1) A Constituição de 1988 reconhece os territórios indígenas como espaços essenciais para a identidade dos grupos étnicos, diferente da propriedade privada.
2) No entanto, a prática judiciária tende a tratar territórios indígenas e propriedade privada da mesma forma, aplicando procedimentos civis que neutralizam a proteção constitucional aos territórios indígenas.
3) Isso tem permitido que não-indígenas obtenham liminares para acessar territórios tradicion
1) A Constituição de 1988 reconhece os territórios indígenas como espaços essenciais para a identidade dos grupos étnicos, diferente da propriedade privada.
2) No entanto, a prática judiciária tende a tratar territórios indígenas e propriedade privada da mesma forma, aplicando procedimentos civis que neutralizam a proteção constitucional aos territórios indígenas.
3) Isso tem permitido que não-indígenas obtenham liminares para acessar territórios tradicion
1) A Constituição de 1988 reconhece os territórios indígenas como espaços essenciais para a identidade dos grupos étnicos, diferente da propriedade privada.
2) No entanto, a prática judiciária tende a tratar territórios indígenas e propriedade privada da mesma forma, aplicando procedimentos civis que neutralizam a proteção constitucional aos territórios indígenas.
3) Isso tem permitido que não-indígenas obtenham liminares para acessar territórios tradicion
Deborah Duprat Subprocuradora-Geral da Repblica Coordenadora da 6 Cmara de Coordenao e Reviso do Ministrio Pblico Federal
No se pode recusar ao poder judicirio importante papel na
estipulao de alguns marcos tericos em relao demarcao das terras indgenas, vista do novo paradigma instaurado pela Constituio de 1988. Persiste, todavia, ainda hoje, forte incompreenso sobre a natureza do territrio indgena e as repercusses jurdicas correlatas. O prprio processo em que se desenvolve a discusso a respeito do tema revela, por si, essa marca, em diferentes perspectivas. Vejamos. O direito anterior Constituio de 1988, na linha do pensamento ilustrado e moderno que o informava, resolveu o tema da justia com a doutrina das esferas de liberdade de cada indivduo. Frases como minha liberdade termina onde comea a liberdade do outro desenhavam apropriaes territoriais sob o signo da ubiqidade. O termo ubiqidade, na fsica, sinnimo de excluso: dois corpos fsicos no podem ocupar o mesmo espao ao mesmo tempo. Levado para o campo do direito, estava a significar que todo homem desloca os demais homens de seu campo de ao (Carpintero, 1993:40). A propriedade privada o arqutipo dessa geografia de figuras geomtricas, fronteirias e excludentes entre si. A Constituio de 1988 reconfigura, em larga medida, a noo de indivduo, ao recuperar, para o direito, os espaos de pertencimento. constitutivo do ser humano viver em horizontes qualificados, dentro dos quais ele se torna capaz de tomar posies, de se orientar acerca do que bom ou ruim, do que vale ou no a pena fazer. A identidade do indivduo definida pelos compromissos e identificaes que estabelece no seio dessa comunidade, porque ali so vividas as relaes definitrias mais importantes (Taylor, 1997). Os territrios indgenas, no tratamento que lhes foi dado pelo novo texto constitucional, so concebidos como espaos indispensveis ao exerccio de direitos identitrios desses grupos tnicos. As noes de etnia/cultura/territrio so, em larga medida, indissociveis.
Resulta inequvoca a diferena substancial entre a
propriedade privada espao excludente e marcado pela nota da individualidade e o territrio indgena espao de acolhimento, em que o indivduo encontra-se referido aos que o cercam. A prtica judiciria, no entanto, tende a equiparar ambos os institutos, conferindo-lhes, de resto, tratamento processual idntico. A situao mais recorrente o manejo de aes possessrias em face de territrios indgenas. Citem-se, como exemplos mais recentes, as inmeras liminares concedidas a favor de particulares em territrio tradicional dos patax h-h-he, na Bahia, na rea indgena Raposa Serra do Sol, em Roraima, e em diversas reas indgenas no Estado de Mato Grosso do Sul. Uma ao vocacionada tutela de direito de cunho nitidamente civilista neutraliza a disciplina constitucional dos territrios indgenas, porque a luta processual se desenvolve sob controle das normas constitutivas daquele campo e valendo-se apenas das armas nele autorizadas (Bourdieu, 2001:134). Assim, elementos tais como posse velha, ocupao fsica, passam a ser acriticamente definitrios de direitos possessrios1. Outro dado, bastante eloqente em aes desse tipo, a prpria definio de posse. No cuida o julgador de examinar que as partes contrapostas pertencem a comunidades lingisticas distintas. H um estreito vnculo entre identidade e interlocuo, reconhecido pela prpria Constituio (art. 216, I e II: formas de expresso e modos de criar, fazer e viver). So nesses espaos comuns de vida que se estabelece o acordo de significados. Ou, talvez melhor dito, o uso da linguagem que ativa esse espao comum (Taylor, 1997). Da a expresso de Wittgenstein, de que o acordo de significados envolve o acordo de juzos. S por meio da experincia comum posso avaliar e definir o que so a raiva, o amor, a lua, a terra, e... a posse. Cada um desses elementos significado de forma prpria em cada comunidade de falantes, a partir de sua experincia de vida, quotidianamente renovada. No entanto, no debate processual, apenas a definio oficial de posse levada em considerao. Desconhece-se, por exemplo, que, para os guaranis, o tekoha uma instituio divina criada por ande Ru (Meli et Alii, 1976:218). Deles desalojados com a chegada do homem branco, procuram ali permanecer, inclusive trabalhando para este nos ervais e em roas2. Consideram-se, dessa forma, de posse de seu territrio tradicional. A viso naturalizada da posse civil, apresentada como evidente, estabelecida de uma vez por todas, fora de discusso, escamoteia o fato de que toda e qualquer definio oficial importa em adoo de um 1
no obstante o Supremo Tribunal Federal, j em 1993, afirmasse que no descaracteriza o
animus possidendi dos silvcolas o fato de terem sido forados a se retirarem de suas terras (ACO 323, Relator Ministro Francisco Rezek, julgamento em 14-10-93, DJ 16-9-94). 2 laudo pericial para a AI Potrero Guassu.
determinado ponto-de-vista e o descarte de vises concorrentes (Bourdieu,
2001). Se no regime constitucional anterior, cabia ao Estado, com exclusividade, homologar determinadas representaes sociais e inscrevlas, pelo direito, como universais, a prtica no se sustenta sob uma constituio que apresenta esse mesmo Estado como etnicamente plural. E, se o processo se desenvolve sem que se confrontem vises concorrentes de mundo e a respectiva traduo na linguagem de cada uma das partes, nega-se o postulado constitucional da pluralidade tnica e reinstala-se, na prtica judiciria, a marca etnocntrica do regime anterior. Mas, no bastasse a situao de desequilbrio entre as partes que a ao possessria enseja, h decises que causam enorme perplexidade. Em diversas aes, so concedidas medidas cautelares para assegurar a presena de supostos proprietrios na rea, a despeito de j concludo o processo administrativo de demarcao da terra indgena. No Mandado de Segurana 25.463, o Presidente do Supremo Tribunal Federal concedeu medida desse naipe em relao rea indgena ande ru marangatu, dos guarani kaiow de Mato Grosso do Sul, cuja demarcao fora homologada pelo Decreto s/n de 28 de maro de 2005. O fundamento da deciso foi a existncia de uma ao judicial, anterior ao decreto presidencial, onde se discute o domnio das terras e a nulidade do processo administrativo. Todavia, no havia, na ao em curso na justia federal, deciso liminar que impedisse o regular desenvolvimento do procedimento demarcatrio, tanto que este chegou ao seu termo. A prevalecer esse entendimento para outras situaes, estaria inviabilizada a atividade da administrao pblica. Bastaria a existncia de uma ao judicial, onde se discutisse, v.g., a constitucionalidade de um tributo, para impedir a sua arrecadao. Ou, em hiptese mais prxima, o ajuizamento de uma ao tendente a provar a produtividade de determinado imvel rural, a impedir o desenrolar do processo de desapropriao para fins de reforma agrria. Marque-se, mais uma vez, que no se est a falar de obstculo atividade administrativa por fora de deciso judicial, mas sim da mera existncia de uma ao. De resto, liquida-se o princpio da presuno de legitimidade dos atos administrativos. H uma outra justificativa na deciso liminar que merece registro: o perigo da demora consubstanciado na possibilidade dos ndios comearem a ocupar as terras objeto do Decreto.
Ao que sugere o texto, constitui um risco ndios ocuparem
suas terras tradicionais, inclusive aquelas que foram assim consideradas, em definitivo, pelo Estado. Assim, afora os equvocos jurdicos, h, aparentemente, na deciso, certa dose de preconceito e discriminao. Curiosamente, em mandado de segurana com idntico objeto, relativo aos potiguara de Jacar de So Domingos (MS 21.986), o Presidente do STF, em 5/10/2005, votou pela denegao da ordem, exatamente sob o fundamento de que a mera existncia de uma ao judicial no era de molde a inviabilizar os efeitos prprios do decreto homologatrio3. Tambm no RE 416.144, o STF determinou, por unanimidade, o retorno dos xavante terra indgena Mariwatsede, sob a considerao de ser fato incontroverso a declarao das terras tradicionalmente ocupadas pelos ndios pela Portaria 363/93, do Ministro de Estado da Justia, homologada por Decreto do Presidente da Repblica, contra o qual fora proposta ao de nulidade do processo de demarcao, cujos efeitos persistem, uma vez que at o momento no houve deciso judicial que os suspendessem4. O julgamento desse recurso extraordinrio deu-se em 10/8/2004, o que significa que, desde a portaria declaratria ato este tambm dotado da presuno de legitimidade se passaram onze anos at que se desse o retorno dos ndios ao seu territrio tradicional5. Tal dado no passou despercebido ao Ministro Gilmar Mendes, que, por ocasio do seu voto, afirmou que o judicirio pensa que o tempo da sociedade eterno. Rigorosamente, para alm da eternidade o tempo que o judicirio concede aos ndios. Tramita desde 1983, no Supremo Tribunal Federal, a ao cvel originria 312, em que se pretende a nulidade dos ttulos incidentes sobre o territrio tradicional dos patax-h-he, do sul da Bahia. Por todo esse longo perodo de tempo, superior a vinte anos, os ndios vm sendo impedidos de ocupar integralmente o seu territrio, sob o pretexto, recorrentemente invocado por juzes e tribunais, de que o Supremo ainda no definiu os exatos limites de suas terras. Questo esta, alis, que sequer era objeto da ao, mas que passou a s-lo por compreenso do atual Relator. Aps os ndios da Raposa Serra do Sol esperarem por mais de vinte anos o decreto de homologao de sua rea, e o STF ter afirmado a sua competncia para conhecer de ao popular contra a portaria 3
O julgamento, at o momento, no foi concludo, em face do pedido de vista do Ministro
Gilmar Mendes. Por ora, concedem em parte a segurana, para sustar os efeitos do decreto homologatrio, os Ministros Carlos Velloso e Cesar Peluso; e a denegam os Ministros Joaquim Barbosa, Eros Grau, Carlos Britto, Nelson Jobim e Seplveda Pertence. 4 Informativo STF n 356. 5 mesmo assim, parcialmente, porque ainda permanecem na rea no-ndios, mediante autorizao judicial.
declaratria e demais aes correlatas, a justia federal em Roraima
continua a conceder medidas liminares, em aes possessrias, a favor de no-ndios6 7. Esse quadro de indefinies, de decises contraditrias no mbito de um mesmo tribunal, s vezes de um mesmo julgador, gera, nesses povos, sentimento de discriminao perfeitamente compreensvel. Pior ainda, subtrai-lhes a eleio do seu prprio destino. Tal como K., de o O Processo, de Kafka, esto condenados a viver num tempo orientado pelos outros. Mas h mais. Em uma ao possessria que se iniciou na justia federal de Alagoas, o juiz considerou provada a posse mansa e pacfica do autor e a existncia de esbulho violento pelos ndios xucuru-kariri, uma vez que aquela se encontrava lastreada em ttulos aquisitivos legalmente constitudos. A sentena e o acrdo que a confirmou consignavam, todavia, a existncia de laudo da Funai, indicando os limites da rea indgena, onde tambm se situava a suposta posse do autor. Concluam ainda no ser cabvel percia antropolgica, porque a posse indgena j estava evidenciada por meio daquele estudo8. Contrariando assim expressa disposio constitucional (art. 231, 6), foi conferida validade a ttulos incidentes sobre rea indgena, cujo laudo produzido pela Funai no foi contestado. Esse caso de especial gravidade, porque passa ao largo de um dos postulados mais evidentes do texto constitucional, no trato dessa matria, e da jurisprudncia que foi consolidada ao longo do tempo. Em uma outra oportunidade, e para no fugir linha de incoerncias que permeiam a atuao judicial nessas questes, o mesmo Tribunal Regional Federal da 5 Regio, analisando recursos interpostos pela comunidade indgena trememb, pela Funai e pela Unio, declarou nula sentena que afirmara a validade de ttulos de propriedade apresentados pela Ducoco Agrcola S/A. Naquela ocasio, disse o Tribunal que prevalecia o ato administrativo de reconhecimento da rea indgena, por sua presuno de legitimidade, e que a sua desconstituio estava a depender de percia antropolgica, a ser suportada por quem o impugnava9. Todas essas decises judiciais esto inspiradas, de uma forma ou de outra, pelo mito da propriedade privada, reputado direito fundamental, tal qual o o direito identidade. Ambos so ponderados 6
a propsito, Reclamaes 2833 e 3331, no STF.
os exemplos se multiplicam. O Parque Indgena do Araguaia, que abriga os povos java, karaj e av-canoeiro, criado pelo Decreto 69.263, de 22 de setembro de 1971, conta, at hoje, com a presena de no-ndios, em face de sucessivas liminares a estes concedidas pelo TRF-1 Regio (AG 1999.01.00.093325-4). 8 Processo 9400026196, 3 vara federal de Alagoas. AC 9805002845, TRF-5 Regio.A questo, na atualidade, objeto do Recurso extraordinrio 370.808. O recurso especial, interposto perante o STJ, no foi conhecido (Resp 264.654). 9 a propsito, Resp 242.126-CE, no conhecido. 7
como se princpios fossem, e a prevalncia de um ou outro fica a depender
das peculiaridades do caso sob exame, simplificadamente na linha do que ensina Dworkin, Alexy e alguns outros. Ferrajoli (2001) aponta diferenas estruturais entre os direitos fundamentais e os direitos patrimoniais. A primeira diferena consistiria no fato de que os direitos fundamentais nos quais se inclui tanto os direitos liberdade, identidade e vida, como o direito a adquirir e dispor dos bens objeto de propriedade so direitos universais (omnium), no sentido lgico da quantificao universal da classe dos sujeitos que so seus titulares; j os direitos patrimoniais so direitos singulares (singuli), no sentido, tambm lgico, de que para um deles existe um titular determinado, com excluso de todos os demais. Assim, os primeiros so reconhecidos a seus titulares em igual forma e medida, enquanto os segundos pertencem a cada um de maneira diversa, tanto pela qualidade quanto pela quantidade. A segunda diferena que os direitos fundamentais so indisponveis, inalienveis, inviolveis, intransigveis, personalssimos. Ao contrrio, os direitos patrimoniais so disponveis por natureza, negociveis e alienveis. Estes se acumulam; aqueles permanecem invariveis. No possvel, juridicamente, ser mais livre, mais eu, ter direito a mais vida. No entanto, a ordem jurdica consente em que algum seja mais rico. A terceira diferena est em que os direitos patrimoniais, exatamente por que disponveis, esto sujeitos a vicissitudes, i.e., destinados a ser constitudos, modificados ou extintos por atos jurdicos. J os direitos fundamentais tm seu ttulo imediatamente na lei. Assim, enquanto os direitos fundamentais so normas, os direitos patrimoniais so predispostos por normas. Aqueles decorrem direta e imediatamente de regras gerais de nvel habitualmente constitucional, enquanto estes dependem da intermediao de um ato. De modo que esses direitos, a par de no serem equivalentes, tm, entre si, relao bvia de hierarquia, homologada pelo prprio texto constitucional. O que constituies de pases capitalistas inscrevem como direito fundamental o direito de todos a serem proprietrios. Nesse sentido, no h como se recusar o carter universal e indisponvel de tal direito. Diferentemente, contudo, o direito de propriedade em si, que, por sua prpria natureza, no pode ser concebido, logicamente, como fundamental e, portanto, universal. A inverso nessa ordem de hierarquias conduz ao estgio em que nos encontramos na atualidade. Aos ndios, se recusa a ocupao dos seus espaos definitrios, subtraindo-lhes a possibilidade de exerccio amplo de seus direitos identitrios, em nome de supostos direitos de propriedade.
Situao bastante emblemtica dessa inverso aquela que
diz com a figura dos embargos de reteno. A Constituio, em seu art. 231, 6, ao estabelecer a nulidade dos ttulos incidentes sobre terras indgenas, assegura aos seus titulares indenizao pelas benfeitorias derivadas da ocupao de boa-f. No entanto, bastante comum, na prtica judiciria, assegurar a essas pessoas permanncia em territrio indgena enquanto no se paga a indenizao. No bastasse a disputa que se estabelece entre direitos indgenas e direitos de propriedade, h forte incompreenso no que diz respeito ao que sejam terras tradicionalmente ocupadas. Vez por outra o conceito resvala para a imemorialidade, e o juiz exige a produo de um laudo arqueolgico que evidencie que a presena indgena no local remonta a tempos pr-colombianos. Tal requisito vem impedindo que os terena de Mato Grosso10 e os krah-kanela de Tocantins11 tenham acesso a um territrio, ao argumento de que as reas pretendidas no correspondem s suas terras ancestrais. O requisito da imemorialidade, no entanto, de h muito foi abandonado. A uma, por sua impossibilidade lgica. O processo dito colonizador avanou sobre esses territrios, descaracterizando-os. um trusmo dizer-se que no h como recuperar Copacabana para os ndios. A duas, porque esse mesmo processo promoveu deslocamentos constantes, e a territorializao desses povos teve que ser constantemente redefinida. E, a trs, porque estamos a tratar de populaes que existem no presente, com perspectivas de vida atuais e futuras, e que no podem ser condenadas a um imobilismo do passado. De outro giro, muito embora no imobilizadas espacialmente e no definidas necessariamente pela profundidade temporal, a definio de terras tradicionalmente ocupadas requer uma compreenso narrativa das vidas desses povos. A tradio que emerge dessa narrativa no mera repetio de algo passado, mas participao num sentido presente (Gadamer, 1998: 571). No mera remisso ao contexto da existncia que a originou, mas a experincia histrica de sua reafirmao e transformao. Da por que a definio do que sejam terras tradicionalmente ocupadas, por cada grupo, passa por um estudo antropolgico que, para alm da histria, revele a tradio que permanentemente reatualizada e que dessa forma se faz presente na memria coletiva. Importante ressaltar, quanto ao estudo antropolgico, que este no tem, e nem poderia ter, uma posio neutra em relao sua pesquisa, no sentido de objetificar, de definir determinado domnio a partir de normas ou padres externos ao grupo, pois tal importaria em priv-lo de sua fora normativa (Taylor, 1997:210). E um esquema puramente
10 11
Ao civil pblica 2002.36.00.005497-8.
Ao civil pblica 2005.43.00.002884-8.
behaviorista necessariamente fracassa quando se trata de explicar a
conduta humana (Carpintero, 1993: 187).12 Assim, o estudo antropolgico tendente identificao de um territrio tradicional pressupe compreenso e traduo das formas como o grupo se v ao longo de sua trajetria existencial, como v e conhece o mundo, como nele se organiza. E a compreenso de uma outra cultura, por que compreenso de sentido, no se d mediante a atitude objetivante que adota o observador frente aos estados e sucessos fisicamente mensurveis. Como observa Habermas (1996:460), a realidade simbolicamente preestruturada constitui um universo que permanece hermeticamente fechado, ininteligvel s olhadas do observador. O mundo social da vida s se abre a um sujeito que faa uso de sua competncia de linguagem e ao, estabelecendo relaes interpessoais. S se pode penetrar nele participando, ao menos virtualmente, nas comunicaes dos membros e convertendo-se, ele mesmo, em um membro, ao menos potencial. Nesse sentido, no deixam de ser curiosas as decises que negam validade percia antropolgica por suspeio do pesquisador, porque este tem intimidade com o grupo13. No entanto, para toda e qualquer percia, requer-se, do profissional, conhecimento tcnico e cientfico (art. 424, I, CPC). E, no caso da antropologia, apenas est habilitado a produzir essa prova aquele que conhece o grupo, que pode revelar a sua existncia quotidiana. Por outro lado, a definio de um territrio tradicional no pode passar ao largo do estudo antropolgico, salvo se pretendermos reinstaurar o vis etnocntrico que orientava o direito anterior, em que o juiz atribui aos agentes a sua prpria viso. Enfim, sem a pretenso de exaurir todas as dificuldades com que nos defrontamos nas lides dirias, o que se revela, nesse breve esboo, um judicirio ainda marcadamente civilista, seja na interpretao do direito, seja na ritualstica processual. Mesmo as decises que vm ao encontro das aspiraes dos povos indgenas dificilmente conseguem fugir desse vis. pouca a reflexo sobre direitos coletivos, e quase nenhuma sobre direito tnico. A tarefa que se impe a todos ns a luta por um judicirio mais curioso e atento novidade do que nostlgico de suas certezas.
12
A neutralidade valorativa do objeto, para as cincias experimentais, importa, no mbito
das cincias sociais, em abstrao dos valores do plexo da vida social, coisificando-a. Quando, o que, na verdade, se sancionava a posteriori, como valor, no exterior a coisa, mas sim imanente a ela. Quando se neutraliza um aspecto da vida social, as categorias do mundo da vida ficam falsificadas. Falsifica-se o objeto da cincia (Habermas, 1996). 13 Como exemplo, processo 2004.36.00.002130-5, da 3 vara federal de Mato Grosso. H outras tantas decises similares da justia federal em Dourados-MS.