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“- Você acreditava tão piamente em Deus? Perguntei-lhe, incrédulo.

- Meu amigo, esta é talvez uma questão supérflua. Mesmo supondo que eu não
acreditasse tanto, nem assim poderia me impedir de lamentar a idéia. Em
alguns momentos eu sequer conseguia imaginar como o homem poderia viver
sem Deus, nem mesmo se isso seria possível. Meu coração respondia sempre
que isso era impossível; mas talvez por um certo período fosse possível... Para
mim, não há duvida de que esse período virá; mas então eu me representava
um quadro totalmente diferente...
- Qual ?
Talvez ele já me tivesse declarado que era feliz; em suas palavras havia
evidentemente muito entusiasmo; é assim que eu interpreto boa parte do que
ele então me disse. Por respeito, eu certamente não me arriscaria a pôr no
papel tudo o que dissemos naquela época; mas alguns traços do singular
quadro que consegui obter dele devem ser mencionado. Sobretudo, tendo sido
sempre atormentado por essas “correntes”, eu queria tirá-las a limpo: por isso
insistia. Várias idéias fantásticas e extremamente singulares expressas por ele
naquele dia ficaram gravadas para sempre no meu coração.
- Eu imagino, meu caro, começou ele com um sorriso pensativo, que o combate
tenha agora terminado e a luta, se acalmado. Após as maldições, os
lançamentos de lama e os apitos, chegou a calma e os homens ficaram sós,
como eles queriam: a grande idéia de outrora os deixou; a grande fonte de
energia que até aqui os alimentou e aqueceu se retirou, como o sol majestoso
e sedutor do quadro de Claude Lorrain, mas agora era o último dia da
humanidade. E de repente os homens compreenderam que tinham ficado
completamente sós, sentindo bruscamente um grande abandono de órfãos.
Meu caro menino, eu jamais pude ver os homens como ingratos e abobalhados.
Os homens tornados órfãos se apertariam subitamente uns contra os outros,
mais estreita e afetuosamente; eles se tomariam as mãos, compreendendo que
dali em diante eles seriam todos uns pelos outros. Então desapareceria a
grande idéia da imortalidade e seria preciso substituí-la; todo esse grande
excesso de amor por aquele que era a imortalidade se voltaria para a natureza,
o mundo, os homens, cada folhinha de relva. Eles se apaixonariam pela terra e
pela vida irresistivelmente e à medida que fossem tomando consciência de sua
condição passageira e finita, de um amor particular, que não seria mais o de
antigamente. Eles notariam e descobririam na natureza fenômenos e mistérios
até então insuspeitados, pois eles a olhariam com novos olhos, com o mesmo
olhar de um apaixonado para sua bem-amada. Eles acordariam e se
apressariam a se beijar e a se amar uns aos outros, sabendo que seus dias
efêmeros é tudo que lhes resta. Eles trabalhariam pelo outro, dando tudo a
todos e com isso seriam felizes. Cada criança saberia e sentiria que todo
homem sobre a terra era para ela um pai e uma mãe. “Que amanhã seja meu
último dia, se diriam todos olhando o sol poente; eu morrerei, mas pouco
importa: eles continuarão, todos, e depois deles, seus filhos” – e este
pensamento de que permanecerão, continuando a se amar e a se preocupar
com uns com os outros, substituirá a idéia do encontro no além-túmulo. Oh!
Como eles buscariam se amar, para sufocar o grande desgosto em seus
corações. Eles seriam orgulhosos e arrojados para si mesmos, mas tímidos
para os outros; cada um se empenharia pela vida e pela felicidade do outro.
Eles se tornariam ternos para com os outros sem se envergonhar, como hoje,
eles se acariciariam como se fossem crianças. Ao se encontrarem se olhariam
com um olhar profundo e cheio de inteligência, e em, seus olhares haveria
amor e tristeza.

Meu caro, interrompeu-se ele de repente com um sorriso, tudo isso não passa
de fantasia, e das mais inverossímeis; mas eu a representei frequentemente
porque jamais pude viver sem ela nem pude me impedir de nela pensar. Não
falo de minha fé: minha fé não é grande; sou deísta, deísta filósofo, como
qualquer um desses milhões de homens, pelo menos é o que suponho, mas...
mas o que é notável, é que sempre terminei meu quadro com uma visão, como
em Heine, “do Cristo sobre o Báltico”. Nunca pude ficar sem Ele. Eu não podia
não vê-Lo, enfim, entre os homens que ficaram órfãos. Ele vinha a eles,
estendia-lhes os braços e dizia: “Como vocês puderam me esquecer Então
uma espécie de véu cairia de todos os olhos e soaria o hino entusiasta da
nova e última ressurreição...”

Dostoievski, O adolescente (1875) tradução a partir da edição francesa por


Heloisa Gonçalves Bartoli

DOSTOIEVSKI, Feodor, L’adolescent, Paris, Gallimard, Bibliothèque de la


Plêiade, 1956, p. 511-512

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