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Projeto “Relações Internacionais para Educadores” – 12 de junho de 2010

OS ESTADOS UNIDOS E A ASCENSÃO DE NOVOS PÓLOS: OS BRICS – CHINA

A ASCENSÃO DA ÍNDIA NO SISTEMA INTERNACIONAL


Por Gihad Soares e Carlos Gorito1

O que sabe a sociedade brasileira a respeito da Índia? O pouco que chega


até nós acerca desse enorme e multifacetado país é relacionado ao conflito na
Caxemira, ao sistema de castas, à pobreza ou ao hinduísmo. Entretanto, é
necessário que sejamos mais atentos às transformações pelas quais a economia
e a política da Índia estão passando. A ampliação do papel internacional indiano
nos últimos anos se dá por uma convergência de processos tanto internos
quanto externos, que precisamos compreender para captar melhor a real
natureza da Índia contemporânea. Assim, também podemos entender como um
país tão distante pode ter objetivos tão próximos aos do Brasil.
Este material buscará delinear a realidade atual da Índia, tanto em seu
caráter interno quanto externo. Para isso, percorreremos elementos sociais,
culturais, políticos e históricos, para então compreendermos como a Índia se
insere no contexto internacional contemporâneo, e como o Brasil pode lidar – e
está lidando – com isso.

ASPECTOS GERAIS DA SOCIEDADE INDIANA


A Índia (cuja capital é Nova Déli) é o maior país Fig. 1: Índia
da Ásia Meridional. Estende-se do Himalaia para o sul,
projetando-se sobre o Oceano Índico em forma de
península. Seus 3,2 milhões de quilômetros quadrados
estão contidos entre os vizinhos Paquistão, China,
Nepal, Butão, Bangladesh e Myanmar, e são habitados
por 1,17 bilhão de pessoas – número apenas superado
pela vizinha China. Essa gigantesca população
constitui uma das mais antigas civilizações contínuas
do mundo, datando de três milênios a.C. A civilização Fonte: Folha Online.

1Estudantes de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul


(UFRGS).
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indiana é extremamente multifacetada em todas suas áreas de existência, o que


forma um conjunto político-social único no planeta.
Um dos aspectos mais intrigantes da sociedade indiana é sua diversidade
de etnias, idiomas e religiões. As línguas do governo são o inglês, herança dos
colonos britânicos, e o híndi, que é falado por cerca de 40% dos indianos. Híndi
faz parte do grupo de idiomas indo-europeus da Índia, que engloba três quartos
da população, sobretudo no norte. O restante utiliza idiomas do grupo
dravidiano, característico do sul. Há também minorias linguísticas austro-
asiáticas e tibeto-birmanesas. O governo indiano reconhece oficialmente 15
línguas, de 1652 idiomas e dialetos utilizados por todo o país.2
80% da população são de religião hindu3, mas há praticantes de toda
grande religião do mundo na Índia. Os 13% de muçulmanos do país representam
um dos maiores desafios para o manejo do governo de Nova Déli: fortemente
associados ao Paquistão no ideário hindu, essa minoria de 150 milhões de
pessoas é uma sensível força política na sociedade indiana. Cristãos, siques,
budistas e outros também se fazem presentes.
A Constituição da Índia, de 1950, pauta a identidade nacional indiana num
amplo conceito, denominado “profunda unidade”. Tal conceito estaria associado
à absoluta liberdade cultural e religiosa, para conservar a harmonia e a unidade
nacional. Essa liberdade, entretanto, em oposição ao princípio individualista dos
sistemas legais ocidentais, constrói-se sob a “comunidade”, ou seja, largos
grupos distintos que se integram em interdependência na sociedade indiana.
Dessa maneira, criou-se um conjunto de legislações civis que divide a população
em hindus, islâmicos e cristãos, o que por vezes causa controvérsias no processo
de julgamento e classificação social.
Dentro do hinduísmo, a população está longe de ser homogênea. O sistema
religioso das castas, substratos sociais classificados em quatro varnas e
inúmeros janis de acordo com sua pureza religiosa e sua profissão, traz ainda
maiores dificuldades para o estabelecimento de uma sociedade igualitária na
Índia. Embora, nos cenários urbanos, o sistema de castas como organização
social tenha sofrido intensa diluição com a crescente mobilidade social
proporcionada pela educação e pela instrução (e não por ascensão religiosa), a

2 Jane’s Information Group (2009).


3 CIA World Factbook, <https://www.cia.gov/library/publications/the-world-
factbook/geos/in.html>
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vida privada, bem como hábitos pessoais, atitudes, vestimentas, etc. são
influenciados diretamente por esse pertencimento a um grupo social. Em outras
palavras, a abolição legal das castas deteriorou-as como liga social formal, mas
perdura como cimento de relações familiares e afetivas.
Adicionando-se a esse panorama o fenômeno de urbanização, o
desenvolvimento de um ambiente empreendedor nas cidades com base em
valores ocidentais e a emergência de uma classe média inédita dá-nos uma
primeira e ampla ideia do labirinto social indiano.

HISTÓRIA DE FORMAÇÃO NACIONAL


A história da Índia começa no vale do Rio Indo, no atual Paquistão, onde se
desenvolveu uma das mais desenvolvidas civilizações antigas, os indos. Este
povo ali se desenvolveu a partir de 3000 a.C., estabelecendo cidades altamente
desenvolvidas, canais, e atividades de navegação. Eram contemporâneos dos
egípcios e sumérios. Os arianos, falantes de sânscrito, chegaram do norte em
1500 a.C. e avançaram até o rio Ganges.
O povo indo é dominado pelo império persa em cerca de 500 a.C., e passa
para o domínio greco-macedônio sob Alexandre o Grande, em 327 a.C. Antes da
chegada dos persas, em 563 a.C., nascia Sidhartha Gautama, o Buda, cujos
ensinamentos comporiam uma das filosofias religiosas mais importantes da
história mundial.
Com o enfraquecimento da dominação helenística sobre o oeste do
subcontinente, Chandragupta Maurya parte da área correspondente atualmente
ao de Bihar, no leste da Índia, em direção a oeste e toma para si terras até oeste
do atual Afeganistão. Assim nasce o Império Máuria, o primeiro grande império
unificado da Índia. O auge desse império se deu com Ashoka, neto de
Chandragupta, que estendeu ainda mais os domínios imperiais e, após
converter-se ao budismo, disseminou-o por outras áreas do mundo. Ashoka
morre em 232 a.C., dando início ao declínio do Império Máuria e à desintegração
política indiana, com invasões estrangeiras.
Somente em 320 surgiria uma nova liderança política que gradativamente
reunificaria o subcontinente, o Império Gupta. Seus chefes avançaram de leste
para oeste por campanha militar e por uma política de casamentos bastante
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eficiente. No século VI, também esta força entra em decadência, e é substituída


por sucessivos reinos no norte e no sul. Foi uma época próspera, em que foram
construídos grandes templos e imperou certa estabilidade.
Em 1192, as incursões de povos túrquicos muçulmanos na Índia,
ocorrentes desde o início do milênio, se intensificaram de tal maneira que
Mohammed Ghor dominou grande parte do território indiano, e iniciou o que foi
denominado Sultanado de Déli. Iniciar-se-ia também a luta histórica entre
muçulmanos e hindus, religião já majoritária, datada da época dos arianos.
Invasões mongóis em 1397, por Timur Lang, fragmentam a unidade do
sultanato, que seria substituída sob Babur – guerreiro de origem turco-mongol –
e o novo Império Mugal, também muçulmano. Os sucessores de Babur, Akbar,
Shah Jahan e Aurungzebe, levam o império ao máximo de sua extensão e
desenvolvimento (Taj Mahal, arquitetura mugal), até ser derrubado por
pequenos reinos insurgentes, concomitantemente à morte de Aurungzebe em
1707.
Desde 1498, quando Vasco da Gama chega a Calicute em nome da Coroa
Portuguesa, a presença europeia no subcontinente indiano era crescente. Vieram
também italianos, franceses, holandeses e ingleses. Esses últimos, com sua
Companhia das Índias Orientais, obtiveram o monopólio do mercado indiano
com a Europa em 1784.
A partir de 1858, em vista da Revolta dos Sipaios4, o poder sobre a Índia
passa das mãos da companhia para as da Coroa, que agora controlava a área
diretamente como colônia. A administração inglesa era baseada num sistema
conhecido como Raj britânico: através de pactos com os principados sob jugo
colonial, criou-se infraestrutura, instituições governamentais, forças policiais e
outros, de modo a tornar a Índia um negócio rentável à Coroa Britânica, sem,
contudo, permitir qualquer participação política dos intelectuais nativos.
Sobretudo a partir da I Guerra Mundial, fortaleceu-se o nacionalismo
indiano. Grupos revolucionários armados surgiram com força, sobretudo ao sul.
Organizações e sociedades pró-independência que começavam a surgir no fim
do século XIX agora se articulavam para formar uma frente unificada contra o

4
Revoltas de indianos do Exército Britânico (sipaios), em protesto contra o uso de banha de
vaca e porco – ofensivo para as religiões hindu e muçulmana, respectivamente – nos cartuchos
dos rifles da tropa. Tais revoltas se transformaram em um amplo movimento antibritânico,
dando início ao esforço pela independência da Índia.
4
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jugo britânico. A congregação política que eventualmente se sobressaiu foi o


Congresso Nacional Indiano (CNI), então uma sociedade de profissionais de
classe média cujos debates eram inicialmente direcionados a questões
secundárias em relação à independência, como direitos de participação no
governo britânico na Índia e igualdade civil. Com a nova liderança de Mohandas
Gandhi (mais conhecido popularmente por Mahatma Gandhi5), o Congresso –
que já se havia tornado um órgão de importância em todo o subcontinente –
perdeu seu revestimento elitista e adquiriu caráter nacional. Esse advogado
tornar-se-ia um proeminente ativista político, partidário da satyagraha6, e
contribuiria enormemente para a independência efetiva da Índia em 1947.
A participação forçada de indianos na II Guerra Mundial, decidida
unilateralmente pela Grã-Bretanha, serviu de fomento ao descontentamento
político já instalado na Índia em relação ao governo inglês. Novas forças
políticas, armadas e pacifistas, emergiram no subcontinente, e motins e greves
se disseminam pelo território indiano. A situação tornou-se insustentável. Em 15
de agosto de 1947, à meia-noite, então, termina o Raj britânico.
Pouco antes do dia da independência, o subcontinente indiano foi dividido
entre dois Estados: a Índia e o Paquistão. Tal proposta partiu da Grã-Bretanha
com anos de antecedência, propondo-se a criação de três Estados sucessores do
império anglo-indiano, sendo duas de maioria muçulmana e uma, no meio, de
maioria hindu. O Congresso recusa a proposta, causando atrito com a Liga
Muçulmana7 e seu líder Mohammed Ali Jinnah. A intensa pressão das
negociações fez com que Nehru8, chefe do Congresso, aceitasse a partilha do
território indiano em dois Estados: uma “Índia” secular de maioria hindu e um
“Paquistão” oficialmente islâmico. Havia o problema de assentar as populações
islâmicas e hindus do novo país independente. A demarcação apressada das
fronteiras deslocou milhões de pessoas ao longo dos limites entre as duas novas

5 Líder político e espiritual indiano, cuja participação no esforço de independência da Índia da


Grã-Bretanha foi essencial para o sucesso do movimento. Defensor da luta contra a tirania
pela desobediência civil não violenta, Gandhi era chamado de “mahatma”, que significa
“grande alma” em sânscrito.
6
Filosofia prática utilizada por Mohandas Gandhi, segundo a qual se deve cooperar com o
oponente e convencê-lo a desobstruir o caminho considerado justo por meios completamente
pacíficos.
7 Partido político indiano criado no início do século XX, em Daca (atual capital do Bangladesh),

que foi uma força importante na determinação da independência indiana e na criação do


Paquistão. Entrou em declínio dos anos 1950 em diante.
8
Jawaharlal Nehru foi o primeiro primeiro-ministro da Índia, de 1947 a 1964.
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nações, além de batalhas em que morreu um milhão de pessoas dos dois lados.
Logo se determinou o caráter de rivalidade entre Paquistão e Índia, e a ameaça
que um representa para o outro.

ESTRUTURA E REALIDADE POLÍTICA NA ÍNDIA


A Índia é uma república federativa9 de caráter secular10 e multipartidário,
e uma democracia parlamentar bicameral.11 O órgão mais poderoso do governo
é o gabinete do primeiro-ministro, composto deste e de seus conselheiros. A
presidência é um cargo altamente cerimonial, mas vem ganhando importância
nos últimos anos. A democracia indiana apresenta um mecanismo peculiar
denominado “poder de emergência”, que, uma vez acionado, permite ao
primeiro-ministro substituir governadores estaduais e decretar
temporariamente o Estado unitário no país. Embora utilizado largamente nos
estados, foi usado apenas uma vez a nível nacional – pela primeira-ministra
Indira Gandhi, em 1975-1977.
Por quatro décadas após a independência, a política indiana foi fortemente
monopolizada pelo Congresso Nacional Indiano (CNI, ou Partido do Congresso),
em cujo centro se encontra a família Nehru-Gandhi. Jawaharlal Nehru12 foi o
arquiteto da democracia no país, aliando o Congresso (CNI) a setores não eleitos
do governo, como a burocracia e a polícia. Cedo em seu mandato, iniciaram-se as
inquietações do comunalismo13 e do separatismo indianos, bem como do
complexo problema da Caxemira, envolvendo o recém-separado Paquistão.
Nehru soube manejá-los de modo a prosseguir com seu plano de
desenvolvimento não-alinhado14 e auto-suficiente (swaraj e swadeshi). Com sua

9 Federalismo é uma modalidade de organização política na qual o governo central detém


apenas uma parcela do poder nacional, sendo o restante disseminado pelos governos de
unidades federais (estados, províncias, etc.) que compõem o país.
10 Secularismo é uma doutrina governamental de separação completa entre governo e

religião, prevendo-se, assim, a liberdade de culto religioso.


11 No caso indiano, é um governo em que o voto popular direto compõe uma câmara

legislativa de um total de duas.


12 Ver nota 6.
13 Denominação para designar os embates sociais na Índia entre diferentes “comunidades” de

identidade sócio-religiosa comum, a exemplo do conflito entre hindus e muçulmanos.


14 Aqui, o termo remete ao “autogoverno”, ou seja, “governo independente de qualquer

influência externa”.
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morte em 1964, sucede-o o sua filha, Indira Gandhi, que instaurou um governo
populista e reformista. Quando esse modelo começa a ameaçar a unidade
nacional, Gandhi implementa os “poderes de emergência”, cuja impopularidade
provoca
ca a derrota do Congresso nas eleições de 1977 para o ascendente Partido
Bharatiya Janata, de orientação nacionalista hindu. Indira retorna ao poder em
1980, mas é assassinada em 1984, por seus guarda-costas
guarda costas siques, em reflexo da
turbulência política desse grupo religiosona
religioso região do Punjab (fronteira com o
Paquistão).. Seu filho e sucessor, Rajiv Gandhi, também é assassinado em 1989,
marcando um declínio em importância (sem marginalização) do partido, em prol
de novas forças, como o Partido Bharatiya Janata,
Janata, envolvido em atividades de
incitação de combate a muçulmanos; o Janata Dal, com apoio do PBJ e do Partido
Comunista da Índia; e outras forças regionais.
Embora a unidade política da Índia venha sendo satisfatoriamente
mantida, o fantasma do comunalismo, do separatismo e da emergência de forças
esquerdistas é constante na direção nacional.
Fig. 2: Nordeste da
Índia Os estados do nordeste, conectados ao restante do
território indiano
india por um estreito corredor entre
Bangladesh e Nepal, vulgarmente denominado “Pescoço da
Galinha”, possuem uma diversidade étnico-linguística
étnico linguística com
laços com a população da Indochina15 e foram
independentes até a anexação pelo império anglo
anglo-indiano. A
região apresenta um histórico de insurgência contra Nova

Fonte: SkyScraperCity.com
Déli.
Também a rica população sique do Punjab representou uma força
dissidente importante na década de 80, culminando com o famoso assassinato
de Indira Gandhi.
Mais ligados às carências sociais do campo, as forças de extrema esquerda,
sobretudo os naxales do Partido Comunista Maoísta da Índia, assombram o
governo central com operações de guerrilha e possuem possíveis conexões com
seu partido equivalente no Nepal.
O comunalismo toma especialmente a forma da rivalidade entre hindus e
muçulmanos; com o recrudescimento da identidade hindu do Congresso e a

15Aqui faz referência à região continental do


d Sudeste Asiático, a leste da Índia e a sul da China.
O conceito mais estrito compreende apenas o Vietnã, o Laos e o Camboja.
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emergência de partidos abertamente pró-hindus, como o Partido Bharatiya


Janata, nos anos 80, as tensões se acirraram na sociedade indiana. O episódio da
destruição de uma mesquita supostamente construída sobre o local de
nascimento de um deus hindu em Ayodhya e o incêndio acidental de um vagão
de trem lotado de hindus – atribuído a muçulmanos – causaram violentos
protestos nacionais e assassinatos de islâmicos por hindus, aos quais o governo
central reagiu com lentidão. Isso põe em questão a eficiência do governo
indiano, secular, em resolver problemas com os quais ele está naturalmente
comprometido.
Outro enorme desafio que é a questão da Caxemira mostra o quanto a
influência do Paquistão nos assuntos internos indianos é enorme para a
determinação de suas políticas com alvo nos muçulmanos.16

A NOVA ECONOMIA INDIANA E SUAS IMPLICAÇÕES


Desde 1991, a economia indiana vem passando por intensas modificações
e pela reintegração em linhas internacionais. Nesse ano, a Guerra do Golfo17
cortou remessas financeiras de trabalhadores indianos nos países da região –
transações das quais a economia era profundamente dependente –, aumentou os
preços do petróleo no mercado mundial e exacerbou uma crise na balança de
pagamentos da Índia. Essa crise, então, foi combatida com um pacote de
reformas liberais que abriu o mercado indiano para o mundo e desregulamentou
amplos setores da economia. Em vista de tais reformas, as taxas de crescimento
indianas aumentaram sensivelmente, atingindo picos de 9% de 2005 a 2007.18
Tais números demonstram os efeitos da ruptura da política econômica planejada
por Nehru, calcada na substituição de importações,19 no planejamento central da
economia e no controle severo do empreendimento privado. Com efeito, a

16 Ver “Relações com o Paquistão”.


17 Conflito iniciado em 1990 com a invasão do Kuwait por tropas do Iraque (com a justificativa
de que o Kuwait estava causando a queda nos preços internacionais do petróleo), o que gerou
reação militar dos Estados Unidos, da Grã-Bretanha, da França, do Egito e da Arábia Saudita.
18 Economy Watch. < http://www.economywatch.com/economic-

statistics/India/GDP_Growth_Constant_Prices_National_Currency/ >
19 Modelo de industralização baseado na gradativa diminuição das importações de produtos

industriais em prol do consumo da produção industrial nacional. Foi utilizado em vários


países do Terceiro Mundo, como o Brasil.
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política do swadeshi20 estava deteriorando-se face ao fortalecimento da


burocracia e às conseqüentes dificuldades de estabelecer políticas econômicas
eficientes, aos altos níveis de corrupção e à fragilidade de uma economia
predominantemente agrária em relação a más colheitas.
A liberalização gerou oportunidades para um setor populacional em
específico. Uma massa de profissionais capacitados pelas universidades indianas
(que, em contraste com a educação primária, recebe altos investimentos
estatais) e que habitam os grandes centros urbanos e são fluentes em inglês,
passaram a ser empregados em dois setores ascendentes na Índia: o de serviços
e o de TI (tecnologia de informação, i.e. softwares). Essa vantagem comparativa
internacional fez com que esses dois setores florescessem na economia indiana:
em 2009, 62,6% da receita indiana era composta por serviços.21 Bangalore e
Hyderabad são os dois maiores centros produtores de tecnologia de informação.
Esse modelo de crescimento econômico, contudo, tem suas deficiências.
Em primeiro lugar, sua base não gera os empregos necessários para absorver a
crescente mão-de-obra urbana, composta de trabalhadores pouco qualificados
que preenchem os bolsões de pobreza das maiores cidades do país. A legislação
trabalhista implementada nos tempos de Nehru é outro problema: reveste o
trabalhador de proteções e direitos ao ponto de desestimular o empregador a
contratar. Os empregos nas cidades, então, ficam conscritos à informalidade. O
modelo de trabalho intensivo em tecnologia também impede a penetração da
prosperidade nas camadas rurais de trabalho, que concentram 52% da força de
trabalho indiana.22
Em suma, as reformas econômicas ainda precisam acelerar a
redistribuição de renda e a empregabilidade da economia da Índia, que avançam
a passos vagarosos. A quinta maior economia do mundo necessita também
combater deficiências de infraestrutura produtiva e assegurar fornecedores
constantes de petróleo e gás natural para sua crescente demanda energética.23

20 Doutrina econômica formulada por Mohandas Gandhi, que denunciava os danos sociais
causados pela indústria britânica e optava pelo consumo de produtos locais indianos. Foi
adaptada por Jawaharlal Nehru como uma doutrina de auto-suficiência e desenvolvimento
independente da economia nacional indiana.
21 CIA The World Factbook.
22 Op. cit.
23 “Índia precisa de US$1 trilhão para infraestrutura, diz governo”, BBC Brasil.

<http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2010/03/100323_india_infraestrutura_dg_cq.s
html>
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A INSERÇÃO INTERNACIONAL DA ÍNDIA


A política externa indiana perpassa alguns conceitos básicos, alguns dos
quais se mantiveram em pé no decorrer da história da Índia independente, ao
passo que outros surgiram das mudanças no panorama internacional das
últimas décadas (HARDGRAVE JR. e KOCHANEK, 2000).
O espaço de atuação internacional efetiva da Índia é o Sul da Ásia, ou seja,
é um espaço regional. Isso porque, para perseguir objetivos extra-regionais,
seria antes necessário que houvesse estabilidade no subcontinente indiano.
Dada a volatilidade da política regional, marcada pela tensão com o Paquistão,
pela instabilidade interna do Nepal, de Bangladesh e do Sri Lanka, pela ameaça
chinesa em sua fronteira e por suas próprias inquietações sociais (grupos
separatistas e comunalismo), a Índia precisa constantemente lidar com
emergências locais antes de agir perante a comunidade internacional de fato.
A estratégia regional da Índia, para a qual tal solidez política é
imprescindível, é a busca pelo reconhecimento como “potência regional” por
parte de seus vizinhos, em vista de sua supremacia econômica, demográfica e
militar. Com tal, Nova Déli visa a ganhar legitimidade para sua aspiração a uma
posição de destaque mundial. Essa aspiração é encabeçada pela busca de um
assento permanente no Conselho de Segurança da ONU.24 Nesse palco, a Índia
buscaria a paridade com a China no sistema internacional (HARDGRAVE JR. e
KOCHANEK, 2000). No entanto, esse fim é enormemente dificultado pela
intransigência paquistanesa em assumir a Índia como líder regional e pela
oposição de Pequim à ascensão de uma nova potência regional na Ásia. A
inserção econômica e comercial da Índia no mercado global ainda é fraca, o que
também a atrapalha na perseguição de seus fins.
A política externa da Índia sob Jawaharlal Nehru foi estruturada a partir
do conceito de não alinhamento. Esse conceito foi extraído e adaptado do
pensamento político de Mahatma Gandhi, mais precisamente das filosofias
swaraj e swadeshi, que significam, respectivamente, autogoverno e auto-
suficiência. Aplicado ao contexto da Guerra Fria, o não alinhamento determinou
uma postura de independência política em relação às duas superpotências. A

24 Comitê da Organização das Nações Unidas responsável por investigar e determinar a


existência de ameaças à paz e à segurança internacional, bem como formular, recomendar e
implementar ações políticas, econômicas e militares contra tais ameaças. É composto de cinco
membros permanentes com poder de veto (Estados Unidos, Rússia, China, França e Grã-
Bretanha) mais dez membros rotativos.
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expressão mais forte desse comportamento foi o Movimento Não Alinhado


(MNA), congregação de países que mantinham uma posição neutra à União
Soviética e aos Estados Unidos, que foi influente no mundo afro-asiático entre as
décadas de 50 e 60.
O Movimento dos Países Não-Alinhados tem suas origens na Conferência
de Bandung de 1955. Nessa conferência, temas como igualdade entre as nações,
a solução pacífica de conflitos e o rechaço do colonialismo e do imperialismo
foram discutidos. Em geral, os países africanos e asiáticos participantes tinham
obtido sua independência muito recentemente, e não desejavam alinhar-se a
qualquer um dos dois grandes pólos mundiais de poder vigentes à época. O
movimento nasceu oficialmente em 1961, em Belgrado (Iugoslávia). A
congregação de nações, embora optasse por uma “terceira via” em relação a
Washington e a Moscou, se comprometia a desempenhar um papel ativo na
política internacional, a fim de estabelecer a paz mundial. O MNA foi importante
especialmente na defesa dos últimos processos de descolonização na África
(Argélia e África portuguesa), e atuava em bloco na Assembleia Geral da ONU. Os
maiores líderes desse movimento, além do próprio Nehru, foram Gamal Abdel
Nasser25 e Josip Tito.26
Embora tenha adotado esse posicionamento, o perfil econômico da Índia
até os anos 1980aproximava-a do modelo de planejamento central da União
Soviética, a qual se tornou sua maior aliada a partir de 1962, quando da guerra
sino-indiana27. Na década de 1990, com a crise na balança de pagamentos, a
reformulação econômica e o colapso da União Soviética, a Índia passaria por
uma mudança profunda em seu perfil internacional, marcada pelo
estabelecimento de relações comerciais com potências ocidentais e aproximação
dos Estados Unidos. Não obstante, a conservação da autonomia política indiana
ainda é sobremaneira permeada pelo seu não-alinhamento dos anos de Guerra
Fria.

Relações com o Paquistão


Paquistão e Índia são países que nasceram juntos, e desde então mantêm
relações hostis. O gérmen desse atrito está ainda na era colonial, quando a

25 Militar e presidente do Egito de 1954 a 1970.


26 Chefe de Estado da Iugoslávia de 1953 a 1980.
27 Ler “Relações com a China”.

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ascensão do Congresso Nacional Indiano, de caráter hindu, à direção nacional


indiana não foi capaz de contemplar as necessidades da minoria muçulmana do
país, a qual passou a ser marginalizada nos processos de decisão nacionais. Esse
processo levou à defesa por parte da Liga Muçulmana da criação do Paquistão.
Em 1947, quando ocorreu a partilha da Índia, milhões de pessoas cruzaram as
fronteiras dos dois novos Estados, a fim de ir para sua “pátria correspondente”.
Esse fluxo foi marcado por ataques mútuos e inúmeros assassinatos, tal que esse
conflito viria a delinear o problema com que ambos os países teriam de lidar a
partir de então.
Ainda que não se possa simplificar a questão, o maior
Fig. 3: Caxemira
contencioso indo-paquistanês é a região da Caxemira. Sob o
jugo britânico, a Caxemira era um principado autônomo. Na
época da independência, a população era composta em dois
terços por muçulmanos, enquanto o marajá (governante) era
hindu. Essa situação fez com que a Caxemira não fosse
Fonte: Folha Online.

anexada imediatamente a nenhum dos dois novos Estados. Entretanto, não


tardou para que tribos paquistanesas invadissem a região com apoio
governamental, o que motivou a busca por proteção e a incorporação voluntária
da Caxemira à Índia. À época, Nehru prometeu a execução de um plebiscito
internacionalmente reconhecido para determinar a vontade soberana da
Caxemira a respeito do país de que faria parte. Esse plebiscito nunca aconteceu.
Como resultado, em 1965 Índia e Paquistão entram em guerra, pela primeira
vez, pela região da Caxemira.
Em 1970, foram realizadas eleições democráticas no Paquistão, quando
saiu vitorioso o partido Liga Awami, do Paquistão Oriental28. No entanto, a Liga
foi impedida de assumir o governo pelos líderes da porção ocidental29, que
perderam as eleições. A reação da região bengali (oriental) acabou sendo
suprimida militarmente pelo lado ocidental, gerando novos fluxos de refugiados
para a Índia. Nova Déli, por sua vez, reagiu com a ocupação militar da porção
oriental, e travou nova guerra com o Paquistão (Ocidental). Em 1972, tropas

28Hoje Bangladesh, país muçulmano de maioria étnica bengali, a qual não está presente no
Paquistão atual (Paquistão Ocidental, antes de 1972).
29 A porção oriental do Paquistão, que atualmente corresponde à totalidade do Estado

paquistanês, tem a seguinte composição étnica: Punjabi 44,68%, Pashtun 15,42%, Sindhi
14,1%, Sariaki 8,38%, Muhajirs 7,57%, Balochi 3,57% e outros 6,28%.
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indianas ocupam a cidade de Dakha30 e o novo Estado de Bangladesh,


independente do Paquistão, é reconhecido.
Já em 1984 e 1989 ocorreriam novas crises diplomáticas entre Paquistão e
Índia, resultando em mobilização militar sem a deflagração de guerra. Em 1999,
o governo indiano descobre que militares paquistaneses vinham infiltrando a
porção indiana da Caxemira, com o objetivo de bloquear uma estrada vital na
região de Kargil. A descoberta levou a um novo conflito. Nova mobilização
militar ocorreria em 2002, mas seria dissipada.
As tensões com o Paquistão representam um dos maiores problemas de
gestão política para a Índia. A região da Caxemira, além das reivindicações do
Paquistão, é marcada por ações terroristas e insurgências de grupos locais,
muitos dos quais eram abertamente apoiados pelo Paquistão até os anos 2000.
Alguns desses grupos são baseados no fundamentalismo islâmico, como o
Lashkar-e-Tayyiba (LeT) e o Jesh-e-Mohammadi (JeM).
Ademais, a dificuldade de lidar com o problema fronteiriço se dá pelo fato
de que a linha de controle que divide a região entre o Paquistão e a Índia é
bastante porosa, ou seja, facilmente penetrável e de pouco controle. Mortes são
diárias na região, e o processo de negociações de paz é constantemente
interrompido por declarações agressivas de ambos os lados, culpando um ao
outro por ataques terroristas em seu território.
Outro problema acarretado pela oposição ao Paquistão é a incapacidade
de coordenar a política e a economia regional, demonstrada pela ineficácia da
Associação Sul-Asiática para a Cooperação Regional (SAARC31) em aprofundar
relações comerciais no subcontinente. Além disso, as alianças do Paquistão com
China e Estados Unidos são usadas como escudo diplomático por Islamabad32.
A possessão de armas nucleares por ambos os Estados é uma questão
ambígua em seus efeitos. Tanto o Paquistão quanto a Índia sofreram condenação
e sanções internacionais por seus testes nucleares de 1998-9, e o emprego de
tais armamentos num novo conflito entre os países aumentaria
exponencialmente as baixas e provocaria reação internacional imediata.

30 Atual capital do Bangladesh.


31 Organização intergovernamental composta por oito países – os sete países do
subcontinente indiano mais o Afeganistão – para a cooperação nas mais variadas áreas, como
agricultura, economia, turismo, desenvolvimento social, segurança internacional, etc. Foi
estabelecida oficialmente em 1985.
32 Atual capital do Paquistão.

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Nenhum dos dois é signatário do Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP), ou


do Tratado para a Proibição Completa de Testes Nucleares. No entanto,
Islamabad e Nova Déli participaram de discussões em 2004 para a construção de
um ambiente minimamente seguro quanto às suas capacidades nucleares, e a
pressão global por uma postura responsável (de “não usar primeiro”) em
relação a esses armamentos é constante.

Relações com a China


As relações sino-indianas passaram da hostilidade Fig. 4: Arunachal
completa nos anos 1960 a uma aproximação gradativa, Pradesh
intensificada a partir de 1990. Os primeiros eventos
chineses que realmente afetaram a política indiana após
1947 foram a anexação do Tibete de 1950 e a revolta na
região em 1959, que provocou a fuga do Dalai Lama33 para
a Índia. China e Índia disputavam regiões fronteiriças: a
área correspondente hoje ao estado indiano de Arunachal
Pradesh, e o Aksai Chin, porção norte da Caxemira, eram
pleiteadas por Pequim. Quando a Índia descobriu que a Fonte: Wikimedia Commons.
China havia construído uma estrada que passa pelo Aksai
Chin, interligando o noroeste chinês ao Tibete, foi deflagrada uma guerra de
fronteira (1962). O exército indiano foi derrotado, e iniciou-se um período de
relações amargas entre os dois países.
Nos anos subsequentes, a China firmou laços com o Paquistão. As relações
sino-indianas sempre ficaram à margem dessa cooperação, e da sua parceria
militar de transferência tecnológica. Essa parceria é associada ao temor dos dois
países em relação aos objetivos e ao papel da Índia para o sul da Ásia. Em suma,
desejava-se conter o avanço da Índia como potência regional, objetivo que ainda
perdura nas políticas externas de Pequim e Islamabad.
Com a aproximação entre China e Estados Unidos, a Índia passou a tentar
uma aproximação com Pequim, acelerada com a queda da União Soviética, para
realizar diálogos sobre suas fronteiras e assuntos comuns. Em 1998, o processo
de aproximação sofreu um golpe com a afirmação indiana de que os testes
nucleares realizados foram resultado da insegurança causada pela China.
Contudo, outros fatos internacionais reforçaram o melhoramento de relações,
33 Título do líder espiritual budista e chefe do governo em exílio do Tibete.
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como a reprovação das ações da OTAN na Iugoslávia34, e o apoio chinês à Índia


no conflito de Kargil. Nos últimos anos, houve exercícios militares conjuntos, o
que demonstra comprometimento com a aproximação política.
Todavia, não se pode ignorar a rivalidade que ainda determina as relações
sino-indianas. Atualmente, a Índia fortalece suas relações e investimentos em
Myanmar, com o claro intuito de ter mais acesso ao mercado da ASEAN35 pelo
litoral birmanês, e assim contrabalancear a influência chinesa em seu
funcionamento. As questões de fronteira ainda não estão perfeitamente
resolvidas, e a China mantém seu apoio ao Paquistão de forma a contrapor-se ao
programa nuclear indiano. Hoje, o exponencial crescimento econômico indiano
precisa ser mantido por meio do fornecimento seguro de minerais de potencial
energético, como petróleo. Por isso, a Índia pode ter problemas futuros com a
China na competição por esses recursos.
Também nessa guerra, a influência na África e na Ásia de que a política
externa indiana gozava até então foi destruída, pela derrota causada por
fraqueza e despreparo militar.

Relações com a Rússia


Por décadas, a União Soviética e a Índia mantiveram relações muito
próximas. A primeira vendia armamentos à segunda e assegurava um
contrabalanço ao Paquistão e à China, enquanto a segunda era uma aliada
estratégica importante na conservação do Afeganistão como área de influência
soviética. Na guerra entre China e Índia, em 1962, a URSS foi indispensável no
fornecimento de material bélico para Nova Déli. A partir de então, os laços indo-
soviéticos se intensificaram sobremodo, estabelecendo certa dependência
diplomática de Nova Déli em relação a Moscou, em vista da necessidade de se
proteger das influências dos Estados Unidos e da China no Paquistão.
Na década de 70, a Índia passa a tentar diminuir sua dependência para
com os soviéticos. Em 1979, então, a URSS invade o Afeganistão, ação que foi
reprovada por Nova Déli, uma vez que provocaria uma resposta dos Estados
Unidos, sobretudo o fortalecimento de sua aliança com o Paquistão. Em 1991,

34 Em 1999, forças aéreas da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN, liderada


pelos EUA) bombardearam a Iugoslávia, no contexto da guerra de desintegração do país.
35
Organização internacional composta de dez países do Sudeste Asiático, que tem como
objetivo coordenar o desenvolvimento econômico e as questões de segurança da região.
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com a crise econômica indiana e a desintegração da URSS, as relações indo-


soviéticas se desestruturaram completamente. A partir de 1993, reorganizaram-
se os canais de comércio de armamentos e solucionaram-se os desequilíbrios
comerciais. Embora a cooperação esteja aumentando sensivelmente, é
improvável que o relacionamento entre Rússia e Índia um dia retorne aos
patamares dos anos 60.

Relações com os EUA


Índia e Estados Unidos viram suas relações melhorarem
significativamente desde o início da década de 90. Nos tempos de Guerra Fria, a
política de não alinhamento da Índia impediu que os Estados Unidos
encontrassem nela o aliado necessário para conter o comunismo soviético no
subcontinente indiano. Para suprir essa necessidade, realizou-se a aproximação
com o Paquistão. A aliança norte-americana com a maior ameaça à sua
segurança nacional fez com que a Índia visse Washington com desconfiança e
cautela. Relações comerciais com os EUA e ajuda humanitária norte-americana
na Índia, não obstante, sempre existiram.
Os laços entre Washington e Nova Déli começaram a melhorar
intensamente a partir de 1991; os investimentos norte-americanos aumentaram
sensivelmente, e hoje constituem uma importante fonte de capital externo para
a economia indiana. O teste nuclear da Índia em 1998, contudo, representou um
esfriamento nesse processo, em vista da defesa estadunidense (e de seus
aliados) de sanções econômicas e financeiras à Índia. Logo nos anos 2000, o
relacionamento voltou ao status quo anterior, e a cooperação foi retomada.
Em 2004-5, George W. Bush e Manmohan Singh36 embarcaram em uma
parceria estratégica ampla e de prospecto duradouro. A Índia já havia oferecido
apoio irrestrito à “guerra ao terror” promovida pelo governo norte-americano
após o ataque a Nova Iorque em 2001. Em 2005, firma-se um acordo de
cooperação de 10 anos, nas áreas de transferência tecnológica, produção de
armamentos e mísseis de defesa. O impacto real desse acordo foi o
reconhecimento de facto, pelos EUA, do status nuclear da Índia.
A parceria com os Estados Unidos é muito importante para ambos,
sobretudo como um contrapeso à ascensão da China no sistema internacional.

36 Atual primeiro-ministro da Índia.


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Todavia, os fortes laços entre EUA e Paquistão continuam em vigor, e há


determinado desconforto em relação à intervenção militar norte-americana em
regiões vizinhas, como na Ásia Central.

ÍNDIA E BRASIL: OBJETIVOS EM COMUM E COOPERAÇÃO


Índia e Brasil são países semelhantes em vários aspectos. Embora suas
culturas e evoluções históricas sejam marcadamente díspares, compartilham
similitudes em dimensão geográfica, vastidão populacional (em proporção
mundial, não em números), potencial econômico, projeção política regional e
problemas sociais. A despeito disso, o conhecimento mútuo foi restrito a
esparsos contatos diplomáticos, com pouco ou nenhum engajamento político ou
econômico real. A embaixada da Índia no Brasil foi aberta em 1948, no Rio de
Janeiro. As políticas externas dos dois países, sob o manto da Guerra Fria, eram
profundamente destoantes: enquanto a Índia adotava o padrão de não alinhada,
o Brasil optava por uma aliança estratégica com os Estados Unidos.
O fim da Guerra Fria foi acompanhado pelo término da austeridade
política internacional causada pela bipolaridade. Uma nova ordem mundial foi
restabelecida sob princípios majoritariamente ocidentais, a transnacionalização
de empresas se intensificou, o pioneirismo tecnológico tornou-se uma variável
crucial para a competitividade internacional, e imperativos liberais na economia
se tornaram necessários para a inserção internacional. Brasil e Índia adotaram,
cada um à sua forma e intensidade, os preceitos dessa nova ordem mundial, com
o intuito de integrarem-se a ela e dar mais peso às questões do Terceiro
Mundo/Sul político.
A política externa brasileira, depois da redemocratização e do fim da
Guerra Fria, sobretudo a partir do governo de Itamar Franco (1993-95), foi
flexibilizada em relação à sua aliança com os Estados Unidos, e, embora oscilante
entre os diferentes mandatos presidenciais, foi adotado um padrão ativo de
participação internacional e de liderança regional. Por convergência de reformas
em suas políticas externas, então, Índia e Brasil agem de maneira similar na
política internacional: tentam estabelecer-se como hegêmonas regionais, e
aproveitam-se dessa importância regional para advogar por reformas no
sistema internacional que favoreçam a ação política do Sul. Tal semelhança de

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objetivos externos foi logo percebida pelos formuladores de política externa da


Índia.

Fig. 5: Comércio Índia-Brasil, 1989-2009 (referencial Brasil)


4.000.000.000
3.500.000.000
3.000.000.000
2.500.000.000
2.000.000.000
Exportaçõ
1.500.000.000 es
1.000.000.000
500.000.000
0
19891991199319951997199920012003200520072009

Fonte: Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior

A reformulação da economia e política comercial da Índia definiu um


padrão de diversificação de clientes, do qual nenhuma área do globo poderia
ficar de fora. Houve diversas visitas de ministros (dos transportes, das relações
exteriores, etc.) indianos ao Brasil entre 1992 e 1995, sem uma resposta
igualmente calorosa. O comércio indiano com o Brasil – historicamente
incipiente – começou a incorrer em déficit para o lado brasileiro, visto que o
crescimento das exportações indianas para o Brasil não era contrabalanceado
por um aumento das exportações brasileiras para a Índia. No âmbito do GATT37,
muitas vezes o Brasil e a Índia agiram em coincidência, sobretudo na defesa da
não discussão de serviços e propriedade intelectual, que poderia retardar planos
de desenvolvimento nacionais. Com o advento da OMC, Brasil e Índia passaram a
combinar ações deliberadamente.
Interessantemente, o fim do regime de apartheid38 na África do Sul em
1990 e a reintegração política desse país no mundo permitiram o uso de seu
território como entreposto entre Índia e Brasil em seu comércio bilateral,
diminuindo custos.

37 Acordo Geral de Tarifas e Comércio, estabelecido em 1947 em prol da liberalização


econômica mundial, cujas negociações deram origem à Organização Mundial do Comércio
(OMC) em 1995.
38
Regime de segregação social e legal entre pessoas de pele branca e negra, grupos
miscigenados e populações indianas, vigente na África do Sul de 1948 a 1990-4.
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Em 1996, quando da visita do presidente Fernando Henrique Cardoso,


acompanhando de alguns ministros, à Índia, inicia-se uma nova fase de tentativa
intencional de cooperação bilateral com a Índia. Foram assinados vários acordos
de criação de comissões de cooperação nas áreas ambiental, informacional,
energética, comercial, etc. Logo depois dessa visita, a Índia abriu seu primeiro
consulado geral na América Latina, em São Paulo, e o Ministério de Comércio e
Indústria indiano promoveu seminários sobre fazer negócios no Brasil, para
estimular os laços comerciais.

Fig. 6: Comércio Índia-Brasil, principais produtos (2009)39


60
40
20
0
-20
-40
-60
-80

Fonte: Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior

Posteriormente ao ano 2000, inicia-se uma nova fase de relações indo-


brasileiras. A necessidade indiana de desenvolver fontes alternativas de
tecnologia, de manter contato com empresas estrangeiras e de manejar questões
de seguridade energética determinou a nova aproximação com o Brasil. O
comércio aflora dos dois lados, com déficits variando de um lado para outro.
A posse de Luís Inácio Lula da Silva trouxe renovação à política externa
brasileira. O pleito de um assento permanente no Conselho de Segurança da
ONU foi renovado, a oposição Norte-Sul foi restaurada na visão internacional do
Brasil e advogou-se pela reforma nas Nações Unidas. O Brasil entrou no “G4”
(Alemanha, Japão, Brasil e Índia) dos países que desejavam obter um assento
39 Em negativo estão importações que o Brasil realiza da Índia, para fins de compreensão
visual.
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permanente no Conselho de Segurança. Buscam-se também negociações


realistas e compreensivas para os países subdesenvolvidos na OMC.
Oficializando laços que amadureciam nos últimos anos, a Declaração de
Brasília de seis de junho de 2003 cria o Fórum de Diálogo Índia-Brasil-África do
Sul (IBAS), cuja proposta de operação se encontra nos seguintes pontos: (a)
coordenação em instâncias multilaterais, (b) cooperação técnica, científica,
comercial e cultural entre os três países e (c) a democratização do espaço global
de tomada de decisões. Em outros termos, a conjunção das relações comerciais
crescentes no triângulo formado por esses Estados com o desejo de obter mais
poder de barganha e notoriedade internacional faz com que seja criado um palco
específico para o planejamento de ações concertadas. No âmbito da OMC,
especificamente, os países do IBAS se opõem fortemente aos subsídios agrícolas
praticados pelos países desenvolvidos.

CONCLUSÃO
A Índia tradicionalmente aspira a uma realocação do poder político no
sistema internacional a favor do Terceiro Mundo. A obtenção dessa meta é uma
das maiores prioridades da política externa indiana há décadas. Em vista disso, a
Índia se insere ativamente no contexto de emergência de novos pólos de poder
no mundo, passando por um processo de reconstrução econômica e política que
a aproxima em alguns pontos à China atual. Essa comparação, contudo, mostra-
se extremamente delicada, devido às especificidades dos desafios de cada nação.
A Índia é um país de diversidade étnico-linguística única, cuja unidade por si só
constitui um feito admirável, ainda que não livre de perturbações periódicas. A
carência de investimentos externos para dar cabo de seu projeto de reforma
infraestrutural e assim prosseguir com o acelerado crescimento econômico, a
incerteza das relações com o Paquistão, o racionamento de recursos naturais
pressionados pelo crescimento ainda significativo da população, a urbanização
da sociedade e as forças sócio-políticas que surgem desse processo; esses são
alguns dos problemas da agenda política da maior democracia do mundo. De
qualquer forma, a ascensão da Índia é uma realidade bastante concreta,
peculiares que sejam as características que a revestem.
O Brasil tem lições a aprender e a ensinar acerca de problemas comuns
enfrentados por ele e pela Índia. A despeito de suas articulações geopolíticas
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regionais marcadamente diferentes, as duas sociedades passam por incrementos


similares no poder aquisitivo, compartilham a consensual percepção
internacional de seu ganho de peso político e têm de lidar com problemas sociais
(fome, analfabetismo, criminalidade, más condições sanitárias) análogos. A
cooperação com vista na troca de experiências nesses setores, por conseguinte,
se torna primordial para o avanço e para a sobrevivência dos modelos atuais de
inserção internacional positiva de ambos os países.

LEITURAS COMPLEMENTARES40
Leitura obrigatória
MENDONÇA, Gustavo Resende. A Índia Emergente: oportunidades e desafios do gigante
asiático. 27 jun. 2009. Disponível em: http://meridiano47.info/.

Leitura complementar
GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. Desafios e dilemas dos grandes países periféricos: Brasil e Índia.
Revista Brasileira de Política Internacional, v. 41, n. 1, Brasília, Jan/Jun 1998.
OLIVEIRA, Marcelo Fernandes de. Alianças e Coalizões Internacionais do Governo Lula: o IBAS e
o G20. Revista Brasileira de Política Internacional, v. 48, n. 2, Brasília, Jul/Dez 2005.
LIMA, Marcos Costa. Índia: avanços, problemas e perspectivas. In: III CONFERÊNCIA NACIONAL
DE POLÍTICA EXTERNA E POLÍTICA INTERNACIONAL - ÍNDIA. Rio de Janeiro, 28 de agosto de
2008, Palácio Itamaraty.
Ministério das Relações Exteriores. Temas Políticos e Relações Bilaterais: Índia. Disponível em:
http://www.itamaraty.gov.br/temas/temas-politicos-e-relacoes-bilaterais/asia-e-
oceania/india/pdf.

QUESTÕES PARA DISCUSSÃO


1. A Índia, com suas características socioculturais e políticas, pode ser considerada a maior
democracia do mundo?
2. Qual a mudança de enfoque da política externa indiana voltada à segurança nacional desde
a independência?
3. Em que medida a Índia serve aos interesses dos EUA na Ásia?

40Disponível no site do Projeto “Relações Internacionais para Professores”:


http://www.cursoripe.blogspot.com/.
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4. Por que as relações Índia-Brasil foram tão frágeis historicamente e quais possibilidades se
projetam?
5. Qual o interesse da Índia com o IBAS e o BRIC?

LINKS ÚTEIS
1. Embaixada da Índia no Brasil.
Disponível em: http://www.indianembassy.org.br/.
2. Associação Sul-Asiática para a Cooperação Regional (SAARC): em inglês
Disponível em: http://www.saarc-sec.org/.

FILMES
Gandhi (1982), de Richard Attenborough.
Trailer em: http://www.youtube.com/watch?v=R1j8mFNDF1Y (em inglês)
História da vida política de Mohandas Gandhi, mais tarde conhecido como Mahatma Gandhi,
desde seus tempos de advogado na África do Sul até seu assassinato em 1948, após ter
mudado completamente a política – e a história – da Índia.

Sob a Luz da América (2004), de Robert Christian.


Trailer em: http://www.youtube.com/watch?v=srBHY4xX0Cs (em inglês)
O filme retrata a realidade de uma operadora de call center de uma compania de cartões de
crédito em Nova Delhi, mas os usuários de cartão estão nos EUA. Os horários de trabalho são
de madrugada em Delhi, para que coincida com o dia nos EUA (daí o nome do filme).

Entre Dois Mundos (2007), de Vic Sarin.


Trailer em: http://www.youtube.com/watch?v=CD_MTjI2DKo.
Retrata a traumática divisão da Índia e do Paquistão, explorando o ponto de vista dos siques
na região de Punjab.

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BIBLIOGRAFIA
JANE’S INFORMATION GROUP. India. Jane’s Information Group, 2009. Disponível em
www.janes.com.
OLIVEIRA, Marcelo Fernandes de. Alianças e Coalizões Internacionais do Governo Lula: o
IBAS e o G20. Revista Brasileira de Política Internacional, v. 48, n. 2, Brasília, Jul/Dez 2005.
LUCE, Edwards. In Spite of All Gods: the strange rise of modern India. Londres: Doubleday,
2006.
HARDGRAVE JR., Robert L; KOCHANEK, Stanley A. India: government and politics in a
developing nation. Orlando: Harcourt Brace, 2000.
BOSE, S.; JALAL, A. Modern South Asia: History, culture, political economy. Nova Iorque:
Routledge, 1998.
VIEIRA, Maíra Baé Baladão. Relações Brasil-Índia (1991-2006). Tese (Mestrado em
Relações Internacionais) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2007.

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