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Habermas e a reconstrução: Sobre a categoria central da teoria crítica habermasiana
Habermas e a reconstrução: Sobre a categoria central da teoria crítica habermasiana
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Ebook341 pages7 hours

Habermas e a reconstrução: Sobre a categoria central da teoria crítica habermasiana

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Habermas é bastante conhecido pela ideia de ação comunicativa. E, de fato, sua maneira de pensar a emancipação se confunde em grande medida com a noção de racionalidade comunicativa. Mas não se resume a ela. Para alcançar seus objetivos críticos, o filósofo busca produzir uma teoria da racionalidade, e não apenas uma teoria da racionalidade comunicativa. É por isso que ele mesmo afirma que sua Teoria Crítica da Sociedade consiste em uma "teoria reconstrutiva da sociedade". Longe de ser um mero recurso "metodológico", a "reconstrução" é a categoria estruturante de seu projeto. Por meio dela, ele pretende tanto identificar os potenciais de emancipação inscritos na realidade social de nosso tempo, como criticar e incorporar os resultados das teorias sociais não críticas, das teorias tradicionais.
Assim, é objetivo desse livro apresentar essa noção central em todos os seus aspectos e em todas as fases do percurso de Habermas.
LanguagePortuguês
Release dateNov 10, 2020
ISBN9786556500485
Habermas e a reconstrução: Sobre a categoria central da teoria crítica habermasiana

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    Habermas e a reconstrução - Marcos Nobre (org.)

    HABERMAS E A RECONSTRUÇÃO

    SOBRE A CATEGORIA CENTRAL DA TEORIA CRÍTICA HABERMASIANA

    MARCOS NOBRE

    LUIZ REPA

    (orgs.)

    >>

    SUMÁRIO

    BREVE APRESENTAÇÃO

    Marcos Nobre e Luiz Repa

    INTRODUÇÃO – RECONSTRUINDO HABERMAS: ETAPAS E SENTIDO DE UM PERCURSO

    Marcos Nobre e Luiz Repa

    A ideia de reconstrução

    A origem do conceito

    Ciências reconstrutivas

    Reconstrução da história da teoria

    Reconstrução e procedimentalismo

    Conclusão e perspectivas

    1. A RECONSTRUÇÃO DA HISTÓRIA DA TEORIA: OBSERVAÇÕES SOBRE UM PROCEDIMENTO DA TEORIA DA AÇÃO COMUNICATIVA

    Luiz Repa

    2. TEORIA CRÍTICA DA SOCIEDADE E EVOLUÇÃO SOCIAL

    Clodomiro José Bannwart Júnior

    A construção de um conceito

    Evolução social como base da teoria da sociedade

    Homologias ontofilogenéticas

    Aprendizagem como condição de possibilidade da evolução social

    3. DA ÉTICA DO DISCURSO À TEORIA DO DISCURSO

    Angelo Vitório Cenci

    Introdução

    O programa inicial da ética do discurso habermasiana em contraste com a variante ético-discursiva de Apel

    A versão habermasiana do argumento pragmático-transcendental e a derivação do princípio (U)

    A crítica de Habermas à arquitetônica apeliana das partes A e B da ética

    A reformulação do conceito de razão prática e o aprofundamento da diferenciação dos discursos

    O princípio do discurso neutro em relação à moral e ao direito

    À guisa de conclusão

    4. CRÍTICA E RECONSTRUÇÃO EM DIREITO E DEMOCRACIA

    Felipe Gonçalves Silva e Rúrion Melo

    O direito como meio de integração social

    Reconstrução interna e externa

    O paradigma procedimental

    Considerações finais

    5. CONSTRUTIVISMO NÃO METAFÍSICO E RECONSTRUÇÃO PÓS-METAFÍSICA: O DEBATE RAWLS-HABERMAS

    Denilson Luís Werle

    Rawls e Habermas: Uma disputa em família?

    O construtivismo político não metafísico de Rawls

    O conceito de autonomia e a ideia de razão pública

    A reconstrução pós-metafísica e o uso público da razão

    Observações finais

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    NOTAS

    SOBRE OS AUTORES

    DOS MESMOS AUTORES

    REDES SOCIAIS

    CRÉDITOS

    BREVE APRESENTAÇÃO

    Marcos Nobre

    Luiz Repa

    Desde pelo menos o início dos anos 1970, Habermas considera que sua teoria crítica da sociedade consiste em uma teoria reconstrutiva da sociedade. Todo o percurso intelectual de Habermas, a partir de então até os seus últimos escritos, é caracterizado pela centralidade da ideia de reconstrução. Trata-se de um operador teórico que permite realizar as duas tarefas fundamentais da teoria crítica: identificar os potenciais de emancipação inscritos na realidade social presente, ao mesmo tempo em que critica e incorpora os resultados das teorias sociais não críticas, das teorias tradicionais. Isso quer dizer também que há uma estreita colaboração entre os procedimentos reconstrutivos e a apresentação de um diagnóstico do tempo presente.

    E, no entanto, apesar da explícita centralidade que Habermas atribui à reconstrução, não é comum encontrar trabalhos que se debrucem mais detidamente sobre essa categoria. Com algumas exceções dignas de nota, o problema da reconstrução costuma aparecer de maneira lateral e marginal nos trabalhos de interpretação de Habermas. De certa forma, é compreensível que o problema em toda a sua amplitude seja, no mais das vezes, deixado de lado quando se trata de examinar um aspecto ou uma fase específica do desenvolvimento intelectual de Habermas. De fato, o sentido mesmo de reconstrução se altera conforme se modifica o diagnóstico de tempo do autor; de fato, a posição que a categoria ocupa na armação conceitual mais geral do pensamento de Habermas se altera conforme os elementos teóricos fundamentais são arranjados e rearranjados de diferentes maneiras ao longo das décadas a partir de 1970.

    A proposta deste livro é acompanhar todas essas mudanças ao longo do percurso intelectual de Habermas, tendo como fio condutor a noção de reconstrução. O pressuposto é o de que, se mudanças há – e muitas, e importantes –, há também algumas características essenciais do projeto reconstrutivo que se mantêm. E essa, por assim dizer, constância no interior da mudança não está apenas no nome reconstrução, em uma referência meramente verbal. A reconstrução é, de fato, um projeto teórico e é assim que, a nosso ver, deve ser apresentada. No fundo, a tese deste livro é a de que, sem a referência a esse projeto reconstrutivo, seria mesmo impossível apresentar o percurso intelectual de Habermas em sua unidade e coerência.

    Esse projeto reconstrutivo pode ser caracterizado em sua generalidade e em sua visada mais fundamental como uma tentativa de desvendar na reprodução da sociedade toda os elementos de uma racionalidade existente, mas cujos potenciais de pleno desenvolvimento ainda não foram suficientemente explorados. Essa racionalidade existente na vida social concreta se sustenta em estruturas profundas, aquelas capazes de gerar os objetos simbólicos que tomamos como parâmetros de ação e de pensamento. Em outras palavras, o projeto reconstrutivo pretende apresentar as regras, as estruturas, os critérios de avaliação e os processos sociais em que objetos simbólicos surgem e ganham sentido social. Reconstruir não significa reproduzir o que é factualmente, mas refletir sobre as regras que têm de ser supostas para que seja possível a própria compreensão do sentido e mesmo do não sentido do que é construído social e simbolicamente. Ao mesmo tempo, são regras, estruturas e processos que mostram potenciais de emancipação, possibilidades melhores de desenvolvimento, que não podem ser reduzidos à realidade existente, à facticidade de contextos que podem significar, ao contrário, o bloqueio dessas potencialidades emancipatórias.

    Uma vez, porém, que essas potencialidades emancipatórias estão ligadas, direta ou indiretamente, ao conceito de ação comunicativa, cabe justificar preliminarmente por que adotamos a ideia de reconstrução como a mais adequada para caracterizar o projeto crítico habermasiano, e não esse mesmo conceito de ação comunicativa ou o de racionalidade comunicativa. Há duas razões de fundo para isso. A primeira consiste em afirmar que, se de fato os potenciais emancipatórios têm sua sede na ação comunicativa e é nesta que é preciso encontrar o fulcro principal da reprodução da sociedade, o projeto teórico de Habermas vai além da teoria da ação como tal, ou mesmo da teoria da racionalidade comunicativa como tal. Trata-se, antes, de mostrar como a teoria projeta um conceito de razão em que diversas formas de racionalidade se diferenciam, complementam ou chocam, de modo que a própria racionalidade comunicativa se torne um momento e uma dimensão, sempre fundamental é verdade, de uma diferenciação da razão, a qual precisaria ser decifrada em sua lógica e em sua dinâmica. E nisso consiste, em grande parte, a ideia mesma de reconstrução, como se verá ao longo deste livro.

    Soma-se a isso, em segundo lugar, que não se poderia falar de emancipação e de potencialidades de emancipação se, por exemplo, a teoria da racionalidade comunicativa fosse estabelecida de maneira apenas construtiva ou de maneira apenas a priori, isto é, se ela não pudesse ser de fato apreendida como efetividade da própria realidade social, a qual se caracteriza também por bloqueios ao desdobramento dessa mesma racionalidade. Assim, se a teoria da ação comunicativa não for ela mesma reconstrutiva, ela não pode desempenhar um papel crítico, no sentido de teoria crítica, no conjunto da obra habermasiana. O procedimento reconstrutivo é a resposta de Habermas à ideia de emancipação que caracteriza o campo crítico, de modo que os principais componentes da teoria reconstrutiva da sociedade podem ganhar seu sentido à luz dessa ideia, inclusive o conceito de ação e de racionalidade comunicativa.

    Algo semelhante se aplica à articulação da teoria crítica com a teoria tradicional, que, como tentaremos mostrar já na introdução, caracteriza de uma maneira ou de outra todos os modelos críticos desenvolvidos desde Marx. Ou seja, com seu conceito de reconstrução, Habermas pretende mostrar como as teorias tradicionais podem ser articuladas no interior de uma teoria crítica como teoria reconstrutiva, seja diretamente, por meio de ciências reconstrutivas, seja indiretamente, por meio de uma reconstrução da história da teoria social. Também aqui a ideia de reconstrução permite satisfazer um princípio da teoria crítica, o que não poderia ser alcançado simplesmente por meio do objeto da teoria social. Ao contrário, tal objeto, a ação comunicativa no caso, só poderá ser apreendido em toda a sua significação se for possível uma articulação de diversas teorias tradicionais por meio da ideia de reconstrução. Assim, só é possível dizer que a ação comunicativa e a racionalidade comunicativa são conceitos centrais da teoria da sociedade de Habermas, na medida em que essa teoria deixa de ser tomada como teoria crítica – ou seja, deixa de ser tomada como aquilo que corresponde, em última instância, à autocompreensão de Habermas. A centralidade cabe, nesse sentido, à categoria de reconstrução. É esse pressuposto, assim justificado, que está na base da nossa exposição sobre a evolução do projeto habermasiano.

    O vínculo da ideia de reconstrução com os princípios da teoria crítica nos permite afastar também, ainda que de maneira, por assim dizer, vestibular, um possível mal-entendido acerca dessa ideia, pois não se trata, aqui, de reduzir os procedimentos reconstrutivos a meros recursos metodológicos, que muito pouco depõem sobre a forma e a finalidade da teoria. A reconstrução é certamente também um método, mas esse método não pode ser entendido como um conjunto de expedientes metodológicos, no limite substituíveis por outros. A forma metódica de como se apreende a realidade está indissoluvelmente ligada às potencialidades melhores dessa realidade e aos seus bloqueios e, assim, ao que permite o conhecimento mais amplo possível dessa realidade – o que, ao que tudo indica, as metodologias tradicionais da teoria social desaprovaram no curso de sua especialização.

    O que nos propusemos neste livro foi investigar os diferentes aspectos, etapas e percalços desse projeto teórico, cuja centralidade cabe à categoria de reconstrução. E isso do final dos anos 1960 até a última fase da obra, que se desenvolve a partir do marco representado por Direito e democracia, de 1992, passando pela etapa fundamental que foi a publicação da Teoria da ação comunicativa, de 1981. Isso significa que também não foram negligenciados aqui dois outros momentos e elementos decisivos, mas normalmente marginais, nos trabalhos sobre Habermas: tanto sua teoria da evolução social como sua ética do discurso, que evolui nos anos 1990 para uma teoria do discurso. Dois momentos da obra de Habermas que nascem atrelados ao projeto dos anos 1970 da criação e do desenvolvimento das ciências reconstrutivas, mas que permanecem como elementos sistemáticos de seu pensamento mesmo depois que o projeto dos anos 1970 deixa de ser levado adiante tal como inicialmente formulado. Também não quisemos perder a oportunidade de confrontar o conjunto desse percurso esquadrinhado com a proposta de outro monumento teórico decisivo da segunda metade do século XX, a proposta construtivista de John Rawls, a fim de, por contraste, mostrar a originalidade e a importância do empreendimento habermasiano.

    Mesmo esta breve apresentação já é suficiente para mostrar a complexidade da tarefa, pois Habermas, mudando a configuração de seu projeto reconstrutivo em um sentido importante a cada vez, não realiza ele mesmo o trabalho de reposicionar as peças de sua teoria para mostrar como a unidade de seu pensamento ficou preservada a cada reconfiguração sistemática. Essa tarefa cabe a quem se propõe comentar a obra, e não nos esquivamos dela. Mas, ao mesmo tempo, também não nos esquivamos de mostrar as tensões, dificuldades e possíveis incongruências presentes nesse percurso. Foi também por essa razão que, embora se trate de uma preocupação presente em cada um dos capítulos, procuramos logo no primeiro sistematizar tanto os diferentes elementos de continuidade como as várias rupturas observáveis no período de mais de quatro décadas que examinamos ao longo do livro. Quando não por outra razão, com o intuito de mostrar que o pensamento de Habermas, como toda proposta da teoria crítica, mantém-se vivo, porque muda com o seu tempo, exigência de que não pode recuar por temor da mera incongruência.

    O Programa de Pós-graduação em Filosofia da Unicamp financiou o encontro em que, em maio de 2011, foram exaustivamente discutidas as primeiras versões dos capítulos aqui apresentados. Depois disso, deu ainda apoio financeiro para a publicação. Apesar dos muitos acidentes de percurso, Sônia Cardoso não mediu esforços para que todo esse trabalho pudesse se realizar nas melhores condições possíveis. Tivemos o privilégio de poder contar em todas as etapas do projeto com a leitura atenta e com a crítica aberta, franca e propositiva de Ricardo Terra. Sem o suporte e o apoio da Fapesp, por meio da linha de auxílio a projetos temáticos, não teríamos tido as condições materiais e intelectuais necessárias para constituir um grupo de pesquisa capaz de levar a cabo uma tarefa como a que apresentamos neste livro. Desde que este livro era apenas um esboço de ideia, Adriano Januário se desdobrou para tornar realidade cada uma de suas etapas. A todas essas pessoas e instituições, o nosso profundo agradecimento.

    INTRODUÇÃO –

    RECONSTRUINDO HABERMAS: ETAPAS E SENTIDO DE UM PERCURSO

    Marcos Nobre

    Luiz Repa

    Desde o ensaio inaugural de Horkheimer, Teoria tradicional e teoria crítica, de 1937, a teoria crítica não pode ser apresentada independentemente da teoria tradicional. E não apenas porque Horkheimer começa sua exposição pela teoria tradicional, apresentando a teoria crítica como aquela de capaz superar a parcialidade que seria própria das contribuições tradicionais, mas, principalmente, porque a formulação em cada momento de um diagnóstico do tempo presente depende da teoria tradicional em um sentido não trivial. Mesmo se a perspectiva crítica for a única orientada para e pela emancipação, ela é dependente da teoria tradicional para produzir um diagnóstico do tempo presente que permita entrever as potencialidades e os obstáculos para a própria emancipação. É nesse sentido que cada constelação determinada desses elementos pode ser chamada de um modelo crítico,[1] o que quer dizer que é preciso esclarecer o que significa, nesse caso, depender em um sentido não trivial.

    Trivial seria aqui circunscrever o campo da teoria crítica apenas negativamente em relação à teoria tradicional, de tal maneira que a dependência entre as duas perspectivas fosse caracterizada, sem mais, como uma relação de oposição. Acontece que a teoria crítica também se caracteriza por pretender dar à teoria tradicional seu sentido completo e íntegro, o que só pode ser conseguido com base na consideração das condições em que se produz conhecimento, do papel desse conhecimento na sociedade atual e da compreensão das relações sociais que estruturam a dominação vigente.

    No entanto, não é possível esquecer que a teoria crítica é marginal relativamente à maneira dominante de produção de conhecimento que caracteriza a teoria tradicional. Isso quer dizer também que o conhecimento crítico depende da massa de conhecimento produzido de maneira tradicional para poder elaborar seu diagnóstico do tempo com suficiente complexidade e profundidade. Esse, digamos, parasitismo da teoria crítica relativamente à produção da teoria tradicional é possível, por sua vez, porque se pressupõe que as contribuições tradicionais não sejam falsas, mas parciais, isto é, passíveis de integração de uma perspectiva mais ampla, que lhes dê um novo sentido, um sentido crítico.

    De modo que, se o vínculo conceitual entre os dois termos é interno, o desenvolvimento da teoria crítica exige a apresentação do estado da arte da teoria tradicional em cada momento. E essa exigência tem consequências importantes para a configuração do campo crítico. Significa, em primeiro lugar, que a caracterização de um modelo determinado de teoria crítica se faz também pela relação que estabelece com a teoria tradicional. Uma relação que pode se caracterizar, por exemplo, como dialética, como é o caso da teoria de Adorno. Ou, em outro caso, como uma relação de complementaridade entre os dois termos, como é o caso da teoria da ação comunicativa de Habermas.

    Em segundo lugar, a própria articulação entre as diferentes disciplinas, a constelação disciplinar própria da teoria crítica em cada um de seus diferentes modelos, depende de um diagnóstico do tempo que tem de abranger igualmente a situação disciplinar no campo tradicional. A especialização do conhecimento, por exemplo, marca característica das contribuições tradicionais desde pelo menos o século XX, pode ser criticamente incorporada ao trabalho crítico, como no modelo crítico do Horkheimer dos anos 1930. Ou pode ser rejeitada como intrinsecamente reificante, como é o caso do modelo crítico do Lukács de História e consciência de classe, publicado em 1923.[2] Em outro registro ainda, a própria especialização disciplinar pode, por exemplo, ser criticamente incorporada na forma de uma constelação de disciplinas configurada segundo um modelo interdisciplinar como o do já mencionado modelo crítico do Horkheimer da década de 1930. E este, por sua vez, pode variar quanto à relação interna entre as disciplinas, como se pode observar, por exemplo, na Teoria da ação comunicativa de Habermas, de 1981, em que a sociologia desempenha o papel de centro de referência da constelação interdisciplinar, ao passo que, no modelo inaugural de Horkheimer da década de 1930, a economia política ocupava a posição central.

    Em terceiro lugar, podem-se ainda classificar os diferentes modelos de teoria crítica conforme caracterizem a atividade crítica como essencialmente crítica da teoria tradicional ou, além disso, como algo que exige a realização de investigações empíricas próprias, identificando lacunas e ausências nas contribuições tradicionais que só poderiam ser supridas por pesquisas orientadas criticamente. Neste último caso, com a tarefa nada trivial da criação de métodos e técnicas capazes de incorporar a perspectiva da emancipação em sua lógica. Esse foi o caso do modelo crítico de Horkheimer na década de 1930 e também o modelo crítico de Habermas pelo menos até a década de 1970, por exemplo, com a proposta do desenvolvimento das ciências reconstrutivas.

    No caso da vertente da teoria crítica inaugurada pelos escritos de Horkheimer na década de 1930, o modelo inaugural de Marx da crítica da economia política se firma como centro da atividade teórica. Mas, além disso – e contrariamente, nesse aspecto, ao modelo lukacsiano –, Horkheimer introduz a ideia de uma colaboração interdisciplinar, em que a especialização do conhecimento é explorada em seus potenciais teórico-críticos e não afastada liminarmente como intrinsecamente reificante. Ou seja, diferentemente do modelo crítico do Lukács de História e consciência de classe, Horkheimer vê na exploração crítica da especialização uma necessidade, em acordo com a ideia de sempre criticar o estado mais avançado da teoria tradicional e não em rejeitar sua forma mesma de desenvolvimento.

    O modelo do materialismo interdisciplinar da década de 1930 não se limitou à crítica das contribuições tradicionais, buscou também desenvolver suas próprias pesquisas empíricas, criticamente orientadas. Foi assim que se apresentou como uma composição entre o momento de crítica imanente da teoria tradicional e o momento de investigações empíricas autônomas. Também nisso a vertente inaugurada por Horkheimer seguiu o modelo de Marx. Ao longo de O Capital, Marx em muitos momentos teve também de suprir lacunas da teoria tradicional para poder prosseguir na apresentação/crítica do sistema capitalista. Ou seja, em muitos momentos, Marx teve de produzir ele mesmo o conhecimento faltante à economia política para alcançar uma apresentação global do sistema capitalista que fosse ao mesmo tempo a sua crítica.

    Isso parece particularmente verdadeiro no que diz respeito ao Livro III de O Capital, momento em que a economia política mostra sua mais grave insuficiência. É o que explicita Marx em Teorias da mais-valia a propósito do método de Ricardo – que "parte da determinação da grandeza de valor da mercadoria por meio do tempo de trabalho e investiga então se as demais relações econômicas contradizem essa determinação do valor, ou o quanto modificam a mesma – por meio da contraposição entre a justificação histórica da maneira de proceder de Ricardo (isto é, sua necessidade científica na história da economia) e sua insuficiência científica". Como diz o texto:

    Vê-se à primeira olhada tanto a justificação histórica dessa maneira de proceder, sua necessidade científica na história da economia, mas, ao mesmo tempo, também sua insuficiência científica, uma insuficiência que não se mostra apenas (formalmente) na maneira de apresentação, mas que conduz a resultados equivocados, porque salta elos intermediários necessários e procura provar a congruência das categorias econômicas entre si de maneira imediata. (Marx 1978, p. 816)

    Não por acaso, também o próprio modelo de Teorias da mais-valia reaparecerá na apresentação de Habermas que se segue sob o título Reconstrução da história da teoria, um dos sentidos mais importantes e mais duradouros da noção de reconstrução na obra de Habermas. Um sentido que Marx já havia estabelecido no primeiro prefácio a O Capital, ao explicitar o conteúdo do quarto livro da obra, publicado postumamente com o título de Teorias da mais-valia, justamente: história da teoria (Marx 1984, p. 17).

    No caso das pesquisas realizadas no âmbito do Instituto de Pesquisa Social na década de 1930, como já mencionado repetidas vezes, fica evidente que a crítica da economia política ocupa o centro da constelação disciplinar. O que corresponde ao diagnóstico do tempo segundo o qual o mercado continuava a ser a instituição social estruturante, mesmo se o próprio capitalismo já tivesse passado a uma fase monopolista. Nesse contexto, é o conceito de classe (com todas as suas obscuridades – e elas são muitas, com certeza – nos escritos de Horkheimer desse período) que permite a passagem entre a crítica da economia política como foco e núcleo do arranjo disciplinar a investigações empíricas, como aquela dirigida por Erich Fromm sobre o autoritarismo nas famílias proletárias, por exemplo (cf. Fromm 1984; Bonss 1993).

    No caso de Habermas, esses diferentes elementos se articulam em torno da noção geral de reconstrução. Até o livro Conhecimento e interesse, de 1968, é possível dizer que Habermas seguia, à sua maneira, o mote de Adorno, segundo o qual crítica da sociedade é crítica do conhecimento e vice-versa (Adorno 1977, p. 748). E, também de maneira peculiar, propunha o desenvolvimento de um novo campo de investigação crítica, com a ideia de que as ciências humanas poderiam se tornar reflexivas segundo o modelo exemplar da psicanálise freudiana.

    A partir de Técnica e ciência como ideologia, também do mesmo ano de 1968, Habermas dá início a um novo modelo crítico, tendo como pano de fundo os impasses teóricos constatados em Conhecimento e interesse. Passa, então, a enunciar a ideia de reconstrução como a mais adequada para orientar a teoria crítica. E, por isso, o presente volume, em sua totalidade, segue a orientação mais geral dada por Luiz Repa, segundo a qual o modelo de crítica de Habermas deve ser chamado de reconstrutivo (Repa 2008a e 2008b). Não se trata de mero rótulo, mas de uma caracterização que condensa a relação de Habermas com a tradição crítica. Significa que a orientação para emancipação, formulada como ancoramento normativo, será o princípio orientador da categoria de reconstrução e o fio condutor da crítica à teoria tradicional, que se perde, seja em um objetivismo que pretende abstrair da normatividade, seja em um normativismo que não mostra suas raízes no real.

    Como se verá, a categoria mesma de reconstrução vai ter seu sentido modulado conforme o momento da obra de Habermas enfocado. Na tentativa que se segue de apresentar esse percurso em três momentos diferentes, organizados grosso modo segundo a periodização por décadas (1970, 1980, 1990), a ênfase recairá menos nos diferentes diagnósticos de tempo que sustentam os rearranjos teóricos do que nas mudanças propriamente conceituais e teóricas dos escritos de Habermas. Isso inclui, por exemplo, mostrar que a mudança da configuração da reconstrução da década de 1970 para a de 1980 se deveu também, e em boa parte, à ausência de resultados investigativos de peso no que diz respeito ao projeto do que Habermas chamava então de ciências reconstrutivas. Como a apresentação da mudança da década de 1980 para a de 1990 procura mostrar que, se há uma continuidade na concepção da Teoria da ação comunicativa de uma reconstrução da história da teoria, Direito e democracia, de 1992, orienta esse modelo para a reconstrução da racionalidade de instituições sociais como o direito e o estado democrático de direito, o que não apenas é uma novidade em relação à constelação anterior como também altera em um sentido importante o modelo crítico habermasiano.

    A ideia de reconstrução

    Ao dizer, em Direito e democracia, que sua teoria crítica da sociedade

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