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Uma noite no inferno

Ricardo de Almeida Rocha


ricardrbrsp@yahoo.com.br
ricardrbrsp@gmail.com
Preferia acreditar que não seriam capazes de nada além das costumeiras chacotas.
Julgava-os apenas crianças. Crianças más às vezes, é verdade; mas apenas
crianças. Recusava-se a crer que pudessem fazer algum mal à sua mulher, ainda
mais acompanhada da filhinha. Não eram pessoas assim hediondas. Mas havia
mais de três horas que ela saíra para comprar mantimentos. Da casa na encosta do
monte até o vilarejo, não passava de uma hora de carroça e outro tanto pra voltar.
Os trovões anunciam a tempestade. Largou o machado que brandia e, limpando
as mãos calosas no brim grosso da calça, entrou na pequena habitação. Não, nada
havia acontecido; mas ia começar a chover forte. Na verdade, com o frio que fazia,
era possível que nevasse. O vento varria em redemoinhos.
Quando entrou, viu pela janela que dava para leste a vermelhidão do céu; do outro
lado, nuvens pesadas cobriam o monte. Mas como explicar vinda do firmamento
aquela luz rubra a entrar em seus olhos? O crepúsculo era sombrio. As nuvens que
pairavam baixas estavam carregadas de opressão. Saiu. Não se via um palmo à
frente. A noite descia ameaçadora. Precisava ir à cidade. Não que tivesse acontecido
alguma coisa com sua mulher e sua filha. Estariam protegidas da tempestade na
casa de Fiodor. E ninguém na cidade seria capaz de lhes fazer mal. Não precisa
se inquietar. Deve apenas ir encontrá-las, pois talvez precisem dele para colocar
as coisas na carroça. Elas não estão vestidas de modo adequado. Levar-lhe-ia
agasalhos. Realmente fazia muito frio.
Foi um ano difícil, pensa enquanto prepara o cavalo. E novembro era um mês
especialmente difícil para os homens das montanhas, o tempo das primeiras
nevascas. Começou a sentir os pingos de chuva. Gostava do cheiro da chuva na
terra; mas, naquele momento, respirou-o como se fosse enxofre. Uma angústia
insuportável enchia seu espírito. A voz do vento soava severa e gelada. Contemplou
o horizonte e discerniu a estranha coloração. Ondas de fumaça eram trazidas pelos
círculos. O cheiro de fogo substituiu o cheiro da chuva e envolveu suas
recordações...

Os habitantes de M* consideram-se felizes. Quando seus domínios se reduziram ao


mínimo, acreditaram que era bom sinal. Dizem que é por serem solidários e assim
fica mais fácil ajudarem-se uns aos outros. Poucas das casas de madeira dispostas
pela rua principal parecem habitadas. Na verdade essa é única rua da cidade. A vida
da cidade.
Nesse crepúsculo em que se avizinhava a tempestade, porém, parece-se com a
morte.
Desemboca na praça onde o juiz de paz, Fiodor, vive com a mulher, Helena, e
os filhos – Érika, uma bela jovem de 19 anos, e Marco, um forte rapaz saído da
puberdade. Moram no andar de cima do cartório, onde o pai raramente exerce sua
profissão, contíguo à mercearia de onde é tirado o sustento da família. O movimento
basta para que ele renove o estoque por meio de um mercador itinerante com o
qual dividirá riscos e lucros. Ali vende aviamento para roupas, material escolar,
vestimentas de montaria e garimpo, facões, ração e alguns tipos de comida pronta.
Agora Maggie está ali. Compra o que precisa para receber seu irmão. Talvez o
convença dessa vez a ficar e usufruir permanentemente da paz que a cidade grande
não propicia, dessa subsistência simples mas sem sobressaltos. Bandidos, o que
poderiam querer num fim de mundo como aquele, onde a mina estava desativada
e nunca chegou a funcionar um banco? Por essa paz – e por que mais? – os que
permaneceram após a exaustão do subsolo preferem viver a decadência da cidade.
São mais felizes do que na época áurea.
Ao lado da praça, numa elevação junto à ravina seca, ergue-se a igreja local. Faz
também o papel de escola. Autoridades federais acreditam ser isso inadequado, mas
estão longe demais. No chão onde está diretamente construída, mistura-se a terra
trazida por uma infinidade de botas de mineiros que aos domingos iam agradecer
a benção das pepitas. Isso agora é nostalgia. O sino só repica de trinta em trinta
dias, quando um padre da região vem celebrar a missa mensal do arrependimento.
O som do sino evoca em Érika a cerimônia de casamento, uma bela festa de núpcias
e sua lua-de-mel com o diretor de uma companhia mineradora européia, um duque
ou barão, que veio um dia inspecionar a mina, aproveitou para caçar aves raras e a
levou para Paris – assim ela costuma sonhar embora vestígios de ouro estejam cada
vez mais longe de M* e M* cada vez mais longe de qualquer lugar.
Fiodor faz parte de um ciclo bem definido. Benjamin vende charques na quantidade
presumida da procura que antecipa pela experiência. Ian e sua mulher, Nadja, são
seus melhores fregueses mas está restrito às necessidades das pessoas cujos
calçados produz ou conserta. Ele se aproxima agora da loja de ferramentas de Walt,
cujos rendimentos crescem ou diminuem na proporção das idas lá do açougueiro.
Tanja costura para fora, vive disso. Todos comem carne. Nem todos substituem ou
afiam regulamente suas pás e enxadas e uma boa e definida parte das pessoas
costura as próprias roupas.
Não é um ciclo apenas econômico.
Os membros da comunidade harmonizam suas vidas independentes do resto do
mundo. A aspiração moral estagnara na pressão coletiva, quando surgem as
manadas. Precisam talvez de um membro cujas idéias sejam revolucionárias e
induzam à mais simples tradição do Bem de tal modo que seu estado de alma
se propague. Mas uma ruptura não parece mais possível em M* porque no hábito
acostuma-se a toda sorte de necessidade e torna-se fácil não pensar à frente, e
torna-se fácil esquecer.
Não é uma vida fácil. Todavia tranqüila. Como um oceano ao pôr-do-sol, o que se vê
é perfeita serenidade.
É um homem bonito o jovem forasteiro que ali desembarcou. Faz calor. Supõe que
alguém negocie pedras preciosas. É que encontrara uma. Realmente faz muito calor.
Precisa muito de dinheiro. Coiotes e lobos vagueavam ao redor pelas colinas quando
ele chegou.
O condutor da carroça grita. Estão chegando à cidade. Quem é o parente que o
senhor veio visitar?
Como assim, parente?
Não veio passar a Páscoa com parentes?
Para falar a verdade, nem sabia que estavam na Páscoa.
Então Dan, o condutor, imaginou que ele veio reencontrar um velho amigo e
expressou isso em palavras. O vento em seu rosto as levou até o rapaz, que
respondeu com um não – sequer conhecia qualquer pessoa naquele lugar.
Mas meu Deus que diabos faz nesse fim de mundo?
Disseram que havia ouro, e comerciantes de ouro. E encontrei uma grande pedra.
Um urro. Ouro? Gargalhadas. Ali não há ouro faz tempo. É só um lugarejo que
resistiu e não quis se tornar de todo uma cidade-fantasma. Ainda assim, alguém
poderia se interessar pela pedra. O condutor responde que havia um mercador
itinerante que talvez se interessasse. Mas só de mês em mês e partira havia uma
semana. Dan nada disse antes porque em vésperas de festa sempre aparece alguém
para visitar um desses pobres coitados.
– Eu mesmo sou um desses...
A louca da irmã de Dan mora ali. É dona do hotel. Como se fosse algo de que
a cidadezinha precisasse. O velho termina de falar, analisa as próprias palavras e
completa. Bem. Hoje pelo menos vai precisar.
Mas se ali não há ouro, em outros lugares na província mantém-se o negócio do
ouro.
É verdade. Muitos lugares...
Então?
O que não há é um meio de ir para um desses lugares agora além desta carroça.
Dan está zombando? Em uma diligência. Assim o rapaz chegara ao lugar onde pegou
a carona. Mas por que haveria de zombar? A tal diligência mudou o trajeto porque a
estrada principal estava interditada até o dia anterior.
O rapaz não queria ofender; mas insiste. E se alguém precisar sair da cidade e o
senhor não estiver?
Para isso os cavalos e as carroças dos habitantes.
E ninguém pode emprestar um cavalo?
Ninguém ali tem nada além do que necessita.

Calaram-se. Recostando-se na carroça, tentou se conformar. Está assim agora, o


olhar vago sobre a cidade desolada. O cocô dos cavalos recende sua infância, férias
na casa de seu avo. Conforme o veículo entra pela rua principal, torna-se alvo de
ávida curiosidade. Quando os cavalos fizeram a volta na praça, Érika era dona de
um olhar assim. Ele não se apercebeu. Olha as casas de madeira, o feno das
estrebarias, os lampiões. A mais terrível sensação de sua vida. O desespero das
pessoas no incêndio. A casa destruída. No barulho do vento a dor da lembrança.
Perdera os pais naquelas chamas. O seguro de vida não devolverá a vida deles.
Pegará o dinheiro e partirá dali para sempre. Então a carroça parou em frente ao
hotel. O sol se escondera atrás de uma nuvem e por instantes cessou o brilho do rifle
que Dan trazia ao alcance da mão. Velho cretino! Maggie atira-se nos braços do
irmão, que jamais entenderia como se sobrevive num lugar indecente como esse.
O irmão ainda não tinha visto nada...
O que é que eu... Ai! Um forte cutucão. As crianças – sussurrou Maggie – Olhe como
estão lindos os seus sobrinhos... – fala alto enquanto o casalzinho se aproxima.
A pequena Linda! como está linda!... E esse rapaz tão grande e robusto!... Apanhou
os sobrinhos no colo, um em cada braço. E então, o que Wagner tem feito?

Maggie perguntou quem era o rapaz.


Precisará de um quarto no hotel por uma semana.
Um hóspede? Ela já se havia esquecido.
Ele nada ouve. Eis aqui as chamas do passado. Escuta os gritos das pessoas
em todo o quarteirão, os bombeiros voluntários chegando. Era tarde. De repente
a mulher estende a mão. Muito prazer, senhora. Maggie deixa os dedos relaxados
dentro do cumprimento do rapaz. Olha nos olhos dela e entende que deverá ficar
quase uma semana naquela cidade. Para onde pensava em ir quando comprou
aquela passagem? Compreendeu enfim. Sentiu-se bem. O pesadelo estava no
passado e pela primeira vez na vida tinha uma fortuna nas mãos. Uma semana de
férias num lugar longe da civilização será na verdade um descanso. Está ali, é um
fato; um fato só pode existir de acordo com os sentimentos em relação a ele.
Pela primeira na vida, algum alívio que não provinha da idéia de suicídio.

Desolação à janela do quarto. Barulho contínuo de um moinho sem significação.


Portas e assoalho que rangem. Vozes ao longe. Passarinhos cantam em tamanho
calor? O perfil triste recebe as últimas luzes do dia. Ali, olhem o forasteiro.
Dormentes. As poucas pessoas que passam chamam a atenção por certo ar
indolente, como se houvesse mesmo um muro a rodear aquela comunidade,
impedindo que dela se saísse. Mas ele havia entrado. Súbita vontade de se
estabelecer ali.
Batem à porta. Assovio e cantarolar. Palpitar do coração. Olha o relógio. Quando a
palpitação silenciar, todo o resto será silenciado. Caminha na direção do som e abre.
Estão ali para convidá-lo. Haverá uma festa, diz Érika. No rosto o mesmo tipo de
sorriso pouco antes no de Maggie. Ele não é muito de festas. Ao lado da amiga,
Marina insistiu. É bom que as pessoas esqueçam as tristezas da vida. Ela sabe tudo
de tristezas porque é filha de um ferreiro.

Augusto Mando chegara a M* sem pretensão relacionada a ouro. Cidades que


crescem tão rapidamente como as cidades mineiras acabam com ouro pelas ruas e
sem serviços essenciais. Satisfeitos, darão um nada de sua riqueza por uma dose
de uísque, para estar com uma mulher; precisarão de médicos e remédios quando
doentes, dos serviços de um correio, de escola para os filhos, de uma igreja, e quem
sabe de um jornal – suas ferramentas de trabalho não são tudo de que necessitarão.
Necessitarão cavalos sadios e equipados e carroças em bom estado – de um ferreiro,
portanto.
A idéia da mudança foi agradável à filhas. Marina sente-se à vontade entre os
mineiros, muito mais do que entre as pessoas de sua cidade natal, onde seu pai
tinha um patrão a quem seus encantos não comoviam. Ele pagava pouco a seus
empregados, independente da beleza das filhas ou dos favores que pudessem lhe
prestar. Em sua cidade natal Marina era apenas uma mocinha a mais na multidão,
ofuscada pelo requinte das damas da sociedade e até pela beleza dos prédios. Uma
desconhecida, completamente anônima. Entre os mineiros, era uma rainha. Seu pai
fingiu não perceber.
– Mas que lugar!... – dissera Augusto então. – Nada deve à nossa cidade em
movimento; não é, minha filha?
Despida pelo olhar dos mineiros, Marina pensou que graças a Deus que as
semelhanças terminavam por ali.

O silêncio do rapaz deve ser uma vontade tímida de ir ao baile. Elas insistem. Venha
à nossa festa, estranho. Marina garante não irá se arrepender. A única condição, diz
Érica, é que não leve arma de fogo. Faca pode – diz Marina. Mas o rapaz não usava
arma de qualquer tipo e disse-lhes.
Não usa armas nessa região e está vivo?
Bem, ele não está na região há muito tempo.
Elas não escutam.
Érika acha que tem uma roupa européia, um terno. Marina não dá um mês para que
compre uma arma. Diz: O pai de minha amiga vende umas ótimas.
Fiodor resistiu o quanto pôde. Não queria saber de armas mesmo em se tratando de
subsistência. Deve haver outras mercadorias que dêem lucro; deve haver outro jeito
de conquistar a terra. Mas acabou cedendo, como em tudo.
Não tenho nenhum terno, moça. Quanto à arma, não crê mas agradece.
O baile seria às dez horas. Elas passariam às nove e meia para pega-lo. É numa
casa fora da cidade.
No meio-dia ofuscante ele sente os cheiros feminis. Gostaria que elas o perdoassem,
mas tem de recusar o convite. Não está realmente com espírito para festas.
As paredes do hotel são úmidas. Há um vazio no ar quando elas descem. Calaram-
se, entreolharam-se e depois de uma pausa Érika segurou a amiga pelo braço e a
puxou. Irada. Passos descendo as escadas e saindo do hotel. O rapaz suspira e
fecha a porta.
O delegado Alan está sentado à mesa de seu almoço trazido por Helena. As duas
moças entram. Érika aponta na direção do hotel. Acaso o delegado já investigou
esse rapaz? A voz de Marina é arrastada e desagradável. Se tivesse uma
oportunidade, o delegado daria uma lição no seu pai. Filha é filha. Ou talvez ela
mesmo merecesse uma lição. Essa voz. O estranho bem poderia ser cúmplice do
chinês. Veio para lhe dar fuga. O delegado passa a manga da camisa na gordura em
seus lábios finos. Calma, meninas. Podem ficar tranqüilas. Dan esteve com Alan e
conversaram. Ele e o chinês não se conhecem, isso ele pode garantir. Quer apenas
vender uma pepita. Nem queria ficar, mas não teve alternativa.
Diante de Dan, frescas e mornas. Seus vultos contra a luz da estrebaria. Os
cavalos desatrelados esticam-se, cascam, bufam e relincham. Como estão ficando
apetecíveis. Que cor é essa da pele delas? O senhor não é rigoroso com as pessoas
a quem dá carona. Ele nos come com os olhos. Mesmo assim, Dan se irrita. Podem
estar certas de que ninguém minimamente suspeito entra na minha carroça; ou, se
entrar, não terminará a viagem.
Então o que diz desse rapaz?
Quem, o talzinho? É um coitado...
As aparências enganam, dizem elas. Ele concordou com um sorriso sarcástico,
lascivo. Érika pensa por que os homens de M* são tão vulgares. Não chegariam
assim a lugar nenhum. O senhor acredita que ele recusou o convite? A voz de
Marina soou de novo e também Dan mentalizou sua irmã mais nova. É verdade,
confirma. E o estranho foi grosseiro com elas.
Receiam ao ver Dan aborrecido. Olhem. Andava com aquela carroça por todo Oeste,
pode se orgulhar de conhecer as pessoas. Sabe que mente. Se Maggie não fosse
sua irmã... Como entender a si mesmo? Mas garantiu: o rapaz não quer ir ao baile. É
tudo. Argumentou: não achavam melhor assim? Não seria nada bom se ele aceitasse
e depois saísse por aí... Será que esse fogo impede vocês de raciocinarem? (falava
por experiência própria). Ah, essas mocinhas estão se tornando apetecíveis demais.
Em silêncio e com as cabeças baixas, concordam com o cocheiro. Érika murmura
entre dentes. Não ligue. O estranho é meio esquisito mesmo, assim que bateu os
olhos nele, viu que não gosta de mulher.
Marina desafivela os cabelos e balança o rosto. É isso! – exclama – Vamos espalhar
que ele anda desarmado e não gosta de mulher!
Agora Augusto está chamando a filha. Marina! Que ela fosse logo terminar a
comida. Sabe que no baile não se come antes da meia-noite! E o pai estava faminto.
– Que vida – praguejou a moça.
Mas Érika pediu que ela tivesse calma. Poderia ser bem pior se não tivessem o baile.
É, concordou a amiga.
Marina!
Poderia ser bem pior se não tivessem o baile.
A camareira diz qualquer coisa que o senhor precisar. Obrigado. Um sorriso. Desfaz
a mala. Precisa tomar um banho e se trocar. Maggie lhe disse que a água estava
quente. Obrigado, senhora. Tira as roupas para entrar na tina. A própria Maggie,
Nadja e Helena sufocam os risinhos. Elisabeth, a camareira, está com elas.

Campos de êxtase eram aqueles por onde cavalgava Elisabeth todas as manhãs,
rios de nomes tão doces – Columbya, que corria a maior parte do tempo pelo
planalto sedimentar em vale profundo, Yakima, na depressão que terminava em
Puger Sound, Ellenburg, que ela atravessava exultante em comunhão com a
Natureza amiga, e o grande monte D´Or, e os vales arborizados – ao norte a fronteira
banhada pelo Oceano, terra natal de Elisabeth, terra abençoada, memórias alegres
de uma infância perfeita, de um primeiro namorado perfeito, de um casamento
perfeito. Nunca saíra dali. Sua terra, os montes da cadeia Cascade, o orvalho rosado
das manhãs, as florestas altas, os passarinhos no arvoredo, a cultura dos vales a
sudeste, e sua felicidade, o arredor de sua casa sem vizinhos exceto por Lucas
Rourke e seu filho no rancho deles bem ao longe, crepúsculo de sonho para os
lados do oceano, sua casinha, os frutos no quintal, a névoa fina que a recebia
em cada despertar ao sair pela porta de madeira rangendo uma canção de paz,
e lá ia Elisabeth trilha afora, poderia cavalgar para qualquer direção, sempre havia
um caminho mais belo que o do dia anterior, sim era feliz, sim, Christian, sou
muito feliz, chegou de tanta felicidade a hesitar ao pedido, mas não se arrependeu,
permaneceria feliz, pelo menos até a viagem para o ouro, por que mesmo precisavam
de tanto ouro?, não havia ouro por aqueles caminhos em qualquer direção, na aura
dourada dos amanheceres, a jovem e bonita Elisabeth, seus seios brancos, redondos
e firmes em uma camisa simples de linho e cambraia rendada, seus pés e dedos
gordinhos saindo das sandálias apaches – Elisabeth dos olhos claros, que refletiam
como espelhos de lagos, e os que neles eram refletidos se perguntavam o que eles
guardavam, e guardavam uma alma de menina que para colher uma flor mais bonita
poderia correr grandes distâncias, e sacrificar boa parte de seu tempo que não era
mais assim mais tão disponível desde o casamento, pois agora vivia para a casa
e o marido, o bom rapaz Christian Rourke, que tanto agradara ao pai dela como
futuro genro, e ganhara também toda a confiança da mãe, e deram-lhe a filha sem
questionamentos, na verdade com grande alegria, não muito comum a pais que estão
entregando a filhinha que criaram para si mesmos, sem lembrar que chegaria o dia
em que ela estaria em idade de se casar –- é verdade, tinha pouco tempo para
si a jovem Elisabeth, para satisfazer pequeninos desejos como o de colocar uma
flor rara e fresca no vaso da mesa na sala, colher uma linda e rara flor com seus
dedos macios e perfeitamente roliços, ah, suas mãos são níveas e carnudas, essas
mãos que Christian adora, esses braços também roliços como o das criadas negras,
semelhantes mas apenas no formato, porque a brancura dos braços de Elisabeth
era de leite, sedutoramente de leite, assim era Elisabeth, toda a alegria e todo o
sofrimento de Christian, a voz de uma ronquidão insolitamente suave, as frases
por ela produzidas era poemas de amor recitados que enlouqueciam-no à simples
hipótese de que algum dia alguém poderia entender assim o ser de Elisabeth, ver
assim a mulher que era apenas dele, nascera ela para ser sua deusa de cintura fina
por onde Christian a pegava todas as noites introduzindo o amor, a cintura, o rosto
juvenil, o pescoço delicado, a proximidade do colo que ele descobriria, o desejo –
era um bom homem, um bom marido, Christian Rourke, um homem bom e atraente,
um pouco ciumento demais talvez, mas como não ser ciumento com tal preciosidade
dentro de casa, movendo-se por sua vida?

Chega a ver o pequeno buraco na parede geminada com o quarto contíguo. Mas
não imagina. Depois, gritos em que não distinguem as palavras. Homens chamam
lá embaixo. O que os imbecis querem? Melhor ir ver. As três se levantam, ajeitando
os vestidos. Descem. Hei! Maggie fala com os homens. O que está acontecendo?
Vozes de álcool. Perguntam pelo rapaz que chegara à cidade. Traga-o e prepare
o quarto aqui do térreo… Então Maggie pediu, quase ordenou, psiu, Silêncio – Ele
pode escutar. Estão malucos? Pensam estar em Sodoma? Algo parecido. Helena
intervém. Parem com isso. Querem estragar tudo? Um outro dos homens percebe
Sheila e pergunta se ela não tem uma filha. Não mas tem plenamente a si mesma.
Passa a língua nos lábios e sorri para o jovem embriagado.

Após o banho. Quer sair, pensar. Errou para fora dos limites da cidade. Montes e
depressões, a aragem e o calor suave da tarde em sua pele. Olha para trás e lá
está M*, a torre da igreja dominando todo o cenário. O que será? Com o dinheiro
comprará uma casinha ou viajará pelo mundo? Ali é a janela de seu quarto no hotel,
pequenina, do lado esquerdo da estrebaria. Do outro lado a taverna. Fumaça. Rolos
cinzentos das chaminés, único sinal de vida. Adiante vislumbra um vale muito
verde e um lago onde adivinhou um lugar perfeitamente adequado para meditar.
Caminhou muito antes de chegar a ver novamente o lago, de uma outra elevação.
Desceu pela encosta verdejante e conforme se afastava da cidade o ar parecia mais
respirável. Aspirou, segurou nos pulmões e soltou de uma só vez. Oh, agradável
entorpecimento!... Uma aragem. Ligeiramente ocultas por árvores, as águas do lago
estão encrespadas. Passa a ouvi-las... as águas... as águas... Mais além, o mar.
Enche-se de paz.
Cheiro de mato. As cores da Natureza. As flores e os troncos das árvores. O azul do
céu confunde-se com o do mar. A leveza da tarde. Arranca e coloca na boca umas
frutinhas vermelhas que nascem nuns arbustos. E a vê...
A respiração quase parou. Se aproxima. Que emoção é essa? É ela? Uma artimanha
do destino? Cansado, não sente o cansaço; mas senta-se: é uma ordem expressa
do corpo. Talvez a umas quinze jardas, a verdadeira pérola. Absolutas certezas.
Desviara seu caminho planejado para conhecer a jovem oriental de vestes terrosas.
A vez anterior havia uma semana e pouco, pouco antes de seguir caminho e
encontrar a pedra (ainda um pouquinho e Dan lhe daria a carona). Ali estava. Bela,
não muito na verdade, bela o bastante. Uma luz magnífica na inclinação do sol e sons
de animaizinhos, sombras de árvores, murmúrio das águas e a serenidade do lago.
O mais adequado cenário para um milagre.
Porque a chinesinha possuía uma expressão bondosa, cativante logo à primeira
vista. Sim, alguém poderia ser feliz com semelhante amada, boa e atraente, meiga
e trabalhadora, aonde a levará quando estiverem juntos? Quem havia desistido do
amor e da própria vida… Ah. Ela não está com a menina. Isso dá uma perspectiva
de intimidade que da outra vez, ao não existir, tornara-se razão de seguir caminho,
como se não a tivesse visto, na praia. Então num vestidinho largo de algodão que lhe
acentuava as formas. Gritinho de criança. A menina corre até a areia dura junto às
ondas. A mãe está pálida mas há um tom afogueado na têmpora, como se estivesse
febril, resquício talvez de antigos vícios. Nada de que deverá se envergonhar, instiga
interesse e compaixão. Uma jovem com um passado. Isso era quase tudo. Porque
longe estava o tempo das estudantes à sombra das quais seu senso erótico e
estético andara se abrigando ao longo da vida. Rugas de expressão dizem de uma
luta constante contra a dor, filho de quem ele não podia duvidar que fosse, sua irmã,
portanto.
Em tardes assim a vida não tem pressa. Os pensamentos se recusam a uma
conclusão, como nuvens que se perseguem. Longe de ser um capricho da natureza,
é uma necessidade do momento. Taiorie não percebe a chegada do estranho.
Continua a se refrescar, a mão esquerda no braço direito, a direita no outro, as duas
ao rosto. Um rosto singelo, sem mácula. Ele tem certeza. Encontrou uma mulher
digna. Frágil, e não o é ele também? Também. E mais agora, absolutamente fraco
e, por isso mesmo, forte como nunca. Mas não será precipitado pensar assim, sentir
dessa forma? Amor à primeira vista ou lá o que seja. Não importa.
Um rosto triste. A mais triste expressão num rosto humano. Bondosa. Outra pessoa
poderá emprestar à própria face caracteres tão marcantes de bondade? Flor de sua
tarde. Assustada, faz menção de fugir. Os olhos dele suplicam que não o faça, e ela
obedece. Ao redor os montes se erguiam entardecidos, ensombrando os recantos do
vale. Há uma canção na paisagem e ela também a escuta, porque dá forma às coisas
que sente.
Um odor amadeirado de lago. Atravessam arroios sobre seixos e retomam o caminho
da relva rala e muito verde envolvidos num ar de sonho. Distantes da emoção do
amor, renovam o amor na brisa calma e no murmúrio de águas. Vivem por terem
esquecido, vivem pela intuição. Estão preparados. Tudo assim sossegado. A vida
fora da vida, é dessas interrupções no cotidiano que surgem as descobertas. Ali
são madressilvas? Logo ele irá perceber que toda resposta dela vem através dos
olhos, às vezes por gestos. Agora desvia esse olhar para as flores. Olhos puxados,
semicerrados, dois riscos no rosto. Adianta-se. Fazia tempo. O medo nela era
inverso, recém se dera e se dera mal. Não, não por amor. A blusa freme. Caem as
folhas. Rompe-se o muro entre ela a estranha e ela a quem um homem conhecerá
totalmente – no tocante às montanhas, às florestas, ao lago, ao sol e ao vale, pelo
menos.
Que importa afinal? Deus aprouvera puni-la, tirar-lhe a filhinha, a única filha, seu
único laço com o afeto. Deus o aprouvera. Nem sofre tanto assim, anestesiada.
Desperta para o amor porque precisa sobreviver. Um amor deve significar também
outro filho. Ele sente certa indiferença, como se fosse um amor indireto; mas nem
liga. Faz tempo que o desejo vinha crescendo, precisa desse amor. Pode faze-lo
sublime. Há todo elemento conveniente, essa desbanalização da tarde por meio do
passeio, a perspectiva do alívio após a venda da pedra. O que menos precisa é da
chegada para viver esse caminho.
Ela sabe tudo, por intuição. Nada sabe. Nada específico, mas um tanto que lhe
basta. Eu, que nada sei, que nada entendo, pensou ela, importava-lhe sentir o prazer,
a gratificação que aos demais seres parece tão fácil, tão natural. Que o estranho
chegasse os lábios pelas suas espáduas no movimento ansioso da demora.
Quem é este que chegou sabe Deus de onde?
O sol que sumira havia uma semana tudo tinge de luz. As árvores. Se você tocá-
las profundamente transformar-se-á em uma. Diz o quanto se sente sozinho, assim,
como se estivessem conversando há horas. Tudo que ela tem como resposta é seu
olhar. Não dá para explicar um olhar. Ao tentar, perde-se seu verdadeiro atributo. Ele
não comenta a respeito. Diz: sabe o que estou sentindo. Ela talvez não respondesse
com palavras, mesmo se pudesse. Deseja o mesmo que ele; basta. Talvez ela
lhe pedisse isso – pediu, de algum modo. Essa respiração. O vestido amarrotado.
O balanço da correntinha. O caminho. A referência. Aqui. Dedos e elástico, aura
de um cheiro forte e adocicado. Mais devagar. Cílios de sol na s folhas, raios de
sol penetrando os ramos. A terra úmida e tenra, a aspereza da pedra. O sulco, o
arrepio e o grito. Continue. Ela está a ponto de chorar mas se contém. Isso ele não
entenderia.
Nem para um ou para outro é algo novo, mas é algo novo, porque em algum lugar,
em algum momento, houve uma transformação. Questão de sobrevivência.
Há o momento de entender por que timbram coisas antigas e futuras como se não
existisse o tempo, ou eu mesma, pensa ela, e eu também – e eles em um só corpo
fossem o tempo.
Ninguém nas proximidades. Nem mesmo um distante eco de M*. Ele deu por seu
cansaço e por meio do cansaço considerou que caminhara mais do que a princípio
imaginou. Estão sós no vale. Pelos anos seguintes será assim.

A habitação suntuosa em estilo vitoriano é talvez a única prova de que M* teve um


passado próspero. Oito horas de uma noite fresca. A pequena multidão passa pela
avenida central; muitos vão à opera. Ali estavam Fiodor e Helena, felizes. Acertaram
ao se mudar para aquela linda cidade. Amo-te, diziam com freqüência. Os filhos
seriam bem educados ali e felizes também. Fiodor vê Dan passar por ele. A casa
de ópera está abandonada. Maggie ofereceu uma recepção quando da sua primeira
visita. Uma lágrima no rosto anguloso do juiz. Hoje não haverá recepção alguma.
Fiodor comenta com a mulher que todos passaram um pouco da conta na bebida.
Não acho, dissera Helena. Então ele percebeu também que ela estava embriagada.
E pouco depois, a festa passou a ser um evento mensal. E a partir Helena dali estava
mudada. São quatro da tarde em M* e faz calor. Por Deus, faz muito calor.

Dez aposentos. Dois fazem parte do palco; outros quatro da platéia. Dois nos antigos
bastidores. O lugar onde entrarão à noite e achar-se-ão. O prisioneiro olha pela janela
do cárcere. Mortalha noturna. Camarotes, escadaria, corredores, bar, banheiros.
Paredes púrpuras e tapetes purpúreos. Fiodor não imaginava que capricho era
aquele.
Poltronas pelos cantos, quartos, camas, maletas e valises. A costureira logo estará
deitada, chorando. Não sou santa mas sou uma pessoa decente. Os camarotes
não foram modificados. Sequer foi preciso tapetes purpúreos, pois já havia tapetes
purpúreos; apenas as paredes foram pintadas dessa cor.
Diana, filha de Jeiel, o farmacêutico, viúvo doente que só se levanta da cama para
atender os clientes. Ela está no salão ao lado do antigo palco. Aleluia, diz Marina! Até
que enfim!... Era difícil compreender por que a jovem não ia às confraternizações.
Estão felizes porque enfim se decidira. Veja, Marco. Carne fresca... Maggie diz que
Marina não deveria falar assim. O que Diana pensará? – Que somos felizes – Sim –
insistiu Marina – são felizes apesar de viverem em M*.
Marco segura a mão da jovem, olha para ela, volta-se de novo ao rosto de Marina;
seus sentidos se agitam com as sombras que vão e vêm e o barulho que fazem e o
cheiro que exalam, e tudo isso afeta Diana além do imaginável – os dedos de seus
pés estão contraídos nos sapatos de couro, não lembra como foi parar ali, nunca
deveria, mas não se lembra, teria sido envolvida pelas vozes? Ah, as vozes, as vozes
ecoando em seu cérebro como o ranger de uma de uma porta eternamente aberta
diante das criaturas que a devoram.
As escadas escuras não dão em parte alguma. Maggie diz: meu amor me espera;
precisa ir, deixá-los-ia a sós. Entregara a esse amor a vida inteira. Os amores de
Marina a esperam também, sem vida. Até logo, Diana. Que Marco cuidasse bem
dela. Oh sim. Ele estava preparado. O friso nas margens do carpete, dourados,
chegam a cegar. Será uma noite inesquecível. Na volta do fim da escada, Maggie vê
Dan. Sorriem. Marina prossegue na direção dos homens acabados de chegar. Seus
pés também estão contraídos, duros. Olá rapazes. Estão sequiosos. Val não está
aqui? Sabiam que fugiria na hora.
Grandes espaçosas mãos, grandes olhos injetados. Ar pesado sob o teto. Esse belo
rostinho sem-vergonha! Cabelos curtos desgrenhados. Érika não se conformava.
Você não vai se pentear antes de irmos? Boca exageradamente vermelha, hálito de
vinho. “Saída”. Nadja entra no mesmo aposento.
No grande quarto construído a partir de um dos camarotes do lado direito, Alan pede
que a mulher interrompa a dança, É um instantinho só, querida. Recebeu à parte os
homens um por um. Sua parte. Entrega um maço de notas. O homem as colocou na
calça. Helena nunca vira antes o oficial de justiça na cena habitual. A coisas talvez
estivessem saindo de controle. Logo haverá mais pistoleiros do que executivos e
políticos no esquema, como nos tempos da mineradora. Os movimentos labiais são
inequívocos. Cinqüenta por cento. O aposento é assim tão grande ou há uma ilusão
de ótica? Sentada, pensa no chinês. Talvez devesse estar lá, consolando-o.
Cinqüenta. Nada a menos.
Sejamos razoáveis. O Governo demorou para aprovar o gasto.
Walt entra e dirige-se para Helena sem tomar conhecimento dos demais. Da janela
aberta entra uma brisa úmida. E eles com isso? Combinado não é caro. É preciso
conter essa gente. Estão perdendo a noção das coisas. O fato de ser o delegado
não implica mais na autoridade devida. As coisas estão saindo de controle. Nada
decerto que deva fazê-lo recuar. Encostado contra a parede, seu rosto sereno nada
demonstra. O mês que vem virá em dobro. O homem se afasta, não satisfeito, mas
tudo certo. O mês que vem.
A situação se repete com cada um. O governador não irá descumprir suas
promessas. Todos se contentam. Fazer o quê? O último, antes de falar com Alan,
relanceou os olhos na direção de Helena e Walt como quem não está vendo. Hum.
Ele tem é muita pose, e só. A noite descia para dentro da casa. Chega a pensar na
família e em possíveis conseqüências. Deixemos para lá, agora é tarde. Diante do
delegado. O governo pensa mesmo em reconstruir M* a partir de uma ferrovia?
A mulher retoma a dança. Alan se sentara novamente. Uma ferrovia... Verbas de
todo o tipo. A idéia o excita, mais do que os movimentos da mulher. Seja como for, é
no colo de Walt que ela se deixa após a última peça. Mais. Outra vez. Walt imergiu
no perfume dela, cheiro de uma floresta. Prefere o cheiro dela ao das notas novas
estalando. Acredite. Prazer louco! Pois sempre tivera a fantasia de se exibir com uma
terceira pessoa presente. Que delícia! E de alguma forma Helena devia isso a seu
patético marido. “Quanto eu amo você” – foi isso o que disse ao introduzir o pedido?
Algo assim. E ela chegou a se sentir feliz, a noiva, precisava admitir: sentia-se feliz.
Os tempos eram outros.
Apressando-se ao longo do caminho na direção da meta sempre fugitiva, o delegado
desliga-se da ferrovia, dos membros, dos valores e do futuro, com mãos tremulas.
Sou um filho de Deus, pensou depois de uma satisfação sempre frustrante; teria sido
um homem bom se tivesse sido alertado antes que a virtude e o vício são em se
mesmas a recompensa e o castigo.

Quando decidiram permanecer na cidade, cada qual tinha as próprias razões.


Nenhuma naturalmente apontava para a casa de opera desativada, que foi uma
conseqüência quase natural da mistura do que é inerente à cidade grande e das
coisas peculiares aos pequenos povoados. Na época do ouro, o hotel de Maggie
ostentava uma grande pedra de mármore à entrada, depois vendida para uns
homens do Leste. Aproveitaram-na no hoje famosíssimo Taehung. As ruas eram
de excelente iluminação. Nas canaletas corria discretamente o esgoto, mantido pela
limpeza pública de uma administração impecável. Contra a sonegação e outros
descaminhos, tentou-se até impedir a circulação do ouro com uma Casa de
Fundição. Mas exercer controle direto sobre a produção mineira terminou por atrair
todo tipo de desvio. Havia uma menina que costumava levar seu cão feroz numa
coleira para passear todo fim de tarde, mas acabaram proibindo isso, por causa da
integridade das pessoas. Ela era filha do farmacêutico. Diziam que não existe coleira
no mundo que possa impedir uma tragédia nos momentos da ira de uma cão. Ela
chamava seu cão de Vocabull.
Por toda a rua principal havia muitas árvores agradáveis, depois cortadas por uma
necessidade inelutável de lenha. Com a exaustão dos veios, a própria Natureza se
voltou contra a cidade – no verão um calor sufocante, no inverno um frio insuportável;
pó metade do ano e lama na outra metade. Os poucos espelhos tornaram reduzida a
quantidade de reflexos de luz. A profusão de bares e prostíbulos não deixou marcas.
A única coisa parecida é a taverna de Alfonso Negrini, apenas um ponto de encontro.
Os moradores já não precisam de um bordel.
Tanja chegou a pensar por causa da demora que Afonso não viesse mais. Diz-lhe
isso quando ele chega. Abraça-o. Que bom que veio. Aproxima-se. Ele a traz para
junto de si e a abraça. Diz que demorou só para deixá-la em suspenso. Imagine. Só
para deixá-la em suspenso. Que nada. Mais que isso. Sabe do que ela gosta. Ah,
quem diria. Quando a viu pela primeira vez, não pensou que pudesse ter algo com
uma mulher tão respeitável. Sai do canto, pelo centro do aposento, a passos lentos.
Está perto de Afonso, mas quem olhasse com atenção perceberia certa distância
a mais e um demasiado contraste das cores de suas roupas. Pensou que ele não
viesse. Ora, por nada neste mundo.
Como sempre ela falou em amor, com seu sotaque do sul, numa entonação insegura.
Como se adivinhasse. Ela diz para não perderem mais tempo, querido, nosso tempo
é curto e para vivermos uma noite tenho de suportar um mês de tédio sem fim.
Ele responde que fará, minha potranca, essas horas compensarem plenamente seus
dias de tédio e os meus de desejo. Diz que inventa roupas estragadas só para vê-la.
Ela pede apenas que ele seja delicado, ela adora qualquer coisa desde que seja com
delicadeza. Não gosta de violência.
A mulher que entrou diz que gosta.
Nunca o perdoará. Ela então teria de desculpá-lo mas seria uma desatenção não
atender Maria. Continua entrando, esbarrando acintosa em Tanja, que chorando
esgueira-se corredores afora. Maldito.
Afonso chama. Vem cá. A bofetada soa e Maria cai. Senta-se nas costas dela,
apanha uma porção abundante de seus cabelos e puxa-a para trás. Vergada num
limite inimaginável. Devolve-a ao chão; o assoalho ecoa na noite. Cruza-lhe as
pernas de modo que com sua perna a imobiliza e a traz pelo laço do vestido. O tecido
se rasga. Trabalho para Tanja, diz. E riem. Forçada a ficar de joelhos, ela submete-
se sem pesar. Assim.

Afonso e Maria podem ser ouvidos do outro lado da parede mas Augusto e Margot
não prestam atenção. Ela brinca com um pássaro ferido.
Era um homem cujos sentimentos sempre estavam ligados a algum fenômeno físico.
Não se perguntava sobre certo e errado nem nunca pensou em corromper ou abusar,
muito menos alguém que amava tanto. Imaginara dar à filha uma boa educação, até
porque precisara fazer papel de pai e mãe. Ali está ela. Sorri, alegre no balanço,
equilibra-se no alto do muro. Isso foi na última cidade em que estiveram antes de M*.
Lá a mulher o abandonara. Refletiu num determinado toque o quanto ela era jovem
e bonita, demais para alguém como ele. Agora a menina está comendo a comida que
ele diariamente lhe prepara com minúcia e deixa-lhe ao ir trabalhar. Sorri ainda. É.
Pode ser que a mulher o tenha deixado já em M*.
Diz a si mesmo que está melhor agora, se convence de inocência, por que seria
o tal canalha miserável que a mulher acusava – naturalmente um raciocínio parcial
de mulher despeitada quando percebe que perdeu; e a menina não, era pura e
continuou pura ao crescer, fecha os olhos agora, olhe quanta pureza, o ar se enchia
de bichinhos da noite, não há qualquer razão de culpa. O quarto é pequeno e agora
ainda mais.
Ela move a mão como que vencida, ou talvez vitoriosa, demorará a saber, ou nunca
saberá, na verdade ignora tais conceitos, simplesmente não sabe e perdeu a vontade
de chorar desde que soube que está grávida do pai.

A jovem esposa do agente dos correios teve tudo que o dinheiro pode comprar.
Armand era um bom administrador do patrimônio que ela dissipava com ardor.
Sheila é jovem, bela, educada, culta. Seu par nas festas costuma ser Marco, mas
como nessa noite está ocupado com a iniciação de Diana, ela ficou num canto,
conversando com a mãe do delegado. Sheila tem quarenta anos. A senhora Carol
teve Alan com quatorze. Uma senhora ainda atraente e muito educada. O lampião
no alto impede a escuridão total do aposento. Sombras bruxuleiam na parede
sanguínea.
Ela não entendia. Uma mulher como a senhora parar numa cidade como M*. O
delegado foi nomeado numa cidade em que só se pensava em bens materiais e
onde se ignorava totalmente as delícias do intelecto, como as conversações, bem
supremo da alma, alimento dos espíritos nobres. A mãe diz que é realmente uma
pena. Meu filho e eu enveredamos por caminhos sem nada em comum. Sheila
sugere que talvez sim ainda tenham alguma coisa. Pergunta: não está com calor
com esse xale? Carol se ilumina. Revela-se para ela o poder da casa, como o poder
de uma lembrança, embora fosse sua primeira vez desde a morte do marido. Sim,
está com um pouco de calor. Poderia tirá-lo para mim, por gentileza? Os lustres altos
balançam sobre elas.
Lá fora, a noite era inquieta como um animal acuado numa jaula. Jim ouve os galos
ao longe, profetas do amanhecer. Ao canto junta-se a voz dos cães, latindo de longe
em longe, e corvos grasnando presságios.

O entardecer distante de qualquer lugar conhecido, ou sentimento, escritas no céu


estrelando-se palavras encorajadoras. O lago, o distante barulho do mar, o amor ao
lado. A imensidão do amor e do crepúsculo. Liberto do passado e do futuro, eis que
vive, ao lado do amor; mãos dadas são asas.
Copas ensombradas, flores brancas. As estrelas cintilam. É uma noite especial, não
há dúvida. Caminham há mais de duas horas. Atravessaram arroios e riachos sobre
seixos; retornaram ao caminho da relva rala e muito verde. Às vezes passam por
tufos de onde surgem os arbustos com frutinhas vermelhas, que comem. Ele a leva
pela mão e ela se deixa guiar. Como? Ele a guia. Ela se deixa. Uma mulher que
se permite novamente, sim, mais uma vez. Lembrar-se-ão disso no futuro? Saberão
para sempre o respeito que se deve a esse tipo de acontecimento?
Mas antes o irmão. Nunca foi uma menina de família, agora tem a necessidade de
sentir que o ama. Porque não acha que seja de todo má. E agora se sente forte de
novo. O irmão. Fará algo por ele, algo que não conseguiu fazer pela filha. Essa paz
que a cerca produzirá fruto. É uma sensação forte de vida no toque sensual. A força
também renasce ao lado, nele, e desafia insegurança e medos. Uma nova vida. Eis
a cidade lá embaixo.
Sinais. Ela esperará ali. Sinais. Algo como quadrado, cruz, não... Cárcere. Isso. O
quê? Falar com o delegado? Não. Ela gesticula mais e mais ansiosa. Braço? Veias...
Sangue... Do mesmo sangue... seu irmão? O que aconteceu? Está preso? Sim. Meu
querido.
O que fez?
Nada. Estão enganados.
Verá o que pode fazer. Pergunta por que ela não vai junto. Medo? De quê? De que
tem medo? Não o quê?
O homem, o momento; a Natureza testemunha. Por favor, meu anjo, apenas vá.
Ajude-a. Um gesto de confiança. Ele diz Obrigado. Espera merecer essa honra.

Os bastidores do teatro, agora uma espécie de adega. Descem. Mais garrafas de


uísque e absinto. Cada degrau da escada provoca calafrios em Val. É o filho de
um dos homens que estão com Marina. Que lugar é este? Tímido, medroso, mas
veja sua excitação, espírito que quase se confunde com intrepidez. Érika o conhece
bem. Jamais veio à Casa de Opera. Ela própria o convidara. Ele estará enfim com
sua deusa. Os homens fazem sempre o que queremos, Marina, ela costuma dizer
à amiga e repetiu ao saírem da delegacia. Val. Basta-lhe imaginar. Por esse prazer
submete-se. Veste um terno de algodão coenizado, uma camisa de seda javanesa e
um coat de gabardine. A própria Érika confeccionara. Quando o estranho entrava na
cidade vestia essas roupas.
Val não tem o que dizer mas fala. Baile sem música é estranho, não é? Em algum
momento ela estará à disposição para que ele realize os antigos sonhos que ainda o
prendiam a M*, a própria razão de sua permanência em M*. Não entende esse olhar.
Continua falando. Estou bem assim?
– Está ótimo, cavalheiro...
Os trejeitos dela o deixam constrangido e excitado. Música? Ele não está escutando
essa que toca só para eles? Nada ouço, pensa, mas tenta. Porque ela está
deslumbrante no longo vestido justo de musselina rebordada em fios metálicos.
Compensa todas as suas esquisitices.
Manda que ele repita: Sim, querida, esta será a nossa música. Ele o fez. Ela quase
se emocionou de verdade. Meu amor... Sabe que chegou o dia. Será tirada daquele
lugar e levada para longe. Ele sente ter chegado a hora. Os ombros de Érika reluzem.
Suas coxas são emolduradas pelo tecido. O corpo tanto tempo desejado. Chegou o
dia.
Ela fecha os olhos e se vira de perfil; ele apanha a garrafa de absinto. A metade
de um só gole. Não sabe mais como manter a conversa. Leva seus lábios aos dela.
Correspondência apaixonada. As mãos sôfregas tentam abrir os laçarotes. Érika
mantém os olhos fechados, murmura coisas incompreensíveis. Uma moça deliciosa.
Val não procura sentido, desde que ache o que o procura.
Deitada sobre a mesa na adega. Entre a seda, generosas partes de intimidade
precedem mãos e lábios. Enlouquecem-na também. Pronta para recebê-lo, abriu os
olhos. Ele tirara as roupas caras de Paris! Diante dela apenas o filho de um mineiro,
com o peito cabeludo, mãos calosas e hálito de absinto.
– Idiota!
Esbofeteou-o e ordenou que apanhasse as roupas no chão e as colocasse de novo.
Ele pensa em revidar mas lembra de que há muito comprava fiado no armazém de
Fiodor e obedece.

Poeira no rosto e os olhos claros reluzentes. Entra na cidade vazia. A delegacia.


Ninguém. O que faz ali? O irmão da chinesinha está preso, deve interceder por ele.
Olá! Jim se agarra às barras de ferro da cela e diz Estou aqui. O outro aproxima-
se. Por que deveria temer? Ah, precisa deixar de ser assim tímido. Impede-o de
realmente viver. Estão agora muito perto, separados apenas pelos ferros. Então
Taiorie conseguiu mesmo alguém, como disse que faria. Por que está ali? Como
assim, porque estou aqui? Para ser enforcado, amanhã, quando acordarem.
Pouco consegue reter além disso. Os detalhes, as implicações, tudo relacionado a
esse fato, Jim não mais consegue reter. Ia morrer e só. O redor está embaçado, os
sons silenciados, os objetos sem peso, não sentia mais cheiros.
O outro está feliz, não deve esquecer, está apaixonado e em paz. Talvez até febril.
Mesmo assim precisa saber o crime cometido. Sou oriental.
– Não acredito – mas a reação reflete o medo de acreditar e ter de fazer alguma coisa
a respeito, como prometera.
Dizem que matei alguém. Por que deixaria sua vida plena nas montanhas e viria
perder tempo matando os mortos?
E por que veio?
Procurar o pai; mas não quis saber e o delegado o acusou.
Por que um pai rejeitaria?
Não estava ali para livrá-lo mas interrogar, pensa Jim, e pergunta: O que você quer
afinal?
Fazer a coisa certa.
Está num lugar estranho para quem se preocupa em fazer a coisa certa.
Quem sabe agora descubra algo sobre a estranha cidade cujo ar pesado voltara a
respirar. Já saberia se tivesse ido ao baile em que estão neste exato momento. O
baile... Sim, o convidaram. Está cada vez mais envolvido numa coisa de que não quer
participar. Sabe que o chinês fala a verdade, não pode mais escutá-lo. Diz não gostar
das insinuações. Essa gente boa lhe dera abrigo. Deve-lhes isso, ter conhecido a
irmã dele.
Está mesmo apaixonado?
– Para sua sorte.
Jim é inocente mas está preparado para morrer. Se não acredita, deixe-o em paz.
Estivera a vida inteira em meio a essa desconfiança. Está cansado. Melhor morrer de
uma vez. Eram semelhantes, talvez as semelhanças os separasse, como o espaço
que há entre a pessoa e o espelho. Já disse que vou interceder por você junto ao
delegado.
Meia-noite. Pássaros da noite rodeiam o cárcere. Não há tempo. O delegado só virá
com a manhã, diz Jim. Como se houvesse afinidade entre aquelas pessoas e a luz.
Irei para o hotel então e pela manhã... Será enforcado. Já desistira de lutar, por que
mais essa inútil esperança? Me ouvirão, diz o estranho como a pedir desculpas; diz
e sabe que não ouvirão, acredita em Jim, sua alma está ligado à dele.
As coisas que ouvira e presenciara da cela. Como poderia Jim leva-lo a crer? Coisas
de que até o Deus de sua inocência duvidaria.
A imagem de Taiorie e seu gesto de confiança. Vai até a mesa, mexe nas gavetas,
acha as chaves, abre a fechadura.
Jim tem um ranchinho nas montanhas. Um lugar inacessível para aquela gente. Se o
culparem pela fuga. É seu. Taiorie sabe onde é. Leve-a para lá, não a deixe jamais
vir aqui.
Caminha pelas desertas ruas sombrias, pode ver os fantasmas de sua juventude;
mas nada vê, nem a própria rua adiante, nem o céu estrelado acima. Um estrondo. A
delegacia desaba. A poeira ainda sobe. Não será visto como um cúmplice.

Na verdade, há música nos salões. Alan escuta. Apanha o violino e começa a tocar.
Está aliviado. Ou mais ansioso, por sua mediocridade. Não têm uma missão no
mundo? As pessoas estão encostadas nas cadeiras da platéia, deitadas no tapete,
sobre peças de roupa que não se pode saber de quem são. Garrafas nas mãos e
o tom das paredes nos olhares. Ali o barbeiro, tonto; caminha para a mesa onde do
banquete. Acolá Nadja. Muitas mãos passeiam por seu corpo. Alguém derrama vinho
e todos aceitam o brinde. A seu lado, Marina dança para eles. Ela não comete a
indelicadeza de trocar o nome de nenhum dos homens a quem se dirige. Então os
desafia. Ainda preferem aquele rapaz insosso?
Olham uma à outra. Desaparecem os homens ao redor. A menina que já não é. A
experiência almejada. Certamente, pensa Marina, Nadja imagina esse tipo de coisas
desde sempre, mas posa de normal, simplesmente sexy. Todas as mulheres são
assim, essas mulheres mais velhas que vivem dizendo o que as filhas devem fazer e
o que não.
Todas as jovens querem ser mulheres feitas. Nadja sabe que Marina jamais se
casará por amor, não saberá o que é tamanha felicidade. Porque ela é bem casada,
sim. Ainda olha Ian com amor. Ou será outra coisa esse sentimento? Ódio?
Indiferença? Que importava? Tinha um marido. Um homem para dizer seu.
Para Nadja não basta o marido? Por que precisa se exibir para esses homens que
Marina conquistou?
– Nós damos conta, doçura...
Eles têm, diz um outro, o que elas precisam.
Um tempo, bem pequena, Marina saía em primavera, pensando no amor. Amor era
a camaradagem que nascia do desejo e o grande sol vermelho no horizonte que
durante toda a luz da tarde se anunciava em meio às colinas. Agora sabe que amor
não passa do próprio desejo, vinculado à posse. Assim é a vida. Não foi ela quem
determinou o instinto dos homens; aprendeu a usá-lo.

À mesa chegam de todos os lados os convivas embriagados, metendo as mãos nos


pratos coloridos dispostos ao longo da toalha vermelha quadriculada – grandes pães
caseiros, biscoitos de milho, carneiro grelhado, tortas de maça feitas com sorgo no
lugar do açúcar de que M* há muito carecia; toda espécie de caça ainda encontrável
na região, antílopes, lebres, esquilos – mas as mãos optavam pela carne de porco:
toucinho, lingüiça, costela – tudo muito gorduroso.
Durante o transcorrer da festa, houve um vislumbre em cada um, diferente em tempo
mas comum a todos.

Noite, noite, as estrelas acima, perdi a conta dos dias que estive preso, pensa Jim,
esquecera a ultima vez que consciente esteve envolto por uma noite assim, fresca,
não muito, não são comuns noites assim na Ásia, ele lembra, o dia em que chegou
à América, quantos sonhos abortados, mas ao se afastar daquela cidade maldita, ao
se ver longe de M*, eis estará pleno sob semelhantes noites, livre para construir um
futuro, enfim, ah, noite, sob as estrelas, pensa, estou livre.

No dia seguinte, a vida voltou ao normal em M*. Antes do amanhecer reiniciam a


lida da sobrevivência. Um pacto silencioso. Ninguém falava no baile até as horas
próximas ao baile seguinte. O delegado só sentiu a falta de Jim à noite, e mesmo
assim não deu qualquer importância ao fato, afinal não chegara a haver o
assassinato de que ele era acusado, o que nem o próprio Jim sabia. Ninguém
relacionou a fuga a um cúmplice, menos ainda ao estranho, nem mesmo quando se
soube que ele havia se estabelecido nas montanhas com uma jovem oriental.
Por outro lado, se encheram de interesse ao saberem que ele encontrara alguém
para partilhar a vida e ficaria – Sim – disse Dan para sua irmã – Foi o que ele me
disse. Porque se sentiu obrigado a justificar por que não mais iria com Dan.
Faz a encomenda de uma carroça – Ah, mas precisa trazê-la para que a conheçamos
– diz Augusto. Marina ratifica. É verdade. Pois vivendo assim perto faz agora parte
da família. Enfática quando ele parte, deseja-lhe toda a felicidade do mundo.
Ao norte da casinha corre um rio de águas translúcidas. O verde exuberante que
sobe, um ano depois estará para embranquecer. Outra visão de glória: Taiorie dá
à luz uma linda menina. A exultação todavia não dura. O leite secara no seio
da mãe e a criança chora em desespero. Claro, dariam um jeito, tranqüilizou-os
Fiodor. Poderiam cuidar de uma cabra até mesmo dentro de casa, quando o inverno
chegasse. Érika riu. Ah, as crianças... São uma benção de Deus... – Sobretudo –
acrescentou Marco – o ato de fazê-las...
Fiodor providenciará agora mesmo. Ele assentiu. Quer resolver o assunto e voltar
para casa, pensa ao tropeçar no pé em seu caminho. Cai junto a uns sacos de
ração. Érika pede muitas desculpas, contendo o riso. Não tem importância.
Ao entrar na mercearia com o delegado Marina diz quem é vivo sempre aparece
e pergunta acerca da esposa. Casaram mesmo ou estão apenas morando juntos?
Casar-se é muito importante.
Olhou-a. O que era importante? O que era coerente, decente, o que deveria julgar
relevante? Faz tempo não perde seu tempo com isso. Cada qual decida. Ele não
iria julgar nada ou ninguém. Omissão? Nada disso. Mas por que deveria ter tal
pretensão? Cada qual conhece a própria vida, a vida pregressa e o futuro desejado.
Quanto ao presente, vivamos e deixemos viver.
Bom que tenha vindo. Pois, falando em orientais, ultimamente o delegado pensava
muito naquele prisioneiro, aquele fugitivo, Leonard se lembrava? Era a única pessoa
na cidade quando ele fugiu. Prontamente Fiodor lembra que ele próprio, Armand, e
Jeiel também estavam na cidade e teria mais motivos para ajudar o chinês, já que
não acredita que seja culpado.
Subitamente colhido pela hipótese, o delegado se cala. Fiodor, Armand, Jeiel e a
própria Diana, que saiu cedo da festa; e desde então jamais tornou a falar, entrou
num mundo próprio a que ninguém tem acesso. Quanto a Armand, desde aquela
noite não se soube mais dele.
Bem, bem, não é importante, concluiu o delegado.
Marina diz que não atrase a vida de Leonard; ele precisa saber das cabras. Sheila
entra para as compras, o semblante decaído. Não se conforma com o sumiço do
marido. Um bode bom, apesar de tudo. Sacudindo a poeira, Leonard levanta-se. Vão
até o rancho onde Christian agora vive só. Morre para pedir notícias de Elisabeth
a Fiodor, mas se contém. Acertam o negócio. Uma fêmea e um macho prontos
para o acasalamento, e uma cabra com cria. Fiodor se encarrega do transporte dos
animais.

O céu crepuscular assim vermelho em nada combina com o aguaceiro que se


anuncia. O cheiro tampouco é o da aura de chuva, muito menos o de aromas
noturnos. Os primeiros pingos, grossos. A angústia toma conta de seu espírito.
Estavam em novembro e poucas coisas boas haviam marcado o período. Tão
diferente do tempo em que Halmah ainda não havia nascido.

Quando Halmah não havia nascido, a vida era melhor; a vida era mais fácil. A
menina quase levou a vida de Taiorie no parto. Por causa da menina, teve de reatar
relações com as pessoas de M*. E agora por que outra razão teria sua mulher de ir à
cidade? O bebê não dorme à noite, com dores de ouvido ou nas gengivas. Bem, mas
ele mesmo disse à mulher: uma vez estivesse lá, seria bom aproveitar e dar um pulo
na mercearia. Ajeitou os agasalhos na sela e calcou os flancos do cavalo.

Avança num galope louco. O vento e a chuva, chicote gelado em seu rosto. Precisa
sofrear. A montaria, relinchando, gira sobre si mesma, empina. Leonard cai. O cavalo
se aquieta a seu lado. No chão. Sente-se ridículo. Por que perdia assim o controle?
O feixe de luz caminha à sua frente. Nada tinha acontecido. Os habitantes de M*
eram frívolos, devassos talvez, mas inofensivos. As nuvens ignoram a luta interior,
tornam-se cada vez mais baixas. Ciprestes, ciprestes que se dobram. O firmamento
cada vez mais vermelho mostra que sim as colunas subindo não deixam dúvida... um
incêndio... um incêndio de grandes proporções, em meio ao temporal desvendado
pela cortina escura ao longe.

Eles foram chegando lentamente, um trote preguiçoso...

Christian nunca mais teve alegria. Como poderia? Tristeza absoluta no lugar do
ciúme. Fortalecida e corajosa, Elisabeth lhe disse que nunca mais tocaria nela de
novo e enfrentou-o. Nunca mais. O que pode fazer? A bela casa nos arredores de
M* está vazia sem ela. Seus pais mandariam mesada. Mesmo sem mais negócios na
cidade, decidiu então ficar. Mas não deveria ter vindo. Primeiro com sua ambição e
depois com seu ciúme, matou a exuberância pura de Elisabeth. Sim, chegou a bater
no rosto dela, louco. A lavoura no anoitecer pela janela. A voz vibrante, vívida, de sua
esposa ecoando. Sombras. O céu aperta a paisagem na lama numa simetria irreal.
Tantas nuvens, aterrorizantes. Raios. Esses trovões. Todas as luzes da casa estão
acesas. Mas Elisabeth não está mais ali. Está fazendo o jantar para Maggie. Trevas.

Das paredes úmidas desprende-se um cheiro forte que se mistura ao perfume de


Elisabeth. A casa está cheia de fantasmas. Desde que ela o abandonou, fica noites e
noites sentado, olhando para ela. Se ao menos soubesse que ela está feliz. Mas sabe
que não. Não é vida para ela. Está arrumando quartos para homens. Oh, e jamais
dera motivos para ciúmes como os motivos que agora verdadeiramente existem.
Uma empregada de hotel... Naquele uniforme sexy com avental... Como deve estar
bonita, mortamente bela, a mortalha de Christian. O perdão se tornou impossível,
para sempre? Qualquer palavra será dissipada pela sua estupidez ao atormentá-la?
Viu a esposa sempre se dedicar a ele e à casa diligentemente, ao longo dos anos.
Mesmo quando o lar passou a ser este, nesse lugar que ela jamais quis. É preciso
amar o que se tem, dizia Elisabeth, não esperar ter para amar ou amar apenas o que
não se tem mais. Mas não pôde me suportar em casa o dia inteiro. Era realmente
insuportável.
O aguaceiro caiu de repente, surpreendendo a todos. Sheila estava com Marco
nos correios. Lamentava o desconhecimento do paradeiro de Armand em noites de
dedos. O rapaz perguntou se Sheila não deveria ser mais discreta. Será melhor o
próprio teatro.

A chuva apanhou Val a voltar para sua casa. O teatro será um refúgio conveniente. O
telhado tamborila com violência. Entra no prédio vazio, tilintando, mas dá com o irmão
de Érika e a esposa de Armand. Que ele não fique constrangido dessa maneira,
pede Sheila. Por que não tira logo essas roupas molhadas? Ora, é um pedido que
naturalmente merece o protesto de Marco. Mas não há nada demais. Bem, na festa
Marco vira-o com sua irmã. Estaria com ciúmes? Ah que gracinha. Não há razão para
ter ciúmes, ou seja lá o que está sentindo.
– Pense que Érika não enlouqueceu como a filha de Jeiel...
Marco devia ter sido muito bruto. E Sheila cansara de mostrar como as mulheres
gostam de ser tratadas.
Tudo bem. Val ouvira. Tire essa roupa.
Ah. Naquela noite tinha sido esbofeteado por tirar as roupas.
Coisas de Érika. Ela é muito complicada. Para Sheila as coisas devem ser do modo
mais simples e natural.
Marco diz a Val que se apresse.
Sheila observou. Érika deve ser louca por preferir suas fantasias a uma realidade
assim. Então se aproxima e se ajoelha.
Val é trabalhador. Sua mãe acreditava que daria alguma coisa na vida. Agora se
sente mais confiante. Que belo exemplar de homem. Forte e saudável, cumpre
sempre as obrigações. A tempestade lá fora deixa de ser ouvida. O lobo, que se
escondera quando ele passava, está uivando. Quem sabe o respeitem mais a partir
de hoje. Mas de súbito pensa na relevância disso, de ser respeitado. Ou da vaidade
viril. Val olha pois os cabelos de Sheila e percebe um reflexo do temporal.
A pesada porta se abriu como um dos trovões. Os homens invadiram a sala.
O que é isso, meu Deus? Quando Marco, nu, ajoelhou-se junto dela, esvaindo-se em
sangue, Sheila passou a recordar como Armand costumava dizer que mais cedo ou
mais tarde a gente paga as coisas que faz nesta vida. Pobre e generoso Armand...
Digamos que ele não tenha se dado conta da vida de casado e continuara ainda com
o espírito aventureiro dos tempos de solteiro. O pecado com a empregada, de que
tanto se arrependera, não era nada perto de tudo aquilo.
Os homens seguem Val até a porta lateral esmurrada. Agora o assoalho ressoa com
a grotesca queda. O cabo do rifle explode em sua cabeça e a faca é cravada por trás
em seu pescoço.
O lobo continua a uivar.
Uma janela está aberta; um chapeleiro estranho; o teto alto faz com que a
tempestade pareça estar dentro. Ah, um dia que seria tão agradável. Marco é gentil
quando quer, como ontem ao marcar o encontro; tão discreto. Jesus! Ele está morto!
Seu rosto é uma máscara de dor, como se a dor não houvesse cessado com o fim
da vida. Um dos homens que observava as inflexões dos pensamentos no rosto dela
com as mãos na cintura, súbito, desfere o soco que lhe rouba o ar.
Percebe sua única chance enquanto é amarrada com as cortinas, os braços e as
pernas abertos, pendurada. Esses dois, salpicados do sangue de Val, talvez sejam
mais manipuláveis que os dois primeiros. Não é ainda o meu sangue, consegue
pensar, e dizer Por favor... Tenta encará-los mas não acha os olhos deles. Então
grita. E a cada grito imagina o último, e implora pelo último grito, que todavia tarda e
tarda, e tarda.
Os uivos do vento e do lobo se misturam, a tempestade desce em rodamoinhos,
quase paralela ao chão. Sobre a terra aparecem os quatro homens do lado de fora
da casa entre a água e o fogo que a porta cospe e os segue na cena imensa da
tormenta inelutável.

É impressionante, diz o taverneiro com os olhos na janela; mas Maria não sabe do
que ele está falando, pois fala sem parar. Você viu a chinesinha? Uau! Depois que
o Leonard comprou as cabras, nunca mais deixaram de vir aqui, acho que poderiam
participar do próximo baile. Será que não há homens em M* para trazê-los a força?
Ora, não são as regras... Que mal fará uma pequena infração? não seria um pecado
mortal...
A portinhola está rangendo. Maria tem a pele escura, Afonso acredita que ela tem
descendência índia. Seus vestidos são simples, bem decotados, seus sapatos velhos
e gastos, mas ela acredita que é irresistível, talvez porque tenha herdado a casa ao
lado do hotel, talvez porque tenha assistido a chegada dos primeiros mineiros, talvez
porque seu cavalo é o mais veloz dentre todos os cavalos de M*, ou porque sua pele
escura é tão lisa. Ela pensa o que ele tanto vê lá fora na chuva que parou de olhar os
meus seios? Mas ele não está mais olhando para fora.
O rio corre volumoso entre os cedros, nunca se viu seu nível tão alto, nunca se
viu sua correnteza tão forte, leva as pedras das margens; tem o peso de um azul
profundo que se transforma em cinza escuro em alguns pontos. Corre atrás da
taverna. Por isso decerto resolveram trazer a ferrovia, dois rios numa região tão
escassa de água, embora Afonso tenha ouvido dizer que não passa de desculpa
do delegado para ficar com o dinheiro e distribuir a seus pares. O som não era
nítido para Maria, mas um vago fundo desses vultos que entram – O que querem? –
pergunta autoritário o taverneiro. Um tiro o atinge entre os olhos e o outro explode em
seu peito. Cai contra as garrafas da prateleira atrás dele. O som do vidro quebrando
se arrasta pela perplexidade de Maria. O quê? O quê? Agora o rio acordou em seus
ouvidos. Agora à janela a tempestade gritou. Os homens contra a luz crescem diante
dela. Os raios da luz são como coroas em suas cabeças. Não pode deixar de notar
o quanto são másculos mas mesmo assim apavorada tenta fugir sem sequer lembrar
que não havia para onde ir e tropeça na barra do vestido e cai, a queda abafada pela
convulsão dos elementos.
Esse medo é mais do que o raio que corta a negrura dos céus e do trovão que em
segundos se faz ouvir, estremecendo o prédio; é a bota nas costas, é o ar que falta, é
a água da chuva na lufada do vento. Está toda em si mesma, inteira no chute em seu
rosto, mas perde aos poucos a consciência diante dos seres embaçados, as criaturas
rugentes.
Voltou a si com a água do balde em seu rosto. Afonso agonizando. Os homens são
ainda vultos, apenas visões, como se fossem demônios. Um deles a levanta pelos
cabelos, outro desfere outro soco, o terceiro se prepara. Enquanto o taverneiro dava
o último suspiro, ela pedia que eles a matassem, por favor. Mas só muito tempo
depois foi atendida.
Quebrados os lampiões, o fogo se alastrou rapidamente.

Dan passara o dia inteiro pelos corredores do hotel, com a fisionomia distante,
lembrando-se da casa de sua mãe, onde passaram a infância no Leste, destacada do
casario pelos ramos floridos pendentes no muro, dizendo consigo mesmo o quanto
fora bonita aquela época de sua existência. Ouve a voz dos sobrinhos. Por que
nascera com uma vontade tão fraca e tão acentuados instintos? Estava a ponto de
chorar ao descer para se despedir.
Elisabeth o cumprimenta. Sente vontade de perguntar por que está tão triste, mas
acha mais prudente evitar sua presença. Viu o que viu. Não é mais caso de crer
ou não em indícios. E logo agora que resolveu pedir a demissão, melhor não
se envolver. O que fará? Decerto não voltaria para Christian, embora o ainda o
ame. Talvez volte para a casa de seus pais. Estão mesmo velhinhos, devem estar
precisando dela.
Dan comenta com a irmã acerca da chuva. Nunca vira coisa igual. Parece o fim do
mundo. Abriu um sorriso malicioso e agora seus pensamentos se harmonizam e ele
enfia a mão por debaixo, sentindo-se liberto e salvo de ser triste. Pelo menos, disse,
o barulho protege das crianças. O que era aquilo? Um carinho já saudoso, minha
poldra.
Não. O que era aquilo? – repetiu ela, fazendo um gesto de silêncio com o mesmo
dedo que apontou para cima. – Ouça.
Parece um incêndio.
Quem é esse? tem uns trinta anos. A testa dura e os cabelos crespos, o queixo
quadrado. Sem sinal de barba, o que parece a Dan extremamente estranho para
um homem do Oeste. Parecia um bom homem apenas na medida em que um
bom homem necessita sempre parecer alguma coisa. Um assaltante, naturalmente,
aproveitando-se da tempestade. Não, é bobagem pensar tal coisa. Mas com certeza
não vinha em paz. E se Dan fugisse? Não. Melhor aproveitar a situação e ter uma
morte gloriosa. Será lembrado por todo o sempre. O homem que deu a vida pela sua
família. Não fugirá. Precisa daquela tempestade, do incêndio, do malfeitor.
Maggie sente o sangue descer; ao menos garante a ausência de conseqüências. Até
porque dois filhos eram o bastante. Pois a resistência que Dan ofereceu ao criminoso
foi decepcionante, tão débil. O rifle ficou todo o tempo encostado, inútil. O homem
aproximou-se do irmão, desferiu treze golpes e agora colhe do corpo o sangue que
escorre entre os dedos a buscar o meio de Maggie, forçando, forçando para cima,
abrindo-a, misturando, o que é o quê? As chamas envolvem os dois. As crianças! o
quieo-a, misturando, o que nte. rreto um bom homem necessita apenas parecer o
Oeste. _____________________________________
Linda e Wagner lá em cima tentam mas não conseguem descer para junto da
proteção materna. À janela, o irmãozinho pega a mão da menina e jogam-se. Um
baque e passa a haver um movimento de vida na lama ardente.

Eis a chuva, a tempestade. Eis os raios e os tétricos trovoes. Sua companheira, antes
de tudo uma amiga, Christian não pode perdê-la assim. Esteve todo esse tempo
a seu lado, sofreu tanto, inclusive por seu sonho do ouro, seu estúpido sonho do
ouro; e nunca deixou de ser bela e bondosa. Talvez não seja tarde. Que envelheçam
juntos, talvez seja essa a função da idade. Vou ao hotel, pensa, vai busca-la. Tem um
pressentimento ruim. Sai e a chuva machuca seu rosto. Na tempestade, memórias
e projetos. Vinde, amor, não é tarde. Refaçamos nossa história. Antes de qualquer
coisa me perdoe, e sigamos. Além do crepúsculo existe um destino, nas estrelas
descansa uma morte boa e frutuosa. Que ela o perdoe e ainda fraco ele estará
pronto. Tudo será diferente apenas no que foi mau.
– Meu Deus, amor, o que você está fazendo na rua, com um tempo desses?
Não há tempo. Leve-me daqui, diz ela. Quase fora apanhada pelo demônio. Súbito
ver a face de Christian é uma revelação.
Mas ela está falando de quem?
Ciúme, o inferno do amor.

A vida deixara de existir, pois em algum momento entre a tarde e a noite todos
percebem que alguma coisa estranha está acontecendo. O fogo consome alguns
prédios da rua principal com tamanho ímpeto que a chuva não tem qualquer poder de
amainar. Línguas ardentes sobem das janelas da taverna e do hotel, cujas paredes
enegrecem estalando e caindo em segundos. O encontro de labaredas contrárias
torna-se um mesmo rodamoinho de horror tragado pelo abismo acima da cidade,
como se o mundo estivesse de cabeça para baixo – chamas tingidas dum vermelho
vivíssimo, belíssimas, pensa alguém à janela, chamas vermelhas, folhas, madeira e
lixo desnorteado. Os cavalos empinam e relincham, as carroças andam sozinhas.
Socorro! As crianças caem da janela em meio à algazarra dos cascos chapinhando
na imensa poça. Eram tão lindas. Ninguém faz menção de ajudá-las, ir saber se estão
vivas ou mortas.

Os cavaleiros se dispersam. Não. Alguns permanecem pela rua principal, seguindo


na direção da praça. A tempestade turbilhona. As roupas dos invasores crepitam em
seus corpos rijos impassíveis, como se fossem bandeiras. Passam em meio ao fogo
e à tempestade alheios, como se não houvessem alma.
Um blusa dobrada com habilidade; a bainha e a renda não custarão tanto assim,
minha amiga. Na própria Tanja a bainha sobe e chama a atenção da mulher.
Ela pensa que sou um de seus clientes? Cantarola. Afonso não era homem que
merecesse tristeza. Nenhum homem. Estou ficando velha para isso. Despertando,
faz projeções. Está velha também para mudar. Duas faces da mesma moeda. O
que existe aqui não irá encontrar noutra parte, homens jovens sempre dispostos. De
resto, basta-lhe o trabalho. O que existe aqui é absinto e trabalho por conta própria,
as formas de prazer com que se acostumara ao longo de sua vida solitária. Orgulha-
se de si mesma e quase da própria solidão. Na verdade é uma boa bisca, pensa
Nadja.
Um último gole de café. Tanja é boa no que faz, desde um simples café. Obrigada.
Abre a porta. O cachorro abana o rabo e o gato se enrosca na perna de Nadja. Um
afago e ela se prepara para sair.
Moça que freqüentara as melhores escolas, Nadja não se conformava por ter se
casado com um homem que, antes decidido a fazer fortuna do modo tradicional,
abandonou tudo para tentar a sorte no garimpo. Ela não imaginava semelhante vida
dura para atingir o objetivo. Era uma dama, mulher de sociedade. Era assim que
a chamavam, uma dama. Pelo porte, pelas festas, pela caridade. Enfim. Seus pais
teriam fundado uma organização de ajuda aos necessitados caso ela quisesse, caso
não tivesse vindo. Em seu terror, terá saudade.
Pela porta aberta não saiu, os homens entraram. Oferecer-se em troca da própria
vida é uma idéia recorrente nas mulheres de M*, uma idéia ineficaz, distante agora
como a própria vida pela qual iriam pedir.
Nua e em sangue, o rosto contra a terra encharcada. Um grito da garganta mais
escura. Sente vergonha de alguma coisa que não saberá precisar em meio ao
sofrimento mais cruel. Nada vê. Passos que se confundem com a própria tormenta
se aproximam. Lágrimas junto as pesadas gotas que escorrem. Os cabelos pesam à
altura da cintura, mãos ásperas em monstruosa energia, lágrimas vermelhas e terra
vermelha encharcada.
Tanja está paralisada. Nem era sua amiga, mas meu Deus. Há um momento em que
chega a pensar não será atacada, que eles estão hesitantes. Vê Marina atrás das
carroças. Se escapar terá muita história para contar. Havia uma mulher chamada
Nadja.
Marina era a filha do ferreiro.
Obrigada agora a sentir na boca pela décima vez o sabor ao qual se acostumara com
prazer, nunca é claro com os cabelos puxados e em simultâneo violentada, assim,
cadela. Onde estão seu pai e sua irmã? Horror. Desfalecimento. Engolfa. Um seio em
abrasado aperto, um seio irrecuperável. Doendo, doendo. Pai! Gostaria de clamar por
piedade. Que a figura paterna existisse e pudesse lhe dar proteção e cuidados. Mas
é tarde demais. Nunca mediu as conseqüências do que pudesse fazer para provocar.
Um antigo namorado, o primeiro, o único namorado, a quem assim se possa de
fato chamar, ele despediu-se dizendo Cuide-se, amor, assim você não vai terminar
bem. Risos na cara dele, o idiota, a vida convida, a manhã se derrama todos os dias.
Comamos e bebamos. Quem era ele, ou ela, para negar? Amanhã morreremos.
Nada agora nada nadando no nada, irrespirável parte de coisa nenhuma.
Visão turva, calor. Suor que queima. Desesperada baba, cospe. Cabelos dourados
orgulhosos. Luz de todos os lados penetra cada um dos congelados cortes na pele
atônita. Cheiro de cabelos queimados, bola vívida em torno do rosto. Deve estar
muito feia. Algum dia não? Amada um dia? Pisoteada e pisoteada. Então não é um
pesadelo. Cheiro de fumaça, e hoje está morrendo.

Não a vê mais. O fogo atrás e a tempestade adiante. Onde os homens? Ela é uma
mulher trabalhadora. Não há termos de que comparação entre ela e uma adúltera,
entre ela e uma devassa. Apenas tem fantasias, bebe um pouco socialmente, e em
uma comunidade se faz respeitável pelo trabalho. Cuida de sua vida. Não pactuou
jamais por exemplo com a injustiça ou a maledicência. Visão de impiedade na vida,
em meio da qual se destaca o corpo do homem, não seu rosto. Não há um contexto.
Não há relevância de um plano. Nada de lembranças. Vivera? Deus conhecia seu
coração. Tira de sua fé a sua esperança. Por que então essa aproximação fedorenta?
Naquele dia dirão que havia uma costureira chamada Tanja.

Os gritos de Marina. O pai e a irmã se entreolham. Sentada ela apressa o final,


sabe como fazer. Pára então na porta pela qual deveriam descer surgir o homem.
Desceriam com tamanho fogo? Ouça. A mocinha não suporta mais esse hálito de
Afonso. Mas realmente era a voz de sua irmã. Gritos de sua irmã. O abutre não
deveria estar à janela. Meu Deus, o que está acontecendo? Há ecos de passos que
não continuam. Não descerão.

O delegado sai para ver o que está acontecendo. Vê outras imagens e escuta
outras palavras pelas quais está tranqüilo e certo de que resolverá o assunto. A
cena é composta por diversas idéias pessoais, algumas tiradas de seus tempos de
faculdade. Não é homem de se impressionar fácil. Deveriam tê-lo ouvido quando
solicitou que a delegacia fossem construída num prédio mais próximo do centro.
Curvado contra a tormenta e certo de nem é nada demais; já viu naquela cidade
as piores tempestades e trágico incêndios. Um homem assim não se assusta fácil.
Aliás, precisa sugerir uma reunião para que as pessoas passem a tomar os cuidados
básicos com relação ao fogo.
Que bibocas mal ajambradas. Pessoas que não tinham um minuto a perder e agora
todo o tempo do mundo as consome de tédio. Delegado! O que Helena faz aqui?
Alan! Tudo é chuva e trovões, fogo e cheiro de gente queimada.
Os correios. A farmácia. Não há fogo ou mortes aqui. A mercearia. Tudo parece
calmo. Que prisma é esse que impede a visão?
Parecem próximos, mas a voz dela não chega em seus ouvidos. O cavaleiro que
desponta no fim da rua parece ainda distante mas carrega os trovões. Seu cavalo
é majestoso; um puro-sangue inglês, dir-se-ia. O porte de homem que o monta é
excepcionalmente garboso. Passará ele as noites certamente debruçado nos livros
apesar da tranqüila situação financeira. Érika sente estranho calafrio, de prazer e
terror. Deve ser essa mistura louca de temperaturas simultâneas. Pensou em subir e
colocar um vestidinho novo e umas sandálias que realçassem seus pés, que acabara
de cuidar com imersões e cremes. Não teve tempo.
Ela estava olhando embevecida e cada vez mais excitada a ponto de quase chorar
diante deles, os cavaleiros que se juntaram ao primeiro, eram quase uma formação
militar, garbosos e organizados que sequer ligam para a convulsão natural ou para
o fogo, Érika gostaria de saber de onde vem e o que querem, sente que pode estar
perto de se apaixonar verdadeiramente. Sorri com simpatia e em seu coração os
sentimentos são como os papéis no rodamoinho.
O delegado fala. O que vocês querem? Menciona sua autoridade ao pensar na
aprovação que teve ao ser indicado para o cargo, isso se chama popularidade, eles
precisam mostrar deferência diante da autoridade.
A senhora Carol grita de casa para que ele tenha cuidado, pois acabará fazendo
referências à sua fortuna escondida ganha em uma e outra negociação com
autoridades da capital e bandidos. Por ele, continuaria falando, não percebe que seus
gritos se perdem na tempestade. Mas – sabe-se como é –cada um tentando resolver
o problema que discerne e o verdadeiro problema intacto. Ele repete a pergunta. O
que queriam? Respondam, em nome da Lei! Helena escuta e murmura alguma coisa
entre dentes num sorriso sarcástico.
O cavalo logo à frente, relinchando, empinou. A última visão de Alan antes de cair.
Os homens vão desmontando, um após o outro. Não davam alternativa ao delegado,
que começa a atirar. As balas zuniam e os homens continuavam avançando; dois
deles por fim o agarram, erguem e arrastam para a delegacia. Há um rifle apontado
quando entram. Soltem ele! A senhora Carol repete o que disse. Se não o soltarem
será obrigada a atirar. Os homens se entreolham com expressão indefinível.
Helena está só sob o temporal. Pensa o quanto tem poder para mudar aquela
situação. Logo estarão subjugados diante dela. Basta que o primeiro prove. Terá de
fazê-lo ainda que não lhe agrade correr algum risco por causa do amante. Enfim,
há um componente pessoal, um dever que tem para consigo própria, para com sua
própria vida. Sim, e Érika e Marco podem estar correndo perigo. Agora se lembra de
que não vê o filho desde que Sheila esteve na mercearia. Sim, precisará agir, talvez
por si mesma, que seja, porque no final das contas estamos todos sozinhos neste
mundo.
A cidade vermelha e quente em plena tempestade. Será que isso é neve? A senhora
Carol fala, impõe-se. Diz que soltem as armas e levantem as mãos ou será obrigada
a atirar. Um homem saca sua arma e sob o fogo do rifle dispara no seio enorme
da mulher. Parece o fim, mas não irá lamentar. A meia-idade foi bem aproveitada,
rapazes mais jovens e mulheres também. Chegou a flertar com um desses homens?
Abre a boca para falar mas apenas sangue. Seus olhos agora estão embaçados.
Imagina a razão por que o filho insistiu em dizer que o pai fora assassinado, quando
seu marido morrera de câncer. Teria sabido que ela se insinuou para o chinês? Não.
Estava por demais envolvido com os salteadores e os políticos, indo de lá para cá
sempre fazendo e desfazendo acordos. Então foi com certeza por causa de Helena,
com ela o chinês tivera mesmo um caso, pelo menos foi o que ela lhe contou. Seja
como for, agora está livre e sabe Deus onde. Vivo e livre. A vida é mesmo irônica,
pensou agonizando.
A noite próxima, alimentada pelo vento, se propaga rapidamente pela campina. Para
quem olha de longe, como Leonard atravessando o riacho a galope, um círculo
adusto determina os limites da cidade. Está perto agora do campanário. Deveria estar
com fome. Não comeu ao longo de todo o dia. Pensa de súbito o que faria se não
houvesse mais as razões que hoje pensa ter para viver. Pensa o que é viver afinal.
Em meio ao frio vermelho, parece mesmo que está nevando.

Cada um dos homens que cerca Alan, cada um deles tira o chapéu num movimento
coreografado e surgem as mulheres. São louras e morenas e ruivas. Apenas
mulheres. O único homem no recinto é o próprio delegado. As de trás trazem
açafates, a da frente pelo cano apanha o rifle das mãos da mãe. Uma mulher linda
naquelas roupas negras, ainda há esse tempo de olhar. Depois a violência do golpe
no maxilar. Grite de dor. Peça misericórdia. Louve o Senhor. Faça alguma coisa.
Em vez da excitação e do desejo sufocante diante das coxas rijas, pois ela tirara
a calça, em vez disso o corpo sem resposta exceto pela morte nas veias. Precisa
mesmo se torturar pensando o significado dessas coisas? Que diferença? Amarrado
na perna da mesa, nu agora, elas também tiram as roupas, peça a peça. Lentamente,
muito lentamente. Isso um dia era estar pronto. Agora uma por vez. Um tipo de
desespero de quem realmente percebe que não há mais esperança, porque a tortura
é da mesma substância que um dia foram as idéias de prazer e glória.
A sala some na dor, mas reaparece. A virilidade se perde, mas é reanimado. As
mulheres com os cestos se aproximam. A boca é aberta, enfiadas as iguarias. Está
no mundo como costumam estar os animais quando subitamente se vê homem.
Levanta-se num outro corpo, uma criatura iluminada da noite, um anjo de luz. Plaina
pela sala. Ali estão elas, sopros de uma vida distante em meio a seu vômito. Vê a si
mesmo lá de cima. Elas entendem seus rogos e o ignoram. Ele próprio não liga para
o que diz, apenas observa. Então é assim. Vê a boca ser enchida sem possibilidade
de recusa, mais uma vez, e uma outra. Espere. Agora é uma coisa fria. Ele vê do alto
o cano da arma entrando na sua boca.
Seu ser sai agora da sala, plaina pela rua. Não está mais sentindo calor ou frio. Entra
em outras casas. Há tempo ainda. Aqueles a quem corrompeu. Estão contando o
dinheiro para a fuga. Não é mais um lugar seguro. O mundo se tornou inseguro por
causa do falso brilho. O que acontece a cada um passa pelo corpo, mas não é no
corpo que tudo se origina. Em que plano? Em que esquema? Em que silenciosos
espaços infinitos? Em que horror? Agora ele sabe o destino que os aguarda. Todos
serão visitados. Sabe Deus de que maneira deixarão o corpo, o que se passará antes
que os espelhos não mais os reflitam. Agora sabe, avisá-los-ia se pudesse. Não quer
estar sozinho, como se sofrimento fosse algo que se possa partilhar.

Os homens tomam agora a direção da mercearia. Para Érika, tem mesmo o porte
principesco. Uma princesa na torre. Seu amado estaria entre eles, traz para ela
um anel de brilhantes, finalmente, mal pode acreditar. Prepara-se para recebe-lo,
olhando o pai com desprezo.
A mãe entra esbaforida. Pare com isso, menina; não vê que são bandidos? O vestido
da filha está aquecido, o pai desvia o olhar da silhueta. Não parecem bandidos. É
que ela está vivendo com essa inumana virtude de estar nos sonhos e todavia é tão
consciente do que está fora dela. Não vira o que fizeram com o delegado? Como
jogaram o cavalo em cima dele e o levaram para dentro?
Talvez até o tenham matado.
Alan também não é flor que se cheire. Corrupto, devasso, torturador de inocentes.
Para não falar outras coisas. Helena fulmina a filha. Fique calada.
Que inocente? Mas Fiodor se cala. Imaginava algo assim. Graças a Deus o rapaz
fugiu. Volta a servir Taiorie. Precisa de mais luz. Aproxima outro lampião. O castigo.
Estrondeando. De uma só vez. A tempestade nas plantações. O incêndio pode ter
feito vítimas; nem se sabe ao certo onde é. Para os lados da taverna, Marco a
freqüenta. Esses homens...
Idiota! Castigo, castigo. Coisas da vida. E Marco está muito bem. Se com o pai não,
com a mãe ele fala. Está lá na Casa, com a mulherzinha do Armand.
Mãe, veja, estão se aproximando. Parecem ter mesmo uma postura digna. Érika vai
lá em cima trocar seus horríveis sapatos.
Vingança contra delegado, qual seja a razão, são bandidos.
Impressão da mãe, fala a filha ao calçar a primeira sandália.
Impressão ou não, Helena sabe lidar com situações assim. Lembra dos homens que
queriam... – diz a mãe (o resto em movimentos labiais) – ... o maridinho dessa porca?
Arremata por sobre o som da tempestade e os estalidos do fogo. Lembra?
Passa as mãos pelo corpo, ajeitando o vestido. Detém-se abaixo da gola abrindo
botões. Vai para a porta. Abre um sorriso.

Sem qualquer dúvida. Essa vermelhidão do céu não faz parte do crepúsculo. Calca
de novo os flancos do cavalo e, levantando-se na cela, inclina-se. O animal aperta
o galope, galope, galope. Fumaça atrás da colina. Atmosfera apodrecida na entrada
da cidade. Cruzes. Ludovico Bach 1835-1868. Por que aqui? O frio, lembra. Um
montanhês forçado à inatividade durante o inverno acaba deixando tudo para trás
em migração estacional não raro definitiva. Estão em torno dele, fantasmas. Antigos
vizinhos, os moradores das encostas internas da montanha. Não poderia estar no
pequeno e íntimo campo sagrado que aquelas famílias partilhavam?
Daqui já deveria estar vendo os telhados de M*, mas apenas névoa e fumaça. Ou o
que seja além. Ou o que seja. Atmosfera apodrecida e o galope. Não pensa mais,
tudo são os olhos de Taiorie e os olhos de Halmah. E o frio. E a neve. Nunca se
soube como o amigo morreu. Pelo menos tentou alguma coisa. Era preciso fazer
alguma coisa, ou ele mesmo teria de abandonar a casa querida, onde conhecera
tanta felicidade ao lado da eterna esposa. Na cama. As contrações aumentando.
As mãos fechadas, o suor, a testa banhada. O processo de um nascimento. Ele
ali, sua presença pouco mais que um detalhe, um capricho do destino. A filhinha
agora faz parte deste mundo cruel, deste belíssimo mundo. As dificuldades não
são comparáveis à alegria que trouxe, a dor é necessária, não apenas purifica, é
necessária. Como pôde ter raiva da criança?
Nascendo e ninguém ali para ajudá-lo. Nem uma avó para cortar o cordão e enfaixar.
Halmah chora ainda junto ao seio da mãe. E ele ao lado das duas. E onde elas
agora? Como? O que é aquilo?
Ardendo. Do alto ele vislumbra a cidade. Ardendo. O cheiro horrível, ânsia de vômito.
Vômito. Ardendo.
Numa nesga da espessura negra aparecem os restos exteriores da mina desativada.
Um lugar morto. Parece ser tudo o que as chamas recusam, o que já esteja morto.
Entretanto, quando começa a descer a colina, vê a filha de Tanja. A menina é magra
e bonita, sai do prédio como se nada estivesse acontecendo. A capa dos cadernos
combina com seu vestido gasto Ali outras crianças e a professora.. Então a igreja
desvenda-se, incólume, intacta em meio ao fogo.

A filha lança um grito de horror. O estrondo e o corpo ensangüentado no chão da


mercearia. Um vento feroz abre a porta num pavoroso silvo. Contra a tempestade
aparece o vulto. Fiodor interpõe-se entre a aparição e a esposa. O rifle do bandido
surge com o cano direto no rosto do marido mas o homem abaixa a arma e com uma
pressão da coronha apenas o tira do caminho.

Atrás do balcão. Taiorie abaixada com a filhinha. Outro homem aparece, nova visão
no pesadelo. Quietinha, querida, fica quietinha. O primeiro levanta Helena e com uma
bofetada a joga para o que havia entrado, que passa a imitar os trejeitos da mulher
um pouco antes. Ela sabe lidar com situações assim... Lembra? Lembra? Mia agora.
Late. Cacareja. Coça-se como um macaco na mímica exagerada e cruel. Amarrota
o tecido junto ao pescoço da mulher e a sufoca. Não chore, meu anjo. A mecha
comprida cai e divide o rosto de Helena em duas partes de uma mesma máscara de
desespero.

Um terceiro homem entra. Parece diferente dos demais. Suas roupas lhe caem
impecavelmente. Num gesto lento de afetada polidez, agarra Érika pelos cabelos e
a leva até a porta, entregado-a lá fora aos companheiros, abutres que surgiram do
nada sobre a vítima indefesa. Aqui embaixo, a menina e a mãe esperam algum tipo
de milagre. Taiorie canta para a filha baixinho. Estão ali como se estivessem num
outro plano, etéreo, do vasto mundo. Cantam, emendam uma música na outra. Não
podem vê-las. Deus, mantenha-nos ocultas até que desapareçam.

Alguns seguram os braços, outros as pernas da moça, outros rasgam seu vestido,
bátegas martelam-lhe o corpo. O terceiro homem abre uma brecha na calça
impecável. Minha filha. Há gritos de chuva e as portas gementes. Há o moinho
desativado. Talvez neste momento a restauração de alguma coisa perdida. Helena
quase se sente grata. Todavia não há mais como não saber que é a despedida. Ainda
assim, corre na direção da filha, graças a Deus por semelhante desespero, e se joga
nas pernas dela, nas pernas de Érika. O rapaz de modos educados interrompe-se
e com o cotovelo devolve Helena ao chão. Fiodor... Estava só... Sempre esteve e
há tanto tempo. Ali. A face tristonha emanando seu velho amor incondicional. Seu
marido... Sim, foram felizes.

Parecem se multiplicar na vaga e baça visão das duas mulheres. Os cortes das facas
nos tecidos são cirúrgicos, e também são precisos ao arremeterem um após outro.
Embora agonizante, Helena sente cada um; eles parecem nada sentir, apesar da
semente perdida em alguém que não conhecem, nada sentiam, não na carne – nos
olhos refletia-se o gozo de uma vida perfeita e perversa. Revirando os olhos, Helena
expirou.

Nesse momento o homem a viu, como quem jamais a deixara de observar. Riu
e aproximou-se. A chinesa resiste à pressão, agarrada à filha. Surge outro, olhos
de sangue injetados e barba cheia de baba. Agarrando-lhe pelo outro braço, a
desprende da criança.

LeThu-Xua deu um gritinho e correu pela areia úmida. A luz no rosto do homem
em sua direção impede a mãe de discernir as feições dele. Não há sol ainda e o
horizonte confunde os elementos. Por alguns instantes o encontro pareceu inevitável
mas num segundo momento ele sumira. Evaporou-se, e ela viu frustrada a gratuita
alegria.
Na trilha de seus medos, Leonard já vai longe. Desviara-se da mulher surgida
como anjo de redenção e avança sem rumo. Um brilho sob as águas do arroio
que atravessa. Esquece o sentimento que a figura feminina despertou. Os raios
multicoloridos se espalham pela praia. De onde está agora, a única luz que percebe,
a luz que determina a cor, está em sua mão direita, como se fosse um ser
adormecido.

Ah. Tantas súbitas perspectivas!...


Refletido na pedra, novamente o garoto tímido e insensato, um eu antigo e gasto que
ele pensara morto, tudo o reflexo devolvia.
Mas hei, alguém na estrada, uma carroça. É uma nova pessoa em seu encalço,
correndo; uma pessoa renovada. Esbaforida agora. Os trancos em semitons marcam
a distância do veículo. Sim? Olha o condutor, hesita um segundo. Garoto
novamente, é torturante ter se dirigir a um estranho. Mas é preciso, pede a carona.
Claro, amigo, pode subir.
Estará a viagem quase inteira intimidado. Um dia e pouco, com a parada para dormir
quase dois. Só ao chegar terá a ousadia de mencionar a pedra e nem assim terá
sido por confiar em Dan totalmente. Por que está tremendo? Espera que o homem
não tenha notado.
Foi ao longo da noite que se lembrou da moça na praia com a menina. Insight de
amor regido pelo desejo que por sua vez se renovara com a pedra; segurança é
potência. Vê então o quanto tem sido desgastado pela pobreza, mais pela pobreza do
que pela solidão. Pelo cotidiano da necessidade que o seguro de seus pais apenas
por um pouco de tempo aliviou.
Junto do mar. Qual das duas é a criança? Porque Taiorie preservara algum tipo de
droga natural em seu corpo, ou talvez a gravidez a tivesse gerado também. Esse
jeito de ser que nos adultos desaparece. Aperta mais os olhos e abre o sorriso para
um peixinho. Mas as gargalhadas de LeThu-Xua estão contadas. Nessa onda. Onde
está? Há um segundo sorria tanto, a mais feliz das mulheres. E agora... Mamãe!
Onde, meu Deus? Mamãe! O tio escuta os gritos, corre, mergulha. Onde? Como a
escuridão desce rápido quando não é desejada...
O silêncio terá a ver com as trevas.
O pescador tenta consolar. Não, ela nada sabe sobre o significado da vida noutra
dimensão.

A janela que dá para os fundos da rua principal. Labaredas sob a chuva, ou sobre,
ou em meio à chuva – quem há de saber. A mesma janela pela qual, havia alguns
minutos, talvez uma hora, os vizinhos se acotovelavam para olhar. Não são mais
expectadores, participam do teatro trágico: o que se passava ali, não se passava
apenas ali – homens e mulheres violentados, surrados, decapitados, incendiados,
clamando pela morte, e outros se esbarrando no meio da rua, fugindo para lugar
nenhum, pisoteados. Fogo onde antes casas ousaram se chamar lares. Taiorie vê
também que Érika havia sido abandonada no chão pelos agressores, exceto o rapaz
elegante sob o qual ela estertora, que arremete, arremete, arremete, com um furor
que não se aplaca.
Quando percebem que acabou, os homens se voltam todos para ela.

Num momento não mais esperado, entre as vestes ardentes do homem clamando
aos céus como um reverendo e os escorpiões nas brasas se retorcendo, em meio ao
grande estrondo de um toldo e um teto que desabam – Barbeiro, diz a placa caída,
e essa outra Bilhar no andar de cima –, quando do impulso heróico que brotou na
alma tímida, Onde elas estão? – pensou – preciso Meu Deus encontrá-las. E como
escutasse nitidamente os gritos não escutados, entra na mercearia sabendo no corpo
a seqüência de atitudes. Já viu vapor assim subir para o abismo acima, no perverso
passado em que o calor assassino rosnava na espreita de cada sobrevivência; já
ouviu esses estalidos tétricos no ronco do trovão; já sentiu esse cheiro de carne
humana que com o dos porcos queimados se confunde.
O olhar distante num átimo aterrissa no bandido. Poderia ter dito: Solte-a. Ou apenas
arrancá-la das mãos dele, com energia e ira desconhecidas. Deve supor que há
salvação, deve esperá-la, para ter a essencial palavra de consolo. Que pássaros
são esses, voando em círculos como abutres? No futuro haverá de contar isso
para os netos. Contra a morte qualquer esforço (ou virtude) é relativo – essa luta
desigual, esse braço quebrado em seu joelho, ou o espírito indômito que se dele se
derrama. As sombras bruxuleiam na parede, as sombras da pugna perdida. Ardente,
muitíssimo vermelho, o espelho multiplica raios de uma luz macabra. Tai é bela
e sublime mesmo aqui, como uma santa no inferno. Não se atreva, canalha. No
assoalho estende-se sem vida o corpo de outro malfeitor.
Houve o momento da noite despercebida, as estrelas aguardam em seus lares
ocultos. O som e a fúria da tempestade e do fogo desceram e a cidade está envolta.
Fique firme, amor; tenha calma, meu anjo, tudo terminará bem. O olhar da resposta
doce e confiante a filhinha, vendo, imitou.

Eles vão saindo lentamente das casas assoladas no sentido da mercearia. As


mulheres desdenham de uma possível parada na farmácia de Jeiel e são as
primeiras a chegar. Diana passa a mão no vidro que seu hálito embaçou. O dia
realmente se foi. Chega a esboçar um sorriso, tocada sabe Deus por qual esperança.
Seja qual for, é a mesma do floco de neve na lama. Seu pai surge atrás dela, curvo e
maltratado, e a abraça chorando. Decerto a filha estaria num mundo melhor.
As mulheres diante de Leonard não são mais mulheres mas mazelentas visões da
morte. Súbito começam a rir, mais e mais alto, gargalham enlouquecidas. Levam as
mãos aos coldres. Ele se adianta e pisa a própria sombra, e a sombra o fere mais que
qualquer das balas que zuniam, mais que a bala agora estilhaçada em seu ombro.
Não mais se deterá diante do espelho ou das próprias lágrimas, o vazio em seu peito
foi preenchido e isso basta, mil vezes melhor a perda trágica do amor do que jamais
tê-lo conhecido; melhor mil vezes a vida que se perde plena do que as que tediosas
e vãs se eternizam. Mas o rifle de um dos mortos se enternece nas mãos dele, como
uma folha verde no calor causticante.
Revólveres coiceiam e balas furam o assoalho; todavia há nessa histeria algo que
se faz necessário a uma eventual quietude posterior. Haverá salvação? Zunidos e
relâmpagos sobre a mente outrora apaziguada. Precisa haver salvação, por elas,
todas as coisas de uma vida agarradas ali uma à outra.
Uma a uma as bandoleiras vão caindo, tornando-se um aglomerado inerte; e eis
revela o relâmpago não há gota de sangue no assoalho. Ah, anjo de luz a quem
idolatrei, tu não me conheces mais, ainda que eu esteja agora em teu poder, bendito
seja o nome de quem tem todo o poder, agora meus olhos o vêem.
– Meus amores – diz Leonard – quando amanhecer nós estaremos caminhando por
essas ruas, e estarão limpas, e essas lágrimas nos olhos de vocês terão secado, e
jamais nos lembraremos desta noite.
Papai jamais havia mentido para sua filhinha. Mamãe comovida o perdoa. O deus
das circunstâncias. Taiorie e Halmah se jogam em seus braços.
Leonard chorou.

Sombras se arrastam em torno da casa, pela lama. Sombras pelas janelas do


segundo andar. Arrastam-se pelas cinzas dos documentos, saem agora pela porta.
Uma criança. Uma inocente criança. O vulto se contorce, se enrodilha, gane e suspira
na conta dos mortos.
A mercearia está cercada por todos os lados. Acima tampouco há saída. Ao longo
da rua ainda há outros chegando. Ignoram a farmácia de Jeiel. Entram e clamam,
conjuram. As roupas roçam na madeira da parede. Leonard sente, escuta, vê de
relance os rostos alaranjados na janela. A casa circundada pela sebe em chamas
– ilhada, cercada pelos bandidos que continuam a se multiplicar – morrendo, está
rachada. Ou não? O que escuta agora acaso é som de precipício? Não a esta
distância do mar.
Ou será?

Aos poucos, tudo parece se aquietar. Por que demoram? Querem que sofram por
causa do medo. Leonard e Fiodor se entreolham. Olham ao redor. Estão assim
quietos e atentos, a respiração suspensa, os braços pendidos ao longo do corpo.
Porque há essa quietude, torna-se nítida a chuva. Nas lâmpadas mais intensa porque
está tão escuro. A água escorre pela parede, cascatas. Reflexos e sombras. Será
suficiente uma vaga observação da noite exterior para entender que todas aquelas
coisas fazem parte de uma visão, um pesadelo talvez, sabe-se lá, um problema
neurológico incurável naquela parte do mundo sem os progressos europeu ou até do
Leste.
Fiodor prepara o rifle antes que Leonard possa sequer perceber. Cuidado! grita. As
mãos do homem soltam-se do vestido. Não em minha casa, atrás do balcão onde
construí minha vida. Suor, chuva e lágrimas – o rosto do agressor respinga sobre
Taiorie e sua filha. Quem há de saber tudo sobre todas as coisas? O juiz clama ao
som do tiro, a bala penetra em seu ombro; ali ficará por todo o resto de sua vida.
Segure-a, diz um dos homens. É a primeira vez que voz assim é ouvida. A mercearia
tornou-se em maldição. A dor impede que Leonard consiga erguer o braço. Não há
como deixar de pensar no final de tudo. O medo é realmente a pior desgraça.
São três ou quatro em torno delas. Nada mais a fazer, as coisas saíram
definitivamente de controle. Um instante todavia e um outro que se segue, o facão
no mostruário e cortado é o cetro daquela iniqüidade mais ou menos que humana –
o que é isso afinal, essa carne esverdeada, esse transcendental atentado ao pudor,
com que geração antecedente será semelhante ou qual a reproduzirá no futuro?
Não há retorno possível, ou esperança de pesadelo, ou a frustração da perspectiva
mais sombria.
Ninguém há que saiba sobre isso, que tenha lido a respeito ou talvez imaginado. O
desprezo com que se desvencilham do juiz empurrando-o assim e o jogando no chão,
o ódio entre urros contra Leonard – um ódio gratuito e ininteligível (porque diante
disso tudo encontra explicação) –, é claro que Taiorie pensa a respeito, ou talvez
pensasse, não estivesse ela mesma possessa, porque homens ou demônios – não
importa – estão tentando contra sua vida, contra sua garotinha.
Caminham ao redor delas, gargalhando. Leonard se arrasta e volta a pensar nos tiros
misericordiosos; algo o detém – não saberia dizer o quê, alguma coisa. Quis resistir
contra essa resistência, quis se convencer de que era a única saída, mas continua
girando diante deles, fazendo-lhes uma frente absurda. Chegaram em relances um
e outro dos monstros à sua volta; derrubam-no de novo, direcionam as armas para
suas pernas. Está claro que não teria sentido para eles fazer mal à sua família se ele
já estivesse morto.

Os homens têm filha e mãe diante dele, prontos. Todo o sentido da existência está
abalado, ainda que ele possa pensar que existe um amaldiçoado elo ligando a todos.
Não sabe todavia o que é. Imagina que existe, que deva existir, mas não faz agora
qualquer diferença. Anos de ilusão, sopro de vida, crostas terrosas – antes a morte
do que esta tortura. Depois que deitar no pó, se for buscado, não mais será. Pois
eles fedem a sangue e enxofre. Há um prêmio pela sua dor? Uma recompensa pelo
seu sofrimento, pela sua cabeça?
Que cano é esse de arma lá fora? (continua)
O reflexo é como a luz de um relâmpago à janela: mesmo depois que esmaecem as
coisas ao redor, sabe-se que soará o trovão. Tudo agora está assim, coisas mortas
que adquirem vida por causa da luz, como a lua que um dia sem dúvida há de voltar
ao céu.
Ali. Está vendo. Mal pode crer, é Diana. A branca, magra e distante Diana. Seu
vestidinho de chita parece à prova de fogo. Ela mesma parece ser uma chama,
uma chama inextinguível. Ela, que se notabilizou na cidade por ser diferente, não
era assim? Jeiel sempre foi um magnífico profissional, mas mais que tudo um pai
exemplar. Leonard lembrava do carinho e do apoio quando ela apareceu daquele
jeito. Os únicos da cidade que o visitavam na montanha. Atrás do prédio da farmácia
o jardim viça como se fora numa cidade próspera e verde. Um dia, Taiorie falou
com ela sobre um sonho. Cultivar flores com a produção de gladíolos. Sim, um
departamento de floricultura levando a subsistência adiante. Nesse caso, diria que
mais que subsistência, seria vida. E não é que Diana parecia entender? Tai era
assim, promovia esse tipo de milagre – não o libertara?
Da porta e da janela, um novo rumo. Mas não deveria haver sangue na parede?
Voltam-se os demais para olhar, do lado de fora não o fogo e escuridão esperados,
a neve e a chuva, as bestas da noite rondando. Então a winchester de Jim Cung
Cho com seguidos estrondos derruba um por um daqueles que o não consideraram.
Acreditavam que estaria vencido pela depressão ou pelo álcool, o que faz ali, como?

Halmah torna a se agarrar à mãe. Minha filhinha, gostaria de dizer. Tem mais que
nunca essa necessidade da fala. Então diz Minha filhinha do jeito que pode, e a
menina entende e se acalma.
Meigos movimentos à janela. Um chicote enrosca-se no pescoço do bandido. Diana
puxa e o enforca com seu peso estirado. Ela não pode ter tamanha força. Na
verdade, ela não poderia sequer estar ali. Mas o que é possível e o que não é são
coisas que nada mais representam. Por um instante Leonard apenas olha admirado,
mas é o sinal de que precisa e se levanta, maior que a dor e todo espanto.

Eles não lhe darão qualquer motivo. Quem sabe nem saibam se existe um. Ele
mantém o homem agarrado pelo colarinho; mas está morrendo, exangue num
silêncio de potestades e eras. Diga-me. Mas morreu em suas mãos, o que é alguma
coisa estupenda, a mais extraordinária e terrível dentre todas, alguém que morre em
suas mãos ou, pior ainda, alguém morto por você, não importa o tamanho do erro ou
quão perverso; matar alguém é algo de que você não se recupera, uma perplexidade
para o resto da vida, para sempre deixarão de ser mas não por força ou vontade
humana, ainda que ninguém seja nada e toda glória a glória de uma flor.
Daí para frente o tiroteio ganhou ares de batalha, tornou-se ensurdecedor. Refeitos,
os homens não podem mais ser detidos, pois deixaram de lado Taiorie e Halmah,
determinados a simplesmente destruir aqueles de quem eram inimigos, que
destruíram o poder das pessoas ao redor ao falarem prudentemente com seus lábios
e não sacrificarem seus filhos e suas filhas.
Porque lá de fora vem uma feroz reação aos malfeitores.
Deixe que Jeiel descubra. A arma que reflete está nas mãos de Christian, que vai e
vem em seu cavalo. O chicote com Diana na parte exterior da janela junto ao balcão.
Lá dentro Fiodor se levanta e Leonard se junta à sua família. No telhado do prédio em
frente, Jim e sua espingarda. Há menos de um minuto a arma de Armand também
está disparando de lá.

Ele cresceu numa família outrora bastante conceituada da China, fizera refeições
com reis e generais, sem que, como qualquer criança, isso o afetasse. Mas eram
tempos passados. Quando descobriram que ele era um bastardo, expulsaram a
mãe, que morreria nas ruas de Pequim. As grandes perspectivas que sonhavam
para seu futuro morreram com ela. É um sobrevivente. Precisa manter-se vivo e
proteger a irmãzinha. Um lutador. Depois da grande viagem, é acolhido na aldeia dos
pescadores. Madrugadas insones fica imaginando o que poderia ter sido em seu país
ou o que será de fato ao terminar sua busca. Parece que a cidade mineira de que
falaram é essa. Pai. Pai? Armand já tem problemas demais, ainda mais agora com a
história da índia. Quer apenas retomar seu casamento e o que menos precisa é de
um filho súbito. O que não esperava era uma visão como aquela, a mulher e o filho
de Fiodor. E agora seu filho. Por quê? Mas por que haveria de importar? As coisas
simplesmente acontecem. É aqui e agora e pronto.

Necessidade de acreditar ou as evidências, dilema extremo – porque a suspeita não


é a sentença mas caminha a passos largos nessa direção.
Num verão de sua juventude, Armand conheceu Sheila num balneário. Espraiava-
se ao sol e se deteve toda a manhã na contemplação dela até a abordagem em
que tentou o equilíbrio entre a malícia e a delicadeza, julgando pela teoria que
diz ficarem as mulheres fascinadas por extremos opostos convivendo num mesmo
homem e, partindo por instantes do próprio pressuposto de que era tal homem, tentou
se revelar.
Era um anjo, Sheila. Encantadora numa primeira vista, sedutora numa segunda,
digna de amor ao abrir a boca – assim Armand ficou feliz por ter aceito o convite de
um amigo, a que normalmente dirão não (detestava grandes aglomerações de modo
geral e em particular aglomeração de veranistas ricos). Estava enfeitiçado. A principio
pensou apenas em intimidades, mas logo quis tê-la a seu lado pelo resto de sua vida.

A seu redor, a maioria dos rapazes desfrutava de seu corpo, num maiô sensual
porque discreto. Alguns talvez esperassem uma chance, mas não como ele, que
mantinha uma calculada distância. Porque aqueles estavam distanciados pela
própria proximidade, afastados de seu amor pela amizade.
Tudo era então muito diferente de uma cidade mineira do Oeste, no apogeu ou na
decadência, as pessoas tratavam o sexo com a necessária sutileza e a corte como
uma regra, portanto era um lugar muito diferente de M*.
Portanto Armand acreditou-se em vantagem quando seus olhares se cruzaram. E
pensou que era quem deveria ensinar quando enfim numa noite ficaram a sós. Era o
quinto dia das férias.
A sublimidade de estarem juntos subitamente foi comprometida quando ela mostrou-
se experiente a ponto de arrancar sangue.
– Não gosto disso, querida.
– Do que você gosta?
De manhã a luz incidiu sobre os mesmos olhos que fizeram Armand sonhar e era
esses olhos que agora iluminavam seu caminho de volta para M*, num desesperado
galope. Quando deixou a cidade após apanhar a esposa com Marco, agiu por orgulho
muito particular. Quando planejou a volta, sua intenção era vingar-se. Mas quando
passou pelo correio vazio em meio àquela tempestade macabra e viu a mercearia em
chamas, tudo em que pensava era salvar a mulher.
Não saberá dizer por que teve aquela idéia de subir no telhado. Se ainda ama assim,
fará qualquer coisa por esse amor e possivelmente será a última coisa que virá a
fazer.
Ali está ela, ali está Sheila. Veio salvá-la, ele quer dizer, mas não precisa, porque ela
entende e o abraça forte, pedindo o seu perdão. Meu amor...
Jim verifica o pulso e descobre a gravidade do ferimento. Meu pai – repetiu.

Na ação que se tornou a própria essência de cada ser e levou a contemplação


muito além do que poderia em si mesma, mais à frente e despreocupada porque
tudo será enfim como tem de ser, Fiodor localiza seu espaço naquele caos. Porque
quem garante que sob o caos não esteja o sentido mais profundo, o mais verdadeiro
significado das coisas que não parecem ter nenhum? Que noite extraordinária, oh
que noite! E estou aqui.
Pessoas ainda correm de lá para cá, cortam o ar os disparos e ecoam, balas perdidas
colhem mulheres e crianças. Possivelmente as formigas são os seres vivos que
mais resistem ao fogo, mais que os próprios escorpiões. Em determinado momento,
ninguém percebe exceto Jeiel, os bandidos não mais parecem se multiplicar. Poderia
o farmacêutico jurar que viu um ou dois deles tentando fugir.
Chegou à janela e o brilho da arma de Jim na mureta do telhado o entorpece de
prazer, mais uma passagem de Christian no cavalo e outra vez sua mira se mostra
fantástica. Limpou a mão na roupa e era como se estivesse limpando a própria alma.
Havia lágrimas em seus olhos quando ele próprio tornou a apontar um rifle em sua
vida há tanto tempo vã. Que Diana também se orgulhasse dele. Nem percebe que
nada sente de suas dores e que sua doença nenhum sintoma manifesta.
Quando tempo passou até que crescessem sobre eles, contra a luz – que se apaga
nos vultos, são apenas réstias saindo dos malditos, como aura de anjos, dos mais
iluminados dentre os anjos –, quanto tempo passou, está ele morto para que o
diga, morto, que esperança ainda poderia haver além desse tiro fulminante que o
salva, derrubando o opressor? A mão da amada o alcança, os dedos carnudos, as
unhas perfeitas, as branquíssimas palmas, essa concha que se lhe oferece – dão-
se as mãos; comunicam-se as almas, pelos olhares e pelas mãos. Um tiro certeiro e
também Fiodor foi salvo de um bandido que ele sequer viu se aproximar.

Não há mais uma missão para os bandidos, agora se trata de uma questão pessoal.
É mister ainda a morte lenta. Quebram os lampiões no balcão e nas paredes,
quebram ainda no alto com pedaços de madeira. Falta os homens lá fora, teriam
dito, pois assim imaginam a menina, e todos saem no encalço daquele que usara o
chicote. Não perceberam qualquer tiro do telhado, não perceberam ou não ligaram
para o cavaleiro e muito menos o homem agora naquela janela quase em frente. A
única perda entre eles, para eles, era o enforcado. Os que estão dentro não podem
escapar. As chamas crescem e crescem em segundos, alcançam o teto, vistas ao
longe sobem. Quem haverá todavia que as veja?

(continua)

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