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Rio de Janeiro
Março de 2010
RESUMO
No ano de 1846, uma escrava de nome Anastácia recebe de seu senhor, Antônio da
Luz Rangel, uma alforria registrada no 1º Ofício de Notas do Rio de Janeiro. Nada no texto
nos diz sobre sua idade; se era muito velha, se estava mal ou bem de saúde, se nascida no
Brasil ou na Costa da África nem mesmo sobre que cor tinha. Apesar disso, sabemos bem
quem Anastácia é: ela havia criado Antônio em seus peitos e cuidado de sua infância, por
isso ele agora lhe passava carta, para consagrar através desta a sua amizade e gratidão.
Sabemos por instinto e humanidade e porque houve para nós – ou mesmo nos faltou -, em
algum momento, aquela quem preencheu de cuidados a nossa infância própria infância,
entre peitos e braços. Anastácia fora ama de leite de Antônio da Luz Rangel.1
A declaração de Rangel é belíssima. Ela fala de nossas memórias mais íntimas e
primárias, das mais doces e felizes, do paraíso perdido dos carinhos recebidos na infância.
Mas é um texto igualmente perturbador, pois tem origem no interior de uma instituição
marcadamente violenta onde corpos, almas e afetos estavam sujeitos a pertença e a vontade
de terceiros. A escravidão brasileira, como instituição peculiar, criou dentro de si uma série
de contradições que acabaram por trazer ao mesmo tempo convívio o castigo, a morte, a
desonra, o amor, o desejo entre outros tantos sentimentos e ações díspares.
1
1º Ofício de Notas, livro 45, f. 50 (Entrada nº 1091). Para consagrar amizade e gratidão por ter me criado
em seus peitos e cuidado de minha infância. Anastácia pertencera aos pais de Antônio Luz (ou Luiz) Rangel
que, pelo ato, toma a escrava como parte de sua legítima pelo valor que foi estipulada, e a liberta sem
condições.
O projeto que aqui apresento vem no escopo da série de pesquisas iniciadas por José
Roberto Góes e Manolo Florentino em meados nos anos 90 que, se valendo desses e de
outros novos olhares sobre as fontes e dados, trouxeram surpreendentes esclarecimentos a
respeito da formação das famílias escravas nos séculos XVIII e XIX, por conseguinte, da
constituição social, religiosa, econômica e moral daqueles grupos. Essa escrita é fruto do
prosseguimento das tarefas desses autores utilizando um banco de dados contendo cerca de
17.600 cartas de alforria registradas nos 1º, 2º, 3º e 4º Ofícios de Notas do Rio de Janeiro
durante os anos de 1830 à 1871 e que ora se desdobra para contemplar novos ângulos e
novos questionamentos sobre os significados de liberdade e sobre o cotidiano das relações
entre senhores, escravos, livres e libertos na antiga província fluminense.
O projeto que ora se apresenta percebe as amas de leite como protagonistas na
construção da ideia de família, proximidade feminina e afeto na infância, além de pontes
privilegiadas que uniram a cultura vinda de diferentes lugares da África à uma cultura euro-
americana que, na junção, se tornaram histórias, memórias, cantigas e jogos tipicamente
nacionais. Nesse sentido, percebe o trabalho compulsório dessas mulheres-mães como uma
das chaves para a compreensão não só da sociedade, da cultura e da dinâmica do regime
escravista como também para a percepção – e descoberta – de lembranças e modos de
agir/sentir que nos são caros, que nos identificam como parte uma mesma comunidade.
Lembranças que ainda reproduzimos, que certamente precisam ser estudadas e preservadas.
OBJETIVOS
Identificar quem eram e como viviam as mulheres conhecidas como ama de leite ou
mãe seca, como se desenvolvia esse serviço feminino especializado e por que;
Levantar fontes referentes ao grupo de escravas amas de leite, arrolando,
quantificando, qualificando cada uma delas, recorrendo sempre a bibliografia já
existente sobre o assunto;
Analisar a emergência, no final do século XIX, de uma figura materna ideal,
pautada na permanência da própria mãe junto aos filhos e de cuidados aplicados
pessoalmente, em detrimento de um costumeiro cuidado e aleitamento realizados
por mulheres cativas. Como essa concepção se operou nas esferas privada, pública e
sanitária;
Investigar o trato com a infância no Rio de Janeiro dos oitocentos sem perder de
vista a própria concepção de infância dos diferentes períodos da época; a educação,
o mundo lúdico e a formação de uma identidade e memória nacional dos primeiros
anos.
2
FREYRE, Gilberto Casa Grande & Senzala. Global: São Paulo, 2003. p. 443
3
ALENCASTRO, Luiz Felipe Vida Privada e Ordem Privada no Império In: ALENCASTRO e NOVAIS
Historia da Vida Privada no Brasil. Companhia das Letras: São Paulo, 1997. p. 63
4
MAUAD. Ana Maria. A vida das crianças de elite durante o Império. In: PRIORE, Mary Del (org). História
das Crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, p. 160
garantido mesmo em finais do século, quando, apesar de diminuir a quantidade de
anúncios, continua havendo uma grande procura (fig. 1).5
5
VIEIRA, Isabele Izequiel O RACISMO [DES] NUTRIDO Racismo e escravidão no discurso médico acerca
do uso de amas de leite na segunda metade do século XIX. Monografia de conclusão de curso. UERJ/FFP,
2009.
Imperial de Medicina, mas só começam a ser popularizadas em 1870. Médicos para
mulheres eram raríssimos e, proporcionalmente, só não mais raros que pacientes dispostas a
serem examinadas antes de 1850 já que, ainda segundo Novais, a medicalização só penetra
na intimidade feminina e no recesso dos lares oitocentistas depois que o doutor adere ao
seguimento parafamiliar tradicional, tornando-se médico e compadre, cheio de afilhados
em meio a prole de seus clientes.6 Mas enquanto essas novidades infiltravam-se com total
lentidão entre a burguesia crescente e a nobreza fictícia da Corte, reinava um medo coletivo
entre a população feminina em torno da gravidez onde a probabilidade de morrer mãe ou
cria eram muito grandes. A despeito de tudo isso, Mary Karash mesmo surpreende-se ao
constatar que, entre 1847 e 1849, uma única escrava tenha morrido de complicações no
parto.7 Levanta para isso duas hipótese: a primeira de que as escravas tinham poucos filhos,
e a segunda de que as mulheres que morriam no parto eram enterradas em outro lugar. Mas
um outro raciocínio, simples, se apresenta nesse projeto: verificando o volume de amas de
leite escravas que são anunciadas nos jornais do Rio de Janeiro, vê-se que nenhum dos dois
raciocínios se sustenta, as pretas e pardas, escravas ou não, eram sim férteis. Talvez
sejamos obrigados a concordar com Gilberto Freyre e com as centenas de anúncios do
Jornal do Commercio e aceitar que as mulheres de origem africana tinham uma gravidez e
parto mais resistentes que as mulheres de origem européia e que, de alguma forma para
ama de leite, não há como a negra.8
Além das doenças físicas, alguns acreditavam que o leite e a criação oferecidos
pelas amas de leite traziam outros males aos pequenos, males atávicos e africanizados que
impediriam o progresso e a evolução do país. Segundo Mary Del Priore, havia os que
acreditassem que os mimos realizados por mães e amas eram tantos que poderia fazer da
criança um indivíduo amolecido e cansado, assim, recomendavam as amas livres – dos
males o menor – com princípios religiosos e morais que evitassem as ridículas histórias
que as escravas contavam para as crianças taes como de lubis-homens, bruxas, mulas sem
6
NOVAIS, op. cit., pp. 63-75.
7
KARASH, Mary, A vida dos escravos no Rio de Janeiro: 1808-1850. 2ºed. Rio de Janeiro, Cia. das Letras,
2000. p. 207.
8
FREYRE, op. cit. p. 444
cabeça, almas perdidas, etc.9 Ainda de acordo com a autora, as mães negras, amas-de-leite,
contavam aos pequenos tinhosos e chorões, estórias de negros velhos, papa-figos, boitatá e
cabras-crioulas. A cultura africana fecundava o imaginário infantil com assombrações
como o mão-de-cabelo, o quibungo, o xibamba, criaturas, que rondavam casas grandes e
senzalas aterrorizando os meninos malcriados.10
Mas os mimos não eram mal-vistos, aliás, certamente deviam estar inclusos no
pacote da “ama carinhosa”, muito valorizada nos anúncios de jornal, bem como as que
tivessem desenvoltura com as crianças e que fossem espertas, além de terem o
importantíssimo “bom leite”.
Alugao-se duas amas, uma de 15 annos de idade e outra de 17, tendo ambas leite superior,
sendo o da primeira de 4 mezes e o da segunda de 8, sabendo lavar e engommar com toda a
perfeição; na rua dos Felizes n. 2 em Santa Thereza, e a chave está na rua da Floresta n. 7K.
(...).11
Aluga-se uma crioula para ama, com muita abundancia de bom leite de 60 dias, do primeiro
parto, carinhosa e limpa: na rua Sete de Setembro n. 227.(...) 12
9
Idem,p. 23.
10
PRIORE, Mary Del. O Cotidiano da criança livre no Brasil entre a Colônia e o Império. In: PRIORE, Mary
Del (org). História das Crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 2007, p. 93.
11
CARNEIRO, Maria Elizabeth R. Uma Cartografia das amas de leite na sociedade oitocentista... In: Textos
de Histótia, vol . 15, nº 1/2, 2007 p122
12
Idem, p.123
13
2º Oficio de Notas, Livro 83, f. 214 (Entrada nº 2615). Arquivo Nacional do Rio de Janeiro
Em 1858, Alexandre José Fortuna e sua esposa Joana Ludovina Fortuna alforriam a
parda Florisbela, de 30 anos por esta ter sido ama de leite dos três filhos do casal.
Justificam ainda que Florisbela prestou bons serviços e que comemoravam ainda no ato a
independência do Brasil. Em outra carta, de 1863, Augusto Romano Sanches alforriou a
escrava Feliciana, de nação Mina, 44 anos, pelo motivo desta ter sido ama de leite de sua
esposa. Mas nessa última há uma condição: Feliciana, para que não se torne nula a
liberdade, deverá continuar residindo com seus senhores14.
Do lado de quem dá a alforria, entregar a liberdade para um escravo era motivo de
grande orgulho. Stuart Schwartz observou para o período colonial que
[...] recomendações nas cartas – e orgulho com o qual os senhores garantiam a
manumissão mesmo para os velhos e enfermos – indicam que os proprietários de
escravos viam o ato da libertação como um gesto de caridade, não importasse as
condições do ato.15
14
2º Ofício de Notas, Livro 93, f. 95 Arquivo Nacional do Rio de Janeiro (Entrada nº 274). O casal Fortuna
alforriara 9 anos antes, gratuitamente, um filho de Florisbela, Ramiro.
15
SCHWARTZ S.B. “The Manumission of slaves in Colonial Brazil: Bahia, 1684-1745,” Hispanic American
Historical Review 54, 606n7. Apud PATTERSON, O. op. cit., p.217 (livre tradução).
16
Não contaremos para os fatos isolados em que a alforria aparece como castigo ou possui um discurso de
mágoa. Na entrada nº1697, Antônio José Vilas Boas Sampaio liberta, em 1848 a crioula Juliana “por causa de
seus defeitos” e, por causa disso ela deve ir morar “a mais de uma légua” de seu ex-senhor. Na nº6082 João
José Pereira Azurar liberta Luiza Conga em 1850 e, porque ela vai se casar com um determinado sujeito, tem
como expressa condição que “nunca mais apareça” na casa do senhor.
No caso das cartas de alforria concedidas às amas de leite, há uma questão que
merece cuidado e reflexão; talvez as manumissões entregues a essas mulheres sinalizassem
um bônus a mais, uma mostra de bondade a mais do senhor (porque libertam uma mulher
de grande importância social e simbólica, preciosa para aquela comunidade)... mas isso
tornaria o mundo maniqueísta demais. É possível apontarmos para um costume, uma
prática corrente, a de demonstrar gratidão àquela que, retomando as palavras de Rangel
“cuidaram da infância”. Isso nos aponta para um lugar afetivo realmente poderoso
construído a partir do imaginário dessas mães negras, espécie de feiticeiras que
transformaram a infância em um universo cheio de mágica e seres fantásticos; assustadora e
doce como os quitutes que elas mesmas cozinhavam, quente e cheia de proximidade como
os panos que atavam os pequenos senhores às costas das escravas e que depois os deixavam
com as pernas arqueadas iguais às dos seus negrinhos. 17
Outra importante fonte de análise sobre a importância que uma ama de leite poderia
ter para as famílias brasileiras são as fontes iconográficas. A impressionante fotografia de
Monica e Arthur Gomes Leal já foi incansavelmente vista e revista: a imponente e
impenetrável escrava, vestida de tecidos finos, jóias, postura de pedra com o senhorzinho
na ponta dos pés ao seu lado, tão íntimo e à vontade nos diz, através das palavras de
Alencastro que [é] a imagem de uma união paradoxal, mas admitida. Uma união fundada
no amor presente e na violência pregressa. Na violência que fendeu a alma da escrava,
abrindo o espaço afetivo que está sendo invadido pelo filho de seu senhor.
Dessa forma, é de grande importância a investigação das coleções de gravuras e
fotografias da base de imagens Biblioteca Nacional. Lá podem ser encontradas cenas que
nos revelem um pouco mais sobre esse cotidiano onde a violência e o amor maternal se
entrecruzam.
Outra face tanto crucial quanto cruel que perpassa o universo escravista do serviço
especializado das amas de leite é a questão do abandono de recém nascidos. A Casa da
Roda, dos Expostos ou do Enjeitados tinha uma larga existência em todas as partes do
mundo nos séculos XVIII e XIX. No Brasil, a primeira delas foi fundada em 1726, na
província de Salvador. Dirigida pela Santa Casa de Misericórdia, a do Rio de Janeiro,
17
Sobre o habito de amarrar as crianças às costas por longo período de tempo, diz Sá de Oliveira: veem mais
tarde os seus filhos ficarem com as pernas defeituosas, arqueadas de modo que, tocando-se os pés, formam
uma elipse alongada.
fundada em 1738, sustentou uma movimentação intensa durante todo o regime escravista; a
regressão das suas atividades deixa entrever uma convergência de rupturas: na primeira, a
diminuição gradual do número de escravos os oitocentos (por conta da também gradual
perda da legitimidade moral do regime, ainda mais após a proibição do tráfico em 1850,
que eleva o preço dos cativos – por conta da menor oferta – e o torna pouco-a-pouco uma
mercadoria menos acessível, além do aumento do número de alforrias) e, na segunda, a
movimentação no sentido de proteger sempre mais a maternidade, que alcançará seu auge
no final daquele século.
No Jornal do Commercio de 2 de julho de 1899, o médico Pires Almeida assina um
artigo que apresenta o quadro de movimentação da Casa dos Expostos desde sua fundação
até o presente ano. Em 161 anos, ela havia atendido 42.937 crianças; a média de
atendimento por períodos na instituição resulta no gráfico mostrado na figura 2.
Figura 2: Média (por período) das crianças abandonadas na Casa da Roda no Rio de
Janeiro – 1763 a 1899
600
500
400
300
200
100
0
1738 - 1763 1763 - 1810 1810 - 1836 1836 - 1971 1871 - 1888 1888 - 1899
18
Fonte: Jornal do Commercio. 2 de julho de 1899
O nome “roda” se refere ao mecanismo criado para que as mães deixassem aos
cuidados da instituição o seu filho sem que para isso fosse identificada e talvez para
diminuir a brutalidade do abandono. O bebê era posto na abertura do cilindro que,
acionado, fazia a criança girar para dentro do pátio. Tocava-se então uma campainha e
imediatamente a criança era recolhida por quem estivesse na guarda.
18
CIVILETTI, Maria Vitoria P. O Cuidado à crianças pequenas no Brasil escravista In: Cad. Pesq., São
Paulo (76): 31-40, fevereiro, 1991.
Embora, pelos deveres da misericórdia cristã, não fosse uma prática corriqueira a
separação de familiares, na vida das amas secas a realidade podia se apresentar diferente.
Muitas vezes sem interesse em arcar com os custos do filho da escrava a ser futuramente
posta para aluguel, os senhores mandavam pôr os recém-nascidos na Roda dos Expostos.
Era virtualmente a resolução de dois problemas: o primeiro, o da criação de mais um
dependente e o segundo – que possivelmente teve maior peso – a necessidade de que a ama
de leite fosse exclusivamente mãe de seu pequenino senhor e não precisasse se desdobrar
em suas próprias demandas maternas.
Ama de leite
Vinham bater à porta e vinham para vêl-a:
Era preta e retinta; a estatura della
Não era alta, não; os modos seus, ufanos,
Mostrava apenas ter dezoito a vinte annos.
“Não foi aqui, pergunta alguém que a pretendia,
Que annunciou-se um’ama em um jornal do dia?
“- É certo, sim senhor”; de dentro brada antiga.
Matrona e se levanta. – “Olá! Ó rapariga!
Vem cá na sala, vem. Póde sentar-se. É viva
No serviço da casa, e saiba que é captiva!
Experimental-a é bom; depois della não mude:
E que atteste o doutor, se goza ou não saude.
Engomma, lava, e cose; em tudo ella é geitosa;
Sabe agradar criança, affirmo, é carinhosa
Como bem poucas há. Em quanto aos alugueis,
Por ser para quem é, são sessenta mil réis”.
“Seu filho?!”
A pobre escrava, a intristecer-se toda,
Murmura:
“Meu senhor, meu filho foi p’ra roda”
19
19
MORAES FILHO, MELLO. Poemas da Escravidão. Apud MORAES, Evaristo de. A Campanha
bolicionista.1879-1888. Rio de Janeiro: Livraria Editora Leite Ribeiro, 1924. Apud CARNEIRO, Maria
Elizabeth R. op. cit. p. 121-122
A base desse levantamento é uma série de 17.600 cartas de alforria sob a guarda do
Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, catalogadas e tipografadas em um banco de dados
capaz de nos oferecer amplos dados demográficos e estatísticos. A partir do universo de
manumissões concedidas a mulheres sob a motivação de terem sido estas amas de leite dos
senhores, de seus filhos ou parentes e das histórias/questões que ensejam – como no
contundente caso da escrava Anastácia – serão buscados e cruzados com documentos sob a
guarda da Fundação Biblioteca Nacional-RJ sendo estes a) anúncios de aluguel ou venda de
amas de leite publicados pelo Jornal do Commércio20; b) galerias de gravuras e fotografias;
c) documentos relativos a escravos de ganho e domésticos. A estes serão ainda juntados
complementos sobre assuntos mais específicos como as recomendações médicas e as
práticas de abandono de recém-nascidos, cujos documentos serão mapeados,
respectivamente, na Biblioteca da Academia Geral de Medicina-RJ e no Arquivo da Santa
Casa de Misericórdia.
Assim, recortamos um período em que temos o regime escravista funcionando À
plenos pulmões, injetando uma absurda quantidade de almas cativas direcionadas para as
mais diversificadas tarefas. O recorte espacial se refere à disponibilidade de todas as fontes
já arroladas, além de um interesse pessoal pela província; além do mais, como capital do
Império, acabou por se transformar em um território-palco dos principais conflitos
presenciados durante o último século da monarquia e do regime escravista.
E pela corte insalubre que irão transitar as edições do Jornal do Commercio, os
fotógrafos, também os viajantes, os reis.
Me apoio nas considerações sobre o cotidiano, no olhar sobre as fontes seriais de
José Roberto Góes, também nas reflexões sobre heranças africanas culturais, comerciais e
escravistas levantadas por Manolo Florentino. Nos apontamentos demográficos largamente
explorados pelos dois autores estão ricos panoramas cujas frentes de investigação são
arejadas, instigantes e inspiram o apuro metodológico. Não perder-se no cenário: os dados
estatísticos, que generalizam para que seja possível enxergar, podem-se juntar aos números
20
Seguindo a sugestão de amostragem arbitrária/aleatória proposta por Isabelle Izequiel Vieira, serão
analisados os anúncios do Jornal do Commercio dos meses janeiro, março, maio, julho, setembro e novembro
dos anos de 1850, 1554, 1858 (representando a secada de 50) e 1880, 1884 e 1888 (representando a década de
80). Esse recorte permitirá a leitura dos anúncios de alugueres de amas de leite dentro do tempo hábil posto
no cronograma desta pesquisa. Também por sugestão da mesma colega e do professor José Roberto Góes, os
anúncios serão tipografados e convertido em um banco de dados informatizado.
as gravuras de Debret, os registros de nascimento e as histórias de liberdade cartorial.
Ficam conjurados, assim, híbridos, a ex-colônia, a África, a Corte de D. Pedro II e as
crescentes cidades fluminenses. O Rio de Janeiro é aqui o lugar histórico de amostragem,
onde os paradoxos criados dizem respeito, simultaneamente, ao melting pot racial e à
exclusão, que tornaram impossível a divisão do país em ofensores ou ofendidos.
Tendo os referenciais expostos, a pesquisa pretende levantar fontes que revelem o
cotidiano do aleitamento por amas no Rio de Janeiro do período que vai de 1830 a 1885;
Nesse período se podem fazer três sub-recortes; o primeiro indo de 1830 até 1850,
ou seja, de um período de vasta oferta de cativos até a proibição efetiva pelo governo
brasileiro do tráfico transatlântico quando os preços tenderão a subir. Depois, de 1850 até
1860, onde as mudanças ocorridas no período anterior vão se consolidar e/ou comprovar
tendências do mercado, além de perceber o impacto das propagandas e ações humanitárias
e liberais sugeridas efusivamente pela Inglaterra. O terceiro sub-recorte vai até 1871; no
período, o valor para a compra de escravos torna-se impraticável e empurra para a completa
perda força moral do sistema. O último período, que vai até 1885 fica assim delimitado por
ser percebido como um momento limite, segundo Lilia Schwartz , quando o discurso racista
finca definitivamente suas raízes na produção intelectual nacional, infiltrando-se de modo
mais perceptível para os mais diversos setores da sociedade21.
Se no cotidiano, o fim do gradual da escravidão não parece provocar mudanças tão
bruscas, nos debates jurídicos as pressões são tensas. Buscarei também perceber, através
desses recortes, como as questões sobre a liberdade dos cativos eram vistas e discutida na
esfera jurídica. Dessa forma, é imprescindível a atenção a marcos como a Constituição data
de 1824, o Código Penal de 1830 e o Comercial de 1850, mesmo ano em que é promulgada
a Lei Euzébio de Queiróz. 1871 é o ano da Lei do Ventre livre.
21
SCHWARTZ, Lilia M. Retrato em Branco e Negro. Jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do
século XIX. São Paulo: Cia das Letras, 1987. p. 179
CRONOGRAMA DE TRABALHO
ETAPAS 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12
1. Levantamento bibliográfico
2. Levantamento de fontes gerais
3. Levantamento Jornal do
Commercio
4. Leittura classificados - J. do
Commércio
RELATÓRIO
4. Levantamento Cartas de
Alforria (banco de dados)
5. Revisão da Bibliografia
RELATÓRIO
6.Levantamento Sta. Casa
7. Leitura docs. Sta. Casa
7. Levantamento iconográfico
8. Quantificação de recultados
RELATÓRIO
9. Leitura Cartas de Alforria
(manuscritos)
10. Escrita dos resultados
RELATÓRIO
RESULTADO PARCIAL
RESULTADO FINAL
BIBLIOGRAFIA
________________ Procura-se preta com muito bom leite, prendada e carinhosa: uma
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