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Capítulo—8
Estratégias
Mediacionais:
Possibilidades de inserção
do psicólogo eseolar/
educacional em abrigos
Célia Vectore
A constatação da importância da estimulação ambiental para o A criança não se limita apenas a ser influenciada pela atuação dos
desenvolvimento global humano, através prioritariamente, do outros sobre ela, mas também é influenciada por todos os que a
conhecimento dos mecanismos de mediação utilizados por adultos ou cercam e determinam com suas características os modos das
crianças mais capazes em suas interações com os pequenos, originada interações empreendidas.
pelo extraordinário trabalho desenvolvido por Vygotsky (1989), O referido autor acentua que ocorre uma transição ecológica
corroborou para o aparecimento nas duas últimas décadas do século sempre que a posição da pessoa é alterada em resultado de uma
passado, de programas visando à implementação, em larga escala, dos mudança de papel, do ambiente ou ambos, sendo que um dos
processos mediacionais em contextos educacionais com diferentes indicadores do desenvolvimento relaciona-se à capacidade como a
comunidades. pessoa percebe seu ambiente e lida com ele. O ambiente ecológico é
Segundo Hundeide (2003), os programas de intervenção entendido como uma série de estruturas concêntricas, denominadas:
mediacional devem ser assumidos pela própria comunidade, a qual microssistema, isto é, o ambiente imediato, no qual a pessoa em
deve aprender a identificar e a lidar com suas necessidades, de desenvolvimento participa; mesossistema, refere-se a um ambiente,
modo que suas práticas propiciem aos mediadores, informações e onde a pessoa pode ou não participar; exossistema, ambiente em que a
estratégias preventivas cruciais, para garantir a sustentabilidade de pessoa não participa, porém é afetada por ele; macrossistema é o mais
seus efeitos em longo prazo no desenvolvimento da criança. amplo dos sistemas, abrange a cultura na qual a pessoa está inserida.
Um desses programas é denominado MISC - Mediational Sem a intenção de traçar um quadro exaustivo e substancial de
Intervention for Sensitizing Caregivers - o qual apoiando-se nos como são organizados os contextos ecológicos considerando o ambiente
pressupostos vygotskianos enfatiza a mediação, como fator propul- de instituições infantis, a título de exemplo, Oliveira-Formosinho (2001,
sor para a aprendizagem e o desenvolvimento mental da criança. O 2002) sugerem que, o microssistema pode ser entendido como o local
outro programa conhecido por APE - Processo de Avaliação e Me- onde a educadora desenvolve as suas práticas com as crianças (contexto
lhoramento da Qualidade na Aprendizagem Pré-Escolar Efetiva - vivencial imediato de caráter profissional); o mesossistema constituiria
fundamenta-se na teoria de Bronfenbrenner (1996), em relação à as interações entre esse local específico e a instituição infantil e o
ecologia do desenvolvimento humano e os contextos de desenvolvi- macrossistema, todos os contextos abrangentes da instituição.
mento. Vale apontar que neste texto tentaremos traçar um panorama Bronfenbrenner salienta que apenas a utilização de um
de tais programas, fazendo uma apresentação de caráter introdutório planejamento transcontextual, inserido no mesossistema, e a avaliação
dos mesmos, com o objetivo de divulgação à comunidade científica dos padrões emergentes de atividade molar tornarão possível a
brasileira, além de refletir sobre a pertinência da utilização de tais identificação das propriedades ecológicas específicas do ambiente
propostas, por psicólogos escolares/educacionais atuantes nas insti- institucional que afetam o curso do desenvolvimento da criança. A
tuições que atendem as crianças e famílias em situação de risco. capacidade de qualquer ambiente - como a creche, a pré-escola, o
abrigo ou o lar - de gerar e sustentar atividades molares e estruturas
interpessoais estáveis depende dos relacionamentos entre aquele
ambiente e outros. Portanto, ao se vislumbrar as possibilidades de
As implicações teóricas oferecimento de serviços de qualidade para a criança pequena, não se
de Bronfenbrenner nas pode desconsiderar a importância que assume a família na consecução
instituições infantis de medidas capazes de promover ou, ao contrário, prejudicar a
interação entre essas duas instituições nas quais, quase sempre, a
Bronfenbrenner (1996) defende que é possível identificar criança está inserida.
uma multiplicidade de influências sobre a criança ao longo do seu
No caso mais específico referente às crianças abrigadas
desenvolvimento (mãe, pai, avós, educadores etc.), sendo que estas
observa-se que nesses ambientes os vínculos familiares não são
influências são bidirecionais e se caracterizam pela reciprocidade.
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Estratégias Mediacionais
avaliar e modificar as variáveis de comportamento dos adultos que para responder a essa mediação, a qual é expressa através de suas
se constituem em condições necessárias e suficientes para a respostas verbais ou não verbais a tal comportamento.
realização de uma adequada interação entre pais e filhos ou ainda A expansão está presente quando o mediador tenta ampliar a
entre educador e educando no seu sentido mais abrangente. compreensão da criança daquilo que está à sua frente, fornecendo
Portanto, tal programa pode ser utilizado tanto com famílias quanto novos subsídios para o que deve ser compreendido. Normalmente
em contextos institucionais mais específicos. ocorre através da explicação, da comparação e do acréscimo de
Parte desse programa já foi adaptado às condições brasileiras novas experiências além das necessárias para o momento.
para a interação mãe-criança e educadora-criança (Vectore & A afetividade diz respeito a toda a energia emocional
Alvarenga, 2004; Vectore & Silva, 1999), procurando identificar os utilizada pelo adulto durante a interação com a criança, levando-a a
comportamentos específicos das mães e das educadoras, que afetam a compreender o significado dos objetos, pessoas, relações e eventos
capacidade cognitiva da criança pequena, especificamente em relação ambientais.
à faixa etária de zero a três anos, de modo a aprender transcendendo as A recompensa ocorre quando os adultos expressam satisfação
experiências concretas do aqui e agora, utilizando-as para desafios com o comportamento das crianças e explicam o porquê de estarem
futuros, ou seja, aguçando seus sentidos, propiciando encadeamentos e satisfeitos, facilitando à criança sentimentos de autocontrole, de
associações entre os eventos quotidianos e também planejando, capacidade e sucesso, além de ampliar a sua disponibilidade para
avaliando e finalmente testando a realidade. explorar ativamente o novo.
É interessante observar que, segundo Klein e Hundeide (1992), A regulação do comportamento ocorre quando o adulto
as crianças que não desenvolvem a capacidade de correlacionar os ajuda a criança a planejar antes de agir, levando-a a se conscientizar
eventos, tendem a perceber o mundo de forma fragmentada e com da possibilidade de "pensar" antes de agir, planejando os passos do
poucas condições de encontrarem significados para aquilo que não é seu comportamento para atingir um objetivo.
percebido diretamente pelos seus sentidos. O Programa MISC inclui tanto componentes estruturados quanto
Tanto os pais quanto outros adultos, que efetivamente tomam desestruturados. O componente estruturado diz respeito ao programa de
conta da criança e que assumem o papel de educadores, podem formação dos mediadores, o qual acontece normalmente em oito
beneficiar-se do Programa MISC, pois aprendem a melhorar suas sessões, após a identificação do critério de mediação mais utilizado pelo
percepções sobre a criança e suas possibilidades de desenvolvimento, adulto, sendo assim organizado:
além de fomentarem em si a representação de bons mediadores,
• Sessão 1 - O que é mediar?
segundo Klein (apud Kunkle, 2003).
• Sessão 2 - Criar os próprios exemplos de mediação.
Os comportamentos que levam a uma boa mediação foram
identificados por Reuven Feuerstein (1980) e descritos em sua • Sessão 3 - Demonstrar a mediação dentro do seu contexto.
teoria sobre a modifícabilidade cognitiva, cujo ponto nevrálgico é o • Sessão 4 - Identificar os critérios mediacionais.
postulado "todo o ser humano é modificável" e para isso deve • Sessão 5 - Conhecer as muitas possibilidades de mediação.
contar com um bom mediador. • Sessão 6 - Testar as habilidades mediacionais.
Klein (1996a, 1996b) descreve cinco comportamentos básicos • Sessão 7 - A mediação junto às populações de "risco".
numa mediação de qualidade, ou seja, a focalização, a expansão, a • Sessão 8 - Identificar a mediação nas interações adulto-
afetividade, a recompensa e a regulação do comportamento. criança.
A. focalização ocorre quando o mediador assegura-se de que a O componente desestruturado está ligado às interpretações
criança está direcionando a atenção (focalizando) em algo que está ao culturais, que vão organizar os critérios de mediação em cada população
seu redor e que deve ser a ela ensinado. Deve estar clara a indicação da a ser trabalhada e dão suporte ao programa propriamente dito. Portanto,
intencionalidade do adulto para mediar e a reciprocidade da criança nas sessões são utilizadas as experiências vivenciadas pelo próprio
Célia Vectore Estratégias Mediacionais
ca, espiritual ou, muito provavelmente, uma mistura de to- com valor próprio) e a compreensão empática (quando o educador é
das elas (Pascal & Bertram, 1999, p. 23). capaz de se colocar no lugar do outro). O conceito de empenho
A escala de envolvimento da criança de Laevers possui dois aborda este conjunto de características que sinalizam a natureza da
componentes: uma lista de indicadores característicos de um relação entre o adulto e a criança.
comportamento de envolvimento e os níveis que são apresentados Assim, baseando-se nos estudos de Rogers, Ferre Laevers (1993)
numa escala de cinco pontos. Os indicadores de envolvimento que o identificou três categorias no comportamento do adulto, que são:
autor considera são: concentração, energia, complexidade e • Sensibilidade: a atenção e cuidado que o adulto demonstra ter
criatividade, expressão facial e postura, persistência, precisão, para com os sentimentos e bem-estar emocional da criança,
tempo de reação, linguagem e satisfação. Estes indicadores são incluem também sinceridade, empatia, capacidade de
meios para uma melhor compreensão do observador, ou seja, resposta e afetividade.
aspectos que permitem-no apreciar o envolvimento da criança. Os • Estimulação: o modo como o adulto concretiza a sua
níveis são assim classificados: intervenção no processo de aprendizagem e o conteúdo
1. Sem atividade; dessa intervenção.
2. Atividade interrompida freqüentemente; • Autonomia: o grau de liberdade que o adulto concede à criança
para experimentar, emitir juízos, escolher atividades e
3. Atividade quase contínua;
expressar idéias e opiniões. Engloba também o modo como o
4. Atividade contínua com momentos de grande intensidade; adulto lida com os conflitos, regras e problemas de
5. Atividade intensa prolongada. comportamento.
É interessante observar que para a ocorrência de envolvimento Esta escala, cujo formato é de uma escala de cinco pontos, é
é necessário que a criança atue na zona de desenvolvimento proximal, utilizada para observar os educadores e outros adultos nos momentos
onde a solução de problemas só é alcançada sob orientação de um de interação com as crianças, possibilitando a caracterização dos
mediador (Vygotsky, 1989). estilos educativos mais comuns num determinado contexto. É assim
Outro aspecto de fundamental importância, quando se destaca a constituída:
preocupação com a qualidade dos serviços oferecidos às crianças, é
considerar a disponibilidade do adulto para fomentar o desenvolvimento • Ponto 5: representa um estilo de empenho total.
infantil. Uma oportuna revisão realizada por Spodek & Brown (1996) a • Ponto 4: representa um estilo predominante de empenho,
respeito dos modelos curriculares adotados na educação da criança mas com algumas atitudes de falta de empenho.
pequena permite observar que há uma correlação direta entre ensino de • Ponto 3: representa um estilo em que não predominam
qualidade e certas qualidades atitudinais do educador. nem as atitudes de empenho, nem as de falta de empenho.
O projeto APE reconhece a correlação acima apontada ao • Ponto 2: representa um estilo, principalmente de falta de
considerar a Escala de Empenho do Adulto. Esta escala foi empenho, porém é possível observar algumas atitudes de
construída para permitir uma avaliação da eficácia do processo de empenho.
ensino desenvolvido em instituições infantis, tendo sido originada no • Ponto 1: representa um estilo de ausência total de empenho.
trabalho de Carl Rogers (1983), que identificou algumas das E quando não há como avaliar o comportamento do adulto
qualidades facilitadoras da aprendizagem, como: a sinceridade e a em qualquer uma dessas categorias de ação, há a opção NP
autenticidade (quando o educador se apresenta tal como é, e não referente à ausência de comportamentos do educador em relação à
como uma fachada); a aceitação, a valorização e a confiança (quando criança, ou seja, o educador realiza outros serviços não ligados
o educador aceita, valoriza o aprendiz e confia nele enquanto pessoa inteiramente à criança.
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a efetiva capacidade da instituição nos moldes atuais de tornar-se Os programas acima mencionados devem, por meio da
promotora de desenvolvimento, ou seja, capaz de aferir um serviço discussão e compreensão dos conhecimentos científicos, capacitar
de qualidade às famílias e às crianças sob os seus cuidados, o mediador, seja ele o educador ou a família, na superação dos
constituem-se em incômodas dúvidas que nos assolam e desafiam o conceitos espontâneos (ruptura com a forma de pensamento e ação
nosso conhecimento na busca de um atendimento capaz de garantir, próprios do cotidiano), de modo que possa atingir um novo patamar
pelo menos minimamente, um adequado acolhimento da criança de interações mediacionais, redimensionado através de:
em um momento tão adverso de sua vida.
a. Incremento de competências técnicas e didáticas;
O abrigamento da criança em idade tão tenra traz em si uma
grande responsabilidade por parte de quem efetivamente se b. Atitudes, valores e comportamentos (ligados ao conheci-
responsabilizará por esse ser humano em desenvolvimento, mento do desenvolvimento infantil numa perspectiva holís-
gerando necessidades como a organização da instituição para o tica e à ética profissional);
acolhimento e o aflorar de vínculos estáveis, além da capacitação e c. Capacidades relacionais e colaborativas (superação da
da sensibilização de seus profissionais sobre a importância do solidão profissional e dos sentimentos de impotência);
trabalho ali desenvolvido e do impacto dessas experiências na vida d. Capacidades de organização e gestão institucional.
das crianças, o que torna desafiadora a intervenção do psicólogo
inserido em tal contexto educativo. A interação da tríade instituição - família - comunidade é
vital em propostas dessa natureza, considerando a importância
Por outro lado, a possibilidade de garantir a adesão e o
desses três contextos como fonte de conhecimento e formação para
envolvimento dos pais, para que não desistam de seus filhos e
construam mecanismos para trazer a criança de volta para casa é um o desenvolvimento humano.
outro desafio a exigir competência e aprimoramento profissional Desse modo, é de fundamental importância, num primeiro
contínuo. Conforme salienta Arola (2000, p. 95), não podemos momento, a clarificação do conceito de criança refletido nas práticas
esquecer que o foco da intervenção é a família e não a criança, mesmo institucionais. Numa instituição alicerçada nos parâmetros de
quando os filhos encontram-se abrigados. qualidade, a criança é vista como sujeito de direitos, ou seja, direito a
Assim, com o intuito de iniciar a discussão sobre possíveis ser educada de forma que alcance o seu pleno desenvolvimento, além
modos de atendimento em abrigos, os programas aqui apresentados, de ser competente, rica e potente (Dahlberg, Moss & Pence, 2003), o
desde que devidamente adaptados ao contexto em questão, poderão que significa a possibilidade de investir na criança enquanto
subsidiar as práticas do profissional da psicologia escolar/educacional. promotora de sua própria cultura e não apenas reprodutora das
Observa-se que tanto o Programa MISC quanto o Projeto APE práticas sociais já estabelecidas pelos adultos e assim, enriquecer as
lançam luz em um ponto pouco discutido em relação aos procedi- experiências vivenciadas por ela.
mentos de intervenção, representado pelo fomento às dimensões Em síntese, a qualidade do atendimento à criança abrigada deve
simbólicas e subjetivas do indivíduo em formação. Como ambos os estar alicerçada em vários patamares, como a existência de políticas
programas contêm elementos desestruturados que devem ser consi- públicas eficientes, a consolidação de um projeto educacional visando
derados ou estruturados a partir das necessidades e particularidades à capacitação dessas instituições e também na necessidade de
culturais da população a ser atendida, tem-se que o conhecimento e a compreender que a utilização de estratégias mediacionais pode ser
escuta das subjetividades parecem propiciar uma melhor adesão do fundamental para a promoção do desenvolvimento no contexto da
participante em relação ao que deve ser implementado. Olivei- instituição, devido à possibilidade de enriquecimento das estimulações
ra-Formosinho (2001) considera tais escutas um componente essen- ambientais, através das interações estabelecidas com os pequenos,
cial dos processos formativos, devido às possibilidades de libertação advindas de bons mediadores.
das angústias e do stress profissional. A possibilidade de conhecer profundamente os diferentes
contextos responsáveis pelo desenvolvimento da criança e de suas
Célia Vectore
Estratégias Mediacionais