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LUIZ MOTT O SEXO PROIBIDO Virgens, Gays e Escravos nas Garras da Inquisigfio ‘ral, inexistindo portando uma “moral natural”, caben- do-nos a tarefa primordial de desmascarar e denunciar quaisquer dogmatismos sexol6gicos, seja do eristianis- ‘mo, do islamismo ou dos orixés, que desrespeitem 0 di- tollo fundamental de todo ser hhumano, de com liber- dado miitua, fazer do sexo fonte de prazer e amor, e nko do press, % Capitulo 11 DESVENTURAS DE UM PORTUGUES NO BRASIL SEISCENTISTA* “vora, 18 de Agosto de 1665. Senhores Inquisidores: Na cadeia desta cidade me disse um preso em muito segredo que Luiz Delgado peca com um rapaz, e com, ele dorme no 6° mandamento™. Fol através desta carta, escrita pelo_preso Bento Faleiro, que a Inquisicao de Bvora foi informada de que hhavia rumor sobre a existéncia de mais dois sodomitas fem seu territério. Quatro dias depois, inieia-se um su- mario de culpas na eadeia piblica, para se testar a vera cidade da denunciacao. ~ Aardepo 20 CNPa af Bolas de PéeDowoado ¢ de Pouits (-A) oie tne permiam sola do mater dee arin. Arado tamnen 9 Dr [Ann Novky a pagem aren Saindor/SP gue own mith prt ‘Graco not Congress Internacional wre Inga Portas” (So Plo, 2025 de mai de 1987) Eta comuniagofaz parte de una Ps tis amp ote a Mordidae eSeraade no Bras! Colonia «ma At Tidade Oeego ete Waal a Marcelo «Tox Cao, mes liad. 1. Tosa coger «epnondnRopais de Lie Delgado sun cps fac Cpe are Teo, os ens Mees Toto * Os Inquisidores desta cidade ja dispunham de bas- tante familiaridade na perseguigdo do abominivel peca- do nefando, pois desde 1553, quando foi preso e degre- dado para o Brasil o primetro homossexual de Evora, 0 cirurgido Felipe Correia, até o ano deste episddio, por- tanto, em 112 anos, foram ai processados 42 fanchonos, dos quais trés morreram queimados na Praca Grande e 08 restantes, degredados de 3a 10 anos, seja para as galés, soja para a Africa ou Brasil’, Varios si0 os presos ouvidos pelos Inquisidores, crujas acusag6es assim podem ser sumariadas: o prinel- pal suspeito chamava-se Lulz Delgado, um rapaz de 21 anos, filho de um moleiro da mesma cidade; era “alto de corpo, alvarinho, magro de cara’, Tinha por ocupa- ei0 tocar viola. Estava preso, hé 5 meses, juntamente com outro seu irmio, Jodo, ambos envolvidos em furtos. Seguindo o costume da época, os irmas Delgado também eram visitados ¢ assistidos em sua necessida- des materiais por familiares, entre eles, por um seu fu- ‘tro cunhadinho, Brés Nunes, rapazola de aproximada- mente 12 anos, irmao de Esperanga, noiva do acusado, Era um menino franzino, tio magrinho que passava por entre as grades da cadeia, entrando livremente no alju- be de Evora, af prestando servicos aos seus futuros pa rentes, passando dias e noites em companhia dos presos. Chamou atengio dos detentos a muita intimidade de Litiz Delgado com este mitido: sempre estavam aos Deljos e abragos, dormiam juntos na mesma cama. Ha 12 dias da dentineia, um dos presos disse ter ouvido Luiz ier para Bras: “Esta noite vos hel de fazer o traseiro em rachas.... enquanto Bris seria sem dizer nada”. Ha AC ANTR, tag, Brora Proc a 8474, 1.340, S013, 7809, 1% 6 dias, uma das testemmhas que dormia préxima cama dos suspeitos, declarou ter ouvido o mals vel dizer: “Chega-te para cd... ¢ 0 Bris respondet Layo E Luis disse-Ihe: fale manso!” Af viu o mogo entre a pernas do outro, se movimentando e gemendo entre beijos e abragos, levantando-se em seguida para impair o traseiro com a fralda da camisa, Outro presidiirio fo) ainda mais detalhista ao descrever o diflogo entre 0 queno Bris e seu cunhado: “Has de me deixar Vosan Mereé, pois que ja fez esta noite trés vezes comio, & ainda agora quer mais. E ento o dito Lulz Delgado 0 ‘abragou, dizendo que se calasse. E logo dali a pouico ago, ouviu gemer o dito Bris como que queria chor ‘ainda que o nfo fazia e Luiz Delgado dizin que 90 ola se”. No outro dia, ao ser perguntado por quie afngava @ beijava tanto seu cunhadinho, o violeiro respondew que “he fazia aquilo por se parecer muito com a irmé com quem estava esposado”, crescendo mais ainda a suspelta entre os presos de que pecavam mesmo no 6° Manda mento. ‘As acusagdes parecem suficientes ao Promotor da Inquisigéo para ordenar a transferéncia do suspeito principal do aljube para os edrceres secretos do Santo Offeio: de prisioneiro civil — ladriio — Luiz Delgado passou & condigao de preso religioso, suspeito de pra car “o mais torpe, sujo e desonesto pecado”, a sodomia, Na ordem de prisio, os Inquisidores assim legitimam sua deliberagdo: “O crime de sodomia por ser oculto, se prova suficlentemente por conjecturas e presuncoe conferindo, portanto, & axbitrariedade o status de prova de justica. Nos carceres inquisitoriais Luiz Delgado ¢ ouvido pela primeira vez aos 5 de outubro do mesmo ano — 1665: os Tnquisidores admoestam-Ihe que faca inteira ” eeereeooceseoesn: verdadeira confissio de suas culpas para desencargo de sua conseiéncia e bom andamento de seu processo, Con- fessa entio, sem rodeios, que de fato, na maior parte das noites que o menino dormiu em sua cama, “meteu seu membro viril na virilha entre as pernas, junto a0 vaso traseiro derramando semente na barriga ou entre 1s pernas do mesmo, mas nunea penetrou nem intentow penetrar pelo seu vaso traseiro, derramando sémen as veres na mao do menino”” Verdade ou nfo, 0 certo é que provavelmente 0 vio- leiro tinha conheeimento que o Santo Oficio somente cnstigava a “sodomia perfeita”, isto é, penetragio € ejaculagio dentro do finus*, dai enfatizar, como tantos ‘outros presos por sodomia, que apenas cometera “eoxe- lw” © “punheta” — termos populares em Portugal e Hirasi, desde 0 séewlo XVI, para designar a eépula fe- ‘nuiral e masturbaeao, priticas que os inquisidores rotu- Javan genericamente de “molice”.* Novas segGes de perguntas se sucedem, o réu sempre ogando ter mantido cépula anal, Como 0 préprio vio- Jolro era menor de 25 anos, teve um curador que 0 defen- dou, Sua alegagao 6 extremamente favordvel ao acusado @ evoluida para a 6poca: “Se o réu fazia ao menino afa- (G08, carfcias e mimos, era pelas razdes de muita amiza- ide que os uniam e de estar comprometido a casar-se om sun irma, e Ihe querer bem, pois nfo se estranha, antes 6 muito usado, fazerem-se semelhantes caricias dlarom-se beljos e abracos aos meninos naturalmente. oslo Aadedal AGUIAR, “guna de Medi 'SABINO, DFM: Luz Merl, Of. AL FONSECA, Lisbon, L'PLANORIN, Le see dnt TOcident Sei, Par, 108340. © préprio acusado defende-se apresentando “contradi- tas”, onde revela que os demais prisioneiros eram seus inimigos por motivo de roubos e desavencas havidas na cadeia, e 56 por vinganea tinham levantado falso teste- munho, aeusando-o de praticar o abominavel pecado de Sodomia, argumentos que no convencem de todo os, Reverendos Padres Poucas semanas depois, é a vez do menino Bris Nunes dar a sua versio: diz.que nao tem nada a contfes- sar, Perguntado se fora beljado e abracado por alguma pessoa do sexo masculino, inteligentemente saiu pela tangente: disse que de fato, dormia no meio, entre as, camas de seus dois cuthados, e que de dia, nao s6 eles, mas também outros presos, as vezes o beijavam. Negou qualquer ato sexual, inclusive os j4 assumidos e revela- dos pelo seu ctimplice Apesar dos Inquisidores considerarem fracas as tes temunhas, para terem maior certeza do que se passara entre os dois, e sobretudo, porque o menor negara ter praticado atos lascivos com o violeiro, ambos so envia- dos ao tormento, Cumpre notar — a bem da verdade — que no mais que 1/4 dos sodomitas presos pelas Inquisicdes de Lis- boa, Coimbra e Evora chegaram de fato.a ser tortura dos: as regras de quando ¢ como torturar eram minu- ciosamente previstas pelos Regimentos, levando-se em conta 0 niimero de acusagées, o grat de confiabilidade das testemunhas, 0 desencontro entre as demincias ¢ a confissGo, a idade e estado fisico dos réus’. A Luiz Delgado determinou-se que fosse dado “um trato corrido na polé”, isto é, amarradas as mios para SUANFT, Maowrior de Livan, n° 1392, #168: “Dor Torment 19 tris, 0 corpo era alevantado por uma corda e roldana até 0 alto do teto, e de lé despencado até perto do solo, sofrendo bruseo solavanco a fim de magoar e descon- juntar ainda mais os misculos do ante-brago e la- vicula do pobre suplicado, Muitos sodomitas sofreram até tres. vezes. sucessivos “tratos”, Lulz Delgado fot penitenciado apenas com um alevantamento, dada a Pouca gravidade de seu suposto delito. Diz o processo: "Sentado no escabelo, 0 réu foi atado com a correla ‘ocordel, chamando sempre pela Virgem Nossa Senhora « pedindo misericérdia. Ai, foi posto no calavre e levan- tado até o lugar do libelo — onde the foi lida a acusagio ¢ levantado até a roldana, foi deixado eair lentamente, wvando um ‘trato’ cortido". Foi levado a seguir para A cela a fim de ser curado: as dores atrozes, hemato- mas © nevrites posteriores deviam perdurar meses fwguldos, isto quando nao afetavam para sempre a musculaiura desses desgragados, ‘A mesma triste sorte teve o infeliz Bras: dos mais de 450 processos de sodomitas por nés examinados, este mnenino franzino fot 9 mais jovem gay a ser preso e torturado. Os Inquisidores mandaram que fosse “Ie- vantado até o Iigar do libelo” ito é, até 0 meio da alta parede da cimara de suplicios e nao até o alto, na roldana, como sueedeu com o antecedente, “E sendo bem ‘ado com a eorreia cordel, por julgar 0 médico e cirur- ilo que por ser de pouea idade e 0s oss0s muito tenros, ho era caso de ser levantado, foi somente posto no cala- vie e se Ihe deu um solavanco, com 0 que foi mandado desatar para ser eurado” “6 Deals osculo XM que ma tga eto € wild 0 dim “ei” ‘oe snéino de soon, da propiedde diag do terme “es” arn seer as homouetaar de antano. Ci). BOSNELL, Chrstany, Sc Tolmer and Homaurnle, Chicago Usiveray Pres. Cab « Fim do processo: apés 9 meses de circeres, onde 0 medo e a angustia devem ter dofdo tanto quanto os tormentos, o menino Bris Nunes foi condenado a ouvir sua sentenga'na sala do Santo Offcio, sendo degredado por trés anos para fora de Evora. Uma verdadeira tra- gédia kafkaniana para um pré-adolescente que prova- yelmente nem “semente de homem” jé possuia e que deve ter ficado para sempre marcado, pelas torturas fi- sleas e morais sofridas em castigo por ter trocado ca cias, beljos e abragos com seu futuro eunhado, Luiz Delgado, além do noivado desfeito, foi degre= dado por trés anos para Braganca, nas fronteiras s tentrionais com a Espanha, ficando proibido de nos anos seguintes entrar no termo de Evora. Neste mesmo ‘ano do Senhor de 1666, no Auto-de-Fé realizado na Prag Grande, foram setenciados 183 réus, a quase totalidade cristios-novos, dos quais cineo morreram quelmados Como a culpa do violeiro foi considerada leve, sua sen> tenga foi lida na sala do Santo Oficio, sendo poupado da infamia do Auto-de-F6, (Os documentos nao informam como ofillo do molel= ro de Evora cumpriu seu degredo. O certo é que em 1000, ei-lo novamente preso, agora no principal circere de Lisboa, o famigerado Limoeiro, mais uma vez envolvido com amores homoeréticos, agora com um mogo de nome ‘André, preso por ter furtado a seu amo. Até o fim de sua vida, nosso biografado passou por 8 diferentes cadeias — uma verdadeira “Via Crucis”, se atentarmos para a insalubridade e desconforto destas instituigées punitivas. No Limoeiro murmuravam que Luiz e André Fed 0. MENDONCA & Aniono J. MOREIRA, Mors dor Principal tion potndimentat angus em Portal Rec eA AER 8 6A SR 6 4 8 RR 8 Ea ‘mantinham relagées intimas, por cujo motivo o rapaz foi transferido para a enfermaria, Separados, trocaram cartas entre si e Luiz Delgado chegou a mandar a seu amante uma toalha rendada para limpar o seu sangue (talver. dos agoites que recebera em castigo do roubo, ou da tortura sofrida para que confessasse delito), toalha que o violeiro reeuperou e sempre a trazia con- sigo, “cobrindo-a de beijos”. Aliés, como se vera ao longo de sua vida, 0 sodomita eborense conservara sempre enorme ternura para seus amantes, cobrindo-os sempre de beljos © presentes, chorando de paixao ou citimes, limentando inclusive certo fetichismo face as roupas objetos pertencentes a seus belos efebos, De Lisboa, talvez acompanhando seu novo amante que fora degredado para o Maranhio, Luiz Delgado também é embarcado para 0 Brasil, devendo ter chega- do na Bahia nos primeiros anos da década de 70, e certa- ‘mente j4 morava em Salvador quando o médico francés Charles Delon passou alguns meses no aljube baiano or oeasiio de sua prisao pelo Santo Ofieio de Goa * De violeiro, Luiz Delgado se torna “estanqueiro de tabaco”, tendo loja onde comprava fumo no atacado, retalhando aos consumidores no varejo, Nesta época, se- gundo depoimento do Dr. Delon, o fumo do Brasil era considerado 0 melhor do mundo, produto fundamental no coméreio de escravos na Costa da Africa, ramo co- ‘mercial dos mais présperos, depois do actiear, e que em pouco tempo podia trazer bons lucros aos intermedié- rios’, Além do afa comercial de “fazer a Amériea”, Luiz Delgado trouxe consigo ma fama: segundo 0 Procurador 5. ©. DELON, Relation de Mngustion de Gos. Chex Daniel Horie 9% Aniré 1080 ANTONIL, Calan ¢ Opulénci do Brain lr do Tabwo. Companhia aioe Nacional, SP, 1976 3 [eee eeieeewesel| Fiscal da Bahia, 0 licenciado Antonio da Cunha Mon- teito, “6 piiblico que ele velo degredado do Reino pela Inquisigio por culpas de sodomia, e em vez de emendar- se, continua no mesmo peeado com tocamentos ilfeitos nalguns moos...” Sua mé fama na Bahia de Todos os Santos vulgati- zou-se sobretudo apés 1675, quando a parda Mauricia Rois, 50 anos, viu Luiz e o soldado José Nunes “sairem muito suados de triis do muro do Convento de Sio Bento, que esté arruinado em partes e cheio de arvoredo, razio pela qual se formou um ruim conceito pela mé fama qu hhavia de ambos cometerem 0 pecado nefando” Mauricia contou para Antonio Albuquerque, este fofocou para Antonia Silva, e em pouco tempo “era fama geral, entre brancos e pretos, e ninguém ignora, na Bahia que Lulz Delgado era fanchono e sodomita”” ‘Também, verdade seja dita, as investidas eréticas do violeito de Evora, agora na faixa dos trinta anos, torna- vam-se cada vez mais freqiientes e ousadas, Ele revela- va-se mesmo um homossexual incorrigivel! Nas Visitas Pastorais realizadas nas Freguesias de 8, Pedro e Nossa Senthora do Desterro na capital baiana, entre 1679-1688, nosso biografado fol acusado diversas vvezes, sempre do mesmo delito nefando: — David Carneiro, 20 anos, chegado do Reino hi quatro, indo & sua casa apés insistentes convites, Ihe disse Luiz Delgado que “se servisse dele, pelo que 0 ‘queria servir e faria o que quisesse. E despindo-se, ficou 86 em camisa, dizendo que tinha um segredo para Ihe dizer, mas que receava que o descobrisse. E veio se es~ fregando e falando palavras lisonjeiras coro os homens costumam falar com as mulheres damas”. Percebendo 8 '5 intengdes homoeréticas do anfitriao, o jovem retirou- se dizendo que nao era sodomitico. Miguel Machado, criado de Domingos Carvalho, 14 anos, vizinho do acusado, disse que foi chamado pelo mesmo sua porta e Ihe disse em segredo: “Miguel, quero saber: tendes 3 polegadas de pica? Fagamos uma, ‘posta: entrai para dentro, Aposto 1 ou 2 patacas se tiveres as 3 polegadas. ..° Temeroso com tamanha ousa- dia, 0 adolescente fugiu, mas passados alguns dias, voltou, E numa noite, sentados lado a lado, “Luiz Delga~ do Ihe disse que sempre Ihe queria muito, e Ihe pés @ mio pela eabeca, fazendo-Ihe afagos, esfregando-lhe as mos, tentando por a mao de Miguel em sua braguilha, dizendo que nao temesse pois nfo The queria comer nada, enquanto metia sua mao pela braguilha da teste- muha, e mostrava-the suas partes pudendas, dizendo: jG que’ tendes vergonha de mostrar as suas, eu nao tenho pejo de mostrar as minhas...” Varias outras tes- temunhas ratifiearam semelhante tendéncia exibicio- nista do delato, Domingos Pena, escravo de Antonio Goncalves, 16 anos, denunciou que o fanchono reinol convidara-o para ir & sua casa numa noite, dizendo que “Ihe havia de dar uma coisa de seu corpo, e que Ihe daria tabaco ou outra coisa qualquer que pedisse”. Insistiu também para que Ihe mostrasse suas vergonhas, do mesmo modo como nfo tinha pejo de mostri-la as negras”. Escru- puloso, 0 moleque argumentou “que isso Ihe parecia 10 Amigamete = polgnda equal sposlmadameste 1/2 pulmo, potato, {Sets polegsdar provid por 1, Dalgndoequteium's quse 30 cm, Sompcimens ratimo de membro wich, oso. que de scar. com at fnctlopls aéeas, ea eepio 0 pis vara de 14 a 16 cin Asin Sendo, sempre oir deviasetar'n spout. mesmo eee os tare ‘2th de "Todor oF Santor pecado, ao que Luiz Delgado respondera que nio era pecado... e para isso existia a confisséo!” Abomindvel blasfémia, pretender que os atos lascivos, sobretudo os que levavam a préticas “contra natura” nao eram peca- do! Bram falta gravissima contra o 6." Mandamento da Lei de Deus, sendo tais-pecadores castigados com ter- riveis penas no inferno, conforme fora revelado & vene- rével Madre Anna de Santo Augustinho, earmelita por- tuguesa do século XVIT, que viu em visio sobrenatural “os do pecado nefando’sofrer com tormentos espanto- sos, um dos quais era ajuntarem-se com os deménios com as feras mais horriveis e como os demais desones- tos, tinham suas carnes terrivelmente despedacadas pelos deménios com garfos e unhas de ferro, mais forte- mente com tenazes em brasa que despedacavam ¢ ar- rancavam aquelas partes onde foram culpados — Jerénimo Pereira, 29 anos, morador na Gamba diz que hd 18 anos passados, quando estava com 10 ou 11, 0 St. Delgado oferecera-lhe dinheiro “se viesse atrés das trincheiras de So Bento”. Nao aceitou o con~ vite pois j4 sabia quais as intengdes do fanchono reinol. — Maria Rois, uma parda muito informada da vida alheia, contou no Sumério que Luiz Delgado quando esteve preso na cadeia da Bahia — provavelmente pela faléncia do contrato de carnes de seu irmao Joiio, de quem era fiador — no dito aljube beijava e abragava Hilério do Vale com tanta insisténcia, que 0 Capito foi obrigado a separé-los “por evitar ruins agdes que kee 1H, Pe Manoel BERNARDES, Pio partido. em pequeino. “Visio eta ¢ ‘inehel que das penas interno. teve a Verve Madre Anaa Sisto Angotino, reign carmela dain” Domingor Barres dh, Ponto, 101-6 as Maior escindalo e murmurago do que estas espo- rridicas solicitagdes ou manifestagdes de carinho homo- erético, eausavam os “casos” que 0 tabaqueiro manteve ‘com alguns mancebos, conforme denunciava 0 Promotor do Jufzo Kclesidstico de Sao Salvador: “Ele é tio de- vasso e escandaloso, que notoriamente andou amigado com viirios rapazes e com eles vivia na mesma compa- nnhia ¢ casa, sustentando-os com largueza de todo 0 ne- ‘cogairio, com continuo exerefeio de varias torpezas”. "Casos” fixos e prolongados, alguns comportando inclusive, cohabitagao, Luiz Delgado manteve ao menos com quatro rapazes: José Nunes, José Gongalves, Ma- noel de Sousa e Doroteu Antunes. Omitimos 0 menino Birds e © rapaz do Limoeiro, André, por serem “roman- ‘con do carcere, relagdes passageiras, © primeiro, José Nunes, era aquele jovem soldado ‘oom quem o Sr, Delgado foi visto sair de trds das mura~ Has de 80 Bento, fato que corroborou em muito a sus- Delta de que eram amantes. Comentava-se nessa ocasifio quo 0 estanqueiro sustentava o rapaz, pagando-Ihe in- tlunive © aluguel da casa onde morava, Provavelmente fol a ele que Liuiz deu em 1675 uma “memérias de ouro” lum tipo de anel de compromisso — segundo informou Joué de Barros, uma testemunhs que ainda em 1686 ombrava-se do ins6lito presente, Por ser caso antigo, pouea lembranca as pessoas ainda guardavam deste sol- dado, razdo pela qual é de quem 0 processo menos in- forma, © segundo fo! Manoel de Sousa, As vezes também referido como Manoel de Sousa Figueiredo, a quem Luiz, Delgado apresentava ora como criado, ora como sobri- ho, artificio ainda hoje utilizado pelos gays mais velhos para disfarear relagdes amorasas com rapazes mais jo- 6 vens. Nesta época, por volta de 1680, nosso biografado jf estava casado com Florenga Dias Pereira, de quem 0 pprocesso néo informa quase nada, a nfo ser que sempre Teclamava do pouco caso que seu marido dela fazia", razio pela qual tudo faz crer que levou-a ao adultério, sendo, inclusive, degredado um de seus amantes por este ‘crime civil, Nesta época o sr. Delgado vivia com certo conforto: tinha dois escravos, jdias de outo “e tudo mais que para uma casa era necessirio”. O baiano Gregério dde Mattos, contemporiineo do fanchono reinol em Salva~ dor, parece ter feito estes versos para descrever 0 éxito material deste eborense que de degredado sem eit nem Deira, em pouco tempo se torna respeltado comerciante de tabaco: “Esta mie universal, esta célebre Bahia Que a seus peitos toma e eria, os que enjeita Por- ‘tugal...""" De acordo com a dentincia do Promotor Fiscal da Bahia, seu romance com Manoel de Sousa causava “no- téria impaciéncia em sua mulher, pois exercita seu nefando apetite com o rapaz, que além de ser bem figu- ado, de rosto e gesto afeminado, Lulz Delgado o trata, estima como sua prépria pessoa, dando-Ihe roupas e comida, sem ser seu parente”. A caridade crista tinha seus limites! O testemunho de um sécio do tabaquelro 6 particularmente esclarecedor sobre a grande desen- voltura com que este par homossexual se tratava mes- ste © homoteraal Lin Delgo fend cso SS singin wn pei ce epi do rind, {pum mat sodomy er una male, na og jt sso, feprsntavn 0 compleneio cero ptt oe afseres mits CC SWELL op. ep. 10 13, Grego de MATTOS, Obras Completa. Feo de James Amaia, BA a ‘mo perante terceiros. Diz que hospedando-se em casa do estaqueiro, presenciou o Sr. Delgado levantar-se da cama de sua mulher e ir para junto de Manoel de Sousa fe via-o beljar na cara e boca, como se fora sua propria mulher, e dizer-the palavras © coléquios como se fora lum amante @ sua dama”. Florenga chegara a dizer: ‘Este mogo me descansara de meu marido, porque 0 belja e abraca...” Nao ha informagio no proceso de ‘como terminou esta nefanda amancebia: conjeeturo en- tretanto que a relacao deve ter-se esfriado quando 0 incorrigivel sodomita conheceu outro ganimedes por quem caiu em forte paixio José Goncalves foi o tereeiro grande amor de sua vida: “‘fazia dele tanto caso como se fora seu filho”, declarou o mameluco Luiz Nunes, seu eriado na tenda, de fumo, Também devia ter menos de 18 anos quando ‘trayou amizade com o violeiro gay: era natural de Lisboa © ostudante de latim em Salvador. Segundo a avaliagdo do Jovem, “praticaram mais de 80 atos de molice ad invi- com (masturbagéo reciproca), com beljos, abragos e outras agGes provocativas do pecado, e 4 atos de sodo- ‘mia, praticando essas luxuriosas torpezas como se fora José Gongalves mulher ¢ Luiz Delgado 0 homem". Te- ‘meroso com a perigosa publicidade deste e dos ruidosos romanees anteriores, nosso biografado parte para o Rio de Janeiro, lé se estabelecendo com seu novo mancebo. Deixou Manuel de Sousa em sua casa, em companhia de sua muther, o que permite-nos coneluir que o “fim de aso” nao redundou na exclusiio do antigo “criado” do convivio doméstico — situagao pouguissimo comum nas separacGes heterossexuais, diga-se a bem da verdade Contou uma testemunha do proceso que o taba- queiro saiu fugido da Bahia, o que talvez seja correto, pois sendo a sodomia crime de foro misto, se nfo eram ss 08 Comissirios do Santo Oficio ou o Bispo, a propria justica secular também tinha poderes de prender os fanchonos, sobretudo os que eram to publicamente in- famados: como nosso violeiro. Temos noticia de grande niimero de sodomitas que também mudaram de cidade ‘ou mesmo fugiram para outro continente, com medo de serem presos pela Inquisi¢ao: a chegada da frota na Bahia sempre era motivo de grande inquietagdo para todo tipo de desviante, pois com ela poderia chegar a ordem de prisio expedida pelo Tribunal de Lisboa, No Rio de Janeiro abriu sua tenda de tabaco atrés 40 Convento do Carmo, despertando logo a aten¢io dos carioeas 0 carinho e ostentagéo com que tratava José Gongalves. Um seu vizinho, o clérigo José da Silva Pas- 505, 26 anos, mestre de artes, pessoa muito dada a bis- bilhotices, disse que de seu sobrado, de fronte da moradia dos fanchonos, observava sempre o mais velho cuidar aelosamente de seu ganimedes, “tratandc.0 com singu- lar amor, vendo de sua janela Luiz Delgado pentei-lo ¢ amarrar as fitas nas mangas da camisa abanicos antes que saisse para fora”. Talvez.o jovem usasse ca- beleira longa, as famigeradas gadelhas, um dos simbo- los identificadores dos homossexuais na cultura 1uso- brasileira de antanho™. Até na velha Bahia, ainda se comentava que “Luiz Delgado vestia seu rapas cor muito asseio e concerto, com ealgées e gibi de tililho’ Outros informantes disseram té-lo visto com “gibio de chamalote encarnado, enfitado de virias cores”. Seqgun- do 0 testemunho de Jodo Azevedo, Metrinho do Rio de Sanelzo, “por andar vestido com uns calgées desonestos para trajo de estudante, por serem lavrados em seda de x MOTT, Inui « Homoealed, Comin se, 9 cor, com fitas vermelhas ¢ amarelas, mostrando-os a0 levantar a loba, causava escindalo e mau exemplo acs ‘outros estudantes que andavam comportadamente”: por este motivo o Ouvidor Joao de Sousa mandou, em 1686, render José Nunes e cortar a cauda de sua véstia “por dar com ela esedndalo e nota”. Como ocorre hoje em dia, 4 Policia competia zelar pela moral e bons costumes, coibindo os abusos e atentados a0 pudor. A cruz e & espada sempre estiveram juntas na repressio aos ho- ‘mossexuais e travestis — ontem e hoje. Nio era esta a primeira vez que na pequena cidade de Sitio Sebastido do Rio de Janeiro, um estudante se envolvia com escandalos sodomiticos, Na visita pasto- ral que D, Manuel de Sousa Almada fizera em 1669, 0 eonciado em artes, Alvaro de Ledo, “moco mal acostu- mado, tinha conversacéo com uns estudantinhos que dora o que falar, entre eles com Jorge, 15 anos, fillho do Sargento Mor Pestana, que o tinha convidado muitas owes para o pecado torpe de fanchonice, metendo-Ihe mio na braguilha *”, Preso pelo Ouvidor, José $6 fo liberado gragas & i torvengiio dos Monges de S80 Bento, a quem Luiz Del- {do intercedeu, quem sabe, em troca de alguns favores ‘esmolns, pois nosso biografado nunca demonstrou Jgrande devoeo cris, tanto que jamais recebera 0 sa ramento da Crisma e quando preso pela Inquisiglo, 20 sor-Ihe conferido o conhecimento da doutrina e oragées costumeiras, demonstrou ignorar os Mandamentos da Igreja, Segundo testemunha de um entalhador lisboeta, Manuel Pereira e Oliveira, trabalhando no Rio de Janei- 0 na época, passados alguns meses deste epis6dio, “re- 1S Cae do Meade mt 1. ANT. AG Calo o Prontr 9 %0 ceoso J. Gongalves que a fama de fanchono somitigo de Lulz Delgado o prejudicasse”, resolveu afastar-se de seu protetor: pediu audinela ao Ouvidor, demonstran- do vivo desejo de embarcar de volta para. 0 Reino, acusando o tabaqueiro de impedir sua partida. pois ¢s- condia suas roupas e livros. Determina entao 0 Ouvidor a0 Meirinho e Aleaide que fossem investigar esta porfia de fanchonos. A versio deste episédio dada pelo mais vyelho é diferente: diz que encontrara José Goncalves ns Bahia “despido e com fome, com estes trapos — que ele rmostrou tendo-os nas mos”. Essa cena. humithante so esmoreceu 0 lishoeta: mostrou-se decidido mesmo a re- tomar para o Reino na frota que prestes igava Ancora “Chamando-o para dentro de um quarto, Luiz Delgado estava chorando multas légrimas, as quais nao obstan- te 0 rapaz se foi embarcar para Angola”. Segundo seu bisbilhoteiro vizinho, 0 violeiro “adoeceu de paixio”, sobrettdo por nao ter podido entrar na sumaca em que partiu José Gongalves: com certeza contava dissuadi-lo a separagio no tltimo instante. Debalde: seu “sobri- rho” eruzou 0 Oceano, Correu boato no Rio de Janeiro {que o joven morrera em Angola: o eerto, porém, é que chegoti a bom termo em Lisboa, tanto que espontanea~ ‘mente procurou o Tribunal do Rocio para delatar-se de ter sido amante do fanchono de Evora, mas “por conse- tho e aperto dos confessores a quem dava conta dessas rmisérias, se resolveu retirar-se desta, comunicagio e vir para o Reino”. Como o Regimento previa misericérdia pata os sodomitas que se confessassem antes de terem sido denuneiados, 0s Senhores Inguisidores mandaram que o arrependido estudantinho evitasse novas ocasides de pecado e que fosse em paz. Certamente deve ter eau~ sado furor em Lisboa com as roupas multicolores que trouxe da, América. 3 __ © desconsolo do abandonado violeiro gay parecia nio ter remédio: todas as caras roupas teve de entregar ao rapaz, dando-Ihe ainda o dinheiro que pedira para | viagem. De sobreacréscimo, ainda foi asperamente admoestado pelo Ouvidor, ficando inclusive algum tem- po preso no aljube como adverténcia para que corrigisse sua errada vida. Dizem ter ficado “com tanto sentimento da separagdo, que a roupa da cama em que eles dormiam, Uinha-a ainda suja e nfo havia de mandar lavé-ia en- quanto nio tornasse a vé-lo, tendo ainda esperangas due o estudante retomnaste pars: sua compania' Se Algum aia voltow a eneontré-lo, os documentos no Passados trés ou quatro meses, © coragiio de nosso incorrigivel sodomita voltou a bater forte: numa noite de verio, em 1686, “ao ver Doroteu Antunes fazendo Papel de mulher em uma comédia, ficara tio afeicoado No rapa, que 0 desinguietou e o persuadiu a fugir da ‘casa de seu pai e vir morar com ele. ‘Tinha 16 anos, uma idade tentadora para os aman- tes da pederastia! Segundo os que o conheceram, Doro- teu “era bem parecido e trigueiro” — um tipico “garoto de Ipanema”... Seu pai, Antonio Antunes, era portu- gués de Ponte do Lima, marcineiro, e sua mée, catioca, ji falecida, Tinha uma irma donzela, Tudo nos leva a rer tratar-se de um gayzinho efeminado, pois noss0 fanchono reinol teve sempre uma queda especial por rapazolas do tipo andrégino, como o ja citado Manuel de Sousa, “de rosto e gesto efeminado”, ou como seu pri- meiro amante na eadela de Evora, Bras, que com seus 16. Sr owen no Rio de Inc «Sto Palo clic. Ata de MACEDO, Mulheres de Manta, 1870. Sobre 0 netano eto ease de atime, fo Svio TREVISAN, Dens no Po 92 12 anos, disse que fazia lembrar de sua noiva, ou ainda, como um tal de Luiz da Costa, soteropolitano de 16 anos, a quem o tabaqueiro pegava na mao “dizendo-the que era afeigoado a ele e o queria bem por que era muito gentil-homem e tinha uma cara como uma dona”. ‘A paixo de Luiz por Doroteu parece ter sido ful- minante, e o idilio homoerético entre ambos eomportou varios lances teatrais — alguns draméticos. Temeroso de dar motivo para novos agravos policiais, posto que as Justicas do Rio de Janeiro apés o recente escandalo com 0 lisboeta José Gongalves e sua prisio no aljube, certamente deviam estar atentas & conduta do estan- queiro-fanchono; Luiz Delgado manteré seu novo aman- te escondido por trés meses dentro de seu quarto, “sem ser visto por ninguém”, Até mesmo seu empregado, 0 mameluco pauilista, “familiar da casa”, ignorou a pre- senga do amante, que s6 vinha para a sala quando lé estava apenas seu proprietério. Com o tempo, porém, relaxaram o segredo, tanto que certa vez, este criado disse “té-los surpreendido na légea de sua casa, sobre uum banco, se beljando e abragando.” Como sua casa continuava sendo fregtientada por “estudantinhos” — aliés, 0 ponto fraco do Sr. Delgado! — em pouco tempo vazou a noticia de que o melifluo rapazola estava acol- tado em casa do estanqueito de fumo. O proprio Metri- tho disse té-lo visto de ceroulas e camisa, andando pela ‘casa, um escandalo! Imediatamente, Sr. Antonio An- ‘tunes, pai do mogo fujéo, faz diligéncias junto ao Ouvi- dor, o qual determina a prisio dos suspeitos para averi- ‘guaco se os comentérios de que praticavam o nefando eram ou nao verdadeiros. Para evitar sua segunda d tengo pelos Oficiais da Justica, os dois pombinhos se escondem no viinho Convento do Carmo, valendo-se da imunidade tradicional garantida aos homiziados Nao nos informa o proceso como, 0 certo 6 que conse- guem burlar a policia e os dois fanchonos fogem por terra em direedo & vizinha ouvidoria do Espirito Santo, na época, pertencente & Capitania da Bahia, Sao acom- panhados do criado paulista e de um soldado, também fugitivo das justigas eariocas, cujo crime nos é desco- mhecido, Aproximadamente 100 Iéguas separam o Rio da vila de Vitoria, trajeto que os fugitivos devem ter feito '@ cavalo alugado, parando a noite para descansar, gas- tando por volta de uma semana para atravessar as den- fas florestas tropieais que outrora cobriam toda a bai- xada e setras capixabas. No Esp{rito Santo hospedam- inicialmente no Convento de Nossa Senhora da Pe- noha, dos franciscanos, até hoje enearapitado no alto do ort do mesmo nome. Téo logo os frades tomam co- nhecimento de que o motivo da fuga era o nefando pe- ‘endo, “os puseram para fora”. Nao esquegamos que era ‘yor corrente naqueles tempos que Nosso Senhor odiava. tanto 08 sodomitas, que costumava castigar este abo- mindvel pecado com raios, tempestades, terremotos, estes, ete, Quigds por temerem o flagelo divino, ou & Inquisigio, ou para evitar desinquietagdes no convento, resolve os religiosos expulsar os fanchonos, que pas- ‘sam algum tempo escondidos allures, até que felizmen- te conseguem embarear para a Bahia. Ao chegar em Vitoria a ordem do Ouvidor era para que fossem presos, ‘mas a sumaca em que embarcaram jf se perdera no ass mt a 44 se perdera n¢ 7. Nests meamo convento do Carmo do Ri de Jato fora Prise em 1643 et Antonio Sars stom dr mas evasion peso em 160, dyad © Beal em 1633 e que apse ema ste Ge cantlachon comets Torre Seperior dos carmeliascaroas, Sendo ovarente dentin femutido pare a lnguseio de Libon ANT, Ing. Lx; Pres 6919, Ch eee do Nefando n 9, 8. 8 : o f Segundo o depoimento do mameluco Luiz Nunes, que acompanhou os fugitivos em todas estas peripécias, sempre viu seu patrdo eo rapazola dormirem juntos: tanto ne Rio de Janeiro, como no caminho e no barco, assim na eama como na rede ou no chio, eram insepa- raveis, Contou' mais quando perguntado pelo Prior do Carmo na Bahia, autor do sumério: disse que o mais yelho chamava Doroteu de filho, “sem comer bocado que Ihe nao desse” lIgual acusagao fez 0 tal soldado que tamn- ‘bém os acompanhou, Manuel Toledo da Silveira, 31 anos, natural da Tha da Madeira, o qual os conhecera quando também estava homisiado nos carmelitanos do Rio Ratifiea a mesma informacao do precedente e acres centa que o estanqueiro chamava o estudantinho de “meu fiiho, meu amor e meu bem”, dormindo dentro de ‘uma eanoa com uma esteira por cima, tendo-os visto a0s beijos e abracos, pelo que “suspeitava que entre eles devia haver algumas torpezas de fanchonos e s0do- mitas”. Setembro de 1687, Exatamente ha trés séculos, che- gam em Salvador os desaventurados amantes, Decisio insensata de voltar para o mesmo local onde dois anos antes, Luiz Delgado saira as pressas para escapar dos rumotes causados por sua vida extravagante. Talves faltando-Ihe recursos para comegar a vida anonima- mente noutra eapitania, tendo gasto todas suas econo~ mias na viagem de fuga, s6 Ihe restava como solugio retornar a sa casa, onde deixava a mulher, 0 criado ex-amante Manoel, seus escravos, a clientele, inclusive seu irmio, Joa Sua primeira atitude foi arranjar uma casinhe para Doroteu, pois seria demais pretender abrigé-lo na ‘mesma easa onde ja viviam sua mulher e ex-easo. No processo consta que alugara uma casinha junto a Fonte do Sapateiro, embora um informante pretendesse {que situava-se a Fonte de Sao Francisco — talvez 0 mes- mo local, ao sopé do convento dos franeiseanos, hoje chamado de Baixa do Sapateiro, O certo & que Lutiz Del- ado pagava o aluguel, Ihe mandava de comer todos os dias ¢ também diariamente ia visité-lo, As poucas vezes que 0 gay catioca ia a residéncia de seu protetor, “era eautela, como dando a entender que nfo queria que a mulher de Luiz Delgado o visse Como o estanqueiro jé era muito visado, hé mais de uma década tendo fama de fanchono, em pouco tem- po, seu nome e feitos voltaram a correr de boca em boca. Salvador nesta época possufa pouco mais de trés mil viinhos — e se incluirmos a escravaria no cémputo de sua populagao, devia abrigar por volta de 20 mil pes- ‘sous, Muitos se eseandalizavam com o fausto com que © rapazola trigueiro era tratado: vestia-se como estu- dante, ora de curto, ora de baeta ou também com cal- bes de tililho, © alfaiate contratado para costurar 80 rapaz espalhara que fora 0 proprio estanqueiro quem. agara o tecido e feitio de suas vestes, assim como os ealgados que Doroteu trazia. Sobretudo no bairro da Praia, onde se concentrava o principal coméreio na Bahia, local onde a circulagdo de pessoas e novidades era mais frenética, “se murmurava muito que Lulz Del- gado tinha novo afeto e que sua amiga provocava-Ihe muito citimes”. Os citimes de nosso biografado merecem uma refe- réncia especial, pois se de um lado sempre demonstrou ccarinho e generosidade com seus ganimedes, por outro, 1. Arqiva Hirco Uleamarin, Bia, CX 1, Of do Desembarsdor Sthifo Canoe, eet = 96 exigia-lhes exclusividade, inibindo-lhes inclusive even- tuais relagées com o sexo feminino. J4 no Rio de Janel 19, quando estava de caso com José Gongalves, um sew visinho'declarou que “ouvia sempre contendas, gritos e paneadas, Luiz Delgado pelejando e gritando com seu 1mogo por citimes”. E mais: “as vezes mandava um ne- sro atris de seu mogo estudante eo mandava vigiar para onde ia: e 0 moro andava enfeitado de galas”. Outro vizinho foi ainda mais informativo: “mandava um negro atris do mogo para ver se entraya em casa de alguma mulher dama”. Com Doroteu comportou-se da mesma forma: “tantos eram os eitimes que tinh do es- ttudante que tendo noticia que ele pecara e tivera con- versagio ilieita & Fonte dos Sapateiras, o descompusera de palavras, ameagando-o que a um e @ outro havia de fazer e acontecer, dizendo: Com isto me pagais do amor que vos tenho e o muito que convosco gasto, dando-vos dlinheiro, vestidos, casa em que morais e tudo mais que vos 6 nevessério?I” Pelo visto, a traigdo fora com outro vardo — 0 que nos sugere reconstruir aqui, com ripi- das pinceladas, o ambiente gay em Salvador selscentista, Obviamente que Luiz Delgado nio foi o tnico sodo- mita a viver na Bahia Colonial: na 1.4 ¢ 2 Visitagdes do Santo Officio, entre 1591-1620, quando 67 pessoas foram denunciadas nesta Capitania por ter algum tipo de envolvimento com 0 nefando pecado de sodomia "*, entre eles, nada menos que o 6° Governador da Bahia fe 1° Capitio Geral do Brasil, Diogo Botelho (1602- 1607). Durante o séeulo XVII, varias dezenas de sodo- Wa Laie MOTT, 4 Homaneraiae, uma varie equca pela denoxrfi Nine Os Semen Bra Clon, Comuncaso opens mo 0" Encoto Ane re Hson Poplars, Vien, 7 mitas da Bahia, tiveram seus nomes escritos nos temi- dos e volumosos Cadernos do Nefando da Inquisi¢ao de Lisboa, Em 1645, por exemplo, chega uma carta-dentin- cia ao Santo Oficio informando que em Salvador a “descaragio” andava tio solta, que um tal Francisco Rocha chegara a defender publieamente que “os apés- tolos de Cristo Nosso Senhor eram sumitigos ”. O pré- prio poeta Gregério de Mattos, o irreverente “Boca do Inferno”, ird mais longe afirmando que o préprio “Jesus Cristo Nosso Redentor fora nefando” — usando con- tudo “palavra mais torpe e execranda”, certamente chamando 0 Cristo de “puto” ou “fanchono”®*, Em 1646 6 feita uma inquiriedo na cidade da Bahia, onde swem denunciados 18 homossexuais, entre estudantes, ‘mulatos, sacerdotes. Destes, o mais infamado era o Padre Amador Antunes de Carvalho, Capelio Mor do ‘Torgo da Bahia, que ao passar pela rua, muitos diziam: "i val 0 somitigo, sendo to piiblico e desaforado no ocdo contra a natureza que parece que jé se Ihe nfo dé que 0 tenham nesta. conta”, Teve a sorte de falecer pou- con meses antes da chegada da ordem de sua prisio. Outro clérigo, o Padre Fernio Perez é acusado na mes- ‘ma época de chamar os mogos da janela de sua casa, forgando-os ao nefando, Dentre os mais infamados, con- tudo, nos meados do séeulo XVII, foi 9 mulato Jeréni- mo, cujo nome desde 1632 constava nos Cadernos do Nefando, acusado também na Bahia e pelo sertio do Ttapicuru de ser eximio praticante da felacio, pritica iabéliea que os Inguisidores chamavam de “sodomia 1B. ANTE, Cater do Promote n° 29 och PRES tem waalindo em profane ete documento nats ‘Quem pew Bingo Greys de Matos (Revit do Bra, 1985) © Grenio de Manor + nou, per os” (sodomia pela boca), inexplicavelmenterelegada & categoria de sodomia imperfeita ™. Na década anterior A chegada do violeiro gay 4 Bahia, o proprio Deo e Vigtrio Geral do Arcebispado denuneiava ao Santo Oficio que o Tesoureiro Mor da 88 Soteropolitana, o Padre José Pinto de Freitas “co- mete 0 pecado nefando com muitos eclesiasticos © se- culares e esta fama é constante sem diminuigio em todo este tempo". O Chantre da mesma Sé completa a dentincla: “tem fama piblica e constante entre a plebe, clérigos, religiosos e nobreza, que o delato pega pela braguilha, abraga e belja homens, estudantes ¢ rapazes, acometendo-os com dinheiro, ouro e jéias, por ser homem muito rico e poderoso™” Ainda mais devasso e incontrolado era um tal de Padre Antonio Guerra, lisboeta morador na Bahia, ex- pulso da Ordem Carmelitana por pecados nesta matéria, Denunefou Bento da Costa Mesquita, 24 anos, ter sido trés vezes sodomizado pelo clérigo, “este puzera a ca- bega entre as pernas do rapaz Ihe metera o membro virll na boca; fugindo porém o dito rapaz, Ihe dissera 0 clérigo: tanto perdes!” Acusam-no também de defen- der perante varias pessoas que “ser fanchono nao era ‘pecado” e sendo perguntado a ele por um homem, res~ pondeu que “bem o conhecera por que Ié fizera a punhe- ‘ta com ele *”. Nao é sem razio que em muitos poemas ‘0 “Boca do Inferno” esculhamba frades ¢ clérigos, cha- mando-os ora de sodomitas, ora de fodinchées. Convém Jembrar que durante toda a Idade Média a homosse- 31, Lae MOTT, tnguigso om Seip, Monografia promis pelo Cone Tho Fetal Je Ctra de Serie 10 p. 1986 (nope). 22, Cate do Neando 2°12, 16 99 xualidade era comumente chamada. de “vicio dos cle ‘Tals documentos permitem-nos afirmar que mal- grado a draconiana condenaedo inquisitorial e da legis- lagi civil contra a homossexualidade, as autoridades faziam nos mais das vezes olho grosso deste crime, s0- mente determinando a prisio dos suspeites quando 0 evelindalo atingia perigosas proporedes. Parece que foi assim que sucedeu com Lulz Delga- do, Palecendo 0 Arcebispo D. Frei Joo da Madre de Deus, tomou posse da Sé da Bahia D. Frei Manuel da Ressurreigdo, aos 13 de maio de 1688, 0 qual oficiou & Inquisigo de Lisboa nos seguintes termos: “Logo que entre! nesta minha Tgreja, comecei a ouvir as vozes de lum grande esedndalo contra um homem chamado Luiz Delgado, dizendo que era devasso no pecado nefando. Ful apurando 0 fundamento e achel que ndo era aéreo fe-que a fama era antiga e que se ausentara para o ser- tio com um muchacho, com o qual estava vivendo no ‘mesmo escdindalt © Arcebispo tinha razio, Desde 1686, quando se figera um Sumario de Culpas no Convento do Carmo da Bahia, j6 havia comprometedor rol de acusagées contra este fanchono e na visita pastoral realizada na Matriz, de NS. do Desterro, no subiirbio desta cidade, nos ini clos de 1688, mais de 30 pessoas eitaram o nome de Luiz Delgado como sendo homossexual, Apesar de todo o segredo e mistério com que eram sempre conduzidas as diligéncias do Santo Ofieio, nos ‘Polio DAMIAN, Rook of Gomarah An eleventcenary tesiae unset homonena pnts, Wale Lace Unie Pree Ont 100 so biografado deve ter suspeitado que o haviam denun- ciado nas Visitas Pastorais. Um informante diz que primeizo ele cogitara fugir para Pernambuco, mas mu- dou de Alvitre, fieando no sertao da Bahia, na freguesia de Inhambupe, a 30 léguas da capital. Apés algum tem- po deste auto-exillo, mandou um seu negro vir se infor- ‘mar como era 0 clima na Capital — e posto nio tenha ouvido nenhum diz-que-diz envolvendo sua prisio, re- solveu estabelecer-se um pouco mais préximo, Segundo depoimento do préprio Doroteu, seu acompanhante na fuga, “se recolheram numa easa de bugre,feita por Luiz Delgado e por trés negros eseravos” na freguesia de Santo Amaro da Ipitanga, sitio Jacumirim, a 11 loguas {de Salvador. Local desértico, pois os vizinhos mais pré- ximos residiam a 1/2 Iégua de distancia, aproximada- mente 1/2 hora a pé. Por incrivel que pares, 0 sitio onde se estabelece- ram era propriedade dos Padres Jesuitas, aos quais acertara 0 tabaqueiro pagar 20000 de f6r0 por ano Provavelmente os Inacianos jé conheciam afi fama deste rendeiro desde 0 tempo que desencaminhara ha ‘poucos anos, oestudante de latim José Goncalves, talves ex-aluno do Colégio da Companhia de Jesus de Salva- dor. Nem por isto deixaram de fechar negécio com 0 fanchono fujfo: negécios, negécios; religiao & parte Quigés tivessem duivida se era mesmo sodomita, pois certa feita Luiz Delgado estivera na Aldeia do Rio Joa- nes reclamando que 0 tinha acusado falsamente na Vi- sita Pastoral, ao que o Padre Superior sugeriu que botasse seu mopo para fora de sua casa, conselho que no foi considerado pelo apaixonado tabaqueiro, Conta, de sua parte, o jovem Doroteu, que passando certa vee pelo sitio Jacumirim, 0 Superior dos Jesuitas repreen- Geu-o asperamente por sua nefanda amancebia com 0 01 Sr, Delgado, Pode ser que o referido superior fosse nada ‘menos que o Padre Antonio VIEIRA, que ocupou o cargo de Visitador entre 1688-1691. Acreseentou o gay earioca ‘em sett proceso a informagio de que decidira nesta ‘casio emendar-se da errada vida que levava, e exata- ‘mente quando planejava ausentar-se deste nefasto co- nibio, ocorreu sua prisio, Versio que devemos acreditar com ressalvas, pols como diz o bracardo popular, “de ‘boas intengées 0 inferno esta cheio”, ena hora da acusa- ilo de um crime de morte, como era a homossexualida- de, a regra dos culpados era inocentar-se, transferindo wpa para os edmplices. Luiz Delgado, de seu lado, reorganizou sua vida neste retiro forgado: comereiava fumo e outras fazendas pela freguesia de Santo Amaro, arriscando-se, mesmo depois de certo tempo, a voltar algumas vezes & cidade da Bahia para comprar o que precisava e sondar o am- lente, Mesmo entio, nao escondia seus sentimentos proibidos: “dizia que precisava voltar logo para a Mata de Siio Jodo por que o menino fieara s6 e queria ir para feusa, mostrando a saudade que dele sentia”. Uma im- prudéncia para quem estava entre a cruz e a espadal ‘Apesar de sentimento to profundo, nem por isto o fan- chono de fvora manteve fidelidade total a seu garoto: nna véspera do dia em que foi preso, apareceu na sua choupana um negro recém-vindo de Angola que andava fugido de seu dono. Como o tabaqueiro nao demonstra vva discriminagio racial em suas investidas homoeréti- ‘cas — conforme provara varias vezes quando morava em Salvador — j4 na primeira noite que o negro af se ar- ranchou, Luiz Delgado fez sexo com o mesmo. Como este angolano nfo falava nossa lingua, assim disse depois de preso através de um tradutor: “este homem mau bbranco, por que naquela noite quisera fazer dele mulher, 2 Iutando com ele ¢ prometendo-Ihe que o soltaria e Ihe daria dinheiro ee consentisse fazer-se mulher”. Consta, no processo que manteve com 0 negro um ato de sodo- ‘mia imperfeita, como agente, penetrando seu membro viril no traseiro e derramando semente de homem fora. ‘Se Doroteu chegou a presenciar ou tomar conhecimen- to de tal relagio, néo ha informagao: se fosse dado ao voyeurismo, deve ter se deliciado com o espetiiculo; se era muito ciumento, certamente as ousadias do branco com 0 angolano devem ter se pasado secretamente, no mato, longe da choupana, Deve ter sido esta a tiltima relagiio homoerética de Luiz Delgado nos préximos dez anos de sua vida, pois no dia seguinte teve a desventura de ser preso. Como 0 Bispo tinha poderes de proceder contra os sodomitas, @ 5 de fevereiro de 1689 ordenou por carta ao Vigirio de Santo Amaro da Ipitanga, Padre Antonio Filgueira, 37 ‘anos, que efetuasse a prisio dos fanchonos. Fazendo-se ‘acompanhar de dois escravos, dois proprietrios de sua. freguesia e um Sargento Mor, sairam as. horas du noite em diregio aonde morava Luiz Delgado, a 8 léguas da. Matriz, chegando ao sitio Jacumirim por volta das 6 horas da man, Devem ter ido a cavalo e planejado chegar de madrugada, quem sabe para flagrar 0 “casal” ainda na cama. ‘Mal cerearam a casa, prenderam e algemaram os amantes, impedindo que a partir dai trocassem palavras entre si, As algemas no século XVII eram pesadas argo- las de ferro, com eadeados ainda mais pesados, que tor- navam esta prisio cruel suplicio, Foram os prisioneiros conduzidos primeiramente para a casa do Vigério, cer- tamente caminhando a pé, amarrados com corda no pescogo atrés das montarias de seus condutores. Nao é 105 dificil imaginar a vergonha, 0 cansago e 0 quanto o temor dos castigos deviam angustiar estes dois pobres infelizes, cujo crime era um s6: amar um ao outro, Dias depois, ao ditar seu depoimento, 0 sacerdote contou que no caminho escandalizara-se muito com a ‘tengo com que Luiz Delgado tratava seu rapazola’ primeiro pediu para serem algemados juntos, solicita- (go negada pelo clérigo; depois ao travessarem um rio, Doroteu se desealgou e o mais velho carregou seus sapa- tos nas costas — um escdndalo! Durante as 47 léguas que caminharam até Salvador, “se veio condoendo do dito mogo, dando mostras de que mais sentia a jornada pela pena que tinha do moco do que pela moléstia propria. Ao pedir agua no camino, primeizo dava ao ‘mogo antes de saciar sua sede”, Onde ja se viu tal dis arate! 4J4 préximo a Salvador, ao passarem pela aldein dos {ndios do Rio Joanes, encontraram de novo © mesmo padre superior que algum tempo antes aconselhara 0 sitiante Delgado que botasse o moro para fora de sua companhia — como no cumprira o conselho, estava comegando a pagar 0 preco de seu pecado, Os Jesuitas perdiam um rendeiro, mas Nosso Senhor ganhava uma ‘Alma até entio prisioneira de Satands Chegaram & cidade da Bahia dia 7 de fevereiro, festa de Sio Romualdo, apenas dois dias apés 0 recebimento da carta do Bispo, e certamente por determinagao do mesmo prelado, cada sodomita foi enviado para a cela forte de um convento: Doroteu ficou no Convento de Sio Francisco, adjunto ao Terreiro de Jesus, nao muito longe do loeal onde habitara meses antes na casinha alugada por seu mecenas; Luiz foi para o Carmo, no alto do morro além do Pelourinho numa das muralhas 10s UFFE Bibiiots da velha Salvador. Os conventos e recolhimentos, como se sabe, além de abrigarem frades e esporadieamente ho- miziados, eram usados como prisao para réus de crimes religiosos, havendo em todos eles, celas gradeadas com toda a seguranga como as das prises e aljubes civis. De 7 de fevereiro a 5 de julho de 1689 permanece- ram 0s dois amantes encarcerados nas prisdes conven- ‘tuais, ocasio em que o Arcebispo D. Manuel da Ressur- relcdo oficiou & Inquisicao informando sobre a detenciio dos sodomitas, Dé uma informagio importante: que remetia os suspeitos para Lisboa, mesmo sem ordem do Santo Offcio, dada a larga espera das embarcagées. Envia-os sob as ordens de dois Capites de Mar e Guer- ra das Naus da India, cuja frota deixou a Bahia de ‘Todos os Santos a 18 de julho de 1689, dia de Santa Sin- forosa, ‘Tudo nos leva a crer que nesta época niio havia nenhum Comissirio do Santo Oficio na Bahia, pois caso existisse, seria sua atribuigio embargar as prises efe- tuadas pelo Arcebispo e enviar ele proprio ao Santo Oficio as acusagées contra os suspeitos. Embora haja noticias de Comissérios Inquisitoriais na Bahia nos meados do século XVII — como o agostiniano Fr, Anto- nio Rosado, e 0 carmelita Frei Cosme do Desterto — salvo erro, durante o ‘iltimo quartel dos seiscentos, 0 primeiro Comissirio a receber sua patente foi o Padre ‘Antio Faria Monteiro, no ano de 1692 — sendo Gover- nador da Bahia o controvertido Camara Coutinho, vi- vias vezes chamado por Gregério de MATTOS de “fan- chono beato”, 0 segundo Governador da Bahia a ser publicamente infamado de sodomita, Para cobrir suas despesas de céreere e viagem, fol ‘ordenado o seqiiestro dos hens de Luiz, Delgado, cujo 108 inventério, registrado posteriormente no Cartério Fis- cal da Inquisigéo, comportava os seguintes bens: 2 es- cravos, as j6ias de sua mulher (brincos, um cordio de ouro, um anel), um piearo, colheres, garfos ¢ facas de prata, roupa de linko e de uso e “tudo mais que para Juma casa era necessério, E tudo se vendera por ordem dda Justicn Secular, estando o réu preso no Convento do Carmo da Bahia por ordem do Areebispo e para seu us0 io se Ihe dew destes fatos cousa alguma”. Além desses portences, deviam ao seqiiestrado 10 mil réis de uns ‘ouros que vendera a terceiros; de sua parte, devia 500 mil réis Santa Casa de Miserieérdia, na época, a prin- cipal “instituicao financeira” da Colénia™. A inclusio de lum sodomita piblico e notério no rot dos devedores des- {a escorreita instituigo sugere-nos que a firma comer- ‘ial do estanqueiro de fumo era suficientemente respei- luda para merecer to vultoso empréstimo. Como era usual, seus dois escravos devem ter sido Jollovdos ¢ as joias de sua mulher, retiradas da mesma ‘wom compaixio: o proprio Padre VIEIRA, a maior inte- Higénela ¢ melhor pena luso-brasileira do século XVI, a ‘quem pode ser que Luiz Delgado e Doroteu Antunes tenham ouvido pregar nos plilpitos baianos, igualmente vitima da intolerneia inquisitorial, denunciou em livro andnimo a falta de compaixio do Santo Offcio, que as voves chegava a expulsar da prépria casa a mulher e 0s filhos de um réua fim de seqiiestrar-Ihe os bens. Prova- velmente o casal Delgado morava em residéncia aluga- da, na freguesia do Desterro, sendo além das jéias e eseravos, a desventurada Florenga teria também perdi- doo teto, 25, ALR RUSSEL-WOOD, Pilor ¢ Flaropar, Fa, Univ, de Bras, 106 i re 18 de julho de 1689: Lulz Delgado e Doroteu An- ‘tunes sio embarcadios na frota para Lisboa, Talves con servassem as pesadas algemas e tenham sido deportados em naus oy convés separados, a fim de evitar qualquer coraunicagéo entre os réus. A travessia do Atlantica demorava na época de 2 a 3 meses, ¢ se para os pas- sageitos comuns a viagem era extremamente descon- fortavel e doentia, para os prisioneiros, aumentava 7 padecer: a descrigdo desta mesma viagem, em circuns- ffncias semelhantes pode ser encontrada no interes- santissimo livro de Charles DELON, jé citado anterior mente (Capitulo 41 e seguintes). Luiz Delgado teve, po- rém, a infelicidade de ver publicada na caravela a raaio pela qual estava sendo remetido preso para o Tribunal da Inquisigéo, e conforme suas palavras “por este motivo, todos vinham sempre fazendo zombaria dele, puxando: Ihe pelas barbas, arrastando-o pelo cho, dando-Ihe pan cadas, molhando-Ihe a roupa da sua cama”, Marinheiros e viajantes desenfadavam-se judiando do pobre sodomi- ta, Machismo e intolerdncia religiosa sempre se deram 2 mio na perseguicdo aos homossexuais, acusados de traigio ao sexo forte e provocadores da ira divina: Quem sabe culpassem os desgragados fanchonos pelas calma~ vias ou tempestades tio comuns em alto mar, pelas ‘doengas e mortes que sempre ocorriam nestas longas tra- vvessias. Nao foram poueas as ocasiGes ein que a tripula- 0 tentou — as vezes com sucesso — jogar no mar sodo- mnitas embarcados, sempre acusados de serem culpados pelos seus abominavels pecados, dos infortinios da na- vegagio. Como Luiz Delgado era prisioneito destinado & Inquisigdo, seria muito temerério desaparecer com un réu do Santo Oficio: nao o afogaram, mas maltrataram- no o quanto quiseram, “fazendo-lhe o pior tratamento que jamais se viul" Para defender-se, o fanchono atra- 107 ccou-se com seus agressores, sendo por esta razio casti- gado rigorosamente: “o tiveram por 15 dias com um. igrilhdo na area da bomba” —- local cheio de agua salga- ‘da, abafado e quente, certamente muito mais medonho ‘ insalubre do que © pordo de um navio negreiro, Tanta crueldade simplesmente por que Javé determinara no Levitico que o homem que dormisse com outro homem como se Tosse mulher, ambos deviam morrer. * Devem ter desembarcado no Terreiro do Pago nos primeiros dias de outubro de 1689: era Inquisidor Geral, D, Verissimo de Lencastre, Cardeal e Arcebispo Primiz, de Braga. 10 de outubro de 1689: a Mesa Inquisitorial forma- liza a ordem de encarceramento dos dois sodomitas, 1a- vyrando ordem de priséo, posto que tinham sido envia- dos da Bahia sem ordem expressa do Santo Offcio. Picam primeiro no efreere da peniténcia, enquanto os, Inquisidores examinam rapidamente 0 sumério de eul- pas, para entdo decidirem se eram merecedores de pro- ceesso formal. Quatro dias depois, o Promotor conelui que “sendo vox et fama que ambos eram sodomitas, vivendo de portas a dentro como marido e mulher, com. igeral e ptiblieo escdndalo”, que fossem transferidos para, 1s Circeres Seeretos da Tnquisicao, Doroteu Antunes — entiio com 18 anos, é ouvido rapidamente: sua primeira segio perante os Inquisido- res 6 exatamente 10 dias apés sua entrada nos 1igubres Ciirceres Secretos do Rocio — dia 24 de outubro, festa ldo Arcanjo Sao Rafael. Ao ser inquiride de suas culpas, conta a seguinte histéria: morava no Rio de Janeiro quando conheceu, casualmente, Luiz Delgado. Como tinha desejo de ordenar-se clérigo, teve porém um impe- Aimento candnico motivado pela impureza de sangue de sua mie, que tinha parte de cristi-nova. Ai o estan- quelro de fumo ofereceu-se para ajudi-lo, prometendo faré-lo-frade na Babla e dat-lhe 20§000 a cada ano que ficasse em sua companhia. Isso teria se passado em ‘margo de 1688, portanto ha 17 meses passados. Relata sumariamente sua passagem pelo Espirito Santo, oca- sido em que teriam feito algumas molices reciprocas. ‘Apés algum tempo, agora em Salvador, mudam-se para fa Mata de Sio Jodo, a 11 léguas da cidade, local onde 0 Sr. Delgado vendia tabaco e fazendas, Na “casa de bugre” onde viviam, havia apenas uma cama, razio por ‘que dormiam juntos “e numa noite, tentado pelo dem6- nio, Luiz Delgado rogou a ele que consentisse em ¢o- meter 0 nefando pecado de sodomia, e dando consen- timento, deitou-se de brugos e Luiz Delgado penetrou com sett membro viril em seu vaso traseiro, sendo ele confessante paciente, mas derramando a semente em sua mao”, Por 8 meses seguidos repetiram sempre esses atos laseivos, entre beijos, abracos e masturbagdes re- cefproeas, sendo que na primeira vez que praticaram a “sodomia imperfeita” o mais velho perguntou-lhe se queria que derramasse o esperma dentro de seu corpo, ‘20 que respondeu 0 passivo negativamente, raziio pela qual sempre derramavam a semente um na mao do ‘outro —‘‘debreando-se manu manu”, conforme diziam ‘na época, expresso registrada inclusive por Gregorio de MATTOS num poema contra 0 2° Governador da Bahia". Confessa mais 0 gay carioca: que as vezes também Lulz Delgado pedia-Ihe que o penetrasse, mas confessa nunca ter sido agente com seu mecenas. E com 36 A maubesio cesar pitino coiquis ere nao alee ‘nea io meen men ie pa er a an 109) pletou seu depoimento coma informagao de que “a estes Atos, precediam afages, beljos e abragos e todas as de- mais cireunsténeias que costumam incitar para est fim ‘ natureza”. Apesar da sodomia ser ento chamada de Pecado “contra-natura”, nem por isto escapava as leis da natureza no tocante aos prelédios libidinosos Seguem-se a esta, outras seedes de perguntas: numa ddelas 0s Inquisidores confrontam as declaragées do jovem quando na Bahia, e do-se conta que primeiro confessara apenas 3 atos de sodomia, e agora em Lis- on, disse que foram 8 ou 9 as vezes que 0 mais velho ponetrara em seu vaso prepéstero, Como explicava tal ‘contradigio? O ex-travesti diz que de fato diminuira 0 nimero por “pejo”, ratifieando que tinham sido mesmo ou 9 as e6pulas & maneira de Onan, sempre com eja- ceuilagio fora do sesso, Na wessiio de “in genere", os Reverendos Jufees ar- iiliom-no minuciosamente como podia ter certeza de que 0 qgente Luiz Delgado nao gozara dentro de seu corpo, ‘sloganido 08 pacires que “a paixio de semethante luxt- vin nilo parece que pode deixar esta adverténcia aos Ineontinentes deste pecado, que sempre o procuram ‘cometer para este fim", Os Thustres Inquisidores pare- ‘clam falar com grande conhecimento de causa, nfo 6 ha teoria, mas também na pratiea. Em meados de janeiro de 1690, portanto, em menos sie tnés meses de prisio em Lisboa, € concluido o pro- ‘easo, Os argumentos da Defesa merecem ser reprodi- ridos pela sua inséita eandider: “Nao é totalmente in- Yerossivel gue penetrando o etimplice no vaso traseiro de Doroteu derramasse fora, pois poderia achar maior Aeleltagio derramando entre as mos do que dentro do traseir, assim como hé homens que aeham maior delei- 0 tagio no ato venéreo com mulheres pelo vaso traseiro do que pelo dianteiro, pois o direito supse que também com elas'se pode cometer semelhante pecado... E nao hhayendo cerramamento dentro do vaso traselro, nio ha cerime de sodomia, e pelo menos, nao tem lugar a pena ordinéria ca fogueira”’ ‘A Mesa Inquisitorial considera que o Sumario rea- izado na Bahia nfo resultou em culpa formal de sodo- ‘mia contra o gay carioca, pois s6 havia fama. publica, sem testemunhas que tivessem presenciado cépulas anais, e segundo a confissio do réu, as penetragdes niio redundaram em derramacio de semente “por entend rem os réus que naquela circunstincia (gozando fora) diminuiria a gravidade da culpa”. O casuismo dos Regi- ‘mentos Inquisitoriais beneficiava duplamente este ado- leseente: “Atendendo-se ser menor de idade, apesar de repetidas penetragées, nfo houve malicia de sua parte e de acordo com a opinifio de multos Doutores, que os pacientes no pecado nefando sejam menos rigorosamen- te punidos, ainda havendo atos consumados”. Apesar da opinio piblica estigmatizar mais agressivamente 0 ‘omossexual passivo, na logica inquisitorial, aproptia~ dda posteriormiente pela Medicina Legal, o mais culpao era sempre o ativo, pois é o que penetra, e poderia ter violentado seu pareeiro, Coitado de quem sofreu um coito forgado! ‘Teve castigo bastante leve: néo fol torturado nem agoitado, e seu degredo foi por apenas 3 anos para Cas- ‘tro Mearim, no Algarve, Um dos Inquisidores queria que fosse deportado por § anos para Angola, outros, por 3 anos para Elvas ou Miranda, nas fronteiras com a Es- panka: prevaleceu o melhor para o jovem carioca, pois no Algarve os degredados sofriam muito menos com 08 rigores do inverno, ‘Aos 27 de junho de 1690 6 lida sua sentenca e Doro- teu Antunes assina o “termo de segredo” comprometen- dosse a nao revelar jamais qualquer coisa que viu, ouviu ou falou nos eérceres inquisitoriais. A partir dai, 0 gey- sinho brasileiro desaparece da histéria, Foi obrigado a dosistir de ser sacerdote, pois sua passagem pelo Santo Offcio tornou-o indbil para receber as ortlens sacras. A Luiz Delgado a sorte foi muito mais eruel. Ficou 8 anos mofando nos céreeres secretos da Inquisicéo, comendo © pao que o diabo amassou, de outubro/89 a dezembro de 1692: trés invernos, que nas celas escuras ¢ frias do Tribunal do Rocio deviam ser pavorosos, Ao ser inquirido, dé uma versio totalmente diferen- te da sua vida e fama, Diz que hi mais de 20 anos pas- ‘sados, em 1666, ao ser preso pela Inquisicao de Evora ‘acusado de sodomia, influenciado pelo conselho de al- guns encarcerados mais antigos, temendo o tormento, fx confissao falsa, assumindo ter praticado alguns atos torpes com seu cunhadinho Bris, atos que nega-os ‘agora por nunca té-los praticado. A negativa do rapazo- la.em assumir qualquer acdo lasciva poderia referendar 4 veracidade desta nova versio dos fatos. Desta prisio, contudo, “resultou ao réu ruim fama, que se espalhou pelas mais partes a que foi”. Disse mais: que estando ho Rio de Janeiro, 0 Ouvidor tornou-se seu inimigo por- {que Luiz Delgado “‘chamou-o de judeu, por ser bastante infamado deste defeito”. Chamar alguém de judeu, ou de co, equivaliam-se nos tempos em que praticar ju- daismo era crime to grave como pecar contra a natu- rez. Portanto, na versio do violelro, toda acusagio esta autoridade contra sua pessoa niio passava de mes- quinha vinganga, iy Obedecendo ao Regimento, podia o réu defender-se apresentando “‘contraditas”, isto é, objegio por eserito contra os ditos das testemunhas ou denuneiantes. O fan- chono eborense langaré mao fartamente destes recur- sos, nomeando testemunhas no Rio e na Bahia que po- deriam afiancar a falsidade das acusacdes que pesavamn contra sua pessoa. Destarte, entre 1690-1691, sio feitas novas diligéncias no Brasil, ouvindo-se mais uma vez 0 depoimento de algumas testemunhas eonstantes no Su- mério de Culpas. Na primeira ver, Luiz Delgado nomeou nada menos que 243 contraditas, enumerando as nomes de centenas de inimigos que por motivos variegados ~

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