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O DRAGÃO VERMELHO

Sebastião Carvalho

Coincidência?
Não!

“O acaso não existe!” — já é para muitos uma verdade indiscutível. Portanto, a leitura
do Tao-Te-King que fiz de manhã e, agora, a escolha do I-King para este exercício de
criatividade, tem fortíssima conexão entre si... E acredito que o fato encerre algum
propósito oculto!...
Estes pensamentos povoavam minha imaginação, ao tentar expressar o que pensava de
uma carta do Oráculo Chinês, quando, numa pausa, olhei de soslaio para uma
companheira de turma. Ela também, após alguns momentos contemplando a sua
pequena carta, deixava a caneta deslizar sobre a brancura imaculada do papel. Suas
letras azuis iam formando as palavras que os pensamentos faziam brotar... Mas eis
que, de repente, ela pára!... Fita mais uma vez a carta colorida e, voltando-se para mim,
pergunta:
„ Por que demorou tanto, KUNG-CHI?
Não respondi. Limitei-me a fitá-la com um ar entre inquiridor e surpreso. Fazia-
me de desentendido para não quebrar o encanto do momento! Resolvi deixar a coisa
fluir...
Na verdade, eu tinha uma tarefa pela frente: interpretar a carta cujo simbolismo
era MONTANHA SOBRE FOGO, que escolhi dentre tantas outras.
O ambiente era propício. Todos concentrados em objetivos análogos; música
apropriada, composta por artistas que se inspiraram no Oráculo para produzi-la;
silencio e tranqüilidade.
Concentrei-me na estampa: a Montanha Azul avultava, imponente, sobre uma
Planície Extensa, iluminada por uma Fogueira Crepitante. Ouvi a Montanha. Ela me
disse que não estava ali para sufocar mas sim para ocultar o Fogo Interior, de modo
que se revele apenas no momento certo. Disse ainda que, para nela penetrar e chegar
aos tesouros recônditos de seu interior, antes é preciso subir aos seus píncaros e, lá de
cima vislumbrando horizontes mais largos, dar asas à incontida ânsia de Perfeição!...
Voltei-me para a Fogueira Crepitante, que iluminava a Planície Extensa com
suas ardentes labaredas, e ela me disse: “Eu Sou a chama que arde no coração de cada
homem e na essência de cada estrela. Eu Sou Vida, e o que dá a Vida. Eu Sou todo
prazer e êxtase e embriagues do mais oculto sentido. Sou a Serpente que dá
conhecimento e prazer e glória, e anima os corações dos homens. Portanto, animai-vos,
festejai, rejubilai!”.
Os dias que se seguiram foram de meditação sobre o significado profundo das
duas mensagens, que na verdade se concentram numa só. Tentei chegar a um resumo,
mas achei grande dificuldade! Em tudo que escrevia parecia que faltava ou sobrava
alguma coisa!...
Na tarde anterior ao próximo encontro, lembrei-me da mulher que me fez
aquela insólita indagação sobre haver demorado a aparecer... ou reaparecer! Resolvi
investigar. Seria uma pesquisa metafísica, com certeza!...
Acomodando-me numa confortável poltrona, iniciei os procedimentos
necessários. Relaxando o corpo físico e os demais veículos, concentrei o pensamento
naquele episódio e no nome por ela pronunciado: KUNG-CHI... KUNG-CHI... KUNG-CHI…
A mente redemoinhou numa espiral vertiginosa!... Imagens desencontradas
perpassaram por minha memória... até que tudo se fixou numa imagem nítida e vívida
como a mais palpável realidade: estava eu na China, caminhando numa estreita e
movimentada rua, cheia de gente, carroças e animais, em direção a uma construção alta
e imponente: um belo templo oriental, com um poderoso Dragão Vermelho na entrada!
Penetrei no templo com um forte sentimento devocional. Caminhava
resolutamente, como alguém que sabia o que devia fazer! Logo uma voz se fez ouvir:
“Venha, Kung-Chi, está na hora da celebração! Depressa!”
Era um dos sacerdotes do templo. Observei que usávamos roupas exatamente
iguais!
Entrando com o sacerdote por uma passagem ao lado do altar, encontrei-me
numa sala ampla, cheia de utensílios ritualísticos e de pessoas diferentemente trajadas.
Uma bela sacerdotisa, toda paramentada, veio ao meu encontro, pressurosa. Ao fitá-la,
me assustei: era a mesma pessoa que me havia reconhecido há uma semana!
Sempre me emociono ao relembrar essa visão maravilhosa que, como um filme,
contou a história dessa encarnação na longínqua China. Emociono-me ao reviver a
época de MEI-LEE, esposa e sacerdotisa, com a qual realizei tantos rituais e vivi um
verdadeiro amor.
Mas nem tudo são amáveis recordações!... Houve graves problemas naquela
época de lutas políticas e religiosas, de fanatismos exacerbados e paixões desenfreadas,
de ódios e violência!
Estávamos sob ameaça de um tirano, que não aceitava nossa posição de não-
resistência, oposta à violência e à ganância! Várias ameaças haviam sido feitas aos
seguidores de nossa religião. O medo imperava na cidade. Eu procurava estar ao lado
de minha esposa a maior parte do tempo, para protege-la contra qualquer investida de
malfeitores, tão em voga naqueles dias!...
Numa tarde, bateram à nossa porta, pedindo ajuda para um casal que estava em
dificuldades com seu reservatório de água. Fui ajudar, dizendo que não me demoraria.
Lembro-me perfeitamente que MEI-LEE ficou apreensiva e pensou em deter-me.
Todavia, não deixou que o que considerava egoísmo preponderasse. Despedimo-nos
com um beijo amoroso. Foi o último!
Quando retornei à casa, cansado e tendo demorado mais do que calculara, notei
algo diferente!... A porta escancarada!
Precipitei-me para o interior da casa e, chegando ao quarto, deparei-me com
MEI-LEE estirada ao chão, um filete de sangue no canto da boca, o rosto pálido, os
olhos semicerrados!
Horrorizado, gritei, sacudi-a, chamei-a freneticamente! Finalmente, ela, abrindo
os olhos com esforço, fitou-me com um olhar profundo, cheio de dor, e com voz
sussurrante, perguntou:

„ Por que demorou tanto, KUNG-CHI?

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