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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL


HISTÓRIA DA ANTROPOLOGIA: AUTORES CLÁSSICOS II
Profª. Drª.: Kelly Cristiane da Silva
Aluno: Rafael Simões Lasevitz
2º semestre de 2009.

Segundo ensaio.

Nossos bonecos, a cultura: dialogando sobre traduções e etnografias com


Godelier, Strathern e Bourdieu.

Gostaria de propor neste ensaio uma estrutura narrativa que talvez não seja tão
habitual, mas que penso que, pelas circunstâncias – disciplinares – na qual escrevo,
pode acabar sendo a mais interessante, tanto para mim quanto para o leitor. Em geral,
deste tipo de ensaio esperam-se reflexões comparativas, exegeses conceituais ou
epistemológicas, ou exposições que demonstrem de forma mais ou menos clara os
desdobramentos de uma idéia ao longo do tempo tal como manifestas em obras
acadêmicas diversas. Neste caso, como um exercício narrativo diferenciado – e também,
admito, tentando compensar um certo déficit momentâneo de inspiração antropológica –
sugiro um ensaio que se apresente como uma espécie de passeio, uma caminhada entre
algumas obras e abordagens da idéia de dádiva na antropologia, seus desequilíbrios de
poder, nativos ou teóricos, suas leituras e traduções. Diferencio a idéia narrativa de
passeio não por propor um compromisso de menor valor com a análise acadêmica, mas
sim, por propor um compromisso mais suave e flexível, como num passeio em que, no
exercício de reconhecimento de um trajeto, se descobrem outros que convidam o olhar a
rápidas espiadas em alguns casos, ou mudanças absolutamente inesperadas de trajetória
em outros, assumindo todos os riscos de um planejamento de rota quebrado em função
das promessas feitas por uma paisagem que ainda somente de longe se avista. Assim, se
esta narrativa assume os riscos de quem não sabe bem para onde vai, convida o leitor,
por outro lado, a acompanhar uma seqüência de idéias quase tal como se manifestam na
mente de um estudante da disciplina, passeando especialmente em obras de Godelier,
Bourdieu e Strathern.

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Começo então, se me permitem, passeando pela obra de Godelier, The making
of great men (1988), sobre os Baruya da Papua Nova Guiné. Ao longo de sua narrativa
etnográfica chama a atenção, a partir de um certo ponto da obra, a forma como o autor
dá início a uma série de argumentos em torno da relação de dominação masculina
perante a mulher – servindo ao longo da obra de paralelo para uma segunda relação de
dominação hierárquica, no caso, entre homens “normais” e great ou big men. Deixo esta
segunda hierarquia de lado por enquanto para ficarmos com as discussões de Godelier
sobre a hierarquia sexual Baruya. O autor apresenta sua questão através de camadas
argumentativas. “There are abundant outward signs of men’s dominance over women”
(Godelier, 1988: 10), começa o autor em seu segundo capítulo da obra apresentando, daí
em diante, um diverso panorama destes argumentos. A relação Baruya entre homens e
mulheres para o autor se manifesta como marcada por uma separação entre ambos em
diversas esferas da vida cotidiana e ritual, com diversas restrições às mulheres em
termos de acesso tanto a meios de produção como ferramentas ou armas, quanto em
relação à posse de terras, que Godelier significativamente coloca como sendo
masculina. Posteriormente, comentando a divisão do trabalho entre homens e mulheres
– as tarefas femininas envolvem “less physical strenght (...); involve fewer risks of
accident (...); require less mutual help or cooperation among individuals” (1988: 14) – o
autor enfatiza ainda que não é a divisão de tarefas em si que cria a dominação
masculina, mas que de qualquer forma, ela a pressupõe.

Se até aqui nada chega a deixar muito clara uma natureza desigual das relações
de gênero entre os Baruya – ainda mais após lermos que, ao fim e ao cabo, as
distribuições dos produtos do trabalho são invariavelmente igualitárias –, talvez o aporte
fundamental para o argumento de Godelier – e que me parece, pensando agora na
construção da narrativa da obra, como que criar um clima etnográfico para conferir
legitimidade ao resto da obra – esteja em sua análise das cerimônias de iniciação
Baruya. Constituídas de acordo com o autor por oito estágios cerimoniais, o ritual seria
simbólica e cosmologicamente central para a constituição da idéia Baruya não
simplesmente de superioridade masculina perante a mulher, não como construção de
uma oposição masculino-feminino simplesmente dicotômica, mas como um masculino
que se constrói a partir do próprio feminino, como um aperfeiçoamento do feminino
criado através de uma superior capacidade masculina para o que seria enfim a
construção do grande homem – the making of a great man.

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Para Godelier então, o ritual e mesmo os comentários nativos feitos acerca deste
ritual deixavam bastante claras as bases ideológicas das relações de gênero entre os
Baruya. Haviam os Baruya, homens e mulheres, e havia uma ideologia de superioridade
dos homens sobre as mulheres. Portanto, havia a produção Baruya, haviam meios de
produção, haviam porcos, haviam terras, haviam mulheres e restrições a mulheres em
diversas esferas da produção, haviam mulheres e restrições a mulheres em diversas
esferas da política, e havia uma ideologia de superioridade dos homens sobre as
mulheres. E que legitima – analiticamente – a desigualdade. Ideologia como base moral
manifestando hierarquias, desigualdades produtivas como manifestações destas
hierarquias, e tudo isso em relação causal mais ou menos direta.

II

Várias reflexões parecem se mostrar necessárias a partir deste último parágrafo.


Deixando de lado a base ritual da análise de Godelier, todos os desdobramentos mais
centrais de seus argumentos sobre uma relação hierarquizada entre homens e mulheres
remetem direta ou indiretamente a relações materiais de produção, seja através de um
viés político da produção, seja diretamente, relativo por exemplo à possessão dos meios
de produção, terras, ferramentas, etc. Este viés de análise parece ser caro à Godelier,
cuja influência marxista invariavelmente aparece de forma marcante não somente nesta,
como em grande parte de suas obras. E quando pensamos nas dificuldades inerentes a
uma análise do caráter mais ou menos simétrico ou assimétrico de um povo, a solução
da análise através de um prisma econômico tem suas vantagens, como bem o demonstra
Strathern em seu Gênero da dádiva (2006), para quem este tipo de estratégia analítica
serve bem a uma objetivação de uma análise que de outro modo seria inevitavelmente
subjetiva. Em outras palavras, perante uma infinidade de critérios analíticos que
poderiam ser utilizados para que se tentasse compreender maiores ou menores
desequilíbrios das relações de gênero entre os Baruya – possivelmente exigindo do autor
uma análise comparativa entre os Baruya e outros melanésios –, Godelier estabelece o
prisma do econômico como critério objetivo central de análise, independente inclusive
de quaisquer necessidades comparativas, ao menos a priori.

Mas que tipo de análise é esta que se consegue através deste tipo de abordagem?
Ora, afinal, uma análise das relações de gênero através de um viés econômico consegue
fazer exatamente aquilo que diz, ou seja, uma análise das relações de gênero através de

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um viés econômico – com o perdão da tautologia inevitável. O problema da
objetividade da análise está sempre justamente na própria objetividade e suas
conseqüentes limitações, no caso, às suas próprias fronteiras. Em outros termos, quando
Godelier percebe desequilíbrios significativos de caráter material ou econômico ou
político-econômico entre homens e mulheres Baruya, isso não implica necessariamente
em uma significância significativa destes desequilíbrios para os próprios Baruya. Ao
menos, uma significância equivalente em impacto ao que este tipo de desequilíbrio teria
em nossa sociedade, ou no caso, para leitores de nossa sociedade, havendo então, no
mínimo, um problema de tradução, e que nos leva a pensar um pouco sobre o papel dos
interlocutores na antropologia.

Gosto de pensar no antropólogo como um tradutor. Ainda que no caso não


traduza diretamente ou unicamente frases ou textos, papel que nos acostumamos a
atribuir ao profissional moderno da tradução, sua posição de interlocutor entre duas
culturas distintas e, tradicionalmente, bastante afastadas, torna inevitável que se pense
na etnografia como um esforço de tradução. Claro, podemos considerar qualquer tipo de
contato entre diferentes subjetividades como um contato que pressupõe traduções, posto
que nenhum indivíduo jamais guarda exatamente as mesmas experiências de significado
que outro e então, o caso do etnógrafo seria talvez apenas um caso de diferenças
semânticas mais radicalizadas. A estratégia contudo, em sua essência, é a mesma,
tentando-se achar nas falas e práticas do outro denominadores em comum com suas
próprias experiências, tornando-as enfim inteligíveis. Assim se dá, por exemplo, em
uma conversa entre amigos, em que enquanto um tenta exprimir suas reações a uma
experiência pela qual passou, o outro tenta, às vezes mesmo com dificuldades, se
colocar no lugar do outro, até o momento em que após várias tentativas de se criar um
denominador comum, ele enfim surge ao longo da conversa gerando o derradeiro “ah
sim, sei como é, já passei por isso também”. A posição peculiar do tradutor
especializado ou de um antropólogo, contudo, está em sua necessidade de realizar um
exercício de dupla tradução, ou de duplo diálogo – ou seja, um primeiro diálogo com o
traduzido, um segundo com o leitor. E é neste segundo diálogo que quero chegar.

Strathern em seu livro faz reiteradas críticas em relação a tentativas diversas de


antropólogos, de ingênuas a problemáticas, de realização deste segundo diálogo. Fala
por exemplo da recorrente estratégia da tradução de certas práticas econômicas

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melanésias através do uso de vocabulário ocidental de economia de mercado como
metáfora. A opção pelo recurso da metáfora como meio para a tradução na antropologia
chama a atenção para algumas peculiaridades interessantes deste processo. Ao que me
parece, afinal, há uma falta de vocabulário quase que inerente ao esforço de tradução do
tradutor-antropólogo, quando comparado por exemplo ao tradutor de línguas, para quem
sempre há ao menos a esperança de que os contrastes estruturais, sintáticos e
morfológicos de uma língua – para não dizer os de vocabulário – sejam compensados
pelas experiências em comum que estes povos possam ter, quem sabe, diferenciados
somente pela língua. Claro, depende da tradução, depende dos traduzidos, depende da
temática abordada. Mas ao menos a priori, diferentemente do tradutor de línguas, o
tradutor-antropólogo tende a buscar invariavelmente a aventura da tradução de
experiências que contrastam com as de sua própria sociedade, experiências para as quais
sua língua nativa com mais probabilidade não terá vocabulário próprio preparado de
antemão para sua expressão. Perante este déficit gramatical constante, não surpreende
que o tradutor-antropólogo seja então convidado a experimentar as mais diversas formas
de compensação das insuficiências do seu léxico, e isso seja através da criação de novos
mundos de linguagem quase tão amplos quanto o próprio mundo a ser traduzido – como
chega a apontar a própria Strathern em certo momento de sua obra –, seja através do uso
de metáforas carregadas de uma semântica ocidental que pode – e frequentemente vai –
terminar por confundir a interpretação do leitor, elo final desta cadeia de diálogos. No
fim das contas, o tradutor-antropólogo recorre a tais metáforas quase como que caindo
em uma tentação por uma interlocução ideal, como num vício tradutório de crença na
auto-suficiência de recursos da própria língua, arriscando-se além de suas possibilidades
em uma aposta acima de tudo no potencial didático deste risco. E afinal chegamos a um
ponto em que o tradutor-antropólogo não pode ser culpado. Seu papel é de fato o de
interlocutor, e deve tentar fazê-lo sim com preocupações didáticas, e isso sem dúvidas
as figuras de linguagem fazem bem, e neste caso talvez um excesso de puritanismo
tradutório – ou etnográfico, para deixarmos a minha figura de linguagem de lado – pode
estar sendo, ele sim, anti-didático.

No segundo capítulo do Gênero da dádiva, Strathern (2005), fazendo sua crítica


analítica da antropologia, fala sobre o problema da incomensurabilidade da vida social e
da decorrente necessidade de redução da antropologia a modelos metonímicos do social.
Frequentemente a busca por tais sinédoques acabam não se restringindo às longas e

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difíceis noites em que o papel parece pequeno demais para as grandes palavras-mundo
que tentamos escrever, e começam antes, ainda no campo, com o antropólogo que
procura por representantes significativos do social, destes aos quais se atribuem
potenciais de significação o suficiente para que possam passar por algum tipo de
metonímia do todo. Não é raro, eu diria, o caso das leituras de um ou outro ritual como
significante microcósmico de totalidades cosmológicas de um povo. Posteriormente, no
capítulo cinco, comentando as diferentes análises e os conseqüentes enigmas advindos
de análises dos ritos de iniciação melanésios, Strathern menciona os problemas de um
certo “hábito antropológico de pensar a sociedade em termos de domínios”, ato que
claramente “refere-se à estrutura da explicação antropológica, à maneira pela qual
diferentes áreas da vida social são simbolizadas” (2005: 160). Ficções analíticas como
estas, tão utilizadas pela antropologia em seus esforços – se me permitem mais uma vez
a metáfora, sem querer de modo algum reduzir a disciplina a ela – tradutórios, não
chegam a ser novidade na etnografia. Pelo contrário, a estratégia – explícita inclusive –
da ficção analítica como meio para a exploração etnográfica se apresenta de forma
bastante conformada – quase pessimista, eu diria – em autores clássicos como Leach,
entre outros, e que bem servem não somente, como coloca Strathern, à estruturação de
uma típica narrativa antropológica, como também à própria necessidade usual da
tradução-etnografia de reordenar o mundo etnografado de acordo com os níveis de
relevância da sociedade leitora, como já observamos anteriormente neste ensaio. E
usamos isso tudo para refletirmos sobre a condição epistemológica da antropologia e
suas possibilidades. Mas então temos aqui um Godelier tentando falar sobre condições
de desequilíbrio econômico e exploração – um problema caro a ele e, certamente,
também à sociedade em que vive – através de estudos sobre os Baruya, tentando fazer
os Baruya da Melanésia falarem sobre os problemas de desequilíbrio econômico e de
exploração do trabalho – em última instância, pode-se dizer que Godelier usa
analiticamente seus estudos dos Baruya para refletir sobre o desenvolvimento histórico
do capitalismo do mundo ocidental. Mas até que ponto se pode utilizar os Baruya para
falar sobre o capitalismo ocidental? Até que ponto se pode utilizar as assimetrias das
relações de produção Baruya para que falem das assimetrias das nossas relações de
produção? Até que ponto, afinal, Godelier não faz do Baruya ele próprio um boneco de
ventríloquo, e que termina invariavelmente por dizer aquilo que o ventríloquo-
antropólogo quer e precisa dizer – para utilizar a metáfora que o próprio autor utiliza ao
se remeter às apropriações masculinas do corpo para falar sobre a mulher Baruya.

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Diante deste cenário epistemológico, é difícil não se pensar neste problema
tradutório, que coloca o antropólogo nesta delicada posição de ventríloquo de seu
próprio campo de pesquisa, como praticamente uma inevitabilidade. Será? Se
retornando ao nosso exercício de se pensar a etnografia como tradução e, enquanto tal,
dependente de denominadores comuns que tornem possível o diálogo entre as duas
culturas das quais se tratem, o papel do etnógrafo-interlocutor passa a ser o de encontrar
estes denominadores e, caso não os encontre, de criá-los ou inventá-los de acordo com
suas possibilidades de modo que alguma inteligibilidade se torne possível para seus
leitores. E como encontrar esses denominadores comuns? Voltando a Godelier, sua
análise das relações de gênero Baruya, como já apontei antes, tem como base fundante e
necessária de sua análise, os ritos cerimoniais de iniciação. Nelas, o homem seria criado
ritualmente a partir da mulher, e afinal nasce, ou no caso, renasce, como um homem
então criado por outros homens em detrimento daquele ser ainda imperfeito criado por
mulheres quando do nascimento biológico. A existência de uma necessidade masculina
de expressão de algum tipo de superioridade perante o feminino se tornava então
evidente, e a partir disso, tornava-se possível interpretar diversas relações, econômicas e
políticas, como confirmações desta superioridade tão bem expressa ritualmente. Ou será
que não? O que quer dizer exatamente o ritual de iniciação Baruya? Reflete o que já
existe na práticas nas relações com as mulheres? Ou seria o contrário, significando uma
tentativa de compensação de falta de poder masculino? Strathern levanta esta questão ao
tratar dos mesmos rituais em sua obra. Em suas palavras:

“Há um enigma nas análises antropológicas dos ritos de iniciação/puberdade


masculinos: Quando uma categoria de pessoas afirma seus poderes rituais (pelo
conhecimento secreto ou envolvimento no culto), é porque ela tem, ou não tem,
poderes comparáveis em outros sentidos (na vida privada, na política)? O
enigma assume várias formas, mas se torna mais confuso em relação à iniciação
dos jovens nas associações ou cultos masculinos. Tais rituais masculinos imitam
as aptidões femininas (“invejas”) ou as superam (“superioridade”)? Os homens
estão compensando o que não têm ou se apropriando do que as mulheres têm?
As afirmações rituais expressam a distribuição do poder secular ou são um
lenitivo para a falta de poder? As crenças podem ser vistas como algo que
simultaneamente exagera e modifica o sentido das realidades sociais, mas essas
ambigüidades também incorporam algumas das definições dos atores. São eles

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que propõem uma diferença entre as aptidões masculinas e femininas”
(Strathern, 2005: 159-160).

Este parágrafo contém provavelmente algumas das melhores questões


epistemológicas que podem ser colocadas não somente para um melanesianista mas,
seguramente, também para antropólogos de outras áreas. Mais do que antes, podemos
agora voltar a colocar a questão do problema do hiperdimensionamento de rituais, seus
significados e significâncias. O que pode afinal o ritual de iniciação Baruya dizer sobre
a sociedade, ou como diria Strathern, sobre as socialidades Baruya? Para Godelier, ele
parece ter um caráter mais descritivo de uma superioridade masculina que encontra seus
correlatos no dia-a-dia das relações de produção dos Baruya, servindo de base
ideológica para legitimar uma relação de dominação. Mas como dimensionar as
fronteiras de uma idéia, os limites de atuação de um conjunto de idéias, e como
compreender sua intensidade e a forma como é valorado? Os denominadores comuns
que se fazem aparecer para Godelier em seu exercício de tradução-etnografia acabam o
remetem a uma discussão sobre dominação, homens e mulheres, controle, homens e
mulheres. E o que é controle? A partir do momento em que a idéia de controle se
manifesta em Godelier, traz consigo uma grande carga de significados, implica idéias de
violência de gênero, opressão e, através da fala masculina sobre o corpo feminino,
também alienação. E Godelier então apresenta uma série de relatos etnográficos que
expõem exemplos bastantes diversos de violência de gênero, opressão e, através da fala
masculina sobre o corpo feminino, também alienação. Mas alienação no sentido
marxista que Godelier utiliza pressupõe que há uma relação não-consciente, e assim
não-dita, de dominação. Godelier quer falar sobre o não-dito da exploração do outro.
Mas como traduzir o não-dito? Haveria uma antropologia capaz de traduzir o não-dito?
E mais do que isso, o sequer-pensado? E talvez ainda, o sequer-sentido?

Strathern, ao falar do excesso de ocidentalidade presente no quadro conceitual


da antropologia ao falar sobre a Melanésia critica, entre outras, a ocidentalidade
demasiada da própria idéia de controle, com suas cargas semânticas frequentemente
bastante carregadas, e negativas. Continuando esta discussão, o que me parece difícil no
fim das contas é tomar uma medida do controle, contabilizar o controle, e então poder-
se compreender a significância deste controle. Dependendo de sua intensidade, afinal,
nossa língua faria diferentes traduções e o controle, interpretado de maneiras diferentes,

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medido com medidores diferentes, pode ser traduzido-etnografado como dominação,
mas também como afeto. E então vem o problema da relação emocional do sujeito com
o seu cotidiano e as interações sociais que dele fazem parte, um emocional que eu diria,
se encontra frequentemente subjugado na antropologia. Como falar do mundo do outro
afinal, sem que se fale do que o outro sente em relação a esse mundo? E qual a
significância do sentimento do outro em relação ao seu mundo? Os usos e diferentes
interpretações da idéia de dádiva – afinal, uma das grandes sínteses entre o econômico e
o afetivo, juntos numa mesma forma interacional – na antropologia me parecem ser
bastante ilustrativos desta questão. Bourdieu (2006), por exemplo, falando sobre a
dádiva e o tempo da dádiva, fala em certo momento sobre o poder simbólico que surge
entre o dar e o receber – este intervalo fundamental que caracteriza a dádiva para o autor
mais do que o próprio dar e receber –, da espera daquele que deu em relação ao outro
que ainda não retribuiu, com uma conotação bastante ambígua em que dominação e
afeto, angústia e confiança se misturam. Segundo Bourdieu:

“Estamos aqui no cerne da transmutação alquímica que se encontra no


fundamento do poder simbólico como poder que se cria, se acumula e se
perpetua através da comunicação, da troca simbólica. Porque, como tal, ela
introduz na ordem do conhecimento e do reconhecimento (...) a comunicação
que converte as relações de força bruta, sempre incertas e suscetíveis de serem
suspendidas, em relações duráveis de poder simbólico pelas quais se é sujeitado
ou às quais se sente sujeitado; ela transfigura o capital econômico em capital
simbólico, a dominação econômica (do rico sobre o pobre, do patrão sobre o
empregado, do homem sobre a mulher, do adulto sobre a criança etc.) em
dependência pessoal (com o paternalismo, por exemplo), e mesmo em
dedicação, piedade (filial) ou amor. A generosidade é possessiva e o será tanto
mais quanto, nas trocas afetivas (entre pais e filhos, ou mesmo entre
apaixonados), for e parecer mais sinceramente generosa. Mas a incerteza, e
mesmo a angústia ligada à antecipação do efeito do destino, não seriam tão
fortes (sobretudo no dominado, por exemplo a mulher na relação de sedução) se
a relação de comunicação que se instaura não contivesse sempre a
potencialidade de uma relação de dominação (Bourdieu, 2006: 14-15)”.

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Essa ambigüidade da dádiva como relação de afeto e dominação aparece de
forma ainda mais notável na obra de Godelier. Ao falar sobre as mulheres Baruya, o
autor afirma diversas vezes, como exemplo da relação de dominação do homem perante
a mulher, a falta de oportunidades das mulheres Baruya de participarem das relações de
dádiva e expandirem suas relações politicamente como faziam os homens. Estar
presente no circuito das dádivas aqui aparece positivamente. Em outro caso,
posteriormente, a dádiva aparece de forma negativa como estratégia de dominação e é
posta inclusive como forma aproximada da exploração tipicamente capitalista, quando
Godelier fala sobre os big men e seu sistema de acúmulo de relações de dádivas, e que
os colocariam em situação econômica privilegiada. Há nisso tudo algumas coisas que eu
gostaria de apontar. Claro, a ênfase dada por Godelier sobre o aspecto econômico da
dádiva, especialmente no caso dos big men, já não é nenhuma novidade, ainda que eu
sinta dever chamar a atenção para a ausência de uma contraparte afetiva daqueles que
fazem parte de seu círculo de dádivas, que estão portanto equiparados a ele em honra e
que passam a manter com ele uma relação de afetividade bilateral. Já em Bourdieu, que
deixa clara a relação de ambigüidade do dom, não consegue contudo deixar de expressar
as relações de trocas simbólicas como uma relação que tende – ainda que
mascaradamente e mesmo que revestida de diversas formas possíveis de afetividade – a
se transformar em uma relação de dominação da parte daquele que deu, e que espera
uma retribuição que, por sinal, pode mesmo jamais ser possível por completo,
dependendo do quanto que foi dado. Mas é essa ênfase na idéia de um “poder
simbólico” o que me incomoda. Mesmo em Bourdieu, a ênfase continua estando no
aspecto material-econômico da coisa, e então me sinto compelido a reiterar aqui a
crítica feita por Strathern em sua obra a um caráter ainda bastante ocidentalizado da
forma da qual o próprio conceito de dádiva – que entra na antropologia como a forma de
relações sócio-econômicas não-ocidental por excelência – é utilizado na disciplina.
Ainda que compreendendo o afetivo como contrapartida do material, Bourdieu ainda
tem de colocar a idéia de poder do lado do material, ou seja, daquele que deu o objeto, e
que no tempo da dádiva, espera pela retribuição. Mas porque criar esta hierarquia de
valores entre o material e o afetivo? Bourdieu está certo em enfatizar o tempo da dádiva
como central para sua compreensão, mas o que talvez seja problemático é justamente a
estruturação da idéia de tempo, de intervalo, como um período da não-troca, ou que
seja, como um período de ausência do “retribuir”. A dádiva é antes de tudo uma forma
de integração, de coesão social, e de criação de uma relação não racional-econômica,

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mas sim, sentimental de vínculo entre pessoas, e isso já está claro desde que Mauss
escreveu seu ensaio. Ora, a partir do momento em que a relação de dádiva tem início
com a primeira coisa dada, e claro, recebida, se surge já então uma consideração ou
sentimento afetivo de um perante o outro, porque não pensar neste momento, ainda
talvez muito antes da “retribuição”, como um momento já de retribuição imediata, em
que a reciprocidade, a simetria da relação já está constituída? Dificilmente, creio, há
somente uma coisa dada e uma recebida, e a relação de dádiva é composta de uma série,
um grande conjunto de intercâmbios, além da coisa dada em si, passando por trocas de
palavras, de agradecimentos, de abraços, de contatos posteriores, de relações jocosas,
entre tantas outras possibilidades, claro, variantes em cada caso.

III

Comecei este ensaio falando sobre as dificuldades das análises das relações entre
dois grupos de pessoas, no caso, os homens e mulheres Baruya estudados por Godelier,
sob o prisma da simetria ou assimetria. À guisa de conclusão desta questão, para a qual
senti que ainda precisava fazer mais um rápido nó antes de concluir com este ensaio-
passeio, quero somente reiterar estas dificuldades. Deixando de lado a tentativa
objetiva-materialista de Godelier de realizar esse tipo de análise, a outra possibilidade
seria mesmo a de deixar para falar sobre simetrias e assimetrias de acordo com as falas
“nativas” à respeito. Me parece consistir em última instância uma agressão moral
considerável a afirmação de uma relação de exploração que não é admitida pelos
próprios explorados – creio que podemos considerar casos em que há medo de se falar
na situação de exploração como um caso a parte. Como, afinal, pressupor a alienação do
outro?

Mas por outro lado, como pode um antropólogo, este tradutor da cultura de
quem eu falava também no início deste ensaio, como pode ele não pressupor a
alienação? Somos afinal ensinados desde Malinowski, desconfie, sempre, do nativo.
Para além do sentido marxista, falo aqui em alienação em um tom mais leve, alienação
como uma reflexão incompleta sobre a sua posição, enquanto sujeito, perante as pessoas
ao seu redor, sua sociedade, se assim se quiser. E a reflexão, podemos dizer sem erro, é
sempre incompleta, tamanhas são suas possibilidades, tão infinitas. E por outro lado
ainda, vale lembrar o bordão, válido também ao antropólogo, “tradução é traição”. A
tradução-etnografia, mais ainda, não-contente com o dizer o dito, quer dizer o não-dito,

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o não-consciente, o não-sentido, extrapolar a fala. Mas extrapolar a fala é também violar
a fala, é violar a economia de palavras e de conhecimentos do sujeito, e ainda,
desconsiderar o caráter estratégico desta economia. Cuidados éticos a parte que possam
amenizar seus efeitos, não vejo como a antropologia poderia deixar de violar essa
economia sem deixar de ser antropologia, como a conhecemos. De uma forma ou de
outra, seremos sempre os ventríloquos dos nossos bonecos, a cultura.

BIBLIOGRAFIA

BOURDIEU, Pierre. 1996. Marginalia: algumas notas adicionais sobre o dom. Mana,
vol. 2, no. 2. Rio de Janeiro, 2006.

GODELIER, Maurice. The making of great men. Cambridge University Press:


Cambridge, 1988.

STRATHERN, Marilyn. O gênero da dádiva. Editora Unicamp: Campinas, 2006.

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