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CDD: 192

LIBERDADE E NECESSIDADE NA FILOSOFIA DE HOBBES

MICHEL MALHERBE

Université de Nantes – UFR Lettres et Langages


Département de Philosophie
Rue de la Censive du Tertre - BP 81227
44312 Nantes Cedex 3
FRANCE
michel.malherbe@laposte.net

Tradução: Maria Isabel Limongi

Resumo: A controvérsia sobre a liberdade e a necessidade é, segundo Hobbes, puramente verbal.


Basta oferecer a boa definição da liberdade: é livre todo movimento que não se depara com nenhum
obstáculo exterior. Sobre a base de uma tal definição física, pode-se dar conta do ato voluntário do
pacto? Do mecanismo que rege os corpos naturais ao artifício do corpo político, a conseqüência é
boa? Sustentaremos a idéia de que a liberdade na ordem civil é a de um ser racional.

Palavras-chave: Hobbes; liberdade; necessidade; mecanicismo; ficção; artifício; razão.

Abstract: The controversy on liberty and necessity is, for Hobbes, a verbal one. It is sufficient to
offer the good definition of liberty: the motion that does not find any external obstacle is free. From
this physical definition, can we give an account of the voluntary act of the covenant? From the
mechanism that rules natural bodies to the artifice of the political body, is the consequence good?
We shall argue that the liberty in the civil order is that of a rational being.

Key-words: Hobbes; liberty; necessity; mechanism; fiction; artifice; reason

I. INTRODUÇÃO
A controvérsia sobre a liberdade e a necessidade é inesgotável. Uma
controvérsia quando não chega a seu termo mistura às razões que agita valores
que se opõem. Seu interesse faz com que mesmo o cético, além do gosto pela
disputa, tenha outros motivos para se lançar nela. E todos sabem que os valores
se nutrem em outros solos que não a filosofia.

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Que seja assim na presente controvérsia é evidente. A questão do lugar do
homem na ordem das coisas, de sua dependência ou liberdade, não diz respeito
apenas à filosofia: aí está envolvido o desejo que se tem pelo mundo e a dignidade
da humanidade, a satisfação econômica das necessidades e os fins da história, a
necessidade universal ou a toda-potência de Deus. E é bastante compreensível
que a questão movimente os ânimos com certa virulência no século XVII: a velha
concepção de origem aristotélica, segundo a qual o conhecimento mais perfeito
da natureza é obtido pelas causas finais e segundo a qual a finalidade das causas
supõe uma representação da inteligibilidade do Ser, representação onde se pode
alocar a deliberação e a ação dos homens – esta velha concepção é posta à prova
pelo pensamento dos modernos. E o século XVII recusa ainda a engajar-se na via
fácil de uma solução dualista, da ordem do corpo e da ordem da alma, do
mecanicismo explicativo e do finalismo reflexivo, do império da natureza e do
reino da moral e da história, da verdade e do sentido. O homem tem realidade no
mundo, há apenas um mundo e Deus está no jogo. A amplitude no debate é, assim,
considerável. Sabemos que ele tomou a forma, entre outras, de uma longa e
repercutida querela entre Hobbes, o filósofo, e Bramhall, o bispo, querela a qual
por vezes faltou serenidade filosófica e caridade cristã1 .
Hobbes, antes de Hume, declara que a controvérsia é puramente verbal,
bastando definir exatamente os termos liberdade e necessidade para que se descubra
não haver nenhuma contradição entre eles e que a ação humana pode ser livre,
mesmo sendo necessária. “A liberdade e a necessidade são compatíveis” 2 . Erro
filosófico que a filosofia pode corrigir! Se isso é verdade, duas definições, clara e
distintamente expressas, darão cabo rapidamente de nosso assunto.

II. A DEFINIÇÃO DA LIBERDADE E DA NECESSIDADE


Leiamos os primeiros parágrafos do capítulo XXI do Leviathan, onde
Hobbes se apóia no uso comum das palavras.
1Para uma apresentação desta querela ver Thomas Hobbes, de la liberté et de la necessité,

introdução e tradução de F. Lessay (Vrin, Paris, 1993) et Thomas Hobbes, les questions
concernant la liberté, la necessité et le hasard, introdução e tradução de L. Foisneau (Vrin,
Paris, 1999).
2Leviathan, XXI, parágrafo 4.

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É livre todo ser em movimento que não encontra obstáculo exterior. Esta
definição bastante geral vale igualmente bem, e de maneira unívoca, para os seres
inanimados, os animais sem razão e as criaturas razoáveis. Diz-se que um rio é
livre quando seu curso não é impedido; que um animal é livre quando pode
mover-se como quer; que um homem é livre quando o poder que tem para
realizar seus fins não é contrariado. O obstáculo é sempre exterior; quando o
impedimento é interior, não dizemos do ser em questão que não é livre, mas que
não tem o poder de fazer isso ou aquilo. Ele não tem liberdade relativamente a si
mesmo. E, quanto a isso, o homem não tem na natureza um caráter especial.
Hobbes pretende ater-se a este uso da palavra. Por que não? Cada um
pode definir as palavras como as entende. Mas a definição mencionada só pode
valer para todo ser em geral, os homens assim como as pedras, se um princípio
metafísico for primeiramente estabelecido, a saber, que a palavra liberdade só pode
ser aplicada aos corpos: “quando, ao contrário, as palavras livre e liberdade são
aplicadas a outra coisa que não aos corpos, trata-se de um abuso da linguagem” 3 .
Não é pois o uso da língua que regula a filosofia, mas a filosofia que regula a
linguagem.
Para resumir: a liberdade é uma propriedade que pertence à ação da qual
consideramos a eficiência; ora, toda ação eficiente é a ação de um corpo em
movimento. Temos aqui, portanto, três pontos: a afirmação de que o modo da
causalidade a ser considerada é o da causalidade eficiente; a tese do mecanicismo
(tudo o que vem a ser no mundo é movimento); e a tese materialista (todo ser é
corporal). O bom bispo Bramhall não pode evidentemente consentir com isso.
A compatibilidade entre a liberdade e a necessidade é, em seguida, fácil de
ser estabelecida: toda causa eficiente é ela mesma causada, pertencendo portanto
a uma cadeia causal e contínua (ou a uma rede de causalidade) cujo primeiro elo
se encontra na mão de Deus: a ação livre (ou não livre), que é o efeito consi-
derado, resulta de um encadeamento necessário de causas e efeitos ou, se remon-
tarmos ao princípio, da vontade mesma de Deus que, dispondo de um poder
absoluto, não é impedida por nada, cumprindo-se portanto necessariamente 4 .

3Leviathan, XXI, parágrafo 2.


4Leviathan, XXI, parágrafo 4.

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Diríamos assim que o rio, não havendo barragem, é livre para seguir seu curso, e
que lhe é ao mesmo tempo necessário segui-lo; que o animal vai aonde lhe apraz,
ainda que seu impulso seja dirigido pela fome que sente; ou ainda, que um
homem é livre para realizar a ação que projeta quando não se depara com
nenhum impedimento, ainda que sua vontade seja necessariamente determinada
por um conjunto complexo de causas, de motivos, de móbeis, de condições, de
circunstâncias. A definição dada de liberdade é portanto compatível com a mais
estrita necessidade.
Diria-se, talvez, que não se ganha grande coisa com isso, que Hobbes é
certamente um bom filósofo, mas que é preciso começar por conceder-lhe a
ontologia dos corpos a partir da qual ele estabelece uma tal compatibilidade. Duas
estratégias são então possíveis: ou contestar esta tese ontológica, ou mostrar que
Hobbes é incapaz de mantê-la, quando, tomando-a como ponto de partida,
procura dar conta de fenômenos – a saber, a vida moral, social e política dos
homens – que não deixam de fomentar um certo sentimento de sua liberdade.
Pois, Hobbes não fala apenas de movimento, mas também de vontade e deli-
beração, do cálculo racional em vista de fins, da autorização do soberano, da
liberdade dos súditos e mesmo, em um certo sentido, da liberdade das criaturas
relativamente ao Criador, de sorte que aquilo que ele reduziu analiticamente em
duas definições bastante simples, ele recompõe de um modo sintético. Se
tomamos o primeiro ponto de vista, nos engajamos num debate metafísico que
ultrapassa largamente nosso quadro presente; assim, nos limitaremos ao segundo,
colocando a seguinte questão: ao tirar as conseqüências dos princípios, ao deduzir
as causas dos efeitos, ao passar da realidade posta (os corpos) aos fenômenos (a
vida dos homens), Hobbes não foi levado a conceder mais do que queria? Não há
mais, por exemplo, na vontade que na paixão e mais na paixão que no movimento?
Para não nos estendermos muito, restemos aqui: consideremos o “ato
voluntário” (Hobbes emprega esse termo) pelo qual os homens, levados pelo
medo da morte infligida pelo outro no estado de guerra, instituem a República.
Este ato é uma operação complexa que implica, no mínimo, um acordo entre os
contratantes, um consentimento, um cálculo racional, a constituição de uma força
de coerção, a própria autorização do soberano, enfim, a submissão de nosso

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poder e de nossa vontade natural ao poder e vontade de um terceiro. E a questão


vem a ser a seguinte: dado que o artifício tem a natureza por fundamento, a
concepção mecanicista da liberdade sustentada por Hobbes é suficiente para dar
conta deste ato? Ou seria necessário supor no homem uma faculdade moral
original, capaz de autonomia, agindo por escolha, apta a representar o bem, e que
transforme o ser humano em uma personalidade moral, irredutível a sua
existência corporal, antes de fazê-lo uma personalidade jurídica ou um cidadão?
Esta questão é importante para a compreensão da obra de Hobbes bem
como da unidade de sua doutrina. Com efeito, a sistemática hobbesiana depende,
de maneira decisiva, do estatuto que se dá à antropologia servindo de base à
teoria política. Se esta antropologia é mecanicista, se a liberdade humana é uma
peripécia, um epifenômeno da necessidade universal, então, ela se segue da física
do movimento (e da metafísica materialista que é preciso colocar como funda-
mento de uma tal física): mas, nesse caso, o passo entre o homem natural e o civil
parece imenso. Se, inversamente, para reduzir essa distância, requer-se uma antro-
pologia moral, única reputada apta para fundar a política (tendo se tornado
impossível sustentar o velho naturalismo finalista de Aristóteles), então, é preciso,
como fazem vários comentadores, criar uma grande divisão na obra de Hobbes: a
física de um lado, a moral e a política do outro. Notemos que Bramhall e a maior
parte dos contemporâneos de Hobbes, pela vivacidade mesma de sua reação,
tomam como evidente a primeira perspectiva; e o materialismo mecanicista do
filósofo de Malmesbury não foi a razão da condenação de sua doutrina política.
Notemos igualmente que, se tomarmos a letra dos primeiros capítulos do
Leviathan, aparece claramente que a antropologia é reportada a uma física do
movimento e que Hobbes se aplica a traduzir todos as suas partes em termos de
necessidade mecânica.
Dois momentos, portanto: um primeiro em que consideramos em linhas
gerais esta antropologia mecanicista, perguntando pelo sentido que se pode dar à
liberdade numa realidade humana composta de relações de movimentos – um
movimento que, como se sabe e como Hobbes insiste, só pode gerar movimento;
um segundo em que se requer saber que sentido se pode dar à instituição da
sociedade civil sobre a base de uma tal ciência da natureza humana e se é ou não

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preciso, a fim de compreender o artifício que conduz à geração de um outro tipo
de corpos que não os naturais, supor uma definição da liberdade que exceda a
que lembramos acima. A resposta a estas questões condiciona (e condicionou) a
interpretação que cabe dar à sociedade civil: a ordem política está submetida à
mesma necessidade que a ordem natural? Ou ela é um espaço de liberdade em
que os homens, tornados súditos, passam a ser responsáveis por uma coerção de
outra natureza, a ordem do soberano?

III. UMA ANTROPOLOGIA MECANICISTA


Tal antropologia repousa sobre uma doutrina do duplo movimento: o
movimento vital e o movimento animal 5 . O movimento vital é um movimento
interior, mais ou menos assimilado à circulação do sangue, que concerne a todas
as funções fisiológicas e que mantém em vida o indivíduo. O movimento animal,
por sua vez, supõe que o indivíduo seja afetado por um corpo exterior, chamado
objeto, ou seja, que o movimento do corpo exterior cause uma pressão sobre os
sentidos e em seguida um movimento interior, que pode ser favorável ou
contrário ao movimento vital. Este movimento animal concerne a todos os seres
animados, e não apenas ao homem.
O objeto, através de seu movimento, agita os sentidos, que transfere esse
movimento ao coração e ao cérebro, onde ele encontra uma resistência, que se
exprime, por sua vez, por um movimento de contra-pressão, do qual o coração
procura se livrar 6 . Assim nasce um contra-movimento, de natureza reativa, um
conatus, dirigido ao exterior. E este conatus, estando dirigido ao exterior, aparece,
parece ser, na sensação, qualquer coisa situada no exterior e percebida como uma
qualidade da coisa. A sensação é, assim, o sentimento desse contra-movimento, e
se dá sob a forma de um fantasma, de uma imagem (forma visual, som, etc.) que
parece pertencer à coisa. Daí a diferença entre a realidade material do objeto, que

5Para uma exposição completa, ver F. Tricaud, “Le vocabulaire de la passion”, em

Hobbes et son vocabulaire, sob a direção de Y.C. Zarka (Vrin, Paris, 1992), p. 139-54.
6A função respectiva do cérebro e do coração muda quando se passa do Elements of

Law ao Leviathan. Os Elements of Law assinalam como a causa da sensação um movimento


da cabeça; o Leviathan reenvia ao esforço do coração ao exterior.

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não é senão um corpo em movimento, e sua aparência, a qualidade sensível que


lhe é atribuída. E essa diferença se reencontra no próprio sujeito: “todas as quali-
dades denominadas sensíveis não estão no objeto que as causa senão enquanto
movimentos variados da matéria, pelos quais esta pressiona nossos órgãos de
diversas maneiras. E, em nós, que sofremos esta pressão, tampouco elas são algo
mais do que movimentos diversos; pois o movimento nada produz senão
movimento. Mas estes movimentos nos aparecem sob a forma de fantasmas...” 7 .
A sensação, tanto em seu aspecto subjetivo como objetivo, não é senão uma
aparitio, a seeming. Em outros termos, a consciência não tem senão uma realidade
fenomênica. Não se poderia, portanto, fazer dela um princípio de realidade.
A atividade da imaginação (da faculdade de representação) se compreende
a partir daí. Duas coisas, ligadas ao princípio de inércia, devem ser levadas em
consideração. Quando uma coisa está em movimento, nele permanece eterna-
mente na ausência de um movimento contrário. A sensação, sendo a vivência de
um conatus, se conservaria, se outros objetos não pressionassem os sentidos. Esses
outros movimentos suscitam por sua vez sensações, mas o efeito da contrarie-
dade ou do impedimento não é instantâneo. Daí que, findada a sensação, a
imagem possa se conservar por um tempo mais ou menos longo, enfraquecendo-
se; donde a definição da imaginação como um decaying sense. Em seguida, as
imagens ou os phantasmata formam um discurso mental: os movimentos
associados no momento em que foram produzidos restam ligados, sobretudo se
esta associação se repete, “de sorte que se o primeiro novamente tem lugar e
predomina, o segundo o segue devido à coesão da matéria movida” 8 .
Até aqui, tudo é mecânico. A consciência que temos da sensação e de nossa
atividade mental não é senão fenomênica. A quem objetar que isso já é conceber
demais, será respondido que, metafisicamente, há mais na realidade do que no
fenômeno, na causa do que no efeito. E não há razão (ou ao menos cabe
estabelecê-la) para que seja preciso tratar do campo da consciência como uma
realidade diversa da dos corpos. Em contrapartida, segundo a ratio cognoscendi, há
por certo uma dualidade de ponto de vista: de um lado, o ponto de vista da

7Leviathan, I, parágrafo 4.
8Leviathan, III, parágrafo 2.

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metafísica e da física; do outro, o ponto de vista da consciência, posto que, sendo
esta fenômeno, ela se dá na representação, ou, em outros termos, aparece a si
mesma. De modo que a antropologia pode ser tratada, de um lado, como uma
ciência derivada da metafísica, do outro, como um campo de observação primitivo,
sob a forma do fenômeno. E Hobbes marca bastante bem a diferença entre os dois
pontos de vista. A rigor, a antropologia, tomada como uma fenomenologia, não é
uma ciência, pois ela apresenta seus conteúdos sob a forma do fato e não sob a
forma de razões: ela não explica, mas apresenta empiricamente a vida da alma. E
um fato primeiro, por mais incontestável que seja em si mesmo, não é
necessariamente um primeiro princípio. Descartes engana-se a este respeito.
Essas observações velem também para a outra parte da psicologia, aquela
consagrada às paixões.
Retomemos. Há dois tipos de discurso mental: o que não é guiado (quan-
do o pensamento vagabundeia) e aquele que é mais constante, porque governado
por algum desejo ou desígnio. E do desejo nasce o pensamento dos meios para
chegar ao desejado, de modo que a primeira causa do encadeamento de repre-
sentações, de imagens ou pensamentos, quando este encadeamento é regulado, é
de ordem prática.
Não há razão para atribuir ao desejo um estatuto de realidade superior ao
dos fenômenos. Fenomenicamente, todos nós o experimentamos e conhecemos seu
poder; mas, na realidade, o desejo, ele mesmo, não é senão movimento. Retor-
nemos ao movimento animal: por definição, trata-se de um movimento em
direção a qualquer coisa. Que o apetite ou o desejo se dirijam a algo se deve a que
o movimento do corpo que pressiona contraria ou concorda com o movimento
vital, o coração é afetado e tende a se dirigir para o que favorece o movimento
vital e a fugir do que a ele se opõe. Insistamos, a fim de responder a uma possível
objeção. O desejo e a aversão são movimentos, movimentos que podem ser
bastante pequenos (conatus). Ora, esses movimentos requerem a ajuda da imagi-
nação, ao mesmo tempo em que a estimulam. Hobbes se vê portanto obrigado a
reconhecer que o desejo, ainda que movimento, se dirige a um certo objeto que
deve ser representado como o alvo, como o fim. É assim introduzida uma
causalidade final que, por mais elementar que seja, é por certo determinante de
um movimento. Ora, objetar-se-ia, um movimento que se dirige a um fim não é

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algo mais que um movimento causado por um movimento e capaz de causar um


outro movimento 9 ? Mas podemos dar conta disso em termos mecânicos: a
representação é uma sensação degradada, capaz no entanto de conservar do
objeto o caráter desejável que era o seu no momento em que foi experimentado.
O estatuto do objeto não é portanto modificado. Quanto à causalidade final da
representação, ela é apenas uma variante da eficiente: certas representações pro-
duzem necessariamente, em certas circunstâncias, certos desejos e certas cadeias
de pensamento.
Dito isso, o que se segue impõe-se facilmente. A definição do bem, em
primeiro lugar: o bem não é outra coisa senão aquilo a que tende o desejo, o mal
aquilo do que se desvia a aversão; e há tantos bens e males quanto houver
indivíduos que desejam e desejos em cada indivíduo. Não há portanto um
summum bonum (o qual não poderia ser apreendido senão mediante a suposição de
uma percepção inteligível). E é evidente que a vida de um indivíduo é uma
sucessão de movimentos e, portanto, de desejos não necessariamente compatíveis
entre si, e que podem se adicionar, se contrariar, ou ainda, criar encadeamentos
não desejados de bens e de males.
Em seguida, se o desejo é um movimento ou um esforço em direção a um
objeto que favorece o movimento vital, a sensação que temos desse movimento é
o prazer (a dor, no que concerne a aversão). O prazer é o fenômeno do desejo.
“O desejo é, portanto, a aparição, a sensação do que é bom” 10 .
A partir daí pode-se erigir toda a economia das paixões e toda a vida
prática. Um mesmo objeto pode ser, de uma só vez, desejado por si mesmo,
temido por algumas de suas conseqüências, novamente desejado porque satisfaz
tal paixão positiva, etc. Donde uma sucessão de movimentos que se adicionam
ou se contrariam. “A soma total das aversões, esperanças e medos, que se desen-
rolam até que a coisa seja realizada ou julgada impossível, é o que denominamos
deliberação” 11 . A deliberação não é senão a alternância de desejos e paixões,
assim como de pensamentos – eis o que é a deliberação; e ela encontra um fim

9Daí que Hobbes, no capítulo 6, faça do desejo seja um simples movimento seja uma

paixão.
10Leviathan, VI, parágrafo 11.
11Leviathan, VI, parágrafo 20.

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quando, nessa sucessão alternada, o último apetite ou a última aversão predomina
e se faz a causa imediata da ação – eis o que é a vontade.
É evidente que a vontade é então o contrário de uma escolha ou que ela é
escolha apenas na medida em que faz irromper, na hesitação do movimento, a
passagem à ação, que caracteriza a deliberação. Da mesma forma, a deliberação
ela mesma não é senão um jogo mecânico mais ou menos casual, mais ou menos
regulado, ou, ao menos, determinado apenas pela força relativa das impressões e
das imagens que se sucedem. Podemos, aliás, a partir daí, conferir um sentido
mais especializado à palavra liberdade: a liberdade finda com a vontade; o último
apetite, o último conatus, predominando sobre os outros movimentos, põe fim a
essa hesitação mecânica que retarda o movimento em direção ao objeto,
caracterizando a deliberação. Nesse sentido, a liberdade é, de alguma maneira, o
desejo inacabado ou o desejo contrariado pelo desejo, e o tempo da ação que se
retarda.
Até aqui, analisamos em termos mecânicos o ser vivo, que é apetite e
representação, desejo e consciência. Não se trata de privá-lo da originalidade da
vida, que reside na experiência que ele faz desta vida. E minha vida, tal como a
experimento, é para mim primeira. Ocorre, porém, com essa experiência o
mesmo que com a experiência empírica do mundo: ela é um conhecimento
imediato; e a sensação de minha vida enquanto vida é um efeito fenomênico, do
qual é preciso procurar causas que não são aparentes, as quais encontraremos
numa física mecanicista. Toda ciência, em sua vontade de explicação, é redutora
da validade espontânea que concedemos empiricamente aos fenômenos.

IV. A INSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA


Dizer o que dissemos não é ainda provar que uma tal antropologia
mecanicista seja suficiente para fundar aquilo a que o estudo deve conduzir: a
realidade instituída do político. E pode-se admitir, de um lado, que a vida da alma
possa ser tratada em termos mecânicos, afirmando-se, do outro, que os corpos
em movimento jamais produzirão nada como um estado civil, e que é preciso, a
fim de obter esse resultado, apelar para o vivido ele mesmo, para a consciência, a
liberdade, que, ainda que fenomênicos, são a primeira instância da existência
prática. Ao materialismo, que diz que dos corpos em movimento aos indivíduos

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vivos e destes ao corpo artificial da República há uma cadeia causal ininterrupta e


uma dedução perfeitamente conseqüente, objetar-se-ia, assim, haver também esta
ambigüidade não suplantada da antropologia: mecanicista na nascente, ela é
fenomenológica na foz; e se falamos ainda aqui de causas, é sobretudo de carên-
cia ou de desejo, de representação ou de cálculo que se trata; se falamos de neces-
sidade, não é mais a da produção do movimento pelo movimento, mas a da dura
lei da sobrevivência que se impõe aos mortais aspirantes de felicidade. Ora, não
há o risco de que, mudando-se as causas, mude-se a causalidade, sendo preciso
introduzir a dimensão da finalidade? E o capítulo XVII do Leviathan, capítulo
central que expõe a geração da República, precisa do seguinte modo a causa
primeira dessa geração: “a causa final, o fim ou o desígnio dos homens, que por
natureza amam a liberdade e o domínio sobre os outros, ao introduzir aquelas
restrições sobre si mesmos sob as quais os vemos viver nas Repúblicas, é o
cuidado com sua própria conservação e com uma vida mais satisfeita” 12 .
Para responder a este ponto, comecemos por observar duas coisas: por
um lado, esta necessidade prática não se opõe à necessidade mecânica; ela é a sua
tradução nos termos do vivente. O indivíduo é determinado a se voltar para os
seus fins tanto quanto um movimento retilíneo é determinado a conservar a
direção que lhe foi impressa. E todas as composições que se possa imaginar entre
as diversas influências do meio, as respostas variadas dos seres vivos, podem ser
tratadas em termos de composição de movimento. De um modo geral, a análise
mecânica permanece válida. Por outro lado, o desejo de vida e de felicidade está
inscrito na natureza mesma dos homens, que não podem a ele se subtrair. Nisso
está a determinação fundamental de sua atividade, a instância a qual não podem
deixar de se submeter. E esta determinação natural da vida à vida é em si mesma,
pode-se certamente dizer, necessária, embora não se possa dizer que seja um
obstáculo à liberdade. Sobre este ponto, portanto, não há controvérsia: todo ser
vivo, seja por necessidade mecânica, seja por necessidade “existencial”, esforça-se
no sentido daquilo que é próprio a lhe conservar a vida e a torná-la vivível, se não
confortável.

12Leviathan, XVII, parágrafo 1.

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Passemos em seguida à consideração bem mais extensa da efetividade
completa, ou seja, da vida conquistando sua satisfação ou do movimento bem
sucedido. Com efeito, é preciso introduzir um termo que não foi ainda evocado,
quero dizer os meios de que o indivíduo dispõe para realizar seus fins, para
efetivar sua deliberação, ou seja, o seu poder (poderes naturais do corpo e da
alma, poder da experiência, poder da razão, poderes artificiais), ou ainda, sua
liberdade, na medida em que seu poder, não encontrando impedimento, realiza
seus fins. A liberdade não é mais aqui o atraso imposto pela deliberação à
efetividade do ato, mas esta efetividade mesma realizando-se. E pode-se sugerir
que o sentimento que o indivíduo tem de sua liberdade seja o fenômeno do
poder pelo qual ele se move e se dirige ao seu fim.
Retomemos o processo: a deliberação é seguida da decisão voluntária (o
último e predominante conatus); o princípio da ação transforma-se em ação graças
ao meio mobilizado pelo agente. À liberdade “de escolha” interna à deliberação
sucede-se uma outra liberdade, aquela da qual já demos a definição: “Por
liberdade entende-se, segundo a significação própria da palavra, a ausência de
obstáculos exteriores, os quais podem freqüentemente retirar parte do poder que
um homem tem para fazer o que quer, mas não podem impedi-lo de usar o poder
que lhe resta conforme ao que lhe ditam seu juízo e razão” 13 . Essa liberdade não
concerne ao fim, concerne ao meio; ela não está na escolha dos fins, mas no
poder real que se tem para perseguir seus fins: liberdade em relação a um outro poder
de adotar tal ou tal meio, liberdade de por em prática ou suspender o exercício
desses meios conforme o último conatus varie (o poder, todos sabem, é mais real
enquanto tivermos o “poder” de não usá-lo). A liberdade tem, assim, este triplo
aspecto: a escolha dos meios a seu prazer, o domínio efetivo dos meios, e,
portanto, a capacidade efetiva de realizar seus fins.
Restemos aqui por um instante. Para que haja movimentos, é preciso
corpos em movimentos que se choquem (não há lugar ainda para a atração),
percam ou ganhem movimento, conservem ou alterem sua direção. Mas, quando
os corpos são indivíduos vivos, tais ações e reações mecânicas são acompanhadas
de representação e desejo. A fonte e o termo do movimento são agora

13Leviathan, XIV, parágrafo 2.

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representáveis. Há o real e sua aparência. O efeito do movimento é um outro


movimento, mas também a consciência ou a paixão vivenciadas. Há aqui um
problema de metafísica: como o real, que causa o real, pode ser causa do
fenômeno? Discutir este ponto seria discutir de uma maneira geral a ciência
moderna, que, partindo da experiência que os homens têm dos fenômenos e
atribuindo-se o dever de salvar estes mesmos fenômenos, trata em termos causais
de uma realidade que nada mais tem de fenomenêmica (e se encontra no dever de
conferir um estatuto metafísico a esta realidade: realidade primeira, realidade
hipotética, realidade matemática, etc.). A ciência e a experiência ordinária não
falam da mesma coisa, ainda que não haja outra coisa. Há apenas uma ordem na
natureza: alguns vêem aí os corpos, outros mônadas espirituais. Mas o dualismo é
fisicamente inaceitável; ele o é também metafisicamente, quem o admite realiza o
fenômeno. Seguramente, o mais difícil de se admitir é que haja fenômenos.
Tal dificuldade adquire uma faceta singular quando for preciso falar da
natureza humana, pois o homem é aquele a quem aparecem esses fenômenos e
quem se esforça por descobrir a realidade verdadeira. E não basta mais erigir uma
ciência da realidade e salvar os fenômenos, é preciso ainda explicar como pode
haver fenômenos e um sujeito ao qual aparecem. O fenômeno é ele mesmo um
efeito – que o denominemos fantasma, consciência, paixão ou sentimento de
liberdade. Ora, a ciência não vai senão do movimento ao movimento, do real ao
real: como poderia ir do real ao fenômeno? A explicação mecanicista não será
jamais suficiente para a compreensão da consciência como consciência, do desejo
como desejo, da liberdade como sentimento de liberdade. Mas este não é um
motivo para fazer da consciência, da alma e da liberdade uma realidade superior,
de outra ordem. Nem tampouco se explicaria porque são fenômenos. Só resta,
portanto, mesmo quando se estuda o homem, salvar os fenômenos, assegurar a
tradução entre a linguagem da realidade e a do fenômeno. E para o que nos
interessa, esta tradutibilidade evita que se estabeleça uma contradição entre a
necessidade e a liberdade (o que inevitavelmente seria recair no dualismo).
Observemos que a necessidade, tanto quanto a liberdade, deixa-se traduzir
em termos de fenômeno. À necessidade mecânica responde a necessidade na qual
se encontra o ser vivo de trabalhar por sua sobrevivência, de empregar nisso os

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poderes de que dispõe, de suprir à limitação de seus poderes, tendo em vista as
forças adversas que encontra. E Hobbes sublinha que no estado de natureza essa
necessidade compele imediatamente os indivíduos, sem lhes dar repouso.
O poder, dizíamos, é a liberdade de se dar e empregar meios. É livre o
poder que não é impedido. Mas a representação dos meios é muito mais rica que
a dos fins. O fim não é a causa conceitual do desejo e da paixão, ela é o seu
termo, representado. Em contrapartida, a consideração dos meios incita ao cálculo,
ou seja, ao conhecimento das causas e dos efeitos, na medida da eficácia de cada
meio, em função das circunstâncias; em suma, incita a uma atividade racional. A
economia dos poderes repousa em grande escala sobre a representação racional.
Cálculo, antecipação e todas as paixões que têm relação com o tempo tornam-se
o ordinário da existência. E há muitos graus da representação racional, abordados
pela análise hobbesiana: a dedução científica dos efeitos; o conhecimento de meu
direito que é ao mesmo tempo o direito do outro, e as conseqüências inelutáveis
que daí se seguem; o conhecimento da necessidade da guerra pelo tempo em que
restamos no estado de natureza, fonte de medo e de morte; o conhecimento
também da necessidade da paz, mas um conhecimento de outra natureza, posto
que, precisamente, não há paz, e, por ser o único meio de evitar a infelicidade ou
a morte, ela é um dever, uma obrigação, a primeira das leis naturais.
A razão é um poder que a natureza pôs à disposição dos homens. Não se
diz nada com isso a não ser que a razão é um poder (de cálculo) e que todo
homem são de espírito a tem a sua disposição. Trata-se de uma potência de
efetividade a qual pode-se atribuir uma dupla liberdade: a de se subtrair ao caráter
imediato do desejo de vida para pensar os bens como fins, os quais pode-se
atingir ou não atingir; a de comparar os meios e se esforçar por escolher o
melhor. Dupla liberdade perfeitamente compatível com a urgência do desejo – de
sorte que posso dizer que é o desejo que leva à representação do fim (ainda uma
vez: a representação não traz em si o fim, ela o exprime) – e com o que há de
necessário na deliberação.
No estado de natureza, cada um se representa sua vida e seu direito à vida,
direito contraditório posto que universalmente distributivo; mas cada um se
perde na diversidade e na concorrência dos meios. Se o fim é universal, no

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Liberdade e Necessidade na Filosofia da Hobbes 59

sentido mencionado (na particularidade), o meio não o é; é preciso que ele se


torne universal: é preciso que o mesmo meio se torne para todos o único meio. É
preciso que ninguém se engane quanto ao meio e que todos convenham em um
mesmo meio. É o caráter extremo do estado de natureza que faz com que as
coisas se passem assim necessariamente: os homens não podem mais se enganar
e são compelidos a convir em conjunto.
O poder da razão é portanto um poder singular de representação: não o
dos fins, mas o dos meios proporcionais aos fins. É verdade que, pela razão, os
homens não estão mais submetidos a necessidade natural a mais imediata. Seria
então preciso procurar aí um princípio original de liberdade, um princípio de
mediação sem medida comum com o império da natureza? Mas, sendo a razão o
poder dos meios, ela não cria um fim sequer (a não ser a paz, de uma maneira
derivada, enquanto primeiro e único meio); os homens permanecem portanto
sob a necessidade de suas paixões e de suas necessidades, remetidos ao meio em
que vivem e, de maneira mais geral, à sua condição natural. Mesmo no estado
civil, o fim não varia: escapar da morte e viver da maneira a mais confortável
possível. Se portanto pode-se dizer que a razão não está contida na natureza, é
preciso também dizer que ela nada altera na necessidade natural; e seu primeiro
efeito é o de aumentar-lhe o peso, pela antecipação do perigo, pelo medo da
violência do outro, pela representação do direito do outro e da impotência das
leis naturais no estado de natureza. Num primeiro momento, a necessidade lógica
do cálculo racional não faz senão reforçar, se isso é possível, a necessidade natural
em que vivem os homens: conhecer a necessidade da natureza não é libertar-se
dela. Ou, em outros termos, a necessidade invade todo o domínio da
representação, a necessidade lógica do raciocínio respondendo à necessidade real
da existência humana na natureza. E a proclamação de meu direito ou de meus
deveres (quando a reciprocidade não está assegurada), longe de conduzir à minha
liberdade, me faz submergir em um servilismo ainda maior.
Todavia, calculando e sofrendo, os homens são conduzidos, para escapar
da morte, a engendrar o corpo novo da República e a se submeterem ao
soberano que é sua vontade. Até então eles estavam no estado de natureza. Não é
espantoso que tenham permanecido submetidos à necessidade! E os adversários

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de Hobbes podem se ver tentados a ver aí uma confissão: quando a necessidade
natural se impõe sem restrições, mesmo a liberdade natural é reduzida a nada.
Prova-o, diriam, que é preciso procurar em outra parte o princípio da liberdade:
na vida civil, na cultura, de uma maneira geral no ato humano; mesmo levando-se
em conta que é próprio à necessidade mecânica criar as circunstâncias naturais
indispensáveis e, de alguma forma, a urgência de contratar, ela será totalmente
ultrapassada por este ato não natural que é o pacto.
Sem tratar aqui da liberdade civil, limitemo-nos a duas considerações gerais
acerca da relação do estado civil com o estado de natureza.
Observemos, primeiro, que os pactos não são formalmente impossíveis no
estado de natureza. Eles são o conteúdo da segunda lei de natureza, toda lei
natural consistindo numa regra racional que interdita fazer o que é contrário à
própria vida e obriga a adotar todos os meios apropriados para garanti-la. Ora, o
pacto é um meio racional essencial para estabelecer a paz. Insistamos: ao
contratar, os homens não inventam a idéia de pacto, posto que ela entra
naturalmente na deliberação; mas eles a tornam efetiva. Ora, sabemos que as leis
naturais não se aplicam no estado de natureza; e isso porque, na ausência de um
poder suficientemente coercitivo, a condição sem a qual um contrato não tem
sentido – a reciprocidade – não está garantida. O enunciado da segunda lei de
natureza é perfeitamente explícito: “que um homem concorde, quando os outros
também o façam, e na medida em que tal considere necessário para a paz e para a
defesa de si mesmo, em renunciar seu direito a todas as coisas, contentando-se,
em relação aos outros homens, com a mesma liberdade que permite aos outros
homens em relação a si mesmo” 14 . A lei de natureza está submetida a uma
condição de efetividade; e na ausência dessa condição, sendo absurdo que
renuncie a meu direito se o outro não o fizer, a lei é inválida, racionalmente
inválida: não há obrigação quando a obrigação não se aplica efetivamente a todos.
A segunda observação segue-se da primeira. É o que chamarei o princípio
da condicional incondicionalidade. A lei moral (a ordem do soberano) é
incondicional (a lei moral obriga racionalmente; a ordem do soberano é
absoluta)... sob a ressalva de que não contradiga meu fim natural, ou seja, que o

14Leviathan, XIV, parágrafo 6.

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meio não seja contrário ao fim. Dito de outro modo, mesmo na vida moral,
mesmo na vida política, os homens permanecem em última instância sob o império
da necessidade natural (refletida no cálculo racional).
Quando introduz a geração do commonwealth no capítulo XVII do Leviatã,
Hobbes, tendo lembrado o fim geral, preservar a vida e viver tão felizmente
quanto possível, tendo estabelecido em seguida que os homens não têm outro
meio de atingir a segurança necessária à vida senão erigir um poder comum,
descreve o ato de instituição em três momentos distintos: 1) “ to conferre all their
power and strength upon one man, or upon one assembly of men that may
reduce all their wills, by plurality of voices, to one will” ; 2) “which is as much as
to say : to appoint one man or assembly of men, to bear their person ; and
everyone to owne, and acknowledge himselfe to be the author of whatsoever he
that so beareth their person, shall act or cause to be acted, in those things which
concerne the common peace and safety”; 3) “and therein to submit their wills,
everyone to his will, and their judgment to his judgment” 15 .
Há portanto, no ato único do pacto, três ações postas como equivalentes,
ainda que sejam de natureza bastante diversa: os homens transferem seu poder e
sua força ao soberano, eles autorizam este mesmo soberano e reconhecem suas
ações, eles submetem enfim suas vontades à sua vontade, seus juízos a seu juízo.
É o problema geral do contrato o de compreender a equivalência entre
estas três ações que, no total, são apenas uma. É um problema mais particular o
de saber como é possível transmitir sua força e seu poder a um outro. Tanto o
Elements of Law quanto o De Cive se batiam com essa dificuldade; pois não se pode

15Em inglês no original. Segue a versão brasileira dessa passagem, segundo a tradução

de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva: 1) “conferir toda sua força e
poder a um homem ou assembléia de homens, que possa reduzir suas diversas vontades,
por pluralidade de votos, a uma só vontade”; 2) “o que equivale a dizer: designar um
homem ou assembléia de homens como representante de suas pessoas (to bear their person),
considerando-se e reconhecendo-se cada um como autor de todos os atos que aquele que
representa sua pessoa (he that so beareth their person) praticar ou levar a praticar, em tudo o
que disser respeito à paz e segurança comuns”; 3) “todos submetendo assim suas
vontades à vontade do representante (to his will ), e suas decisões ( judgment ) à sua decisão”.
(Nota do Tradutor)

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compreender como, naturalmente, uma transferência positiva de força pode se dar,
ou como, abstendo-se de exercer nosso próprio poder, pode-se constituir uma
força comum. A explicação realista encontra dificuldades. E esta é uma das
razões pelas quais no Leviathan Hobbes introduz a solução inteiramente nova da
autorização, pela qual cada um autoriza o soberano a agir em seu lugar e o
reconhece como o autor de todas as suas ações. Quanto a terceira 16 , ela supõe que
já se tenha estabelecido a equivalência entre as duas primeiras, para que seja
possível que, reconhecendo as ações do soberano como minhas, eu (e todos os
outros) submeta minha vontade à sua vontade, meu juízo a seu juízo. Vê-se
claramente a tensão criada: de um ponto de vista natural, as ações do autor (eu)
não são as do soberano; de um ponto de vista civil, posto que autorizei o ator (o
soberano), reconheço suas ações como minhas. A conjunção destes dois pontos
de vista faz a essência mesma da soberania, como ordem absoluta e no entanto
autorizada.
Concentremo-nos assim sobre a segunda ação, o ato de autorização, que é o
pivô do conjunto e que supõe a doutrina, nova no Leviathan, da personificação
(ou da representação). Sabemos que a razão no estado de guerra não nos deixa
mais do que um só meio: criar um corpo único que seja capaz de compelir as
vontades particulares. É preciso que este corpo seja real (procura-se resolver um
problema de efetividade), isto é, que ele seja munido de um poder e de uma
vontade únicos (nisso diferente de uma agregação de vontades ou de poderes
particulares). Hobbes prossegue assim: “unidade realizada por um pacto de cada
homem com todos os homens, de modo que é como se cada um dissesse a cada
homem: (eu) autorizo este homem ou esta assembléia e (eu) cedo e transfiro meu
direito de governar-me a mim mesmo, com a condição de transferires a ele teu
direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações” 17 . É portanto
por um artifício que a realidade do corpo político é engendrada, realidade
bastante diversa da realidade natural, que não se pode colocar como um efeito
direto na cadeia mecânica. E a questão é evidente: a qual causalidade se fará apelo

16Sobre este ponto, ver nosso artigo “Hobbes, obéissance et autorisation”, Hobbes

Studies, XI, 1998, p. 3-12.


17Leviathan, XVII, parágrafo 13.

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para dar conta do pacto social? A necessidade natural não é suficiente. Pode-se,
certamente, na citação acima, frisar-se o eu e este caráter evidente de decisão.
Tratar-se-ia então do eu, princípio inteiramente novo que aqui surge e ao qual
cabe reconhecer toda originalidade, ainda que se deva reduzi-lo unicamente à
dimensão perfomativa do consentimento? Todavia, este eu deve ser posto em
relação com a modalidade do como se que afeta a declaração de cada sujeito: o
raciocínio que cada um faz no pacto é um raciocínio fictício – o que deve ser
posto em relação com a maneira pela qual é definida a pessoa, quando esta
representa uma outra pessoa natural: trata-se então de uma pessoa feigned or
artificial.
Como entender este caráter fictício? Novamente, poderia-se dizer
estarmos diante de uma confissão: o ato do pacto é ininteligível em termos
naturais. Trata-se de uma representação, e de uma representação que não poderia
provir de todo discurso mental antecedente. E mais, trata-se de uma
representação supostamente eficaz por ela mesma, pois, sem representar nenhum
fantasma antecedente, ela engendra porém um corpo novo (artificial).
Admitamos isso. É preciso então fazer deste eu (seja como for que o
determinemos em seguida) um princípio moral e substituir o fundamento
naturalista da política por um fundamento moral (em sentido largo)? Observemos
que o fim não mudou, que os motivos não mudaram, que se trata de criar um
meio eficaz, um poder suficientemente forte, suficientemente coercitivo. Como
se pode criar um poder, isto é, uma realidade natural, ou, ao menos, qualquer
coisa capaz de agir sobre a natureza? Os anti-materialistas têm duas soluções
possíveis: atribuir uma causalidade ao fim, mais fundamental que a causalidade
eficiente ou a última instância da causalidade eficiente – tal a solução de
Aristóteles –, ou então atribuir ao ato racional um poder prático – tal a solução de
Kant. Examinemos esta última solução. A razão prática abre uma ordem nova;
mas não se pode verificar a causalidade numênica na causalidade fenomênica: a
liberdade moral, que é de outra ordem, não rompe o mecanismo natural. Ora,
uma tal resposta não é aceitável, pois trata-se aqui de criar um poder de coerção,
uma realidade capaz de afrontar as forças naturais e que, em conseqüência disso,
vem enfim dar validade às leis naturais. Ora, a única coisa capaz de se opor à

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natureza com forças que são naturais é o artifício. A república e a soberania são
artifícios.
Última questão: como se cria um artifício? Resposta: por ficção. Há por
certo qualquer coisa de inusitado no ato fundador da política, qualquer coisa que
não se pode explicar pelo encadeamento de causas e efeitos, por mais completo
que seja; e, portanto, um efeito sem causa natural. Qual é então a causa?
Resposta: a razão, poder de cálculo, procurando o meio de sair do estado de
guerra, encontrando-o enfim nela mesma, mas em seu poder de ficção (ou seja,
de representação eficaz): uma ficção não empírica, o pensamento de autorização,
é capaz de criar um novo poder, um deus mortal. Uma razão artificiosa. Uma
razão que não diminui em nada a necessidade natural (ela prossegue ainda no
estado civil, em outras condições), mas que foi capaz, precisamente, de mudar a
condição dos homens. Uma razão não impedida e, portanto, livre, sem ser
incompatível com a necessidade. Liberdade e necessidade permanecem
compatíveis. Mas a liberdade de que se trata na ordem civil é a de um ser racional.

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