, nas águas frias,
A mandioca, que Tomé sagrado Que refrescam o peito, e são sadias;
Deu ao gentio amado, O quarto A, no açúcar deleitoso,
Tem nas raízes a farinha oculta: Que é do Mundo o regalo mais mimoso.
Que sempre o que é feliz, se dificulta. São pois os quatro AA por singulares
E parece que a terra, de amorosa Arvoredos, Açúcar, Águas, Ares.
Se abraça com seu fruto deleitosa; Nesta Ilha está mui ledo e mui vistoso
dela se faz com tanta atividade Um Engenho famoso,
A farinha, que em fácil brevidade Que quando quis o fado antigamente
No mesmo dia, sem trabalho muito Era Rei dos engenhos preminente,
Se arranca, se desfaz, se coze o fuito; E quando Holanda pérfida e nociva
Dela se faz também com mais cuidado O queimou, renasceu qual Fênix viva.
O beiju regalado, Aqui se fabricaram três capelas
Que feito tenro por curioso amigo Ditosamente belas,
Grande ventagem leva ao pão de trigo. Uma se esmera em fortaleza tanta,

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Que de abóbada forte se levanta;
Da Senhora das Neves se apelida,
Renovando a piedade esclarecida,
Quando em devoto sonho se viu posto
O nevado candor no mês de Agosto.
Outra Capela vemos fabricada,
A Xavier ilustre dedicada,
Que o Maldonado Pároco entendido
Este edifício fez agradecido
A Xavier, que foi em sacro alento
Glória da Igreja, do Japão portento.
Outra Capela aqui se reconhece,
Cujo nome a engrandece,
Pois se dedica à Conceição sagrada
Da Virgem pura sempre imaculada,
Que foi por singular e mais fermosa
Sem manchas lua, sem espinhos rosa.
Esta Ilha de Maré, ou de alegria
Que é termo da Bahia,
Tem quase tudo quanto o Brasil todo,
Que de todo o Brasil é breve apodo;
E se algum tempo Citeréia a achara,
Porém tem com Maria verdadeira
Outra Vênus melhor por padroeira.

43 44
BERNARDO VIEIRA RAVASCO Oitavas glosadas ao soneto

1
Iris parlero, abril organizado Esperei, e esperança é morte amarga,
Ramillete de plumas con sentido, E só força de puro amor se atreve
Hybla con alma, irracional florido Em dura ausência a tão pesada carga
Primavera con pies, jardín alado. Que no nome de amor se torna leve:
Nunca me pareceu que de tão larga
Quando en el ayre libre enamorado Esperança tirasse um bem tão breve,
Barbaramente hablavas: oy polido Pois foram as que se foram como o vento
Preso te veo, y en vano divertido Horas breves de meu contentamento.
Con la tema de nunca estar calado.
2
Tu en palacio bien visto, y con cadena! São os gostos de amor imaginados
Quantos la lloran lastima que toco! Mui grandes sempre, e ficam mui pequenos
Si hablas bien ser discreto te condena. Quando por tempo vêm a ser gozados
Porque costuma o bem ser sempre menos:
Porque no buelas, gritas como loco; Nunca me pareceu, gostos passados,
Quexate pues, que de palacio es pena, Que assim vos acabásseis, pelo menos
Quexarse mucho los que buelan poco. Que vos mudásseis em desgraça minha
Nunca me pareceu, quando vos tinha.
Soneto (Diogo Bernardes)
3
Nunca me pareceu, glórias passadas,
Horas breves de meu contentamento,
Que passásseis com o bem que vou seguindo
Nunca me pareceu, quando vos tinha,
Que vos visse mudadas tão asinha Com suspiros, e ais, e com cansadas
Em tão compridos anos de tormento. Lágrimas, que dos olhos vão caindo:
Nunca me pareceu, arrebatadas
As minhas torres, que fundei no vento, Horas, causas do mal, que estou sentindo,
No tempo em que com ter-vos me mantinha,
O vento as levou, que as sustinha:
Que vos visse mudadas tão asinha.
Do mal que me ficou a culpa é minha,
Pois sobre cousas vãs fiz fundamento.
4
Amor com falsas mostras aparece, Nunca me pareceu que tanta glória
Tudo possível faz, tudo assegura, Se convertesse em mal, e que eu o vira;
Deram meus gostos fim; e desta história
Mas sempre no melhor desaparece.
Sempre me lembro, sempre a alma suspira.
Ah triste fado! Ah grave desventura! Se perdera com eles a memória,
Por um pequeno bem, que desfalece, Não me lembraram mais, não os sentira,
Aventurar um bem que sempre dura. Mas ficou-me com ela o sentimento
Em tão compridos anos de tormento.

45 46
5
Nunca me pareceu que me custasse
Tanto alcançar-vos, e depois de ter-vos
Nunca tive receio que chegasse,
Com o tempo vário, o tempo de perder-vos:
Cuidei que tanto bem nunca acabasse,
Não soube no princípio conhecer-vos,
Mas já agora desfez o entendimento
As minhas torres, que fundei no vento.

6
Quando fingia, a tudo assegurava,
De nada me temi, vendo-me posto
Aonde enquanto a alma se elevava
Dava sinal de bem, de glória, e gosto.
Mas quanto mais a vista se empregava
Na falsa luz do Sol, o vi transposto;
Que as falsas causas desta glória minha
O vento as levou, que as sustinha.

7
Mil noutes padeci de ausência dura
Por um só dia, que em amanhecendo,
Logo a sombra senti da noute escura
Que veio antes de tempo anoutecendo.
Quão tarde chega um bem, quão pouco dura,
À vista de meu mal vou conhecendo,
E pois não vi o mal que depois vinha,
Do mal que me ficou a culpa é minha.

8
A culpa minha é, e bem pudera
Culpar do breve tempo a brevidade.
Foi breve aquele, se outro tal viera
Perdera do passado a saudade.
Tão saudoso do bem fique, que dera,
Se minha fora, minha liberdade,
Pelo tornar a ver, mas brado ao vento,
Pois sobre cousas vãs fiz fundamento.

47 48
9 13
Mil lágrimas me custa um desengano Nesta tragédia da vanglória humana
De que me desengana um acidente, Nunca entra o bem, o mal sempre é figura
Que na perda do bem se sente o dano E só com isto enfim nos desengana,
Se não se perde a vida juntamente. Que um voluntário mal nunca tem cura.
Não queira bem quem não quer o desengano, Quem nos leva trás si, quem nos engana
Não há mor mal que o bem que é aparente; A aventurar um bem, que se aventura,
E se é mal grande o mal que bem parece, Se amor é o menor mal a que se oferece
Amor com falsas mostras aparece. Por um pequeno bem, que desfalece.

10 14
Segui Amor aonde me guiava, Por um pequeno bem, que vem aguado
Mostrou-me não sei quê, que inda desejo, Por tão pequena luz, que logo morre,
Mas se era cego como me mostrava, Aventurar um bem, que aventurado
Ou como então não via o que ora vejo! Por tantos passos tanto risco corre:
Vi, e não vi o mal que me esperava, Foi louco o pensamento, mas forçado
Porque quem vai levado de um desejo, Um pensamento meu, que não se corre,
Que amor acende, e já aceso apura, Por glória, que não tem glória segura
Tudo possível faz, tudo assegura. Aventurar um bem que sempre dura.

11
Tudo assegura, tudo facilita,
Impossível por própria natureza,
Com vozes mudas a razão nos grita,
Não queremos ouvir, depois nos pesa.
Esperança adoramos infinita,
Não mais que por seguir a falsa empresa
Que um tesouro de bens nos oferece,
Mas sempre no melhor desaparece.

12
Já passaram por mim estas verdades,
Mas ainda tenho saudade delas;
Não sei que força esta é a ter saudades
De cousas, que não há para que tê-las!
Sai o piloto dentre as tempestades,
E logo torna a dar ao vento as velas;
Deixando pelo mar, terra segura!
Ah triste fado! Ah grave desventura!

49 50
Referências bibliográficas

AMADO, James. Ed. Obras completas de Gregório de Matos:


Crônica do viver baiano seiscentista. Cidade da Bahia:
Janaína, 1969. 7v.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Antologia dos poetas
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Oficina de Antônio Isidoro da Fonseca, 1741 (v.1); Oficina
de Inácio Rodrigues, 1747 (v.2) e 1752 (v.3); Oficina
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MORAIS FILHO, Melo. Parnaso brasileiro. Rio de Janeiro: B.
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OLIVEIRA, Manuel Botelho de. Música do parnasso. Rio de
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TOPA, Francisco. Edição crítica da obra poética de Gregório
de Matos. Porto: Edição do Autor, 1999. 4v.

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