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http://dn.sapo.pt/2008/05/12/opiniao/enxurrada_constitucional.html

ENXURRADA CONSTITUCIONAL

João César das Neves


professor universitário
naohaalmocosgratis@fcee.ucp.pt

O repórter Tintin na sua clássica aventura de 1937 L'Oreille Cassée (em português O Ídolo Roubado)
visitou San Theodoros, uma república sul-americana então governada pelo general Alcazar. Aí o exército
tinha 3487 coronéis e só 49 cabos. Esta situação anómala parece reproduzir-se na legislação
contemporânea.

O direito pretende regular a vida concreta das sociedades. Para isso cria vários tipos de diplomas que,
como no exército, seguem hierarquia rígida, das simples portarias à Constituição da República, tratados
europeus e, no cimo, direitos humanos universais. Mas ultimamente as legislações de topo, que
deveriam ser genéricas e estruturantes, descem cada vez mais aos pormenores da vida comum. Três
factos recentes mostram-no com clareza.

O pacote laboral apresentado pelo Governo ainda mal começou a ser discutido. Mas toda a gente sabe
que a necessária adaptação da legislação portuguesa à globalização vai embater na Constituição da
República. Os 296 artigos da nossa lei fundamental estabelecem tantos detalhes que ela choca
inevitavelmente com a realidade sempre volátil e complexa. Entre muitos outros casos, está estabelecido
que "constituem direitos das comissões de trabalhadores exercer o controlo de gestão nas empresas"
(art. 54.º, n.º 5 a) ou que "incumbe ao Estado assegurar (...) a fixação, a nível nacional, dos limites da
duração do trabalho" (art. 59.º, n.º 2 b). Isto encontra-se ao mesmo nível do hino, bandeira, parlamento
e tribunais. Com tal minúcia, não admira que do início de 2003 ao fim do mês passado o nosso Tribunal
Constitucional tenha emitido 3681 acórdãos, mais que os coronéis de San Theodoros.

As leis europeias fundamentais sobrepõem- -se à nossa Constituição, mas são ainda mais intrometidas.
Com a revisão do recente Tratado de Lisboa, os dois textos que regulamentam a União Europeia têm um
total 413 artigos, sem falar nos 37 protocolos e 65 declarações anexas. Um dos dois, o Tratado sobre o
Funcionamento da União Europeia, desce a temas tão variados como "as exigências em matéria de
bem-estar dos animais" (art. 13.º), o "intercâmbio de jovens e animadores socioeducativos" (art. 165.º
n.º 2) e a necessidade de "incentivar a criação de um clima propício ao desenvolvimento das empresas"
de turismo (art. 195 n.º 1 a).

No topo da legislação mundial estão as declarações universais dos direitos humanos. Esses são princípios
essenciais e nucleares, aplicáveis a toda a gente em todos os locais e circunstâncias. Seria de esperar a
generalidade e o laconismo apropriados, não a cacofonia. Mas as declarações multiplicam-se, junto com
as organizações capacitadas para os formular, do Conselho da Europa à Organização de Unidade
Africana. Só as Nações Unidas já criaram 12 comités de peritos em direitos humanos, gerados por dois
pactos, cinco convenções e cinco protocolos adicionais.

Após cinco anos de negociações, acaba de ser apresentado, sob a presidência de uma diplomata
portuguesa, Catarina de Albuquerque, mais um Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional sobre os
Direitos Económicos, Sociais e Culturais da ONU. Esse pacto estabelece direitos como a "difusão de
princípios de educação nutricional" (art. 11.º), a liberdade de "escolher para seus filhos (ou pupilos)
estabelecimentos de ensino diferentes dos poderes públicos" (art. 13 n.º 3), de "participar na vida
cultural" (art. 15.º 1 a) ou "beneficiar do progresso científico e das suas aplicações" (art. 15.º 1 b).

Para que servem todas estas declarações? Se são genéricas, ficam letra morta, admitindo interpretações
mais contraditórias (o aborto é promovido como direito). Se são concretas, ficam deslocadas da
realidade. Entretanto multiplicam-se as queixas, processos e debates.

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Em Portugal o desemprego cresce, a Europa sofre decadência demográfica e o mundo vive uma crise
alimentar. O que prospera triunfalmente por todo o lado é a produção legislativa. Como os pobres cabos
de San Theodoros, cada vez que cada um de nós respira, fá-lo sob uma miríade de leis e regulamentos
que manda e vigia.

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