Público • Sexta-feira 30 Abril 2010 • 47

É altura de deixar de culpar “os mercados” e começar a fazer, sem mentirinhas e ilusões, o trabalho de casa

A vingança de Newton e da lei da gravidade

P
DANIEL ROCHA
ode-se enganar todos algum tempo, pode- públicos, aprovação do contrato do TGV, assinatura
se enganar alguns o tempo todo, não se (quarta-feira!) do contrato de mais uma auto-estrada,
pode enganar todos o tempo todo. Esta anúncio de verbas para o cinema, para a ciência,
velha lei da política – e das relações hu- para… o Terreiro do Paço. Ao mesmo tempo, uma
manas – explica melhor do que milhares parte do país ajudou, ao entrar em greve, mostrando
de proclamações a chamada “irracionalidade do uma incurável atracção pelo abismo.
mercado”. Pela simples razão de que não há irra- Depois, apesar da imensa vontade que a Comissão
José cionalidade nenhuma. Ou, se preferirmos, porque Europeia, o Banco Central Europeu, a OCDE, até o
Manuel o que tem de ser tem muita força, e ninguém ilude FMI, tinham de que não se abrisse uma nova frente
Fernandes eternamente a lei da gravidade. Nem sequer uma da crise, de que Portugal não fosse uma segunda Gré-
Extremo maçã, quanto mais um país…
O que aconteceu esta semana com a degradação
cia, os seus “elogios” ao PEC sempre soaram muito
formais e pouco substantivos. Lá, como cá, sabe-se
ocidental da confiança na capacidade de Portugal pagar a sua olhar para os números e, como notou Nogueira Leite,
dívida soberana estava escrito nas estrelas. Escrito salta à vista que “o PEC propõe é que, se tudo correr
nas estrelas e em dezenas de análises editadas na bem, Portugal chegue ao pico do próximo ciclo de
imprensa portuguesa e internacional. Mais: estava crescimento na zona euro relativamente mais pobre,
escrito nas entrelinhas do parecer da Comissão Eu- com uma dívida pública maior e onerando os contri-
ropeia sobre o PEC português. buintes com mais impostos”. Mau cenário.

De facto, “o sobreendividamento dos Estados
está para o desencadear de uma crise como a obe-
sidade está para o desencadear de um ataque car-
díaco” (Luís Campos e Cunha, Janeiro de 2010).
Sucede que “o impacto consolidado, macroeco-
nómico e empresarial, de todos os megaprojectos
de transportes e de outras PPP, aumenta a dívida
pública, e torna seguramente o
É necessária uma resposta modelo económico-financeiro glo-
estrutural, a nível bal consolidado inviável, de alto
risco para os contribuintes e para
interno, acompanhada a sustentabilidade financeira do
Estado português” (manifesto dos
por uma dolorosa cura economistas, Junho de 2009). Até
de austeridade, e uma porque “a crise global apanhou a
economia portuguesa numa fase
resposta conjuntural, a de crescimento anémico que dura
nível europeu, para salvar há quase uma década, reflexo de
debilidades estruturais, em espe-
a moeda única. Nenhuma cial de uma baixa produtividade
e de um baixo potencial de cres-
delas dispensa a outra cimento” (Comissão Europeia na
sua análise do PEC). E por aí adiante…
Ora a Standard & Poor’s limitou-se a extrair as con-
sequências das debilidades referidas nestas análises.
Não inventou nem especulou: como Kai Stukenbro-
ck, o analista da S&P responsável pela análise de
Portugal, explicou na quarta-feira ao PÚBLICO, a
agência acredita que manteremos taxas de cresci-
mento muito baixas e que “um choque potencial
de taxas de juro pode aumentar de forma rápida a
pressão sobre os défices”. Nada que muitos outros
economistas não tivessem já dito.
as nossas autoridades continuavam, como disse o
antigo economista-chefe do FMI, Simon Johson, em
“estado de negação”. E, como Luís Campos e Cunha
notou, não se via “quando é que o Governo nos dará
factos (e não discursos) para negar a onda de suspei-
ta sobre Portugal”. Pior, pois os factos que o Governo
deu agravaram a suspeita: folga aos funcionários
Não é a chanceler Merkel que deve endireitar as nossas contas públicas
a É sempre mais fácil culpar os estado de inacção.
outros. Sobretudo se os outros Espanha, como Portugal, ou como
são grandes, ricos e… alemães. É a Grécia, mesmo que em graus
mais difícil seguir os conselhos do diferentes, tem um problema de
Presidente checo, Vaclav Klaus, curto prazo – recuperar a confiança
N
o meio de tudo isto, ainda bem que exis-
tem agências de rating, por muito falíveis
e interesseiras que elas sejam: tal como
no passado, quando só reajustámos pelo
efeito de choques externos (dois acor-
dos com o FMI, adesão à União Europeia, adesão
ao euro), também agora demonstrámos que só com
uma espada encostada à garganta procedemos – se
procedermos… – aos dolorosos reajustes. Foi essa
entidade mítica, “os mercados”, que nos encostou
à parede? Apesar de tudo, é melhor os políticos ata-
carem quixotescamente esse moinho de vento do
que começarem a espernear contra Bruxelas ou, pior
ainda, contra a Alemanha e a chanceler Merkel.
Porque, não duvidemos, temos pela frente anos
difíceis que nos obrigarão a uma resposta estrutu-
ral, a nível interno, acompanhada por uma dolo-
rosa cura de austeridade e, porventura, por nova
recessão, ao mesmo tempo que, como membros
da União Europeia e do clube do euro, temos de
ser parte da solução conjuntural para a crise que
ameaça a moeda única. Jornalista
School of Economics, “a União
Europeia já sofreu de um excesso de
‘visão’ e de um défice de medidas
orçamentais práticas”, pelo que “é
altura de restabelecer o equilíbrio”.

É
por isso ridículo falar da “irracionalidade
do mercado”, mesmo sendo verdade que
os mercados estão nervosos. Só que têm
razões para estar nervosos: ao contrário
do que pensam alguns políticos, não che-
ga Portugal repetir que não é igual à Grécia, é pre-
ciso que demonstre que é melhor do que a Grécia
na superação de fraquezas que todos conhecem.
A nossa dívida, por exemplo, é proporcionalmente
menor, mas à dívida do Estado é necessário somar a
dívida das empresas e particulares, sendo que uma
parte desta é dívida pública escondida (caso das
empresas públicas e dos encargos gerados pelas
PPP). A nossa produtividade é muito baixa, a nos-
sa incapacidade de crescermos deriva da falta de
competitividade e também da falta de rentabilidade
dos investimentos que temos feitos. Mais: o PEC só
vai até 2013, quando todos sabem que o impacto
nas contas públicas das PPP começa a pesar depois
de 2013, o que significa que, quando lá chegarmos,
necessitaremos de um novo PEC.
Sendo tudo verdade, mesmo assim os malvados
dos analistas não nos teriam penalizado, se perce-
bessem que estávamos no caminho certo. Mas não:
que tanto embaraçaram o nosso
Presidente, e arrumar a casa
tratando do défice e da dívida.
É também mais fácil apostrofar os
que avisam contra as más políticas
ou os que não ajudam a tentar
enganar as agências de notação
financeira, acusando-os de falta de
patriotismo. Complexo é vencer
“a resistência a tomar decisões
com medo das reacções políticas e
sociais” – só que não o fazer “paga-
se”.
Não, não é de nenhum perigoso
neoliberal esta última frase. Nem
de um empedernido crítico do
Governo. É a conclusão do editorial
de ontem do madrileno El País. Um
editorial que não se distrai a criticar
a S&P por ter baixado a cotação da
dívida da Espanha. Nem olha para a
Alemanha. O El País preocupa-se, e
bem, com o que a Espanha não fez
e já devia ter feito e recomenda que
o Governo do PSOE saia do actual
dos investidores e de quem
empresta dinheiro – e um de médio
prazo – reestruturar a sua economia
e o seu Estado social. É bom que
em nenhum dos países se procure
iludir a necessidade de resolver
ambos os problemas, mas nem
sempre tem sido este o discurso
oficial. Sobretudo na Europa.
Todos os ditos “europeístas”
elegeram um vilão: a Alemanha
e a chanceler Angela Merkel.
Não têm razão. Primeiro, porque
as exigências alemãs são não só
razoáveis, como estruturantes.
“Salvar” a Grécia não é sinónimo
de enviar um cheque para Atenas,
antes de impor à Grécia uma
disciplina que ela, por si só, não
parece capaz de adoptar. “Salvar”
o euro também não passa por ser
solidário com os prevaricadores,
antes por praticar a disciplina
orçamental. É que, como escrevia
Howard Davies, director da London
Depois também é sinal de
inconsciência e arrogância
defender que Angela Merkel deva
actuar sem ter em conta a opinião
pública (86 por cento dos alemães
estão contra o apoio à Grécia) e uma
eleição que pode implicar a perda
de maioria do seu Governo na
câmara alta do Parlamento alemão.
Não se pode construir a Europa
contra os cidadãos europeus,
mesmo quando esses cidadãos são
alemães.
Mais: para a saúde das instituições
europeias, é melhor que seja o FMI
a impor condições a Atenas do que
Bruxelas a Berlim. Isso dói muito
aos visionários, mas é bom que
sejam humildes e reconheçam, por
exemplo, o estrondoso fiasco da
nova arquitectura das instituições
europeias saída do Tratado de
Lisboa. Afinal, nesta crise, ninguém
ouviu falar de Herman van Rompuy
ou de Catherine Ashton…