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Kathársis

2009/2010

Edições BiblioFaria
(Biblioteca da Escola Secundária de Severim de Faria)

2
Edições BiblioFaria

Escola Secundária Severim de Faria


Estrada das Alcáçovas, 7000 - Évora

Reservados todos os direitos


de acordo com a legislação em vigor

Junho de 2010

Título original: Kathársis

1ª edição: Junho de 2010

Depósito legal: 13 14 15 /10

3
Índice

POESIA I .................................................................................................................................................... 8
A Prisão ................................................................................................................................................. 9
A Vida ................................................................................................................................................. 11
POESIA II ................................................................................................................................................. 14
O Solilóquio ........................................................................................................................................ 15
A Flor .................................................................................................................................................. 18
A perfeição carrega outra ................................................................................................................... 19
Ácido ................................................................................................................................................... 20
Corpo de rapaz ................................................................................................................................... 21
Doce existência ................................................................................................................................... 23
ELA escreve-lhe: ................................................................................................................................. 24
ELE responde-lhe ................................................................................................................................ 27
Força ................................................................................................................................................... 29
Nunca sem ti ....................................................................................................................................... 32
Posso escrever a tristeza esta noite ................................................................................................... 33
Situações ............................................................................................................................................ 34
Sossego do barulho ............................................................................................................................ 35
Tudo és tu ........................................................................................................................................... 36
Vem meu amor ................................................................................................................................... 39
Nada ................................................................................................................................................... 41
Por aí................................................................................................................................................... 42
Que o vento me sacudisse .................................................................................................................. 43
Sem jeito para a Poesia ...................................................................................................................... 45
Diário dos Amantes Loucos ................................................................................................................ 46
Feliz ..................................................................................................................................................... 48
Ode à tua Tristeza, Amiga ................................................................................................................... 49
Pobre meu pequeno Ser ..................................................................................................................... 50
Às portas do Céu, a um passo do Inferno ........................................................................................... 52
Até ao meu último rasgo de mim ....................................................................................................... 69
Bedtime Stories .................................................................................................................................. 70
Meu Amor........................................................................................................................................... 71
Rosas................................................................................................................................................... 73

4
Confissão ............................................................................................................................................ 75
Encontrar-te-ei ................................................................................................................................... 76
Não há ................................................................................................................................................ 77
Sonhos ................................................................................................................................................ 78
Tudo é ilusão ...................................................................................................................................... 80
Um lugar maravilhoso ........................................................................................................................ 82
PROSA ..................................................................................................................................................... 83
A história de um amor ou talvez o amor de uma história .................................................................. 84
Casal dormindo ................................................................................................................................... 86
Copo com azeitona ............................................................................................................................. 87
Escrever é isto .................................................................................................................................... 89
Lua de duas vidas................................................................................................................................ 90
O beijo do vampiro ............................................................................................................................. 93
São Petersburgo: onde tudo é possível .............................................................................................. 95
Sensualidade e lábios vermelhos ....................................................................................................... 98
Inferno depois da Vida ..................................................................................................................... 101
Elora.................................................................................................................................................. 117
Beleza natural ................................................................................................................................... 120

5
Índice de Ilustrações
Ilustração 1 (SEM TÍTULO), RITA SILVA ....................................................................................................... 10
Ilustração 2 (SEM TÍTULO), RITA SILVA ....................................................................................................... 13
Ilustração 3 (SEM TÍTULO), RITA SILVA ....................................................................................................... 22
Ilustração 4 (SEM TÍTULO), RITA SILVA ...................................................................................................... 26
Ilustração 5 (SEM TÍTULO), RITA SILVA ...................................................................................................... 28
Ilustração 6 (SEM TÍTULO), RITA SILVA ....................................................................................................... 31
Ilustração 7 SEA SERPENT BAIT, DAVID CHORÃO ....................................................................................... 38
Ilustração 8 (SEM TÍTULO), RITA SILVA ....................................................................................................... 40
Ilustração 9 Baby dinos, Pedro Ferreira...................................................................................................... 44
Ilustração 10 Scrat Petra, Pedro Ferreira ................................................................................................... 47
Ilustração 11 (SEM TÍTULO), JOANA CATELA .............................................................................................. 51
Ilustração 12 LUSÍADAS BOM, DAVID CHORÃO .......................................................................................... 68
Ilustração 13 JESSICA, DAVID CHORÃO ...................................................................................................... 74
Ilustração 14 SCRAT MAYAS, PEDRO FERREIRA .......................................................................................... 79
Ilustração 15 ANANSI, DAVID CHORÃO ...................................................................................................... 81
Ilustração 16 SCRAT EGYPTIAN, Pedro FERREIRA ....................................................................................... 85
Ilustração 17 GIRAFFA, DAVID CHORÃO ..................................................................................................... 88
Ilustração 18 MAD HATTER, PATRÍCIA MATONO ....................................................................................... 92
Ilustração 19 LOBISOMEN A UIVAR, PEDRO FERREIRA ............................................................................... 94
Ilustração 20 LIVE4FUN, DAVID CHORÃO ................................................................................................... 97
Ilustração 21 FOSTER HALLOWEEN, DAVID CHORÃO ............................................................................... 100
Ilustração 22 SCRAT BRASILIAN, PEDRO FERREIRA................................................................................... 116
Ilustração 23 LISA COM CHAPÉU, DAVID CHORÃO ................................................................................... 119
Ilustração 24 SCRAT CHINESE, PEDRO FERREIRA ...................................................................................... 121

6
Abertura
“Escrevo para criar um espaço habitável da minha
necessidade, (…) do que é difícil e excessivo. Escrevo porque
o encantamento e a maravilha da verdade (…) é mais forte
do que eu.

Escrevo para ser (…).”

Vergílio Ferreira

Kathársis, apesar de tudo…

Apesar das condições precárias em que este ano se encontra a


nossa escola, apesar da crise económica, apesar do descontentamento
generalizado, apesar da transitoriedade permanente, apesar do
desencantamento (apesar…, apesar…, apesar….), os alunos desta escola
continuam a escrever, a desenhar, a criar e a tornar possível a existência
deste Concurso.

Este facto faz-nos pensar na permanência e na essencialidade


daquilo que é in-útil, na humana necessidade de um espaço de
essencialidade, espaço de reencontro com a nossa natureza de “poetas à
solta”, errantes e livres. A perenidade da arte (assim como de outras
coisas in-úteis) revela a natureza do ser humano – singular e criador.

A todos os que partilharam connosco um pouco de si, obrigada por


serem tão humanos!

Ana Paula Fadigas

7
POESIA I

8
A PRISÃO

Descobrir o que está por detrás de uma porta fechada


É desvendar os nossos medos,
Sentir o que está por detrás dela.
Cobrir de mantos os monstros
O medo do desconhecido
Bate contra o lençol da verdade
Embate na decisão
Rara e difícil de escolher.
Tantas portas diante de nós
A que nos deixa nessa posição.

Enquanto estamos a dormir


Pensamos nos monstros no roupeiro,
Abrimos a porta…
E não são reais, mas apenas ar!

Mas há sítios…
Que quando se abrem novas portas
Aparecem mais mil à nossa frente
E os monstros são todos reais,
Mesmo assim, o desejo de liberdade
E de atravessar as paredes
Fazem sucumbir o medo e a indecisão.

António Eliseu

9
ILUSTRAÇÃO 1 (SEM TÍTULO), RITA SILVA

10
A VIDA

A Vida não faz sentido


Quando todo o Universo
Se pode resumir
A um simples verso.

Mas nem uma vida


Nem o Universo
Se podem resumir
A um simples verso.

Por isso a vida tem sentido


Quando combatemos para a ter
Quando a desperdiçamos
Já não há nada a fazer.

A vida é algo infinito


E também misterioso
Mas há que admitir
É um bem precioso.

A dádiva da vida
Para sempre prevalece
No lugar do nome
Que nunca se esquece.

Pensar que vivemos


Torna-o realidade
Mas será que tudo o que temos
É esta simples verdade?

Pensar assegura à mente


O facto da própria existência
Daí a frase: “Penso, logo existo”
Dita com muita ciência.

No que nunca se deve pensar


É no que acontece quando tudo acabar
Apenas podemos aproveitar
Enquanto a vida durar.

Pensar no final
Nada alcança
Pois apenas o apressa
Enquanto ele avança.

11
A vida continua
A vida segue
Pois quem tem esperança
Tudo consegue

A esperança, como dizem


É a última a morrer
Pois ele continua connosco
Até tal acontecer

Quem perde a sua esperança


Perde a razão de ficar
Perde a razão de viver
E nunca conseguirá alcançar

A mente de quem pensa


É o som de quem escuta
É a voz de quem soa
É o eco duma gruta

Por isso para que ecoe


Dentro da mente de cada um de vós
Que sigam estas palavras
E ouçam a vossa voz:

“Não pensem no que vem


Aproveitem o agora
Vivam o dia de hoje
E esqueçam o que está lá fora

Sigam em frente
Sempre de cabeça erguida
Encarem o presente
Como um passo da vida

Não interessa o que ficou


Não interessa o que virá
Só interessa o que fica
Só interessa o que está!”

Viver é algo maravilhoso


Imprevisto e jucundo
Dar asas à liberdade e prazer
Aproveitando a vida neste mundo!

Filipe Godinho

12
ILUSTRAÇÃO 2 (SEM TÍTULO), RITA SILVA

13
POESIA II

14
O SOLILÓQUIO
Há muito, muito tempo,
Nesta terra onde vivo, a cidade
Reverberava com a arte de cada um.
Telas pinceladas com esmero e descuido,
Mistura de tintas, fúria e serenidade.
Músicos, cantores, em bares e ruas,
Cordas num tom harmónico e afinado,
Mãos que trocavam sinfonias por alimento.

Eu era poeta.
Farejava sensações entre letras,
Capturava frases, expressões,
Cada palavra guardava uma passagem secreta
Para um outro mundo, tão próximo
Dos meus artistas de ilusões.

Pedintes de rua que afinavam guitarras,


Tambores de tons de delírio.
A cantora de longos cabelos de prata,
O pintor de sonhos, o escultor que tinha garras
Em vez de mãos,
Imersos nos fumos do nevoeiro
De tabaco e maresia, nas ruas perto do rio.
E a minha amiga, pequena, esperta,
De sino ao pescoço, ligeira,
Tocava e dormia com um violino, onde calhasse.
Era livre para ir onde quisesse.

A vida era bela,


E harmoniosa.
Eu escrevia versos
Ao som das sonatas dela.
Os sinos da torre repicavam,
Ninguém esperava que aquilo
Um dia chegasse a mostrar-se finito.

Até ao dia em que a mulher de metal chegou.


Tão fria e distante que dava pena,
Em azul titânico e cinza de neblina,
A cheirar a ambição e a tentar
Convencer-nos de que ela é que sabia.
Previu tempos negros
E todos a ignoraram, voltando à arte.
Devíamos ter visto os ratos a correr para a fuga.

Primeiro acabaram-se os campos.


Nada havia para comer,
Nem papel para poemas ou partituras,

15
E os pintores ficaram sem tela.
Desesperados voltaram-se para ela
E, no seu sorriso metálico,
Começaram a desaparecer artistas e cantoras.
Os músicos calaram-se um a um,
Não deixando rasto atrás de si.
E, de uma cidade de melodia,
Passámos à completa desarmonia,
A morrer.
Quando a vi a correr pela rua,
Lágrimas nos olhos e corda Sol ao pescoço
Foi como uma dor pungente
No que eu mais acreditava.
E a mulher, de natureza tapada e crua,
Sentada no trono de um colosso,
Rodeada dos artistas mais rebeldes,
Confinados em gaiolas, quais aves canoras.
Por dentro, qualquer um definhava.

Na minha loucura, fugi também.


Não tinha forças para salvar ninguém.
Lancei-me ao rio e fui pescado
Por um par de mãos pequenas.
De expressão lívida e casaco negro
A violinista olhava-me, apenas.

Durante a noite olhámos a cidade.


Nem brilhava, nada de músicas.
Apenas um ruído cadente de fábricas
E um tom azul doentio,
A derramar-se sobre as águas do rio.

Nada podíamos fazer.


Mais uma vez, demos as mãos
E caminhámos pela terra batida,
Sobre os sapatos, o pó a chover,
E a cor a desvanecer-se e
A teimar em fazer-se sentida.

Éramos dementes, logo não criminosos.


Somos artistas, não insanos.
Ela roubou um outro violino,
E eu furtei folhas perdidas,
Para versos ainda mais dolorosos.
Perdemos o vínculo com aquela cidade.
A cidade que recordávamos, éramos nós.

Ela tocava para mim.


Um solo do qual eu bebia
Para escrever a minha poesia

16
De feridas, cicatrizes e delírio.
Do pobre violino, sozinho,
Num solilóquio,
O meu solilóquio,
Pelas mãos dela,
Que tendia solenemente
Para um suspiro perpetuado,
Nos tempos dos céus carmim.
Para nós, jamais seria finito.

Carla Lourenço

17
A FLOR

Flor
Que renasce
Nasce
Renasce
No renascimento
Duma fluorescência.

Flor
Fluorescente
Uma fluorescência
Do renascimento
Da flor
Fluorescente.

A flor
Desflora.

A flor
Renasce.

A flor
Florida
Enche-se de flores.

A flor
Rejuvenesce,
Outra vez
Fluorescente
E florida.

Carolina Pena

18
A PERFEIÇÃO CARREGA OUTRA

A perfeição carrega outra,


Nos seus braços,
No seu coração
Encarnado de mil guerras desbravadas!
No seu doce e terno olhar,
Na sua vida!

Este mar,
Esta calmaria,
Esta perfeição,
De olhos verdes,
Que me mata e absorve de mim,
Alma, amor, vida!

Que anjo foi este,


Que me caiu do céu,
Ou diabo desenterrado da Terra,
Levando-me com ele para o Inferno!

O órgão toca
As potentes melodias
Que ilustram esta carnificina!
Sangue,
Suor,
Lágrimas.

Sim, os gritos cessaram!

Levanta-se a aurora boreal,


Florescendo a perfeição de novo.
Nos seus braços jazo nua,
Desprotegida e vulnerável.

A perfeição carrega outra,


Sim,
Carrega!

Carolina Pena

19
ÁCIDO

Ácido,
Nas minhas finas, salientes veias,
Espalhando-se rápida e silenciosamente,
Sussurrando maleitas e maldizeres.

Ácido,
Correndo no meu corpo,
Chega ao coração,
Dissolve os sentidos.

Ácido,
Cá estás tu!
Só para mim,
Agora sim.

Ácido,
Como me embebedas,
E me fazes cambalear,
Sem conseguir cerrar o punho.

Ácido,
Dás-me medo oh Ácido!
Quando sopras no meu ouvido,
A Terra treme com alegria.

Ai Ácido, Oh ácido...
Carolina Pena

20
CORPO DE RAPAZ

O teu cabelo de luz de querubim celeste,


O teu olhar largamente verde e vasto,
As mãos grandes, protectoras, fortes,
É assim que eu te quero, amado.

Árvore repleta de folhas,


Regadas com a água límpida do amor,
Amanhã dar-lhes-emos uma destas nossas folhas,
Que hão-de cair sobre a terra
Húmida, fofa e mole,
Cheiro da Natureza imortal.

Poderás negar-me tudo nesta vida,


Mas não me negues tão vasto e misterioso sorriso
Como o teu.

Essa voz busco eu,


Por entre os sussurros do vento,
De outro, será hoje.
Como antes, os teus beijos.

Crescente gradação de sentimentos,


São eles o amor,
Amor esse que sinto por ti,
O germinar de uma vida,
Aquela que me dás.

É este brilho que em mim carrego,


Esta alegria doce e sumarenta,
És tu que ma fazes crescer.

Nunca pares.
Nunca mudes.
Nunca partas.
Senão eu morro.

Carolina Pena

21
ILUSTRAÇÃO 3 (SEM TÍTULO), RITA SILVA

22
DOCE EXISTÊNCIA

Desloca-se com a subtileza de um leopardo,


Deixando um rasto de perfume a doces e quentes especiarias,
Move-se por entre a névoa do mistério e do desconhecido,
Atira-me beijos discretos,
Que sinto nos meus lábios desejosos por mais.

E com línguas mortas


E corações solitários,
Apanho o doce veneno mortal,
Que me atinge com a rapidez de um tiro.

Trocam-se olhares altivos,


Desejosos,
Come-se com eles.

E mais uma vez na escuridão tenebrosa,


O desejo concebe-se,
Matando saudades e o querer!
Por entre carícias e mimos,
Começa então.

Carolina Pena

23
ELA ESCREVE-LHE:

As águas fluem no teu corpo definido e trabalhado,


Como rápidas e impacientes correntes do rio,
Corro os teus abdominais com um dedo,
Sentido formas duras, sedutoras, desejosas.

Teus cabelos de anjo,


Reflectem isso mesmo,
Quanto me satisfaz sentir,
Sentir os teus cabelos na minha mão.

Deixas-me suspirando,
Mil e uma vezes,
Olhas-me como se fosse a última vez,
Intensamente, ardentemente.

Beijo-te o ombro,
Olhamos o reflexo de ambos no espelho,
Duas caras apaixonadas,
Futuro teremos nós?

Ando descalça na rua,


Olho para trás,
Estás lá tu,
Ao desviar o olhar,
Desapareces na imensidão.

Diz que me amas,


Diz outra vez,
E outra,
E outra,
Todos os dias,
A toda a hora.

A minha boca constantemente procura pela tua,


As minhas mãos,
As tuas,
Completam-se.

Caracteriza-te um perfume como nenhum outro,


Primeira a sentir essa fragrância forte,
Em todos o procuro,

24
Sem no entanto o encontrar.
Para a eternidade,
Glória e amor,
Com verdade,
Amar sempre com entusiasmo e esplendor.

Carolina Pena

25
ILUSTRAÇÃO 4 (SEM TÍTULO), RITA SILVA

26
ELE RESPONDE-LHE

As águas fluem nas curvas do teu corpo,


Como rápidas e impacientes correntes do rio,
Teu seio é uma montanha,
Redonda, espirituosa, elegante.

Possuis cabelos de oiro,


Tão vivos, tão brilhantes,
Como o fogo que arde e crepita,
Fagulhas do ciúme.

Mostras a tua elegância,


E todo o teu charme que transpiras,
Beleza e sensualidade,
Realças esse tom com as tuas pernas preciosas.

Teu toque é suave,


Consigo saborear o teu perfume,,
Delicado, doce, chamativo.

Sigo as linhas do teu corpo,


Passeando e explorando terras desconhecidas,
As ancas, o peito, o ventre,
No meu poema demoraste com a tua beleza.

Olhos inquietantes,
Vasto mundo que não é meu,
Carregado de impaciência,
Calam o que há muito desejo pronunciar.

Boca tão perfeita,


Lábios pequenos e finos,
E com mistério e leveza na brisa fresca,
Amas-me até mais não.

És minha até à eternidade,


Enquanto me quiseres,
Essa será para sempre a nossa secreta verdade,
Ama-me até não puderes.

Carolina Pena

27
ILUSTRAÇÃO 5 (SEM TÍTULO), RITA SILVA

28
FORÇA

A vida não terminou, ela transformou-se.


Se me amas, não chores. Sonha.
Lembra-te dos momentos felizes que são os que devem ficar.
Velo por ti, observo-te, protejo-te agora.

Se me amas, não chores. Lembra-te.


Não sofras, não caias. Sê feliz.
Corre, ri, diverte-te, vive!

Se me amas, não chores. Busca-me


na tua mente, no teu coração, nas tuas memórias.

És forte, consegues.
Só vão ficar os bons momentos, e são esses que devem permanecer em ti.

Estou eu agora noutro lugar,


Não me vês, lembras-te de mim.
Não me sentes, mas recordas-te.
Não me cheiras, memorizaste-me já.
Se me amas, não vais chorar.
Porque a vida não acaba, ela transforma-se. Lembra-te disso.

Carolina Pena

29
Lágrimas

Tudo são lágrimas,


Solidão,
Tristeza.
Sou uma sombra,
Por quem passam sem notar.
Sou matéria,
Física,
Sem corpo.
Sou tudo,
E não sou nada.
Felicidade,
Ou infelicidade
Quando o que possuía totalmente o meu coração,
Não o quis mais,
Devolveu-o,
Com feridas,
Arranhões,
E um buraco irreparável.
Assim, caminho.
Outra vez,
Para variar,
Sempre,
E sempre,
Sozinha...

Carolina Pena

30
ILUSTRAÇÃO 6 (SEM TÍTULO), RITA SILVA

31
NUNCA SEM TI

Pede-me para viver... Mas não sem ti.


Pede-me para amar... Mas não outro senão tu.
Pede-me para esquecer... Os dias sem ti.

Diz que me amas, nem que seja neste momento.


Diz que pensas em mim, nem que apenas uma hora por dia.
Deseja-me com o corpo,
Mas ama-me com o coração.

Olha-me tanto, de perto como de longe,


Não me implores para esquecer o inesquecível,
A felicidade só parte de nós
Quando produzida por alguém
Que o nosso coração transporta todos os dias.
Por favor, transporta só o meu.
Filho do Diabo amas com tudo o que tens?
“Sim, para sempre”.

Carolina Pena

32
POSSO ESCREVER A TRISTEZA ESTA NOITE

Posso escrever a tristeza esta noite,


Embutida em papel e tinta de escrever,
Posso escrever mil e um desamores
Aqueles que me fizeram sofrer

Posso contar o que mais me doeu,


Que deixou um discreto rasto visível,
Fazendo-se branco e elegante,
Destacando-se nesta sombria escuridão.

Posso escrever a tristeza esta noite,


Contar o quanto aquele me fez chorar,
Não o tenho, é certo,
Mas lembrar as vezes que envolvi o seu corpo.

As vezes que saboreei os seus lábios,


As vezes que nos amámos,
Quão doce e distinto que era,
Ah! Já lá vai tão longe.

Posso escrever a tristeza esta noite,


A mesma noite que nos guardou,
Pensar que o amei e não o tenho comigo,
Mas foi esse o destino e nele viajou o fim...

Carolina Pena

33
SITUAÇÕES

Palavra esquecida,
Sonho contado,
Vazio sentido,
Amor renegado.

Uma lágrima seca,


Tantas vezes que escorreu,
Mas agora já nem existe.

Medo da respiração,
Não se ouvem as batidas do coração,
Abraça-se o escuro,
A noite perdura.

Olhos que tudo vêem,


Sem nada mirar,
Boca que prova.
Sem nada sentir.

Duas lágrimas secas,


Tantas vezes que escorreram,
Mas agora já nem existem.

Chegam ao canto da boca,


Salgadas,
Como a amargura sentida,
Redondas como um perfeito coração.

A ferida não abre,


Mas também não sara,
Não grita,
Mas também não dói.

Três lágrimas que secas,


Tantas vezes que escorreram,
As últimas antes de eu descansar em paz...

Carolina Pena

34
SOSSEGO DO BARULHO

Neste pesar,
Este sossego desta escura noite fria,
Hesitante, enches os meus pensamentos,
Ardes, nas memórias ainda frescas.

Parece que foi ontem,


Que foi ontem que percorri os teus olhos,
Penetrantes, vastos, misteriosos,
Parece que foi ontem que o nosso amor se crucificou.

As brancas e ásperas paredes do destino desabaram,


E este levou-te de mim, sem pinga de dó
Nem piedade
Sozinha fiquei, contemplando um céu estrelado
Sem a mais brilhante estrela.

Faz-se hora de partir,


Abandonada como navio sem comandante,
O vento gira,
A chuva cai como gotas de amor desperdiçadas.

Carolina Pena

35
TUDO ÉS TU

Tudo és tu.
A lua és tu.
O Sol és tu.
O Outono és tu,
Quando as folhas caem
E rodopiam pelos ventos gélidos,
Tal como as tuas mãos
Percorrem as minhas costas quentes.

Numa Primavera
Preencheste eternamente a minha vida.
Em pouco tempo foi o meu coração.
O Verão memorável foi,
E o Inverno,
Tem sido o melhor da minha vaga vida.

Tudo és tu.
Tudo me lembra a tua pessoa.
O perfume inesquecível
Que procuro sem encontrar.
Um mistério.
Como tu.

É curioso.

36
Uma alegria? O teu sorriso
Uma história? A nossa
Um sentimento? O amor
Um pensamento a tempo inteiro? Tu
Um carinho? Um beijo terno ou um abraço quente
Definir-te? Uma missão impossível
Definir este amor? Outra missão impossível.
E um medo? Perder-te . . .

Carolina Pena

37
ILUSTRAÇÃO 7 SEA SERPENT BAIT, DAVID CHORÃO

38
VEM MEU AMOR

Vem, meu amor.


Junta-te ao segredo e clamor
Nesta vida, poucos são os puros.
Tudo é preto no escuro.

Resistes à tentação?
Não, há demasiada paixão.
Aqui, nesta vida, pouco tempo cá andas,
Pouco controlas mas muito mandas.

Já vivi muito,
E tão pouca idade que tenho,
Não me enganam mais, não.
Nada já eu estranho,
Convivo com a traição.

Vem meu amor,


Que vida triste e monótona é esta
Se não estiveres por perto?

Resistes à tentação?
Será só atracção,
Ou algo mais que simples paixão?

Desafias as leis da gravidade da minha moral,


O prazer da tua carne tornou-se essencial,
Eu gosto de gostar,
E tu és o fruto proibido.

Como pode ser tão bom,


Esse mal que tu me fazes?
Por ti eu faço tudo,
Sem muralhas nem entraves.

Carolina Pena

39
ILUSTRAÇÃO 8 (SEM TÍTULO), RITA SILVA

40
NADA

Eu só quero
Não querer,
Nada.
Controlar o tempo
Voar no vento,
Tal criança fascinada.
Pelo sentir, ver.
E, espero
Um sincero
Jeito de viver
De gente amada.
Mas falta o tempo…
Diana da Silva

41
POR AÍ

Pleonasmo recuado
De um futuro inacabado.
Onde um sonho imperfeito
Se traduz num rasto desfeito.

Mero percurso infiel


Construído a cinzel
Que palmilho ineficazmente
Pisando-o, apenas, levemente.

Como se ao quebrar, partir


Pudesse o mundo ir
Sem destino
Por aí…

Diana da Silva

42
QUE O VENTO ME SACUDISSE

Ferozmente sem cessar.


Que a chuva me lavasse
Somente pureza deixar.
Que o fogo me queimasse
A solidão do olhar.
Que a natureza me abraçasse
Simplesmente consolar.

E o meu espírito,
Novo e limpo,
Pudesse ser audaz.

Seria eu de tudo capaz,


Correr nas ondas
Voar nas nuvens
Dormir no fogo.

Claramente pudesse pensar,


As brumas silenciar,
A certeza aprisionar.

Diana da Silva

43
ILUSTRAÇÃO 9 BABY DINOS, PEDRO FERREIRA

44
SEM JEITO PARA A POESIA

Têm os leitores de me perdoar


Pelo jeito para a poesia me faltar.
Não tenho jeito para brincar com as palavras,
Que nas minhas mãos parecem assassinadas.

Oh, pobres Fernando Pessoa e Florbela Espanca,


Que, ao ouvir isto,
Nenhum poeta no céu descansa!

Quando me vem à cabeça, porventura,


Uma palavra coberta de formosura,
O melhor é esquecer,
Pois não encontro nenhuma outra para a engrandecer.

Oh, lágrimas que não querem parar!


Não fiquem assim,
Que este poema é para rir e não para chorar!

Elsa Vila

45
DIÁRIO DOS AMANTES LOUCOS

Foi no primeiro raio de luminosidade,


Que esta inocência foi aclamada pela vida.
Somos aqueles que vivem em calamidade,
Por não sermos aceites de alma partida…

Sozinhos e desamparados, não conseguimos conter,


A nossa ilustre alegria de juntos estarmos, por fim.
Somos servos, amos, com nosso inteiro e corrompido ser,
Cuja existência roga ser atada a alguém, assim…

E Vós, meu amo, sois meu, sabíeis?...

Sois meu cândido corrupto, meu anjo derrotado,


Minha vida num espelho, minha imagem sem ar…
Sabereis, meu amo, que nosso fogo jamais será apagado,
Neste mundo, nosso domínio, e nosso eterno lar…

E Eu, meu servo, sou vossa, sabíeis?...

Sou faca em vosso escuro coração que suplica por entrar,


Vossa pudica flor da mata, vossa doce ária de oculto ardor…
Sabereis, meu servo, que nunca pertenceremos neste mar,
Mas pertencemos um ao outro – Eu, Vós, e nossa doce dor.

Meu amo, meu servo,


Pertencemos, por fim…
Meu amo, meu servo,
Nós dois, aqui, assim…

Joana Catela

46
ILUSTRAÇÃO 10 SCRAT PETRA, PEDRO FERREIRA

47
Feliz

Escrever tais palavras felizes,


Para mim, simples tarefa não é.
Pois, quando gritos ouço, nunca me dizes
Que, para se esconderem, terei de ter fé…

Mas são palavras, simples momentos para mim,


Escrever e dizer e cantar, mas não pensar.
Quando tormentos caem no mundo, assim,
Que mais poderei eu fazer, senão chorar…

Foi culpa de quem, senão de outrem.


Não, quando a culpa é minha.
É tua, nossa, sim, mas de quem?
Quem mata nossa adorada rainha?...

Feliz? Quem é o sagrado afortunado?


Pois eu quero-a – queremo-la – esse doce prazer,
Essa luz que ofusca meus momentos de tornado.
Basta ler, escrever, rever momentos do ser…

Joana Catela

48
ODE À TUA TRISTEZA, AMIGA

Choras… Choras – quebrada – por dentro,


Procurando as escuras desaparecidas,
Por obra de estranho sacramento,
Sem ramos, por tuas mãos, desejadas,
Sem algo que te agarre,
Sem algo que te ampare…

É o vidro quebrado que amamentavas,


É o fim da perfeição que acarinhavas,
É o paraíso cerúleo que suportavas,
É o coração que gloriosamente cantavas…

Choras… Choras – dobrada – a meu lado,


Procurando nossos abraços, nosso calor,
Por obra do gelo do teu amado,
Com tristeza renegada de amor,
Com lágrimas que pendem,
Com gritos que mentem…

É a escrita que anseia por te libertar,


É o vento que se esforça por te acalmar,
É o momento que mantém o seu bailar,
É o coração que geme por desaguar…

Ah, morre estupor que a fizeste morrer!


Ah, sofre estupor que a fizeste sofrer!
Morre, sofre, ah! Chora, estupor, grita!
Morre, sofre, ah! Chora, estupor, grita!

Joana Catela

49
POBRE MEU PEQUENO SER

Pobre meu pequeno, ser abandonado,


Apanhado por eles e por eles encurralado.
Esperas ser livre; Esperas, por mim, seres resgatado.
Mas sabes, meu pequeno, por mim não serás conquistado…

Pobre meu pequeno, ser magoado,


Concebido por cativos e por cativos mantido.
Desejas ser livre; Desejas, por mim, seres sussurrado.
Mas sabes, meu pequeno, por mim, não serás contemplado…

Pobre meu pequeno, ser, para sempre, quebrado,


Procurado por mal e por mal encontrado.
Anseias ser livre; Anseias, por mim, seres amado.
Mas sabes, meu pequeno, por mim, não serás coroado…

Pobre pequeno! ... Meu pequeno!


Pobre cativo! ... Meu cativo!
Pobre coração! Teu coração!...

Joana Catela

50
ILUSTRAÇÃO 11 (SEM TÍTULO), JOANA CATELA

51
ÀS PORTAS DO CÉU, A UM PASSO DO INFERNO

Ao Anjo:

Passei a rua,
Preto, branco, preto
Um sem fim das mesmas coisas
Da mesma rotina marcada.
Não pensei,
Nem olhei em frente
A praça apinhada dos meus sonhos.
Sorri levemente à nuvem escura
Por saber exactamente o seu papel.
Cresci pensando ver-te
Ou vendo-te mesmo
Em curtas-metragens, de sonhos-pesadelos.
Estava louca, ou talvez mais
Mas cresci a procurar-te
No espaço infinitamente vazio
Que me enchia e preenchia.
Corri a abrigar-me da chuva gelada
Corri, e corri depressa
Em direcção ao pequeno espaço
Onde a tua memória sem corpo me esperava
E então vi-te!
Sabia que não podia prestar atenção
Não podia olhar fixamente a tua perfeição
Ou desaparecerias outra vez
E outra vez eu mergulharia
No sem fim de cores e rotina
E voltaria a ser normal
A pensar normal
E a viver a vida como outros,
Sem viver,
Sem respirar,
E a viver apenas respirando.
Mas apenas eu me impediria
De correr, voando, até ti
Mas apenas eu escolheria
A razão, a verdadeira
O sim ou não

52
Olhar, não olhar
Ser, não ser…
O degrau frio e marmóreo
Como tu,
Esperava-nos nos entremeios da chuva gelada
Atraindo-me infinitamente ao teu regaço,
Ao teu frio abraço
E engoli em seco o meu coração
Virando as costas às lágrimas do Céu
E a ti, Anjo, ao sentido da minha vida
E o sol desceu no horizonte
Pousando os seus raios fracos na minha memória,
Impelindo-me a fugir dali,
Do lugar onde nunca te esqueci.

***

À Pequenina:

O calor do sol reinava


Era senhor daquele mundo meu
Em que te vi, Pequenina
Como que pela primeira vez.
Chegaste e logo tudo se cobriu de negro
De fatalidade e de grossas lágrimas.
Não podias e eu não podia
E ali estávamos
A olhar-nos disfarçadamente
Com medo que o mundo ruísse.
Sim, reconheci-te, Pequenina
Esperava-te como tu a mim
Sem me atrever a esperar.

E sim, vi-te Pequenina


Na tua frágil corrida para longe
E desejei seguir-te
E quase morri,
Na minha imortalidade
Vendo um fio de sal na tua face
Vendo a fragilidade de uma pétala
Num furacão
Enquanto fugias

53
E eu fechava os olhos
E desejava seguir-te
Quebrando o meu mundo
Em ti, e tudo o resto.

II

Ao Anjo:

Vagueei perdida no mundo


De sombras e sonhos
Vagueei perdida nas ruas
Cega de medo de intempéries,
Á procura de algo que me mantivesse viva.
Eu era um ponto de escuridão
No meio de um mundo brilhante
Algo incerto, um ser imerso
Na sua própria inferioridade.
Inundei o mundo
Com as minhas lágrimas de mágoa
E sentia o sempre e o nunca mais
Como se me pertencessem e definissem
E apenas esperava que fossem ambos teus,
Sinais de que não crescerias longe
Que não vingarias em frutos salgados
E me deixarias para sempre
Sentada em meus braços teus
Escondida em meus passos teus
Que escolhia e em que caminhava
Seguindo em direcção ao teu palácio
Frio, marmóreo, esquecido
Pedras construídas pelas tuas mãos
Para acolher a tua perfeição, a minha desilusão.

Perdi-me finalmente
Agora em meus passos meus
E vi-te cair, à minha frente
A imagem da minha mente
Por entre sangue, suor e lágrimas
Mas por momentos vivi-te
Parada em frente ao Anjo que te representava
No pórtico que o meu olhar evitava
E de coração despedaçado

54
Deixei-me cair
Para sempre naquele lugar
Onde te fora visitar
E escolher o meu caminho
E aí, à sombra de uma pedra
Morri uma e outra vez
E deixei-me ficar
Longe de mim própria
À espera que algo viesse
E me resgatasse, e me curasse
Daquele longo desespero.

***

À Pequenina

Vagueei para longe do meu mundo, teu


Criando espaço por entre nós
Era eu, perfeito, imaculado
Mas a perfeição não é nada sem coração
E tu, Pequenina, eras o meu.
Desejava-te como nada mais
E por ti, tudo era nada,
Tudo não valia a pena
E crispei os dedos em mim mesmo
Tentando quebrar aquele pedaço
Que era teu,
Aquele pedaço que me rasgava
Para seguir-te
E chorei, sem o poder fazer
Para te pedir que não fugisses
E voltasses à praça apinhada
Aquela que sem ti era nada.

Pequenina, Pequenina,
Volta aqui
Vem até mim, que te pertenço
Vem até mim para que nada exista
A não sermos nós.
Vem, Pequenina, que sou teu
E me prostrarei a teus pés
Pedindo-te perdão
Por não poder viver
Vivendo séculos, sem ti

55
Vem Pequenina que sou teu
Vem tornar-me perfeito
E voaremos
Mas não, não podes
Não mereço.
Não, não podes, morreremos
Mas vem Pequenina amo-te
Vem Pequenina.

III

Ao Anjo:

Corria e corria de novo


À velocidade a que corre o mundo
Corria para ti, em sentido contrário,
Correndo para ti.
Como desejei ter eu as tuas asas
Como desejei ter-te à minha frente
Uma última vez
Enquanto esperava o meu fim
O momento para me separar de ti
E no meio de toda aquela escuridão
Vi-te uma última vez
Meu Anjo infinito
Minha imperfeita perfeição
Era por ti que eu vivia
Era por ti que eu respirava
E sangrava, ao cair, correndo.
Gritei que te amava
Gritei para todo o mundo ouvir
Gritei até a voz me doer
Enquanto a minha mente te afastava
E eu corria e caía para seguir-te,
Sabendo não poder encontrar-te.
E voltei-me então
Para uma voz que me chamava
E clamava amar-me também.

Olhei e vi-te na tua perfeição


Esperando-me no fim do caminho
E lancei-me de joelhos perseguindo-te
E o ser perfeito riu
Mas não foi o riso do Anjo que ouvi

56
Foi o meu choro desesperado
Presente na gargalhada da voz perfeita
E recuei, quebrada
Esmagada pelo peso do mundo
Enquanto avançava o Anjo,
Avançava direito a mim
E eu petrificada, fugiria
Se não fosse o Anjo que eu visse
Se não fosse a minha alma
A tentar voltar a mim.
E aquele Anjo que não era meu
Riu no meu choro desgarrado
E olhou-me corrompendo-me
Vem, pediu
Mergulha em mim só porque podes
Esconde-te do que receias nos meus braços
E eu serei tudo o que queres,
Tudo o que em mim vês será teu
Eternamente.

Lancei-me no ar gelado
Que desde sempre nos separava
Aspirando o teu cheiro
Admirando-te como à perfeição
Sou tua e és meu,
Finalmente

Abraçaste-me na tua frieza


E eras tu, finalmente em mim
O meu pequeno Universo
Só em ti.
E falaste na minha voz embargada
Dizendo-me que era tua, para o sempre
E em mim algo se quebrou de novo
E olhei uma face que era a minha
Radiante espelho, mas confuso.
Escorreguei por entre os teus braços
Para os meus,
Apanhando-me em pequenos pedaços
E entregando-os a ti,
Anjo que não eras tu.
Fiquei deitada no chão
Para finalmente morrer
Perante o teu olhar confuso,

57
Que era o meu.
Não me queres, murmuraste
Na minha voz embargada
E o meu mundo escureceu
Mostrou o que era, de uma vez
Um sem fim de labaredas
O mundo que não era, não podia
Ser o teu.
Não quero, acabei por murmurar
Não és tu.
E tudo à volta eram gargalhadas
Frias e murmuradas
Pedaços de nada que me feriam
E vi o ser que me fitava:
Era o contrário da tua perfeição
Um ser de escuridão.
És minha!
E era, mas não sua
Era tua, meu Anjo perfeito
Era e sempre fora só tua.
E percebi não saber, nem poder
Viver sem ti, nem mesmo longe
E a tua ilusão carregou me para longe
Para qualquer lugar desconhecido
Onde morri, adormecida
Desistindo de tudo o resto
Esperando pelo nada certo
E acreditando finalmente no depois
Esperando que viesse ao meu encontro
Para que pudesse continuar a ver-te
No meu longe e no meu perto
Porque, Anjo,
Não consigo viver sem ti.

***
À Pequenina:

Mergulhei no fim do meu mundo, sem ti


Desci ao Céu dos como eu
E vi-te esperando-me à entrada.
Foge, meu amor, ou morrerás
Perde-te, por mim, em outro lugar
Foge, Pequenina, não morras

58
Morrerei eu por ti
Perante Ele, o Deus do meu Inferno
Para te poupar.
Sorriste-me e logo me rendi
Mergulhando em todo o desespero

Como, sendo Anjo, não poderia salvar-te?


Como, sendo eu teu, morrerás?
Não! Não! Não! Pequenina…
Desperta-me deste meu Céu de labaredas
Não morras por mim, nem uma vez
Foge, renego-te, renuncio-te
Prefiro morrer eu, para sempre.
Sendo que as minhas asas caem sem ti
Toma, levo-as, entrego-tas
Não serei Anjo sem ela
Não serei nada para salvá-la
E o meu Deus riu-se
Arrancando-as, levando a suposta perfeição
Mas sem ti, Pequenina, nada existe
Sem ti, Pequenina, o Céu desfaz-se
E, agora mortal, espero
O meu fim, aquele que prometi
Porque não te posso ter para mim.

IV

Ao Anjo:

Ouvi o teu apelo meio enlevada


Nos sonhos da tua perfeição
Ouvi-te Anjo mortal
Pedindo-me pela vida que era tua
Sim , espero aqui para morrer
Apenas por não te poder ter.
Renego a minha alma dividida
Esperando que quando me vá
Ela te encontre e te complete
E viva, feliz mesmo sem mim.

Mas ouvi distintamente a tua voz


Mesmo sem asas, perfeitíssima

59
Fazendo o meu coração bater.
Mesmo naquele fim,
Querias e amavas-me, como eu
Esperando para mim felicidade
Não! Não! Anjo, não
Não te percas, como eu,
No Céu do mundo
Por favor, volta, vive apenas por mim
Não, vem meu Anjo, vem
Aqui te espero,
Vem salvar-me!

Esperei que me ouvisses também


Mesmo sabendo que o tempo não pertence
A ambos, impedindo-nos de sermos um
Mas vem, Anjo vem, segue a minha voz
Encontra-me antes que te percas
Vem, vive, por mim
Ao morreres, o mundo morre
E apesar de viveres comigo
E de finalmente sermos ambos Anjos
Não posso nem quero perder-te
Vem, chamo-te,
Dá me um beijo e segue em frente
Enquanto fecho os olhos
E morro feliz por ser eu
E amar um Anjo sem asas
Um Anjo que desceu dos Céus
Só por me amar
Vem, Anjo, vem dá me um beijo
E faz me feliz,
Completa o meu coração
Antes dele parar de bater por ti
Vem, meu Anjo
Segue a lua e voa
Imagina que me vens entregar as asas
E te despedes delas, e de mim
Vem depressa.

***

À Pequenina:

Meu amor, ouço a tua voz

60
Talvez seja delírio de condenado
Mas quero-te
Vem ter comigo e dançaremos
E serei teu e serás minha.
Deixei longe as minhas asas,
Mas voaremos
Para longe, muito longe
Deste mundo frio,
Para o centro da nossa praça.
Meu amor, espera-me que caminho
Com pressa, para ver o teu sorriso
Para te acordar com um beijo, ao de leve
Levemente, acordar-te
E adormeceremos depois juntos,
Abraçados até ao fim
Deste mundo, espaço e tempo.

Meu amor, levanta-te e dança


Vem, espera-me a meio do caminho
Sou teu e és minha no fim do ciclo
E seremos sempre um,
De dois mundos.
Meu amor, a lua atravessa-me
Faz-me cair prostrado
Perante tanta ilusão
É um sonho, um pesadelo,
Tu chamares-me
Mas corro, voo no vento
A encontrar-te.
Vem Pequenina, corramos juntos
Até à encruzilhada do encontro
Vem, mergulha em meus braços teus
E segue, passando por mim
Vem, vem, preciso da minha metade
Espera-me, onde estiveres, estarei
Espera-me!

Ao Anjo:

Ergui-me com a felicidade às costas


Impelindo-me a levantar-me
Apesar do meu coração partido.

61
Apertei-o com força e experimentei
O primeiro passo
Para nunca mais parar.
Dancei ao teu encontro
Na realidade
Sentindo que nada mais podia ser verdade
A não ser aquele pedaço de mundo
Que à minha volta me fazia viver.

***

À Pequenina:

A cada passo mais perto de tudo


Do infinito que me vai permitir viver
Contigo tudo é tudo
Sem ti tudo é nada
E estou mais perto
Muito mais perto de ser o teu Céu
E o meu Inferno
E não me canso da melodia à minha volta
Do som do vento, enquanto corro
Do som da tua voz em mim
Chamando-me.

***

Ao Anjo:

Os meus passos não abrandam


Escolhendo caminhos
Que certamente me levam a ti
E nunca mais chorei
E nunca mais chorarei
Até te encontrar e a felicidade transbordar
De mim, infinita por seres tu
Quem escolhi e me escolheu
Para seres meu.
Não espero a alvorada para caminhar
Nem mais um segundo me separa de ti
E aprendi a respirar, por entre os meus pedaços
Polindo-os para tos entregar.
Sou tua, quebrada ou não
Sou tua, porque tudo é teu

62
E espero nos meus braços
Pelos teus, que me rodeiam
E me fazem una.

***

À Pequenina:

O Deus do meu Inferno ri de novo


Por saber a distância que nos separa
Por saber a fragilidade que te marca
E eu rio também
Por saber que nunca vencerá;
E as minhas asas crescem de novo
Por fazer frente às chamas
Por sorrir quando deveria chorar
E de novo sou Anjo teu
E de novo sou senhor do Céu
Para onde te levo, vivendo felizes
No cimo da nossa praça apinhada.

Pequenina, podes chorar


Mas nada perdeste, apenas ganhaste
Um Anjo, agora verdadeiro
E Pequenina, o meu milagre és tu
Nada mais ultrapassa o Tu
Não chores, Pequenina, limpa as lágrimas
Que eu voo velozmente ao teu encontro.

***

Ao Anjo:

As minhas lágrimas são por ti,


Por seres tu,
Felicidade a transbordar entre muralhas
Mas as asas significam nada.
Se não voasses, voaria eu
Se não soubesses onde procurar-me,
Iria ter contigo.
Se não me amasses,
Deixar-te-ia.
Se não tivesses voz,
Beijar-te-ia.

63
Mas tudo em função do astro branco
Com asas, que sobrevoa a cidade
Nada contra a sua vontade
Por isso choro, por seres para mim.

VI

Ao Anjo:

Os meus olhos fecham


Pesados de mundos
Os meus pés avançam, cortando distância
Mas nada muda, tudo é igual
Percorrendo meio mundo
Que me separa de ti.
Anjo, estou cansada, mas quero
Avançar uma e outra vez até ti.
As minhas mãos sangram
Fechando-se sobre a terra árida
E rastejando pelo pó dos teus paços,
Para te seguir.

A alvorada espreita, no fundo do horizonte


E eu levando-me para mais um passo,
Sem forças.
Estou tão cansada que podia morrer,
Alterando o destino com as minhas asas,
E o chão aproxima-se
Numa nuvem de poeira escritas
Reflectindo o meu sonho branco
E uma lágrima – a última, derradeiro
Cai de mim, em direcção ao chão
Alojando-se no teu coração
Enquanto me embalas sem me deixar cair.
Estou a sonhar.

***

À Pequenina:

Dorme meu amor, que eu te levo


Perdida abraçando o meu coração.
Meu amor, agora sou perfeito
Porque tenho-me completo

64
Nos meus braços
E dorme meu amor
Que a aurora raia
E o mundo é apenas nosso
Daqui em frente.
E já vejo a praça bem ao fundo
Num pequeno fio de horizonte
E dorme meu amor que nada mais interessa
E quando acordares
Mostrar-te-ei com um pequeno beijo
O que o mundo seria sem tu nele.

VII
Ao Anjo:
À Pequenina:

Ao raiar do Sol, gotas caiam de mim


Ao raiar do Sol, as asas cessaram
Os olhos abriram
E caí em teus braços
E abracei-te.
Meu anjo
Minha Pequenina
Finalmente tua
Finalmente teu.
Ao raiar do Sol, em raios largos
Onde o mundo nascia de novo
O ciclo completava-se
E no meio da praça
Olhei-te
E eu observei-te
E foi no pequeno instante
Que nos separava,
Que escolhi.
Aquele era o meu sempre infinito
Aquele era o meu infinito sempre

***
Ao Anjo

E apesar dos minutos restantes


Abracei a tua fria perfeição
Sem pensar, sem ver,
Apenas com o coração
Anjo…
Nada mais há a dizer.

65
***
Ao Anjo:
À espera
No centro de tudo
Vejo flores crescendo
Abrindo e morrendo
Regendo-se pelo ciclo da vida
Pela beleza do finito
Mascarado de infinito.
Nunca esperei nada mais
Que infinito
Não sonhei com nada mais
Apenas um Anjo
E acordei
Para a beleza do finito,
Eu sozinha
Neste pequeno mundo
Sem chorar,
Nunca.
A beleza de tudo,
É que acontece
Posso amar, não importa o resto
E amo-te!
O meu Anjo, no meu sonho
O Anjo perfeito que me procurou
Para me salvar e resgatar para si
A amo-te Anjo
Enquanto espero o futuro
Sempre no seu regaço imortal
Sabendo que o amar é tudo
E é nada
E uma maneira de viver
De respeitar
Sentir, morrer par ao comum
Amar é nada quando morre
Não é amor
E eu, na minha sorte,
Amo-te Anjo
Contra tudo e todos
Sobrevivendo a tudo.
E o negro Diabo pode até chorar
Porque eu amo-te, Anjo branco
Sabendo que afinal vale tudo
E vale a pena
E o negro Diabo pode até chorar
Porque eu amo-te, Anjo branco
E dou-te o meu primeiro beijo
Deixando o teu sabor em mim
E nessa imperfeição me aconchego

66
E tu cantas-me para adormecer
Sempre e para sempre
No teu regaço imortal.

***
À Pequenina:
Amo-te.
Até ao fim… e para sempre talvez

***
Ao Mundo:

Aqui neste espaço e tempo loucos


Sou um Anjo apaixonado
Por uma humana, sem a qual não vivo
E se um dia eu não for Anjo
Ou ela o for
Seremos completos,
Mas amo-a até ao fim do tudo
E nada farei para mudar
Mas espero ansiando pelo futuro
Pelo sempre, e para sempre,
Contigo Pequenina.

Maria Teresa Vaz Freire

67
ILUSTRAÇÃO 12 LUSÍADAS BOM, DAVID CHORÃO

68
ATÉ AO MEU ÚLTIMO RASGO DE MIM

Um dia serei fogo, ar


Água e terra.
Um dia serei sal,
Serei muralha,
Serei cor e ausência dela
E enfim serei livre
De voar por montes e vales,
Lagos e cidades.
De me alojar no pequeno espaço
De uma memória sem corpo.
E voltarei a ser sal e água,
Quando me chorares;
E voltarei a ser fogo,
Quando me amares;
E voltarei a ser muralha
Porque te tornarei mais forte
Com o meu último rasgo de mim.

Maria Teresa Vaz Freire

69
BEDTIME STORIES

Era uma vez


Ou talvez não
Era apenas um início
Como qualquer outro fim.
E a fada sorriu
Quando o monstro desapareceu
Ou se escondeu
Na sua própria não verdade.
E eu sorri ao ler-te
Vendo o teu olhar assustado,
Fascinado.
Então a floresta falou contigo
Uma árvore grande e centenária
Disse para continuares a imaginar
Que o mundo lá fora
Tinha magia
E tem:
A magia da música e dos sorrisos
A magia das estrelas aos milhões.
E tu gargalhaste
Apontando para a grande varinha mágica
Querendo partir à descoberta
Dos seus feitiços
E os elfos dançaram
Ao som da tua gargalhada
E cantaram noite fora
E eu virei a página
Onde a velha bruxa
Mexia as suas poções.
“Não tenhas medo” disse
Debruçando-se para te tocar
E splach, caiu no escuro caldeirão
Onde desaparecem todas as más fantasias
E riste de novo
Quando chegámos ao fim
E te aconcheguei o lençol
E adormeceste, pequenina
Pensando que tudo isto é a vida
E não é?

Maria Teresa Vaz Freire

70
MEU AMOR

Sou saudade,
Toda eu.
Espero sempre por alguém
De manhã em manhã,
De noite em noite,
De sonho em sonho.
Sou uma criança pequena,
Perdida, com os olhos vidrados
E continuo a esperar-te.
Não sei se já existes
Ou se ainda existes
Mas continuo a enfrentar
As estações, o sol e chuva,
Os gritos, os olhares de censura
As vontades de chorar e
(Por vezes) ser chorada.
Distribuo os meus sonhos a outros,
Distribuo os sorrisos que me faltam
A quem não falta.
Não choro por saber que não estás,
Ao meu lado, ao meu regaço,
Do outro lado da porta.
Às vezes penso encontrar-te
E dou-te tudo
Mas não és tu, é alguém
A quem dei tudo
E de quem nada recebi.
Tenho conversas banais
Com o vento,
Que penso poder fazer-te chegar
As minhas palavras banais, e espero
Que me respondas com a profundidade
Que procuro no muro banal
Que me separa de ti.
Nada te chega e nada me chega
Não posso amar porque não te encontro
Nos olhos de alguém.
Sinto-me sempre mais sozinha
Todos têm uma vida além da minha
Todos esperam ou encontram
Mas ninguém se perde
Em cada palavra, como eu.

71
Não sei escrever, não sei sonhar
Mas tenho que continuar a tentar
Fazer-te chegar
De alguma maneira o meu amor
Mesmo sendo tu alguma estrela
A infinitos anos-luz de distância.
Tenho a vida cheia de pessoa
Palavras, gestos e segredos
E vivo como espelho de tudo isso
Sem procurar mais fundo que o fundo
Por ter medo de cair
E não voltar a sorrir
Por saber que nunca te encontrei,
Meu amor.

Maria Teresa Vaz Freire

72
ROSAS

Rosas que sangram mágoas na manhã pálida…


Embaladas pelo vento contam segredos escondidos
Resplandece o vosso carmim, de suavidade cálida
Quanto vocês já viveram, entre suspiros desvanecidos

Contem-me o amor que a Natureza vos abençoou


Quantas juras foram prometidas?
Quantas liberdades foram roubadas, como uma ave que voou
Quantas paixões a vossos pés foram destruídas?

Cada pétala vossa que cai


É como eras que passam
Envelhecidas e discretas…

Minha mente embalada pelo vosso aroma vai…


E segue, pelo ar, loucuras que matam!
Minhas rosas… Vosso amor é como feridas de setas!

Patrícia Matono

73
ILUSTRAÇÃO 13 JESSICA, DAVID CHORÃO

74
CONFISSÃO

Não falarei,
Não respirarei,
Não me deslocarei até tu entenderes
Que me pertences.

Podes pensar
Que não olho,
Mas dentro da minha mente,
Estou ligada a ti.

Sou fraca!
É verdade.
Porque tenho medo de saber a resposta:
Também me queres?

Esperei tanto para poder passar esta linha.


Estar no sítio da verdade.
Não vou continuar a esconder,
Está na hora de tentar,
Tentar tudo para ficar contigo.

Tu não tens noção daquilo que fazes,


Pois sempre que entras na sala
Tenho medo de me mexer.
Medo de respirar.

Sou tão fraca!


É verdade.
Estou tão assustada para saber o final.
Sabes mesmo o que significas para mim?

Paula Pereira

75
ENCONTRAR-TE-EI

Sei que estarás uma vez mais no meu caminho


E eu encontrar-te-ei...

Paula Pereira

76
NÃO HÁ

Não há terra nem há mar


Que nos consigam separar.

Não há tempo nem distância


Que apaguem a nossa fragrância.

Não há crença nem há cor


Que acabem com o ardor.

Paula Pereira

77
SONHOS

Poupa uma pequena vela,


Guarda alguma luz para mim.
Vultos à minha frente
Em movimento com as árvores.
Pele branca como linho,
Perfume no meu pulso.
E a lua cheia que fica suspensa
Estes sonhos aparecem no nevoeiro.
Será capa ou espada?
Será primavera ou outono?
Caminho sem um corte
Através de uma parede de vidro.
A minha vista está mais fraca.
A vela que seguro continua firme.
E as palavras que não têm forma
Estão a cair dos meus lábios.
A mais doce das canções é o silêncio.
É engraçado como são os teus pés,
Em sonhos nunca tocam o chão.
Num bosque cheio de príncipes,
A liberdade é um beijo.
Mas o princípe esconde o seu rosto
Dos sonhos que aparecem no nevoeiro.

Estes sonhos continuam quando fecho os meus olhos.


A cada segundo da noite eu vivo outra vida.
Estes sonhos dormem quando está frio lá fora.
A cada momento que estou acordada
Mais fora e longe que estou do mundo real.

Paula Pereira

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ILUSTRAÇÃO 14 SCRAT MAYAS, PEDRO FERREIRA

79
TUDO É ILUSÃO

Tudo o que sei


É que nada é sólido.
Quando mais cresço
Menos sei.

Já vivi tantas vidas,


No entanto, sou nova.
E quando mais vejo
Menos cresço.

Não queria ter visto toda realidade


E todas as pessoas reais.
Mas, na realidade,
Não são assim tão reais.

Quanto mais aprendo


Mais eu choro,
Por ter de me despedir da vida,
Que pensava ter desenhado para mim.

Todos os momentos que já passaram


Tentei que durassem.
Nada faz sentido.
Nada é maravilhoso.
Nada se fixa.
Tudo é ilusão.

Paula Pereira

80
ILUSTRAÇÃO 15 ANANSI, DAVID CHORÃO

81
UM LUGAR MARAVILHOSO

Este é um lugar maravilhoso,


Situando entre o mundo e a saudade
Onde se escuta as estrelas
E a lua segreda palavras doces.

Sento-me em frente do mar


Olho para longe, para o horizonte,
Onde os barcos naufragam
Naquela espuma brilhante.

Aqui fico.
Gosto que escureça aqui.
Só aqui os sonhos fazem sentido
Mesmo sem ti.

É um lugar onde a noite


Me faz lembrar quem eu sou,
Sem escutar o que me pedem
Sem importar o que dou.

Paula Pereira

82
PROSA

83
A HISTÓRIA DE UM AMOR OU TALVEZ O AMOR DE UMA HISTÓRIA

Sentei-me nas escadas e observei o que me rodeava. Assustei-me com um


pássaro que passou rapidamente por mim, a esvoaçar e notei pela primeira vez
que, apesar de eles nos poderem assustar ou deixar cair as necessidades em
cima de nós, apesar de eles conseguirem voar tão alto que mal os consigamos
ver, apesar de eles quase voarem na direcção dos nossos olhos e nos
assustarem... Quando olhamos para eles, e vemos a sua beleza... É como eu
me sinto em relação a ti.
É difícil explicar a perfeição. Mas é possível caracterizá-la com os cinco
sentidos. E neste caso, caracteriza-te um perfume doce, intenso e
inesquecível, uma pele suave e aconchegante ao toque, a tua voz possui um
tom calmo e ponderado, como se medisses cada palavra que dizes. A tua boca
é o portal da percepção do sabor das substâncias e todas elas são agradáveis
e doces. E por último, a visão. Um todo de ti. És um deus, personificado num
simples e comum humano ou talvez uma criatura que fez um pacto com o
diabo, vendendo a alma em troca de uma beleza irreal.
Cada memória, acontecimento, situação, notícia, olhares e sentimentos não
cabem numa simples folha de papel. Já é tanto. Contudo não me farto, não me
enjoo e, apesar de não ser compreendida, não me importo, não quero parar
nunca, não quero conhecer o verdadeiro fim.
Quero continuar nesta história que me traz força e vontade, sorrisos, alegria e
felicidade e motivos para acordar e sair todos os dias da minha cama e saber
que alguém neste mundo pensa em mim e me ama. Ou uma enorme explosão
de sensações e sentimentos. Contudo, esta história e não outra.
Não pedirei muito, só liberdade e verdade.
Liberdade para, talvez um dia, correr à chuva de mão dada contigo, vestida
com um casaco que me faça muito gorda e parar debaixo de uma ponte com a
tua mão no meu coração e a minha no teu, sentido as pulsações alegres e
eufóricas e verdade para que não aconteçam coisas más que corrompam este
estado puro ou me desiludam permanentemente.
As minhas saudades são constantes, mesmo nos três minutos após a tua
companhia. Nunca me farto de ti. Nunca me farto dos teus abraços apertados
nem das histórias que me contas, mesmo que sejam repetidas. Nunca me farto
de nada que venha de ti. Quero-te aqui, agora, para sempre, até ao fim.

Carolina Pena

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ILUSTRAÇÃO 16 SCRAT EGYPTIAN, PEDRO FERREIRA

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CASAL DORMINDO

Conta-me uma história. Conta-me uma história para eu adormecer. Leva-me


até a um mundo de fadas cor-de-rosa, nuvens de algodão e móveis de açúcar
caramelizado.
Hoje apetece-me enroscar no teu colo com uma manta e ouvir-te a contar
histórias de mil amores desencontrados onde o sofrimento é a sua principal
característica. Onde os amantes não chegam sequer a estabelecer contacto
físico, ou noutros onde o seu amor carnal é minuciosamente descrito pelos teus
lábios saborosos que tantas vezes me levaram à loucura.
Quero-te aqui e agora, sinto-me tão pequenina e tão criança quando estou
contigo, nesta casinha que construímos com tanto amor.
Começas então a narrar: "Um dia encontrei uma rapariga que me disse que
queria ser livre...". Deixo de te ouvir, a tua voz calma e pura embala e faz pesar
as minhas pálpebras. Aninho-me junto a ti pensando quanta sorte eu tenho em
te ter. "Pois tens, muita" - sempre tão convencido e perfeitamente consciente
daquilo que és.

Carolina Pena

86
COPO COM AZEITONA

Em cima da mesa vejo um copo meio cheio. Com três pedras de gelo lá dentro.
Um copo de vodka preta, cilíndrico. No ar soa música árabe. Pessoas acendem
o seu cigarro na noite escura e fria. Passo por todas elas, apática, sem
conseguir tirar os olhos do chão, não ouço o que dizem, também não interessa.
Passo por elas e ninguém me vê. Continuo a caminhar, a caminhar, a
caminhar.
Agora estou perante uma praia de areia branca e sopra um vento fortíssimo
que me despenteia o cabelo encaracolado e me assobia nos ouvidos. Parece
que pede ajuda. Outrora guerreiro selvagem, um índio que combateu quando
os portugueses aqui chegaram. Nem a caipirinha me safa. Isto não é nada.
Outro cenário. É de noite. Nesta altura os meus dias eram cor-de-rosa e
forrados de veludo vermelho. E agora? Agora não sou nada. Não vivo. Existo.
São diferentes sabias? Acho que me vou pelo agradável martíni com sumo de
ananás, doce e lascivo. Não falha.
Ainda a caminhar. Deparo-me com uma sala vazia. Entro e dentro desta sala
apenas se encontra uma mesa com um jarro de sangria em cima. Até não é má
mas... Bebo-a. Curiosamente não me lembro de como éramos nessa altura.
Cada um para seu lado deduzo eu. Lamentável.
Continuo a caminhar. Chego a um sítio interessante. Uma… taberna? Sim, a
dos estudantes. Todos aqui vêm comemorar, festejar, ocupar o tempo que na
nossa cidade custa a passar à noite. Vai um. É bom. Vai outro. E outro. E
outro. Perco-lhes a conta, mas são baratos, quem é que não bebe? Um brinde
à alegria que a paixão traz temporariamente. E ingere-se outro abafadinho.
A noite é outra agora, como se caminhasse do passado, passasse pelo futuro e
voltasse ao presente. Várias dimensões. E tequilla. O nome parece ser chique,
quando pronunciado correctamente. Mas o sabor de chique não tem nada. Não
gostei. Contudo deixou-me a garganta quente. Quem me dera ter este quente
nas horas de maior frio como estas.

Carolina Pena

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ILUSTRAÇÃO 17 GIRAFFA, DAVID CHORÃO

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ESCREVER É ISTO

-Papá, o que é escrever? – pergunta-me o meu pequeno rebento de quatro


anitos, cabelo desalinhado e olhos verdes. Observara-me a tentar acabar o
meu romance histórico. O Sol entrava pela janela, reflectindo os seus raios na
mesa, na jarra de flores e no Manuelinho. Tomei-o no meu colo e disse-lhe:
-Escrever, meu filho, é uma arte que parte de nós. Os teus professores ensinar-
te-ão a ler e a juntar letras e sílabas de maneira a fazeres frases. Mas a escrita
parte de ti. És tu que a aprendes sozinho. E quando souberes escrever,
escreverás todos os dias. Não só recados, cartas, mensagens ou a matéria do
quadro. Escreverás quando quiseres, quando tiveres necessidade disso.
Escreverás muito ou pouco, coisas boas ou más, com qualidade ou não e com
ou sem sentimentalidade. Escreverás quando estiveres muito feliz ou muito
triste, quando estiveres zangado ou contente. Escreverás para os outros ou
para ti próprio. A escrita é uma arte que vais amando cada vez mais ao longo
da tua vida.
-Então é por isso que escreves papá? Porque amas escrever?
-Sim. Bem me vês escrever todos os dias, horas e horas a fio. Para além de
ser um prazer, é o meu trabalho.
-E porque é que as pessoas lêem papá?
-Lêem pelas mesmas razões por que escrevem: porque é bom, faz bem, as
pessoas ficam informadas. Também se lê por prazer e por gosto.
-Papá, gostas mais de escrever do que de mim e da mamã?
-É claro que não, - agarrei-lhe o rosto com ambas as mãos e olhei-o nos
profundos olhinhos inocentes - amo-vos acima de tudo, da escrita e até da
minha própria vida. Tu e a tua mãe são a razão da minha existência.
Ele abraçou-me e exclamou muito alto, dando de seguida um saltinho do meu
colo para o chão:
- Obrigada pela explicação papá! Quando souber escrever, escreverei uma
história sobre um menino com uma mãe querida e com um pai escritor. Amo-te
papá.
Vi-o sair do escritório, aos pulinhos, como se lhe tivesse contado o mais
precioso e maravilhoso segredo do mundo.

Carolina Pena

89
LUA DE DUAS VIDAS

Olho através da janela, mordiscando distraidamente uma maçã. Lá fora o sol


de Outono espreita timidamente uma nuvem, olhando-me. Consigo sentir o
calor que emana. O ar cheira a castanhas assadas e lareiras acesas. Estou a
pensar em ti outra vez, ou melhor, dou por mim a fazê-lo. Qualquer momento
serve para tal.
Olho para a secretária onde trabalho e uma moldura com uma fotografia de nós
dois juntos repousa com a serenidade de sempre. Olho-a e lembro-me daquele
dia tão intenso que passámos juntos na praia. Éramos jovens, ainda na flor da
idade dos vinte anos. Rio-me interiormente por me lembrar de como me
querias tanto mostrar aquela praia da tua infância que dizias ser tão linda e me
fizeste descer uma falésia em péssimas condições só com pedras e terreno
íngreme. Fiquei tão cansada ao descer aquilo tudo!
O mais irónico foi a nossa chegada lá abaixo. A praia fora engolida pela água e
não havia areia, só pedras no chão. Estava exausta e por mim ficávamos ali
mesmo. "Não, disseste tu, "Vamos a outra praia". Voltámos a escalar toda a
falésia. O suor escorria-nos pela cara e no ar apenas se ouvia a nossa
respiração afogueada.
Depois de termos andado uma hora no meio da vegetação rasteira e selvagem,
meio perdidos e à procura de uma praia, debaixo do sol das duas da tarde,
achámos finalmente uma, por onde caminhámos de mãos dadas, com a água a
refrescar-nos os calcanhares. A praia estava deserta naquele local onde nos
encontrávamos. Ao passar um barco ao longe, no horizonte, tu olhaste-me
ternamente: "Se eu estivesse naquele barco e te visse aqui, diria que eras uma
sereia".
Foi um dia e uma noite cheios. Lembro-me do almoço e do resto da tarde com
o vento a despentear-nos. Lembro-me do gelado que partilhámos, sentados
num banco ao lado de dois velhotes que tinham as mãos dadas. Lembro-me de
percorrer as ruas daquela cidade de mãos dadas contigo e me sentir a mulher
mais feliz do mundo. Olhar para as outras pessoas e saber que elas me viam
ali, contigo. Sentir a liberdade de amar e ser amada.
A noite caiu então. E contigo fui ter novamente.
A praça... Apinhada de turistas, estrangeiros, estátuas humanas, bancas de
tatuagens, acessórios e tudo o que se possa imaginar. E tu ali, lindo, olhando-
me, destacado da multidão.
Percebi logo que eras rapaz de grandes caminhadas e nesse mesmo dia,
andámos mais umas centenas de metros até à melhor praia de lá. Outra coisa
nova. Nunca tinha estado na praia com ninguém, à noite... A lua estava cheia
naquela noite e como som de fundo, o mar sussurrava segredos e mil verões.
Juntos, perscrutámos a Lua, apaixonados. Eu, com a cabeça a repousar no teu
peito definido.

90
Hoje, olho para este retrato e imediatamente esse dia salta-me para a frente.
Hoje, casada contigo, com cinco filhos, como sempre me disseras que querias
ter.
E continuo feliz, apaixonada, e a perscrutar luas todas as noites contigo a meu
lado, na minha cama, na minha vida.

Carolina Pena

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ILUSTRAÇÃO 18 MAD HATTER, PATRÍCIA MATONO

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O BEIJO DO VAMPIRO

O frio da noite sente-se no seu corpo sempre quente. A noite é fria, sem
qualquer ser humano na rua. Hoje é Lua Nova. Por isso ele apareceu.
Ao virar da esquina, surge, imponente. A sua figura, alta e nobre, com uma
capa negra e olhar matador. Exactamente aquilo que se quer.
Está tanto frio que este corta como facas afiadas.
-Vem cá acima - sussurra-lhe ela, da varanda, baixo.
-Vem tu até mim, estou fraco demais para usar os meus poderes de levitação
agora.
-Está bem, espera um bocadinho, esperas?
- Claro.
Ela corre até ao interior de sua casa. O seu pai fuma um charuto cubano e a
sua mãe descansa no sofá, lendo uma revista de decoração interior. Passa por
eles como se fosse uma sombra. Já no quarto, abre a janela da casa de banho
e trepa até ao jardim. Estes movimentos produzem ruídos secos. O coração
dela bate descompassadamente, ela espera que não se ouça.
Já na rua, corre até ele. Nos seus braços, aquilo parece um sonho. Ele
envolve-a na sua capa negra, abrigando-a e beijam-se demoradamente. Matam
as saudades que aparecerão nos próximos dias. Beijam-se como se fosse das
últimas vezes.
- Não me posso demorar, se os meus pais me descobrem aqui...
- Schh - coloca-lhe o dedo nos lábios e toma-a novamente. Permanecem assim
um bom bocado, o vento assopra na direcção deles. Aquele momento parece
durar depressa demais. Nesta cena, um intenso e forte, doce aroma
permanece no ar. Vem dele.
- Tenho que me ir embora.
- Amo-te.
E ele encosta os seus lábios gelados à sua pele branca e muito suave.

Carolina Pena

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ILUSTRAÇÃO 19 LOBISOMEN A UIVAR, PEDRO FERREIRA

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SÃO PETERSBURGO: ONDE TUDO É POSSÍVEL

Estávamos na Rússia, em São Petersburgo, no ano de 1899. Pleno Inverno,


um frio cortante, a respiração embaciava os vidros das casas mal aquecidas e
um manto branco de neve por todo o lado.
Um grupo de amigos e eu saímos na noite de vinte e sete de Dezembro para o
perfeito e ideal ajuste de contas. Encapuçados, com casacos negros e grossos,
vestimos as luvas de cabedal e saímos para a noite gelada. Eu distinguia-me
entre todos eles. Única mulher, com saia comprida e botas de pele.
A noite estava escura como breu, não se via viva alma e os nossos passos iam
sendo desenhados na neve suja de restos de coque. Não trocámos palavras
entre nós. Cada um sabia o que fazer, cada um tinha o seu papel e a cada um
cabia uma acção.
Éramos oito e na rua apenas se ouviam os nossos passos e respirações
aceleradas: a adrenalina subia a cada minuto que passava.
Após vinte minutos a pé em total escuridão, chegámos junto da pequena casa.
Da janela, uma vela fazia as vezes de iluminação e conseguia-se distinguir
alguém a escrever. Uma sombra pouco nítida. Era ele.
E em silêncio, abri a porta com o meu instrumento próprio para o efeito (que
ironia! fora ele que mo construíra e eu, neste preciso momento, estava prestes
a vingar-me). A porta abriu e todos nós deslizámos lá para dentro e subimos as
escadas de madeira velha.
E tudo começou. Ou seria melhor dizer... Tudo acabou?
Tudo foi destruído, a tudo foi pegado fogo e todos os móveis quebrados e
postos fora do sítio. As chamas envolveram rapidamente o quarto, a cama que
não era mais que um monte de palha e apenas o tinteiro e a folha que ele
escrevia com a pena branca restaram de tamanha desgraça.
E nós? Nós escapámos da nossa própria sorte e com ele arrastado. Nicolau
colocara-lhe um capuz na cabeça e uma mordaça para evitar possíveis gritos
que chamassem à atenção.
Para a neve o trouxemos, junto ao lago onde tantas vezes caminháramos
resignados com o pouco que possuíamos e com a vida que levávamos.
Contudo ainda amigos. Mas não agora, tudo isso fora destruído.
Naquela noite gelada, com quatro graus positivos, vi finalmente a minha
vingança realizada.

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Eles sentiam a mesma raiva que eu e mostraram isso fisicamente. E ele foi
espancado, com murros, socos, pontapés, incapaz de se defender e sozinho,
apercebendo-se o porquê de ali estar. Fredrick tirou-lhe finalmente a mordaça
da boca, agora ensanguentada e encheu-a de neve até não haver espaço. Ele
esperneou. Colocou-lhe mais neve que, por esta altura, devia estar a arder-lhe
terrivelmente na garganta, desfazendo-lhe as gengivas aos poucos, torturando-
o.
Olhei então uma última vez em volta. À beira do lago jazia, não só, o corpo
dele, estropiado e definhado, como uma gigantesca poça de sangue encarnado
e grosso que se estendia lentamente até ao rio, com uma vagareza
melancólica.
Foi então que eu disse: "Acabem com isso".

Carolina Pena

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ILUSTRAÇÃO 20 LIVE4FUN, DAVID CHORÃO

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SENSUALIDADE E LÁBIOS VERMELHOS

Chegar a casa. Sair do carro. Procurar as chaves do apartamento na mala


preta que se confunde com uma selva perdida. Nem o facto de ter imensos
porta-chaves do Brasil, Praga, Paris e Ibiza me ajudam a encontrar as chaves
de casa. Achei.
A casa cheira a rosas. As que o Vasco me mandou ontem para a empresa.
Também há os antúrios encarnados do João Maria, as orquídeas que o Kiko
me ofereceu naquele jantar e também os lírios do Manuel. Não fiz anos, mas
os homens insistem em mandar-me flores todas as semanas, de maneira que
tenho sempre a casa cheia delas, a cheirar bem e muito colorida. Nem o meu
cadastro os demove. É o meu aspecto exterior que os atrai, juntamente com as
minhas formas e as provocantes roupas que uso. Sempre me vesti muito bem
e soube tirar partido do meu corpo. Nunca precisei de fazer dietas ou deixar de
comer o que mais gosto, apenas exercício desde pequena.
E agora, na melhor idade que uma mulher pode ter, vinte e sete anos, sinto-
me sensual. Olho-me ao espelho e gosto do que vejo, vejo-me reflectida, sem
uma única ruga, alta, magra e esbelta. A minha pele é muito branca e não
gosto de me bronzear. Os meus olhos são azuis-claros, tenho pestanas longas,
pernas e peito definidos e bem formados. O meu cabelo é loiro, muito ondulado
e comprido. Gosto do meu aspecto. Graças a ele consigo sempre o que quero.
Desde miúda que sempre fui muito bonita. Na adolescência os rapazes não me
largavam e tive muitos namorados. Nunca precisei de usar óculos, aparelho ou
o que quer que fosse, toda a gente me considerava a beleza representada em
pessoa, chamavam-me anjo.
Hoje continuo com essa beleza ainda mais acentuada. Não tenho namorado,
sempre gostei da minha independência e de poder chegar a casa às horas que
bem me apetecesse sem ter que me preocupar em fazer jantar para mais de
uma pessoa. Não penso em casar, nem em filhos, nem em relacionamentos
longos.
Tenho um emprego óptimo e estável. Ganho bem e gosto do que faço: sou
vice-presidente de uma empresa de cosméticos femininos, o que me permite
ter um apartamento luxuoso na zona Alta de Lisboa.
O telefone vibra, é uma mensagem da Madalena. Quer ir beber um copo ao bar
Absense. A Madalena é a minha melhor amiga. Passei uns meses com ela na
prisão, ambas matámos alguém. Ela o marido, eu o meu namorado da altura. O
Bernardo não era para mim. Amei-o mais do que aquilo que posso afirmar, mas
ele, tal como eu, gostava da sua independência, até demais. O adultério e ele
não se separaram e a gota de água foi quando, mesmo depois de me ter traído
com cinco mulheres, soube que desta vez passara para o sexo oposto. Não
aguentei. Quando ele chegou a casa nessa mesma noite, um tiro do revólver
preto do meu pai a quem eu o roubara, ainda adolescente, ouviu-se no ar.
Mas a prisão apenas me passou de raspão pois tive condições de pagar ao

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melhor advogado da Califórnia que viveu em Portugal e me conseguir safar de
passar uns bons anos na cadeia.
A Madalena, apesar de ter morto também um homem, o seu homem, foi
ligeiramente diferente. Ela é bastante influenciável para além de que acredita
em horóscopos e é fã de astrologia, leitura de mãos e cartas que predizem o
futuro.
O Ricardo, marido dela, tratava-a mal. Passava os dias em frente à televisão a
beber cerveja e a comer tremoços e, para chamá-la, gritava “Anda cá preta!”,
mas ela, por o amar, corria até ele, dengosa e pronta a servi-lo.
Acontece que, um dia, ao voltar da sessão com a Madame Gisele, esta dissera
a Madalena que, nessa mesma noite, ela cometeria uma loucura excitante e
entusiasmante, que mudaria para sempre a sua vida e que nos próximos
tempos ela reagiria mais sensivelmente a todo o tipo de coisas. Factos que ela
interpretou bastante mal. Quando o marido dela exige a sua presença à sala
gritando “Anda cá preta! E traz-me outra cerveja, depressa!”, a Madalena não
aguentou, e com o sangue a ferve-lhe nas veias, um brilho malicioso no olhar e
uma cólera frenética nunca antes sentida, agarrou a faca com que estava a
cortar o pão e espetou-a directamente no coração do marido, que teve morte
instantânea.
Demo-nos às mil maravilhas pelas nossas histórias idênticas, tínhamos estilos
de vida parecidos. Paguei-lhe o advogado e saímos em liberdade, não me
perguntem como. Hoje somos como irmãs.
Fazem-se então dez horas da noite no meu relógio de cuco. Dirijo-me então à
casa de banho para um longo banho com direito ao meu pequeno luxo
particular: os sais e a espuma. No caminho vou desapertando a camisa
vermelha e a saia que vão caindo no chão frio. Pergunto-me quem será que
hoje a Madalena vai levar para o pub. Antes de entrar na banheira, dirijo-me
primeiro ao quarto verificar se o meu bem mais precioso se encontra em
condições de ser novamente utilizado. Sim, perfeito. Guardo então a arma,
embrulhada a tecido de veludo negro. Precisarei dela hoje.

Carolina Pena

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ILUSTRAÇÃO 21 FOSTER HALLOWEEN, DAVID CHORÃO

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INFERNO DEPOIS DA VIDA

O céu achava-se escuro e sombrio. Chuva caía serenamente, batendo


suavemente na janela. Limpando as lágrimas ao lenço pela quinquagésima
vez, saiu do quarto. Era o dia de enterro da sua filha.
Desceu as escadas. Sentado no sofá estava o seu marido. Nos momentos
difíceis, ele costumava sorrir-lhe para que o peso em cima do coração dela se
aligeirasse. Mas hoje, nem isso ele foi capaz de fazer.
- Vamos? – perguntou, crua e simplesmente.
- Vamos. – respondeu ela, de igual modo.
E saíram da confortável casa para o doloroso frio invernoso. A mudança de
temperatura, em tempos normais, teria feito com que eles tremessem dos pés
à cabeça. Talvez até o tenham feito, mas nem notaram… Ou talvez estivessem
já tão gélidos por dentro, que não notaram diferença nenhuma. Limitaram-se a
entrar no carro e, sem palavras, o marido guiou até à morgue.
À porta, estava o senhor padre, esperando por eles. O que quer que ele tenha
dito, ela não ouviu, mas também não lhe interessava. Era apenas um daqueles
jovens indecisos que tinham uma fingida epifania e decidiam dedicar a sua vida
a Deus e a Cristo. O que quer que ele pudesse ter dito, não a animaria, não lhe
chegaria ao coração, não podia trazer a sua filha de volta. De cabeça baixa,
seguiu os dois homens, enquanto enleava as mãos nas alças da mala.
- Está aqui. – foi a primeira coisa que ela realmente ouviu o padre dizer. Este
tinha acabado de abrir uma porta e, com o braço, incitava-os a entrar.
Era uma sala pequena e mal iluminada. As poucas janelas deixavam apenas
ver dois sofás pequenos e poeirentos e uma comprida mesa. Por cima dessa
mesa, onde a pouca luz parecia incidir em quase toda a sua totalidade,
encontrava-se um caixão.
Logo as lágrimas se lhe assomaram aos olhos. Pegou no lenço que tinha na
carteira e limpou-os, respirando lentamente para controlar os soluços. Por
momentos, pareceu-lhe que os seus pés não tinham força para aguentar com o
seu próprio peso, sentindo-se prestes a cair para o lado, mas encostando-se à
parede atrás dela, manteve-se direita.
- Creio que será melhor que… - começou o padre, muito nervoso – um dos
senhores possa, enfim, identificar…
Não foi preciso dizer mais nada. Sabendo bem que ela não era capaz, o marido
aproximou-se do caixão e abriu-o lentamente. Espreitou lá para dentro, muito a
medo. Vendo que nada aconteceu, empurrou a tampa para o lado, para poder
ver a filha como deve ser, uma última vez.
Como nunca tinha notado no quão bonita era a sua filha? Nunca tinha reparado
bem nos seus longos cabelos negros e lisos, nas suas longas pestanas, na sua
delicada pele, no seu nariz perfeito e na sua boca fina… Nunca tinha reparado
no quão importante ela era para ele.
Sabia que dali a poucos minutos, ia estar a assistir ao momento em que
aquele caixão seria colocado num buraco previamente cravado na terra e,
depois, soterrado. Mas como? Porquê? Ela não se mexia, era certo. Mas ela
parecia tão viva…
Só quando o padre pigarreou ele tomou novamente consciência do que
estava a fazer.
- Sim… - disse ele, meio desvairado - Não há dúvida. É ela.
Pigarreando novamente, o padre disse:

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- Então, se for mais fácil para vocês, é melhor esperarem lá fora. Eu chamarei
alguém para levar o corpo para podermos dar início ao enterro.
Ele virou logo as costas, mas ela quis aproximar-se um pouco mais. Podia ser
difícil, mas aquela seria certamente a última vez que ia ver a filha.
- Com a sua permissão, minha senhora.
Sem qualquer pingo de tacto ou compreensão, o padre começou a fechar o
caixão. Quando já quase não podia ver um cabelo que fosse da filha, teve a
certeza de que ela tinha aberto os olhos.
Pregou um guincho.
- O que se passa? – o marido correu logo para ela.
- Ela abriu os olhos! A Íris abriu os olhos! – quis começar a correr para o
caixão, mas o marido impediu-a, envolvendo-a com os braços.
- Aida, chega. – pediu ele – Não estás já a sofrer demais?
- Mas eu vi! – guinchava Aida, tentando soltar-se dos braços do marido – Eu
via-a abrir os olhos. Acredita em mim, Gabriel!
O padre não sabia o que havia de fazer. Meteu-se à frente do caixão, como
se o protegesse da mãe extremosa que parecia querer abri-lo novamente.
Repentinamente, Aida calou-se e parou de se debater.
- Ouçam. – sussurrou ela.
Sem saberem bem o que deveriam ouvir, tanto Gabriel como o padre
pararam até de respirar.
Efectivamente, vindos do caixão, ouviam-se umas pancadas roucas e
abafadas.
- Ouviram?! – Aida queria soltar-se dos braços do marido e correr para o
caixão, mas Gabriel foi ainda mais rápido.
Estava prestes a abrir o caixão, quando o padre, nervoso, se pôs à frente:
- Mas porque querem sofrer ainda mais? – perguntou ele, não querendo que o
caixão se voltasse a abrir - Não acabou de ver o cadáver da sua filha?
Sem pensar no que fazia e tomado por uma fúria tal, Gabriel afastou o padre
da frente do caixão com um brusco empurrão, mandando-o ao solo.
Aida também já se encontrava ao lado do marido e, juntos, levantaram a
tampa.
- Mãe! – Íris lançou-se aos braços de Aida, que começou a chorar rios de
lágrimas.
- Minha filha!
Gabriel também se juntou ao abraço, derramando lágrimas silenciosas.
- É uma maravilha! – exclamou Aida.
- É extraordinário! – exclamou Gabriel.
- É um milagre! – exclamou o padre, ainda no chão. Assim que conseguiu
mover-se novamente, levantou-se e correu da sala para fora, bradando às
paredes a mesma frase vezes sem conta.
Estariam a sonhar? Naquele momento, era o que aquelas duas almas de pais
dedicados mais temiam. E se acordassem e tudo aquilo não passasse de um
sonho? Se a sua filha tivesse mesmo morrido? Se aquilo que sentiam entre os
braços não passasse de uma ilusão?
Mas Íris voltou a falar:
- Não quero voltar para lá, não quero! – e soluçava descontroladamente,
agarrada a Aida e a Gabriel.
- Nós não deixamos, filha. – dizia a mãe – Não deixamos. Ninguém te vai levar
para longe de nós, agora...

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*********

Acordou e saltou da cama, sorrindo de maneira tal que lhe fazia doer as
bochechas. Olhou-se ao espelho e passou as mãos pelo rosto - estava viva!
Era de carne e osso, e não um espírito sem matéria, como tinha sido há pouco
tempo... como ainda algumas pessoas eram...
Logo o sorriso lhe desapareceu. As mãos foram-se afastando da cara até
acabarem paralelas às ancas.
Como podia ela sorrir? Tanta gente estava a sofrer... Gente essa que a
ajudara a fugir, tão aterrorizada ela estava. Como o avô, a avó, o pequeno
primo que tinha morrido com apenas sete anos...
Mas então, as mãos voltaram à cara e Íris esbofeteou-se. Não podia
desanimar! Não ia servir de nada! Teria de pensar numa maneira de tirar todos
os que pudesse daquele sítio horroroso. Mas o que aconteceria depois?
Regressariam aos seus corpos decrépitos e decompostos?
Um arrepio percorreu-a ao pensar nisso.
Ainda assim, decidiu que não podia ficar fechada em casa. Queria aproveitar
a vida como nunca tinha pensado em aproveitar!
Correu para a janela e afastou as cortinas energicamente. Logo os seus olhos
se ressentiram com uma repentina emissão de luz intensa. A essa seguiram-se
várias outras e Íris teve de proteger os olhos com o braço, cambaleando para
trás, acabando por tropeçar no lençol que arrastava no chão, e caindo de
costas.
Com muito cuidado para não deixar sequer um fio de cabelo aparecer à
janela, lentamente voltou a juntar as cortinas. Só então espreitou lá para fora,
por entre as mesmas.
Lá fora encontrava-se um bando de pessoas cochichando e agarradas
religiosamente às suas câmaras fotográficas. Ao fundo da rua apareceu uma
carrinha de uma estação televisiva. No meio das pessoas, ela conseguiu
distinguir o senhor jovem padre.
A campainha soou pela casa, o que pregou a Íris um susto de morte, que a
fez dar um pequeno salto.
Gatinhando, saiu do quarto e foi tentar perceber quem era.
Tocaram novamente, desta vez prolongando o toque.
Do burburinho exterior, Íris só conseguiu compreender frases como:
- Só queremos fazer algumas perguntas! Não demora nada! Uma fotografia
para o jornal! Uma entrevista com a menina!
Gabriel andava apressadamente pela casa, fechando janelas e correndo
cortinas. Aida acabava de pousar o telefone com uma brutalidade excessiva e
lançando ao aparelho um olhar de enfado, como se o desafiasse a tocar de
novo. O que efectivamente aconteceu. Nesse momento, Gabriel conseguiu
chegar primeiro, colou o microfone à boca e berrou:
- Não! - e desligou o telefone da corrente, puxando o fio com violência e
atirando tudo ao chão, incluindo a pequena mesa onde o objecto se
encontrava.
Aida ficou chocada a olhar para a barafunda no solo e depois olhou para o
marido, que esfregava o pescoço e a cabeça, como que a acalmar-se. A
técnica parecia estar quase a fazer efeito, quando a quinta sinfonia de
Beethoven se fez ouvir na sala. Gabriel tirou lentamente o telemóvel do bolso e

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ficou a observar o visor, enquanto a música continuava, mantendo alguma
tensão.
Como se não estivesse a agir por ele próprio, Gabriel rejeitou a chamada e,
sem sequer desligar o telemóvel, abriu a tampa da bateria e tirou-a, bem como
o cartão, que foram parar ao lado da mesa do telefone.
Cautelosamente, Aida aproximou-se do marido e colocou os braços em roda
dele.
- Temos de proteger a Íris. – foi tudo o que o marido proferiu.
- Eu sei...
Gatinhando de volta para o quarto, Íris deixou-se ficar encolhida e encostada
à cama. Como é que a notícia tinha corrido tão depressa? Como é que aquelas
pessoas horrorosas tinham a coragem de lhe pedir para que lhes contasse o
que tinha sofrido enquanto estivera morta, se nem os pais lhe haviam pedido
tal?
De cada vez que se lembrava daquele lugar medonho começava a tremer
como se ainda lá estivesse. Não queria voltar para lá. Não queria lembrá-lo.
Queria que a deixassem em paz...

*********

Todos os dias eram iguais. Nunca podia sair de casa, não podia receber
chamadas de ninguém e os pais andavam irritadiços.
Mais do que uma vez os polícias foram obrigados a intervir e a afastar todos
os jornalistas, paparazzi e curiosos, mas estes voltavam a rondar a casa, como
abelhas à volta do mel...
Nos primeiros dias tentava fingir-se feliz por estar viva, mas agora, nem disso
Íris era capaz. Depois de acordar, descia as escadas a passo de caracol, toda
despenteada e cabisbaixa, indo sentar-se à mesa, pronta a tomar o pequeno-
almoço. Ao olhar para o prato com meia fatia de pão e para o copo meio cheio
de leite, a mãe dizia-lhe que tivesse paciência, porque o pai ainda não tinha
conseguido sair de casa para fazer compras. Ela comia vagarosamente,
voltava para o quarto e, de lá, ficava a observar o mundo lá fora, que ela tanto
queria poder aproveitar, através de umas cortinas meio opacas, que
deturpavam todas as cores.
Gostava de poder mandar toda aquela multidão para bem longe dela, mas
como podia fazer isso? Os idiotas quase se atropelavam para chegar à porta!
Ah, chegaram os polícias. Mandam-nos dispersar. Alguns vão a bem, outros
não. Au! Um deles deu com a máquina fotográfica na cara de um polícia, que
caiu estatelado no chão. Ai, que o amigo dele não gostou... Pancadaria.
“Sempre a mesma coisa...”, suspirou Íris.
Franziu o sobrolho quando avistou o padre a tentar separar duas crianças à
bulha. Lá estava ele outra vez, como se não fosse facílimo distinguir-lhe o cor-
de-laranja avermelhado do cabelo a quilómetros de distância... Há poucos dias,
tinha conseguido passar por entre a turba de gente e chegado à porta, pedindo
para falar com Íris. Mas rapidamente, tinha sido empurrado dali para fora por
jornalistas furiosos...
Desviou o olhar da janela e deitou-se na cama, fitando o tecto, como se
esperasse que ele a pudesse ajudar.
Ansiava por deixar aquela rotina, por poder falar com mais alguém, por poder
sair de casa. Mas quando chegaria esse momento? Alguma vez chegaria?

104
*********

Já se tinham passado cerca de oito meses desde que Íris havia


milagrosamente ressuscitado e ela ainda não tinha podido sair de casa.
As coisas já tinham acalmado, o telefone já estava ligado à corrente outra vez
e ela já tinha falado com alguns familiares e amigos.
Ainda assim, ela sentia uma sede inexplicável de ar puro, de rebolar na relva,
de comer um gelado sentada descansadamente numa esplanada, de descobrir
formas nas nuvens, de apanhar sol e chuva na cara, e todo um conjunto de
muitas outras actividades.
Olhando através da janela do quarto, reparando que não havia ninguém a
rondar a casa, Íris teve de morder o lábio para controlar a enorme vontade que
tinha de sair porta fora.
Ao voltar as costas à janela, pousou os olhos uma t-shirt com capuz. Era
perfeita para lhe esconder a cara. Se ela a pusesse e fosse até ao jardim num
pé e voltasse no outro, ninguém ia reparar, ninguém a iria interceptar, os pais
não iam perceber...
- Íris, querida! – quando estava prestes a alcançar a blusa, a mãe chamou-a –
Anda almoçar.
Ela ficou a meio do movimento, com a mão pendendo acima da blusa. Depois
de ficar uns momentos a olhar, revolveu descer para comer com a família.
Nos primeiros dias depois de ter ressuscitado, os pais não paravam de a
abraçar e beijar enquanto choravam baba e ranho, mas pouco antes daqueles
tempos, eles haviam começado a habituar-se novamente à sua presença,
como algo garantido. Já não a abraçavam de cinco em cinco minutos, já não
choravam de alegria sempre que olhavam para ela...
Íris não sabia se se sentia contente ou não. Por um lado, achava as antigas
reacções deles talvez um pouco exageradas. Por outro, aquelas suas acções
levavam-na a pensar como estariam os pais, naquele preciso momento, se ela
não tivesse voltado à vida. Depois de oito meses estariam já a voltar às suas
rotinas?
- O que se passa, querida? Porque não comes? – perguntou o pai,
preocupado, ao ver que Íris se limitava a brincar com as ervilhas, fazendo-as
rolar no prato com a ajuda do garfo.
- Hum? Nada, pai. – respondeu ela, devorando uma garfada cheia – Só não
tenho assim tanta fome.
- Achas que está doente? – inquiriu logo Aida, olhando para o marido,
ansiosa.
- Não, mãe. - Íris sorriu. Talvez não. Os pais ainda deviam estar de rastos
com a sua morte - É normal, de vez em quando, uma pessoa não ter fome.
Mas nem Aida nem Gabriel a ouviam. Conferenciavam sobre a saúde de Íris,
sobre o quão débil ela era, e o quão mais seguro era mandá-la para a cama e
ver se tinha febre.
- Não é preciso. Não estou quente. – dizia Íris, achando que os pais estavam a
exagerar novamente.
- Será que está com uma gripe outra vez?
- Mãe...
- Talvez não seja uma gripe... Pode ser só uma constipação...
- Pai...

105
- Onde é que eu guardei o termómetro?
- Ouçam-me! – gritou Íris, levantando-se e batendo com força na mesa – Não
tenho febre, não tenho gripe e não tenho nenhuma constipação. E para que
fiquem a saber, também não tenho fome, por isso, vou para o meu quarto. E
não vale a pena irem lá, porque vou dormir um pouco. Estou cansada e é tudo
o que eu quero agora, com licença.
Afastou-se rapidamente, tentando não olhar mais para a cara de chocados
dos pais, em especial para os olhos lacrimejantes da mãe. Tinha sido
demasiado brusca, sabia disso e até antes de chegar ao quarto, já lamentava
ter falado assim com os pais. Mas todos aqueles meses dentro de casa
estavam a pô-la doida. Pensou ainda em voltar para trás, mas não o fez,
apesar de saber o motivo da preocupação. Eles não eram culpados de nada,
ainda assim, sentiam-se como tal no que rodeava a morte da filha... Ela tinha
percebido isso nos últimos meses. Mas como podiam eles pensar tal? Nem ela
se lembrava do que tinha acontecido...
Não pensou duas vezes. Quando chegou ao quarto e fechou a porta à chave,
pegou na t-shirt e vestiu-a. Colocou o capuz e espreitou pela janela. Ninguém à
vista. Com algum esforço abriu-a (há quanto tempo não seria ela aberta?) e,
com cuidado, saltou para a grande árvore que tinha no jardim. Dessa árvore,
desceu para o chão e começou a correr.
Correr! Já não se lembrava de como era... As pernas pareciam já não
conseguir executar a ordem que o cérebro lhe enviava, mas passados poucos
segundos, começaram a coordenar os movimentos. E que sensação
maravilhosa! O vento contra a cara! Os pés a baterem furiosamente no chão!
Chegou ao jardim e mandou-se para a relva. Estava húmida da rega. Rebolou
para um lado e depois para o outro. Deixou-se ficar deitada de costas e
observou as nuvens. Viu um dragão, um peixe, um homem a nadar e um
campo de flores. Espreitou em volta. Não havia ninguém, por isso tirou o capuz
e deixou que os raios solares lhe batessem em cheio da cara. Apalpou o bolso
das calças. Tinha moedas. Voltou a colocar o capuz e dirigiu-se à geladaria
com esplanada mais próxima. Comprou um gelado de chocolate e ficou a
saboreá-lo. Ainda melhor se sentiu ao perceber que ninguém a reconhecia.
Talvez já fosse seguro voltar a sair de casa!
Para fazer o caminho de volta, Íris decidiu correr mais um bocadinho. Quando
o ia começar a fazer, foi agarrada pelo braço. Como que movida por um
reflexo, Íris soltou-se rapidamente e ficou de frente para a pessoa que a tinha
segurado, uma pessoa fraquinha que, com a força do movimento, quase tinha
caído à frente dos pés de Íris. Era o senhor padre.
- Peço desculpa. Misericórdia! – pediu ele, escondendo-se atrás das mãos, que
tentavam acalmar a jovem – Não era minha intenção! Quero dizer... era,
realmente a minha intenção... Mas, que digo eu?! Não! Não era minha
intenção! Não queria agarrá-la... quero dizer, segurá-la! Não! Pará-la. Eu...só...
Podia...?
Já farta, de sobrolho franzido e braços cruzados, Íris ordenou:
- Vá directo ao assunto.
Confuso, o padre até abanou a cabeça com o espanto e corou. Ajeitando os
óculos, tentou articular uma frase sem pausas ou repetições:
- Se me dessa honra, gostaria que me dispensasse uns minutos para falar
consigo.

106
Íris preparava-se para lhe virar as costas sem responder sequer, mas o padre
voltou a detê-la.
- Por favor. – rogou, desta vez muito sério.
Ela queria soltar-se, dizer que não tencionava contar-lhe o que havia para
Além, que nunca mais a chateasse. Mas não foi capaz. Ao olhá-lo nos olhos,
algo pareceu hipnotizá-la. Talvez porque não lhes conseguia distinguir a cor
(pareciam verdes, azuis, avelã e amarelos ao mesmo tempo), talvez porque
brilhavam mais do que os de qualquer outra pessoa, talvez porque a
lembravam algo. Desviou os olhos, como se aquele contacto lhos queimasse.
Olhando para o chão, perguntou em meia voz:
- O que foi?
O padre sorriu, voltando ao seu ar meio aparvalhado, e respondeu com outra
pergunta:
- Posso acompanhar-te até casa?
- Se tiver mesmo de ser... – e Íris começou a andar, sendo seguida pelo jovem
ruivo.
- Só queria saber como andavas... – começou o padre, ao que Íris pensou
“mentiroso...” – Quer dizer, não sair de casa deve ser bastante mau...
“Jeito para padre é o que este tipo não tem...”, Íris continuava a mal pensar o
padre, ainda nem o tinha ouvido durante cinco minutos.
- E os teus pais, como vão?
- Hum... Bem? – “Quando é que ele faz a malfadada pergunta?”, Íris já
desconfiava a demora.
- Que bom. – fez uma pausa. “É agora” - Não te esperava encontrar fora de
casa, para ser sincero... Fico feliz por ti...
Íris parou de andar. O padre fitou-a, admirado.
- Eu sei que queres fazer a pergunta, por isso, fá-la. – desafiou-o.
O padre continuou a olhá-la surpreendido e disse:
- Pois quero. Mas não me parece que queiras responder, por isso é que não
pergunto. – e continuou a andar.
Atónita, Íris ficou alguns minutos boquiaberta a olhar para a figura do padre a
afastar-se até que este gritou um “Vens ou não?”. Nesse momento correu para
acompanhá-lo.
A conversa parva dele já não a irritava. Antes, acalmava-a. Começou a aderir.
Já há muito tempo que não falava cara a cara com alguém que não fosse um
dos pais. Era agradável. E o padre já não lhe parecia tão idiota. Quando
chegaram à porta de casa, Íris não queria voltar para o quarto.
- Podíamos... – começou ela, pausadamente – encontrar-nos amanhã,
também?
- Claro que sim. – respondeu o padre, sorridente – Venho ter contigo às três?
Íris acenou afirmativamente.
Quando o padre estava quase a desaparecer ao fundo da rua ela lembrou-se:
- Como te chamas? – berrou.
O padre voltou-se e respondeu, também como um brado:
- Heitor.
- Heitor? – estranhou Íris – És ainda mais velho do que eu pensava! Em que
século viveram os teus pais?
- Ei! Não meter a família ao barulho, por favor!
Íris sorriu e foi trepar a árvore, de volta ao quarto. Mesmo a tempo. Naquele
momento a mãe vinha bater à porta.

107
- Íris, estás acordada? – sussurrou.
Rapidamente, Íris destrancou a porta sem fazer ruído e mandou-se para a
cama, fingindo-se dormida.
Aida espreitou e entrou dentro do quarto. Ao ver a filha supostamente a
dormir, voltou a sair e a fechar a porta com cuidado.
Podia ser uma estupidez, mas Íris tinha gostado da sensação de voltar a ter
segredos. Só ela poderia saber dos encontros com Heitor. Mais ninguém
saberia.

*********

Os dias foram-se sucedendo e Íris, sempre com a desculpa de ir dormir a


sesta, descia pela árvore e ia conversar com o padre Heitor.
Há medida que falavam mais, Íris foi-se abrindo com ele. Afinal, era um padre
e dialogar com ele assim era o mesmo que confessar-se, certo? Não havia
problemas... para além do facto de ela cada vez mais se aperceber de que
pouco se lembrava de quando tinha estado morta. Nos primeiros dias depois
do milagroso acontecimento, ela tinha a certeza de se lembrar de tudo, mesmo
do que acontecera pouco antes da sua morte. Mas todas essas memórias
pareciam ter-lhe sido como que sugadas. Agora só se lembrava de estar
assustada.
Era isso que ela dizia a Heitor. Compreensivo, ele mudava de assunto. E
essa compreensão deixava Íris eufórica. Tinha dito e pensado tanta coisa má e
ruim de Heitor, quando agora não passava sem tê-lo para trocar dois dedos de
conversa. Tinha-se deixado alterar por ele. Mesmo com os pais, ela já não era
tão bruta, o sol e a lua pareciam-lhe outros, o ar era mais puro, a vontade de
viver era outra.
E ele também não ficou inalterado. Cada vez menos parecia um padre, pois
frequentemente se desleixava e esquecia de fazer a barba, bem como tinha
deixado crescer demasiado o cabelo, que agora tinha de apanhar atrás, para
não lhe cair para a frente da cara.
Íris comentou isso. Heitor, corando, respondeu que não tinha tempo para
cortar o cabelo e que não se costumava lembrar de fazer a barba.
- Porquê?
Ainda mais corado, ele respondeu:
- Porque tenho andado a pesquisar.
- Sobre o quê?
- Sobre... – ele hesitou. Parecia considerar se era seguro dizer a verdade ou se
seria melhor mentir – Sobre a memória. – acabou por confessar.
- Memória? – estranhou Íris – Não sabia que estavas interessado nisso...
- E não estava... – continuou ele – Mas como tu parecias tão chateada por não
te lembrares... Eu achei que devia procurar uma maneira de recuperares as
memórias... Só ainda não te tinha dito, porque não tinha a certeza se querias
e... podias não querer. Não deve ser uma coisa bonita de se lembrar... Quer
dizer, parecias tão assustada...
Íris olhava para as biqueiras dos sapatos de ténis, enquanto pensava.
- Desculpa. – pediu Heitor, puxando a franja para trás – Não devia andar a
fazer isto nas tuas costas...
- O que é que descobriste?
O padre espantou-se.

108
- Arranjaste alguma maneira?
Heitor sorriu docemente e pegou num pedaço de papel, que estendeu a Íris,
dizendo:
- Pareceu-me ter encontrado um bom psicanalista. Escreve-me aqui o teu
primeiro e último nomes e número de telefone, que eu vou falar com ele,
certificar-me que é de confiança e marcar alguma consulta, se for esse o caso.
– estendeu ainda uma caneta com formas estranhas.
- Que caneta tão engraçada. – riu Íris, ao reparar nas várias curvas salientes
de cores escuras e nas bolas brancas que se assemelhavam terrificamente a
olhos.
- Ideias do Arcebispo. – comentou Heitor, com um encolher de ombros
divertido.
Ainda com um sorriso na cara, Íris preparava-se para começar a escrever o
nome, já com os nove números brilhando no papel devido à tinta. Heitor
parecia estranhamente apreensivo. O “Í” estava já completo no papel, a
primeira perna do “r” estava a ser escrita. Quando a última curva do “s” esta a
ser feita, Íris parou repentinamente. Tinha a impressão de já ter feito algo
parecido... pouco antes de ter morrido.
- O que se passa? – perguntou Heitor.
- O contrato! – gritou Íris – Ele também me pediu para assinar aquele papel.
Eu não quis assinar e ele levou-me para lá! Foi ele que me matou! E levou-me
para lá!
- Ele quem? Para onde?
Íris virou lentamente a cabeça para Heitor. Após uma pausa, ela respondeu:
- Para o inferno.

- Inferno? – repetiu Heitor.


Íris atirou com a caneta e com o papel e levantou-se do degrau onde estava
sentada. Heitor seguiu-a.
- O que se passa?
- Não vou assinar. Não quero assinar nada. – dizia ela, limpando as lágrimas.
- Não assines. – disse Heitor – Mas não te vás embora. Espera! – e segurou-
a num abraço – Por favor.
Surpreendida e com o coração a bater desalmadamente, Íris afastou-o,
pedindo:
- Larga-me.
Mas, com este movimento, Heitor pareceu desequilibrar-se e caiu para trás,
só que, ao mesmo tempo, um outro corpo pareceu sair de dentro do dele. Um
outro jovem. O homem que a tinha matado.
Como podia Íris esquecer-se daqueles cabelos pretos compridos, atados num
rabo-de-cavalo? E daqueles olhos amarelos assustadores?
- Vais assinar. – com a sua voz grave e profunda, qualquer frase parecia
uma ordem.
Mesmo que quisesse, naquele momento Íris não se sentiu com forças para
lutar contra a mão que a agarrou pelo pulso e a levou de volta aos degraus. Ela
continuava a olhar fixa e desassossegadamente para Heitor.
- Está...?
- Não está morto. – respondeu o rapaz – Só a descansar. Deu-me trabalho
controlá-lo nas últimas semanas.
- Então... Todo este tempo... Tu... Ele...?

109
- Não há tempo para perguntas. Assina. – e fez o papel e a caneta flutuarem
na sua direcção.
Íris permaneceu fitando-os, até que respondeu decididamente:
- Não.
O rapaz fez um ar encolerizado e começou a respirar mais depressa e
profundamente, com a raiva, informando de seguida:
- Não tenho tempo para isto. Assina. Já.
Apesar de estar com algum medo, Íris repetiu:
- Não.
Sem que Íris percebesse, o rapaz estava atrás dela e movia o seu pulso para
que completasse o seu nome.
- Não! – Íris tentou lutar, mas o rapaz tinha demasiada força. Calmamente fê-
la escrever o apelido.
Então, Íris sentiu um aperto no estômago. As cores do mundo mudaram e ela
viu o seu corpo cair no chão, enquanto um buraco se abria no chão e o rapaz a
mandou lá para dentro. Voltou a sentir a mesma impressão no estômago de há
quase um ano atrás, o medo invadiu-a e fechou os olhos.
Quando os abriu, encontrou-se numa sala que lhe era conhecida. Um salão
enorme, que parecia não ter início nem fim, um salão no meio do qual
repousava um grandioso trono, que emanava ondas de energia avermelhada e
onde estava sentado o Rei do Inferno.
Íris desviou os olhos daquela figura. Não que fosse monstruosa, aparentava
ser um humano como qualquer outro, mas era uma figura que inspirava
respeito e temor.
- Pantheras! – gritou temível criatura. Os seus olhos vermelhos luziam de
fúria enquanto os seus cabelos cor de vinho, ondulando pelo chão, de tão
compridos, se eriçavam como se se tratassem de pêlo de gato.
O rapaz apareceu à frente de Íris, pondo-se de joelhos à frente do mestre.
- Mestre Silas.
Com um sorriso perverso e o cabelo já novamente para baixo, o Rei do
Inferno levantou-se do seu trono e pediu, enquanto caminhava em volta da
sala:
- Recorda-me, Pantheras, há quanto tempo trabalhas sob o meu comando?
- Há precisamente oito milénios, mestre.
- É bastante tempo, não te parece? – perguntou ele, observando todo o ouro
que o rodeava, principalmente o das colunas da sala.
- É, sim, mestre. – Pantheras parecia adivinhar o que aí vinha, mas
permaneceu quieto.
- Recorda-me uma outra coisa, servo. Até há um ano, alguma vez me tinhas
falhado?
- Não, mestre.
Numa questão de milésimas de segundos, Silas encontrava-se à frente do
servo e, agarrando-o pela franja para que olhasse para ele, berrou
furiosamente:
- Então porque me começaste a falhar agora?! Como é que não consegues
que uma criança assine o contrato?! E, como se não bastasse, cometes o
mesmo erro, com a mesma pessoa, duas vezes! – e mandou Pantheras para o
lado, virando-lhe as costas e voltando a andar à roda – Tens noção do que
fizeste? – voltou-se de novo para o criado, ainda no chão – Eu disse-te que só
se ela assinasse podia vir!

110
- Ela assinou, meu senhor. – respondeu, um pouco a medo, Pantheras, que
se voltou a pôr de joelhos.
Entretanto, Íris não sabia o que fazer, olhava de um para outro. De uma certa
maneira tinha até pena de Pantheras, mas nada podia fazer. Tentava lembrar-
se do que fizera para escapar da última vez. Mas porque raios não se
recordava?
- Assinou... – Silas sorriu, fingindo-se sereno, mas a sua expressão logo se
transformou numa de quem estava prestes a explodir – Chamas a isto – e fez
com que no ar aparecesse a imagem do que acontecera há bem pouco tempo,
quando Pantheras a obrigara a escrever o nome no papel – assinar de livre
vontade?! – e, com novo movimento de braço, a imagem esfumou-se.
Pantheras, fitava o chão, enraivecido por nada poder dizer. Por sua vez, Silas
tinha voltado a deixar-se cair no trono, enquanto murmurava:
- Há milénios... Há milénios que estou a juntar este exército. Tu sabes o
quanto eu quero matá-lo. O quanto eu quero rir na cara do idiota do Deus
Piedoso. Sabes tudo o que eu tenho planeado para o destronar, para tomar o
poder absoluto. Mas repara, Pantheras. O tempo escasseia. Os meus escravos
vão ficando mais fracos e eu necessito mais poder do que nunca. Achas que é
tempo para falhar?
Pantheras continuava de olhos fixos no chão.
Suspirando, Silas continuou:
- Olha para eles, Pantheras. Vê como estão fracos. – e uma janela abriu-se
ao seu lado, para que pudesse observar os milhões de pessoas, mal vestidas,
mal nutridas e acorrentadas que trabalhavam para ele. Cada uma dessas
pobres pessoas tinha a sua função fixa, função que repetia diversas vezes por
dia, para toda a eternidade. Árduas missões, que lhes poderiam custar a vida,
se ainda a tivessem.
Aproximando-se da janela de olhos esbugalhados de terror, Íris tornou a
reconhecer os avós, a um canto, cavando o chão; um pouco mais afastado, o
pequeno primo, empurrando pedregulhos com o dobro do seu tamanho; lá
longe, várias pessoas empurravam uma gigantesca manivela, que ligava ao
Céu, coberto de nuvens vermelhas cor de sangue. Dessa manivela vinha uma
corrente de energia que seguia o seu caminho até ao palácio do Rei do Inferno.
Íris associou essa energia à que emanava do trono do Diabo.
A janela fechou-se repentinamente e Silas dirigiu-se a Íris:
- Mas tu não podes voltar para ali. Da última vez os espertos dos teus
amigos tramaram-me bem. – depois riu-se maquiavelicamente, apareceu à
frente de Pantheras e, ajudando-o a levantar-se, abraçou-o dizendo – Mas aí
agiste bem, meu amigo. – e deu-lhe umas pancadinhas nas costas, enquanto
ria com gosto – Tens aí o cristal, amigo?
Com o mesmo ar sério que sempre ostentava, Pantheras respondeu:
- Receio tê-lo perdido, meu senhor.
Silas riu-se ainda mais.
- Melhor para nós, melhor para nós. – mas deixou abruptamente de rir
quando olhou para Íris e ordenou – Leva-a para as masmorras!
Do ar, apareceu um outro rapaz, com curtos e espetadíssimos cabelos loiros
e olhos roxos, que prendeu os braços de Íris.
- Ó, grande mestre, nós não temos masmorras. – disse ele, com um certo ar
de gozo.

111
Um objecto de prata voou na direcção deles, mas antes que pudesse bater
em Íris, o rapaz tinha-se transportado para uns metros de distância.
- Calma, chefe! – riu ele – Eu percebi a mensagem.
E, após olhar uma última vez para Pantheras, que a observava igualmente,
Íris viu-se dentro de uma minúscula sala.
À sua frente, pronto para fechar a porta, estava o tal rapaz loiro, sorrindo
abertamente.
- Tá, tá! – e cerrou a porta.
O som da chave na fechadura provocou-lhe arrepios. O que faria agora?
Assim não podia fugir nem ela, nem todos os outros.
Longos dias pareceram ter-se passado em apenas escassos minutos, quando
a porta voltou a abrir-se. Pantheras apareceu, sendo seguido pelo rapaz loiro.
- General, o que vais fazer? – perguntava o último.
- Pela última vez, Aelius, não sou teu general. – e fechou-lhe a porta na cara.
Tanto Íris como Pantheras ficaram calados durante uns momentos, mirando-
se apenas, até que ele tirou do bolso da capa um pequeno cristal, que mandou
para as mãos dela.
Confusa, Íris perguntou:
- O que é isto?
- As tuas memórias. – respondeu ele – Desculpa ter-tas tirado. – e voltou a
sair, fechando a porta atrás de si.
- Não trancas a porta, general?
- Cala-te e anda.
Sem saber muito bem o que devia fazer com o pequeno cristal reluzente, Íris
não teve de pensar durante tempo nenhum, pois este fundiu-se com ela e as
memórias começaram a voltar. Lembrou-se de quando Pantheras tinha estado
com ela, ainda na Terra, e tinha tentado que ela assinasse o contrato, como ela
apenas escrevera o primeiro nome, o servo do Diabo levou-a com ele.
Lembrou-se de quando chegara e de como o Rei do Inferno não tinha
desconfiado de nada, tendo até congratulado Pantheras. Lembrou-se de como
havia sido obrigada a trabalhar, junto dos seus falecidos familiares e de como
eles haviam descoberto que, afinal, o contrato dela não era legal. Lembrou-se
de como o tinham conseguido destruir, provocando o seu regresso à Terra e a
fúria de Silas.
Queria dizer que... se destruísse todos os contratos, as pessoas voltariam à
Terra? Tinha, ao menos, de tentar.
Levantou-se do chão e abriu lentamente a porta. Pareceu-lhe que não havia
ninguém, mas mal deu uns passos para fora, Aelius apareceu, muito sério. Íris
estacou, temendo pelo pior. Mas o rapaz sorriu e, apontando, disse:
- O que procuras espera-te ao virares à esquerda. Agora, se me dás licença,
vou vigiar a tua cela. – e foi-se encostar à parede.
Não tendo a certeza das suas intenções, Íris não agradeceu, mas achou que
deveria acreditar na informação de Aelius. Virou à esquerda e cautelosamente
espreitou por todas as janelas. Todas as pequenas salas estavam cheias de
prisioneiros. Que teriam feito? Não havia tempo nem para perguntar.
Ao olhar para dentro de uma das salas, teve a certeza – era ali.
Abriu a porta e deparou-se com uma sala infinita, coberta de gigantes
estantes, com as prateleiras cobertas de folhas. Aproximou-se de uma e retirou
o papel que lhe estava mais próximo. Era branco, estando enfeitado por curvas
de ouro às pontas e onde se lia o nome de um homem.

112
“Os contratos.”, pensou Íris.
Olhou em volta. Como conseguiria destruir todos aqueles?
Experimentou rasgar a folha que tinha na mão. Era impossível. Por mais força
que fizesse, o papel não se rasgava.
- Há uma maneira. – assegurou uma voz, vinda de cima. Íris voltou a cabeça
na direcção desta e deparou-se com Aelius, sentado sobre uma das estantes,
de pernas cruzadas e inclinando-se para trás e para a frente, ao ritmo de uma
música inaudível – De os destruir a todos.
- Que maneira? – quis saber Íris.
- Bem... – começou Aelius, saltando para a estante que estava ao lado –
Neste imenso palácio há uma sala. – tentou equilibrar-se o máximo de tempo
possível com um só pé – Nessa sala há uma chama especial aqui do Inferno. –
naquele momento, tinha decidido tentar fazer o pino – Vamos a isso!
Íris, desconcertada com o comportamento dele, ficou a observá-lo durante
uns segundos, mas quando ouviu Aelius murmurar para si “Agora só uma
mão”, caiu em si e gritou:
- E depois?
- Ah!... – com o susto, Aelius desequilibrou-se e começou a cair de uma
altitude de oito metros.
Quando estava quase a chegar ao chão e Íris até já tinha fechado os olhos,
ele apareceu atrás dela e sussurrou-lhe ao ouvido:
- É uma chama que tudo queima.
Íris virou-se, mas Aelius já não estava atrás dela. Encontrava-se agora com
os pés pegados ao tecto e caminha sobre ele como se estivesse a equilibrar-se
numa qualquer superfície muito estreita.
- Onde é que ela está? – perguntou Íris.
- Bem... Eu podia ir buscá-la por ti...
- Podias? – estranhou a rapariga.
- Sim. Mas...
- Mas?
Aelius parou de caminhar no tecto, tornou-se sério repentinamente e, com um
sorriso inquietante, disse:
- Quero a tua alma em troca.
Tomada pela surpresa, Íris permaneceu alguns segundos a analisar Aelius,
tentando perceber se ele falava a sério. Acabou por achar que sim, então
perguntou:
- E se me dissesses, simplesmente, onde está?
- E para que daria eu informações de graça?
Enfadada e achando que não chegaria a lado nenhum daquele modo, Íris
encaminhou-se para a porta, dizendo:
- Então vou eu procurá-la!
Mas Aelius impediu-a, metendo-se à sua frente.
- Calma, calma! – pediu ele, rindo – Estava a brincar! Não és nada divertida,
pois não?
- “Nada divertida”? “Nada divertida”?! – tinha sido a última gota – Caso não te
tenhas apercebido, eu estou MORTA! E as outras pessoas lá fora, também! E
agora que encontrei uma maneira de as salvar, tu gozas com a minha cara,
pedes-me para ter calma e acusas-me de não ser divertida?
Do nada apareceu Pantheras, que pregou uma cacetada a Aelius, que se
ressentiu com a pancada e murmurou um “Au!”.

113
- Pára de chatear as pessoas.
- Desculpa, general.
Íris ficou maravilhada com o que Pantheras trazia na mão – uma chama
azulada com menos de vinte centímetros. Parecia retorcer-se nas mãos do
servo do Diabo, parecia viva.
- É essa... – começou Íris.
- Sim. – respondeu Pantheras, virando-se para Aelius, que ainda esfregava a
cabeça devido à pancada – Tens o contrato dela?
Sorrindo matreiramente, Aelius retirou uma folha de um dos bolsos do seu
comprido colete:
- Aqui está.
- Óptimo. Toma. – passou a chama para as mãos de Íris.
Esta, pensando que se ia queimar, encolheu-se um pouco, mas a chama,
dançando entre as suas mãos, não emanava uma só onda de calor.
- Tenho de ser eu a...?
Pantheras acenou afirmativamente.
- Nenhum de nós pode, porque o nosso contrato está por aí algures. E,
enquanto estiver, não podemos desobedecer a nenhuma ordem do nosso
senhor.
Íris ficou a olhar para a chama, pensando.
- Mas... Para onde vão as pessoas?
- Não poderão voltar aos corpos. – informou Pantheras – Serão recambiadas
para o Céu.
Aquela ideia era do agrado de Íris.
- Mas... e eu?
- Não há tempo para perguntas. – cortou Pantheras, sempre com a mesma
expressão inexpressiva - Temos pouco tempo. Daqui a nada Silas descobre.
Um violento rugido ecoou pelo palácio, que fez com que Íris e Aelius se
encolhessem.
- Já descobriu. É melhor despachares-te.
Silas apareceu à porta com a sua forma demoníaca. Já não parecia uma
pessoa, mas uma criatura bizarra feita de fogo.
Sem tempo para pensar, Íris lançou a chama para a estante mais próxima.
Como um enxame, a chama propagou-se rapidamente e vários contratos
estavam já a arder.
A criatura urrou de dor e começou a transformar-se gradualmente em
humano. O palácio começou a desaparecer e Pantheras teve de pegar em Íris
para que esta não caísse com o chão. Aos poucos, as tenebrosas nuvens
vermelhas foram-se dissipando e as pessoas iam ganhando asas e afastavam-
se a voar, em direcção ao Céu. Íris viu novamente os avós e o primo. Não pôde
deixar de sorrir.
- E o meu contrato? – acabou por perguntar.
- Tem de ser o último a destruir-se. – explicou Pantheras.
- E não é precisa a chama, general?
- Não. Basta rasgar-se, já que não foi ela que assinou. Passa-lhe o papel,
Aelius.
Com um encolher de ombros, Aelius entregou o papel a Íris.
Estavam a observar todos os humanos a partir para o Céu quando, aparecido
do meio dos escombros, Silas, já humano, investiu contra Pantheras, gritando:
- Seu traidor!!

114
Mas Pantheras, com excelentes reflexos, estendeu o braço direito e tocou
com a mão na testa de Silas, enquanto que na sua mão esquerda se ia
formando um cristal. Silas gritava de dor.
Quando a última pessoa abandonou o Inferno, Pantheras gritou:
- Agora!
Íris, respondendo à ordem, rasgou o papel.

*********
- Mas como quer que eu acredite nisso?! – era a voz do pai.
- Estou a dizer-lhe a verdade! – conhecia esta voz, mas de quem era?
- Está a dizer-me que adormeceu no meio da rua e que, quando acordou, viu
que tinha a minha filha, sem sentidos e, aparentemente, morta ao seu lado? –
desta vez tinha sido a mãe.
- Sim! Quer dizer, não! Eu não adormeci no meio da rua! Quer dizer, pelo
menos acho que não... Não é meu costume... Devo ter levado com uma
pancada na cabeça... Sim! Deve ter sido isso! Ela tem-me estado a doer
terrivelmente desde que acordei. – mas quem era?
- Eu é que lhe vou pôr a cabeça a doer!
- Gabriel, não!
- Heitor! – Íris lembrou-se de repente e, abrindo os olhos, sentou-se no sofá.
O que viu foi a mãe, agarrando o pai, agarrando o padre pelo colarinho, que
escondia a cara atrás das mãos.
Todos ficaram petrificados. Quem saiu do choque mais depressa foi Heitor,
que se soltou e se foi ajoelhar ao lado de Íris.
- Estás bem?
- Diz-me só uma coisa. – pediu a rapariga, pegando nas mãos do padre.
- Sim...? – perguntou ele, corando ligeiramente.
- Chamas-te mesmo Heitor?
- Sim... É o meu nome. – respondeu ele, confuso.
De tão contente estava, Íris abraçou-se a Heitor, gerando uma grande
confusão, que foi culminar no desmaio do padre.
Entretanto, lá fora, um homem ainda jovem, de longos cabelos pretos e óculos
de sol, observava a cena, com um sorriso na cara. Do bolso do longo casaco,
tirou um cristal vermelho que brilhava imensamente ao sol. Lançou-o ao ar e
apanhou-o com uma só mão, voltando depois a guardá-lo no casaco.
- Vamos, amigo? – virou-se para um dos dois homens que o
acompanhavam.
- Amigo? Eu sou teu amigo? É que não me lembro de muita coisa... – esse
homem, com o cabelo castanho avermelhado mais ou menos pelos ombros e
ondulado, seguia o primeiro com um ar perdido.
- Claro! – um terceiro homem, mais jovem e loiro, aproximou-se e agarrou no
braço de cada um dos outros dois – Somos todos amigos! Vamos comer um
gelado, pode ser? Eu quero um de chocolate!
- Eu alinho. – respondeu o primeiro.
- O que é um gelado? – perguntou o segundo.
- Não é muito mais divertido estar vivo do que morto?

Elsa Vila

115
ILUSTRAÇÃO 22 SCRAT BRASILIAN, PEDRO FERREIRA

116
ELORA

Dia horrível com o céu cor de sépia… Nem sequer sinto uma mísera brisa a
soprar. Parece que parou tudo menos eu… Ou… Será que não? Será que fui
eu que parei?
Acho que sim… Sinto me apático. Pelo menos hoje. Não devo estar normal.
Este não sou eu.
Como definir o meu estado de espírito? Cinzento. É a melhor palavra que
encontrei.
Na minha estúpida introspecção tentando desbloquear as ondas de
negativismo que me assolam de cima abaixo, vi-te ai abandonada a um canto.
Sempre tão solene e séria minha querida… Porém consegues sempre
compreender-me. Arrastei-te para mim e agarrando-te passei os meus dedos
por ti.
Que espécie de poder tu tens sobre mim… Apagaste logo um pouco da minha
apatia. Mas preciso que me acordes. Preciso que enchas por completo.
Encostei-te a mim com força e muito cuidadosamente comecei. Primeiro
devagarinho… Devagar… Para cima e para baixo…
Estou a sentir-me mais calmo… Como a pairar no ar. A brisa que antes não
havia conseguia senti-la agora, mesmo que o resto do mundo não.
Querida Elora… Estás a chorar? Quase parece que sim… Estás triste?
A culpa é minha eu sei… A tua tristeza parte-me o coração. Desculpa. Não
quero que fiques triste por minha causa, eu não mereço as tuas lágrimas, os
teus suspiros e murmúrios desolados.
Mais rápido desta vez. Mais alegre. Acho que o teu riso me anima sempre e
não me enganei.
Saber que estás feliz faz-me estar feliz. Fluis tão bem entre os meus dedos
transbordando aquelas ondas que encheram a sala pequena e gris por
completo.
Fecho os olhos e volto atrás… Bem atrás. Lembras-te de antes? Tu eras
enorme comparada comigo, mas desde que te vi que me encheste de
fascínio.
Eu, uma pequena e inocente criança de olhos grandes rebrilhando, vi-te mais
uma vez sozinha.
Porque é que estás sempre sozinha? Porque é que te escondes sempre dos
outros Elora?
Elora… Quando é que eu te pus esse nome? Acho que lá bem no íntimo teu
nome já lá estava bem guardadinho só para ti desde sempre.
Mas primeiro que eu te compreendesse… Demorou não foi?
Admito que se calhar até sofreste um pouco às minhas mãos. Tivemos que nos
habituar um ao outro, mas acho que a cada dia a minha paixão por ti
aumentava gradualmente.
Temos um ligação um pouco especial não temos? Agora dá-me a sensação
que sempre que estou triste ou alegre tu também estás. Mas eu não te quero
ver triste Elora. Até podes ter uma candura especial quando estás deprimida,
quase fazendo lembrar a chuva. Tal como ela é doce e meiga a cair na nossa
cara tu também o és sempre que te toco, mas recuso-me fazer-te sofrer com as

117
minhas depressões ridículas e sem sentido que me aparecem sem aviso
prévio.
Ah… Mas quando tu estás alegre… Até me custa a compreender como é que o
resto do mundo não se anima… Como é que tudo continua a andar sempre em
frente sempre tão… cinzentos. Tal como eu agora. Não os posso acusar. Eles
não te têm. Se eles te tivessem Elora… Se eles sentissem o teu calor, o teu
cheiro, a tua suavidade… Que era eu sem ti meu amor? Tenho a lua e o sol na
palma da minha mão quando estás feliz… Não preciso de mais nada. É um
rodopio de raios celestes envolvendo-me por completo, uma sensação de…
Eis o teu problema Elora. A melhor palavra para te descrever é indescritível. Eu
tento por tudo descrever aquilo que sei que sinto por ti, aquilo que me
transmites, mas não o consigo por palavras.
Só te tocando Elora… Que música queres agora? Toco aquela que tu quiseres,
aquela que todos os violoncelos conhecem…

Patrícia Matono

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ILUSTRAÇÃO 23 LISA COM CHAPÉU, DAVID CHORÃO

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BELEZA NATURAL

O sol, exausto de um dia intenso, vai descansar calmamente sobre a linha do


horizonte. Cansado na sua batalha quotidiana, cede lugar à noite, reino mágico
e obscuro, onde a lua, rainha, o substituirá magistralmente.
O céu enche-se de um laranja avermelhado, como se ali tivesse tido lugar uma
batalha sangrenta, a batalha do dia-a-dia, em que o sobrevivente, ferido, se
retira para voltar num outro dia, recuperado para rasgar as trevas e começar de
novo.
Encontro-me num lugar privilegiado, a contemplar estas mutações que, de tão
frequentes, muitas vezes acontecem sem que nos apercebamos da sua beleza,
como quase tudo o que nos rodeia.
Há tanta coisa bela nos fenómenos naturais, que acontecem a cada segundo e
nem olhamos para eles, porque de tão frequentes, se tornaram “invisíveis”.
Não sabemos o que perdemos por não contemplar as pequenas coisas de que
o nosso mundo é feito. A beleza está nas coisas pequenas e simples, como a
gota de orvalho que pende da folha de uma flor, e que na sua queda ao
abismo, converte a luz do sol, num arco-íris de cores. A beleza de hoje está
neste fantástico pôr-do-sol, que me enche os olhos, que me acarinha e conforta
a alma, por saber que amanhã, aquele sol estará de novo de volta para me
aquecer o corpo e iluminar o espírito.

Paula Pereira

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ILUSTRAÇÃO 24 SCRAT CHINESE, PEDRO FERREIRA

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