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MICHEL MALHERBE
Abstract: The controversy on liberty and necessity is, for Hobbes, a verbal one. It is sufficient to
offer the good definition of liberty: the motion that does not find any external obstacle is free. From
this physical definition, can we give an account of the voluntary act of the covenant? From the
mechanism that rules natural bodies to the artifice of the political body, is the consequence good?
We shall argue that the liberty in the civil order is that of a rational being.
I. INTRODUÇÃO
A controvérsia sobre a liberdade e a necessidade é inesgotável. Uma
controvérsia quando não chega a seu termo mistura às razões que agita valores
que se opõem. Seu interesse faz com que mesmo o cético, além do gosto pela
disputa, tenha outros motivos para se lançar nela. E todos sabem que os valores
se nutrem em outros solos que não a filosofia.
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Que seja assim na presente controvérsia é evidente. A questão do lugar do
homem na ordem das coisas, de sua dependência ou liberdade, não diz respeito
apenas à filosofia: aí está envolvido o desejo que se tem pelo mundo e a dignidade
da humanidade, a satisfação econômica das necessidades e os fins da história, a
necessidade universal ou a toda-potência de Deus. E é bastante compreensível
que a questão movimente os ânimos com certa virulência no século XVII: a velha
concepção de origem aristotélica, segundo a qual o conhecimento mais perfeito
da natureza é obtido pelas causas finais e segundo a qual a finalidade das causas
supõe uma representação da inteligibilidade do Ser, representação onde se pode
alocar a deliberação e a ação dos homens – esta velha concepção é posta à prova
pelo pensamento dos modernos. E o século XVII recusa ainda a engajar-se na via
fácil de uma solução dualista, da ordem do corpo e da ordem da alma, do
mecanicismo explicativo e do finalismo reflexivo, do império da natureza e do
reino da moral e da história, da verdade e do sentido. O homem tem realidade no
mundo, há apenas um mundo e Deus está no jogo. A amplitude no debate é, assim,
considerável. Sabemos que ele tomou a forma, entre outras, de uma longa e
repercutida querela entre Hobbes, o filósofo, e Bramhall, o bispo, querela a qual
por vezes faltou serenidade filosófica e caridade cristã1 .
Hobbes, antes de Hume, declara que a controvérsia é puramente verbal,
bastando definir exatamente os termos liberdade e necessidade para que se descubra
não haver nenhuma contradição entre eles e que a ação humana pode ser livre,
mesmo sendo necessária. “A liberdade e a necessidade são compatíveis” 2 . Erro
filosófico que a filosofia pode corrigir! Se isso é verdade, duas definições, clara e
distintamente expressas, darão cabo rapidamente de nosso assunto.
introdução e tradução de F. Lessay (Vrin, Paris, 1993) et Thomas Hobbes, les questions
concernant la liberté, la necessité et le hasard, introdução e tradução de L. Foisneau (Vrin,
Paris, 1999).
2Leviathan, XXI, parágrafo 4.
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É livre todo ser em movimento que não encontra obstáculo exterior. Esta
definição bastante geral vale igualmente bem, e de maneira unívoca, para os seres
inanimados, os animais sem razão e as criaturas razoáveis. Diz-se que um rio é
livre quando seu curso não é impedido; que um animal é livre quando pode
mover-se como quer; que um homem é livre quando o poder que tem para
realizar seus fins não é contrariado. O obstáculo é sempre exterior; quando o
impedimento é interior, não dizemos do ser em questão que não é livre, mas que
não tem o poder de fazer isso ou aquilo. Ele não tem liberdade relativamente a si
mesmo. E, quanto a isso, o homem não tem na natureza um caráter especial.
Hobbes pretende ater-se a este uso da palavra. Por que não? Cada um
pode definir as palavras como as entende. Mas a definição mencionada só pode
valer para todo ser em geral, os homens assim como as pedras, se um princípio
metafísico for primeiramente estabelecido, a saber, que a palavra liberdade só pode
ser aplicada aos corpos: “quando, ao contrário, as palavras livre e liberdade são
aplicadas a outra coisa que não aos corpos, trata-se de um abuso da linguagem” 3 .
Não é pois o uso da língua que regula a filosofia, mas a filosofia que regula a
linguagem.
Para resumir: a liberdade é uma propriedade que pertence à ação da qual
consideramos a eficiência; ora, toda ação eficiente é a ação de um corpo em
movimento. Temos aqui, portanto, três pontos: a afirmação de que o modo da
causalidade a ser considerada é o da causalidade eficiente; a tese do mecanicismo
(tudo o que vem a ser no mundo é movimento); e a tese materialista (todo ser é
corporal). O bom bispo Bramhall não pode evidentemente consentir com isso.
A compatibilidade entre a liberdade e a necessidade é, em seguida, fácil de
ser estabelecida: toda causa eficiente é ela mesma causada, pertencendo portanto
a uma cadeia causal e contínua (ou a uma rede de causalidade) cujo primeiro elo
se encontra na mão de Deus: a ação livre (ou não livre), que é o efeito consi-
derado, resulta de um encadeamento necessário de causas e efeitos ou, se remon-
tarmos ao princípio, da vontade mesma de Deus que, dispondo de um poder
absoluto, não é impedida por nada, cumprindo-se portanto necessariamente 4 .
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Diríamos assim que o rio, não havendo barragem, é livre para seguir seu curso, e
que lhe é ao mesmo tempo necessário segui-lo; que o animal vai aonde lhe apraz,
ainda que seu impulso seja dirigido pela fome que sente; ou ainda, que um
homem é livre para realizar a ação que projeta quando não se depara com
nenhum impedimento, ainda que sua vontade seja necessariamente determinada
por um conjunto complexo de causas, de motivos, de móbeis, de condições, de
circunstâncias. A definição dada de liberdade é portanto compatível com a mais
estrita necessidade.
Diria-se, talvez, que não se ganha grande coisa com isso, que Hobbes é
certamente um bom filósofo, mas que é preciso começar por conceder-lhe a
ontologia dos corpos a partir da qual ele estabelece uma tal compatibilidade. Duas
estratégias são então possíveis: ou contestar esta tese ontológica, ou mostrar que
Hobbes é incapaz de mantê-la, quando, tomando-a como ponto de partida,
procura dar conta de fenômenos – a saber, a vida moral, social e política dos
homens – que não deixam de fomentar um certo sentimento de sua liberdade.
Pois, Hobbes não fala apenas de movimento, mas também de vontade e deli-
beração, do cálculo racional em vista de fins, da autorização do soberano, da
liberdade dos súditos e mesmo, em um certo sentido, da liberdade das criaturas
relativamente ao Criador, de sorte que aquilo que ele reduziu analiticamente em
duas definições bastante simples, ele recompõe de um modo sintético. Se
tomamos o primeiro ponto de vista, nos engajamos num debate metafísico que
ultrapassa largamente nosso quadro presente; assim, nos limitaremos ao segundo,
colocando a seguinte questão: ao tirar as conseqüências dos princípios, ao deduzir
as causas dos efeitos, ao passar da realidade posta (os corpos) aos fenômenos (a
vida dos homens), Hobbes não foi levado a conceder mais do que queria? Não há
mais, por exemplo, na vontade que na paixão e mais na paixão que no movimento?
Para não nos estendermos muito, restemos aqui: consideremos o “ato
voluntário” (Hobbes emprega esse termo) pelo qual os homens, levados pelo
medo da morte infligida pelo outro no estado de guerra, instituem a República.
Este ato é uma operação complexa que implica, no mínimo, um acordo entre os
contratantes, um consentimento, um cálculo racional, a constituição de uma força
de coerção, a própria autorização do soberano, enfim, a submissão de nosso
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preciso, a fim de compreender o artifício que conduz à geração de um outro tipo
de corpos que não os naturais, supor uma definição da liberdade que exceda a
que lembramos acima. A resposta a estas questões condiciona (e condicionou) a
interpretação que cabe dar à sociedade civil: a ordem política está submetida à
mesma necessidade que a ordem natural? Ou ela é um espaço de liberdade em
que os homens, tornados súditos, passam a ser responsáveis por uma coerção de
outra natureza, a ordem do soberano?
Hobbes et son vocabulaire, sob a direção de Y.C. Zarka (Vrin, Paris, 1992), p. 139-54.
6A função respectiva do cérebro e do coração muda quando se passa do Elements of
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7Leviathan, I, parágrafo 4.
8Leviathan, III, parágrafo 2.
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metafísica e da física; do outro, o ponto de vista da consciência, posto que, sendo
esta fenômeno, ela se dá na representação, ou, em outros termos, aparece a si
mesma. De modo que a antropologia pode ser tratada, de um lado, como uma
ciência derivada da metafísica, do outro, como um campo de observação primitivo,
sob a forma do fenômeno. E Hobbes marca bastante bem a diferença entre os dois
pontos de vista. A rigor, a antropologia, tomada como uma fenomenologia, não é
uma ciência, pois ela apresenta seus conteúdos sob a forma do fato e não sob a
forma de razões: ela não explica, mas apresenta empiricamente a vida da alma. E
um fato primeiro, por mais incontestável que seja em si mesmo, não é
necessariamente um primeiro princípio. Descartes engana-se a este respeito.
Essas observações velem também para a outra parte da psicologia, aquela
consagrada às paixões.
Retomemos. Há dois tipos de discurso mental: o que não é guiado (quan-
do o pensamento vagabundeia) e aquele que é mais constante, porque governado
por algum desejo ou desígnio. E do desejo nasce o pensamento dos meios para
chegar ao desejado, de modo que a primeira causa do encadeamento de repre-
sentações, de imagens ou pensamentos, quando este encadeamento é regulado, é
de ordem prática.
Não há razão para atribuir ao desejo um estatuto de realidade superior ao
dos fenômenos. Fenomenicamente, todos nós o experimentamos e conhecemos seu
poder; mas, na realidade, o desejo, ele mesmo, não é senão movimento. Retor-
nemos ao movimento animal: por definição, trata-se de um movimento em
direção a qualquer coisa. Que o apetite ou o desejo se dirijam a algo se deve a que
o movimento do corpo que pressiona contraria ou concorda com o movimento
vital, o coração é afetado e tende a se dirigir para o que favorece o movimento
vital e a fugir do que a ele se opõe. Insistamos, a fim de responder a uma possível
objeção. O desejo e a aversão são movimentos, movimentos que podem ser
bastante pequenos (conatus). Ora, esses movimentos requerem a ajuda da imagi-
nação, ao mesmo tempo em que a estimulam. Hobbes se vê portanto obrigado a
reconhecer que o desejo, ainda que movimento, se dirige a um certo objeto que
deve ser representado como o alvo, como o fim. É assim introduzida uma
causalidade final que, por mais elementar que seja, é por certo determinante de
um movimento. Ora, objetar-se-ia, um movimento que se dirige a um fim não é
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9Daí que Hobbes, no capítulo 6, faça do desejo seja um simples movimento seja uma
paixão.
10Leviathan, VI, parágrafo 11.
11Leviathan, VI, parágrafo 20.
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quando, nessa sucessão alternada, o último apetite ou a última aversão predomina
e se faz a causa imediata da ação – eis o que é a vontade.
É evidente que a vontade é então o contrário de uma escolha ou que ela é
escolha apenas na medida em que faz irromper, na hesitação do movimento, a
passagem à ação, que caracteriza a deliberação. Da mesma forma, a deliberação
ela mesma não é senão um jogo mecânico mais ou menos casual, mais ou menos
regulado, ou, ao menos, determinado apenas pela força relativa das impressões e
das imagens que se sucedem. Podemos, aliás, a partir daí, conferir um sentido
mais especializado à palavra liberdade: a liberdade finda com a vontade; o último
apetite, o último conatus, predominando sobre os outros movimentos, põe fim a
essa hesitação mecânica que retarda o movimento em direção ao objeto,
caracterizando a deliberação. Nesse sentido, a liberdade é, de alguma maneira, o
desejo inacabado ou o desejo contrariado pelo desejo, e o tempo da ação que se
retarda.
Até aqui, analisamos em termos mecânicos o ser vivo, que é apetite e
representação, desejo e consciência. Não se trata de privá-lo da originalidade da
vida, que reside na experiência que ele faz desta vida. E minha vida, tal como a
experimento, é para mim primeira. Ocorre, porém, com essa experiência o
mesmo que com a experiência empírica do mundo: ela é um conhecimento
imediato; e a sensação de minha vida enquanto vida é um efeito fenomênico, do
qual é preciso procurar causas que não são aparentes, as quais encontraremos
numa física mecanicista. Toda ciência, em sua vontade de explicação, é redutora
da validade espontânea que concedemos empiricamente aos fenômenos.
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Passemos em seguida à consideração bem mais extensa da efetividade
completa, ou seja, da vida conquistando sua satisfação ou do movimento bem
sucedido. Com efeito, é preciso introduzir um termo que não foi ainda evocado,
quero dizer os meios de que o indivíduo dispõe para realizar seus fins, para
efetivar sua deliberação, ou seja, o seu poder (poderes naturais do corpo e da
alma, poder da experiência, poder da razão, poderes artificiais), ou ainda, sua
liberdade, na medida em que seu poder, não encontrando impedimento, realiza
seus fins. A liberdade não é mais aqui o atraso imposto pela deliberação à
efetividade do ato, mas esta efetividade mesma realizando-se. E pode-se sugerir
que o sentimento que o indivíduo tem de sua liberdade seja o fenômeno do
poder pelo qual ele se move e se dirige ao seu fim.
Retomemos o processo: a deliberação é seguida da decisão voluntária (o
último e predominante conatus); o princípio da ação transforma-se em ação graças
ao meio mobilizado pelo agente. À liberdade “de escolha” interna à deliberação
sucede-se uma outra liberdade, aquela da qual já demos a definição: “Por
liberdade entende-se, segundo a significação própria da palavra, a ausência de
obstáculos exteriores, os quais podem freqüentemente retirar parte do poder que
um homem tem para fazer o que quer, mas não podem impedi-lo de usar o poder
que lhe resta conforme ao que lhe ditam seu juízo e razão” 13 . Essa liberdade não
concerne ao fim, concerne ao meio; ela não está na escolha dos fins, mas no
poder real que se tem para perseguir seus fins: liberdade em relação a um outro poder
de adotar tal ou tal meio, liberdade de por em prática ou suspender o exercício
desses meios conforme o último conatus varie (o poder, todos sabem, é mais real
enquanto tivermos o “poder” de não usá-lo). A liberdade tem, assim, este triplo
aspecto: a escolha dos meios a seu prazer, o domínio efetivo dos meios, e,
portanto, a capacidade efetiva de realizar seus fins.
Restemos aqui por um instante. Para que haja movimentos, é preciso
corpos em movimentos que se choquem (não há lugar ainda para a atração),
percam ou ganhem movimento, conservem ou alterem sua direção. Mas, quando
os corpos são indivíduos vivos, tais ações e reações mecânicas são acompanhadas
de representação e desejo. A fonte e o termo do movimento são agora
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poderes de que dispõe, de suprir à limitação de seus poderes, tendo em vista as
forças adversas que encontra. E Hobbes sublinha que no estado de natureza essa
necessidade compele imediatamente os indivíduos, sem lhes dar repouso.
O poder, dizíamos, é a liberdade de se dar e empregar meios. É livre o
poder que não é impedido. Mas a representação dos meios é muito mais rica que
a dos fins. O fim não é a causa conceitual do desejo e da paixão, ela é o seu
termo, representado. Em contrapartida, a consideração dos meios incita ao cálculo,
ou seja, ao conhecimento das causas e dos efeitos, na medida da eficácia de cada
meio, em função das circunstâncias; em suma, incita a uma atividade racional. A
economia dos poderes repousa em grande escala sobre a representação racional.
Cálculo, antecipação e todas as paixões que têm relação com o tempo tornam-se
o ordinário da existência. E há muitos graus da representação racional, abordados
pela análise hobbesiana: a dedução científica dos efeitos; o conhecimento de meu
direito que é ao mesmo tempo o direito do outro, e as conseqüências inelutáveis
que daí se seguem; o conhecimento da necessidade da guerra pelo tempo em que
restamos no estado de natureza, fonte de medo e de morte; o conhecimento
também da necessidade da paz, mas um conhecimento de outra natureza, posto
que, precisamente, não há paz, e, por ser o único meio de evitar a infelicidade ou
a morte, ela é um dever, uma obrigação, a primeira das leis naturais.
A razão é um poder que a natureza pôs à disposição dos homens. Não se
diz nada com isso a não ser que a razão é um poder (de cálculo) e que todo
homem são de espírito a tem a sua disposição. Trata-se de uma potência de
efetividade a qual pode-se atribuir uma dupla liberdade: a de se subtrair ao caráter
imediato do desejo de vida para pensar os bens como fins, os quais pode-se
atingir ou não atingir; a de comparar os meios e se esforçar por escolher o
melhor. Dupla liberdade perfeitamente compatível com a urgência do desejo – de
sorte que posso dizer que é o desejo que leva à representação do fim (ainda uma
vez: a representação não traz em si o fim, ela o exprime) – e com o que há de
necessário na deliberação.
No estado de natureza, cada um se representa sua vida e seu direito à vida,
direito contraditório posto que universalmente distributivo; mas cada um se
perde na diversidade e na concorrência dos meios. Se o fim é universal, no
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de Hobbes podem se ver tentados a ver aí uma confissão: quando a necessidade
natural se impõe sem restrições, mesmo a liberdade natural é reduzida a nada.
Prova-o, diriam, que é preciso procurar em outra parte o princípio da liberdade:
na vida civil, na cultura, de uma maneira geral no ato humano; mesmo levando-se
em conta que é próprio à necessidade mecânica criar as circunstâncias naturais
indispensáveis e, de alguma forma, a urgência de contratar, ela será totalmente
ultrapassada por este ato não natural que é o pacto.
Sem tratar aqui da liberdade civil, limitemo-nos a duas considerações gerais
acerca da relação do estado civil com o estado de natureza.
Observemos, primeiro, que os pactos não são formalmente impossíveis no
estado de natureza. Eles são o conteúdo da segunda lei de natureza, toda lei
natural consistindo numa regra racional que interdita fazer o que é contrário à
própria vida e obriga a adotar todos os meios apropriados para garanti-la. Ora, o
pacto é um meio racional essencial para estabelecer a paz. Insistamos: ao
contratar, os homens não inventam a idéia de pacto, posto que ela entra
naturalmente na deliberação; mas eles a tornam efetiva. Ora, sabemos que as leis
naturais não se aplicam no estado de natureza; e isso porque, na ausência de um
poder suficientemente coercitivo, a condição sem a qual um contrato não tem
sentido – a reciprocidade – não está garantida. O enunciado da segunda lei de
natureza é perfeitamente explícito: “que um homem concorde, quando os outros
também o façam, e na medida em que tal considere necessário para a paz e para a
defesa de si mesmo, em renunciar seu direito a todas as coisas, contentando-se,
em relação aos outros homens, com a mesma liberdade que permite aos outros
homens em relação a si mesmo” 14 . A lei de natureza está submetida a uma
condição de efetividade; e na ausência dessa condição, sendo absurdo que
renuncie a meu direito se o outro não o fizer, a lei é inválida, racionalmente
inválida: não há obrigação quando a obrigação não se aplica efetivamente a todos.
A segunda observação segue-se da primeira. É o que chamarei o princípio
da condicional incondicionalidade. A lei moral (a ordem do soberano) é
incondicional (a lei moral obriga racionalmente; a ordem do soberano é
absoluta)... sob a ressalva de que não contradiga meu fim natural, ou seja, que o
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meio não seja contrário ao fim. Dito de outro modo, mesmo na vida moral,
mesmo na vida política, os homens permanecem em última instância sob o império
da necessidade natural (refletida no cálculo racional).
Quando introduz a geração do commonwealth no capítulo XVII do Leviatã,
Hobbes, tendo lembrado o fim geral, preservar a vida e viver tão felizmente
quanto possível, tendo estabelecido em seguida que os homens não têm outro
meio de atingir a segurança necessária à vida senão erigir um poder comum,
descreve o ato de instituição em três momentos distintos: 1) “ to conferre all their
power and strength upon one man, or upon one assembly of men that may
reduce all their wills, by plurality of voices, to one will” ; 2) “which is as much as
to say : to appoint one man or assembly of men, to bear their person ; and
everyone to owne, and acknowledge himselfe to be the author of whatsoever he
that so beareth their person, shall act or cause to be acted, in those things which
concerne the common peace and safety”; 3) “and therein to submit their wills,
everyone to his will, and their judgment to his judgment” 15 .
Há portanto, no ato único do pacto, três ações postas como equivalentes,
ainda que sejam de natureza bastante diversa: os homens transferem seu poder e
sua força ao soberano, eles autorizam este mesmo soberano e reconhecem suas
ações, eles submetem enfim suas vontades à sua vontade, seus juízos a seu juízo.
É o problema geral do contrato o de compreender a equivalência entre
estas três ações que, no total, são apenas uma. É um problema mais particular o
de saber como é possível transmitir sua força e seu poder a um outro. Tanto o
Elements of Law quanto o De Cive se batiam com essa dificuldade; pois não se pode
15Em inglês no original. Segue a versão brasileira dessa passagem, segundo a tradução
de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva: 1) “conferir toda sua força e
poder a um homem ou assembléia de homens, que possa reduzir suas diversas vontades,
por pluralidade de votos, a uma só vontade”; 2) “o que equivale a dizer: designar um
homem ou assembléia de homens como representante de suas pessoas (to bear their person),
considerando-se e reconhecendo-se cada um como autor de todos os atos que aquele que
representa sua pessoa (he that so beareth their person) praticar ou levar a praticar, em tudo o
que disser respeito à paz e segurança comuns”; 3) “todos submetendo assim suas
vontades à vontade do representante (to his will ), e suas decisões ( judgment ) à sua decisão”.
(Nota do Tradutor)
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compreender como, naturalmente, uma transferência positiva de força pode se dar,
ou como, abstendo-se de exercer nosso próprio poder, pode-se constituir uma
força comum. A explicação realista encontra dificuldades. E esta é uma das
razões pelas quais no Leviathan Hobbes introduz a solução inteiramente nova da
autorização, pela qual cada um autoriza o soberano a agir em seu lugar e o
reconhece como o autor de todas as suas ações. Quanto a terceira 16 , ela supõe que
já se tenha estabelecido a equivalência entre as duas primeiras, para que seja
possível que, reconhecendo as ações do soberano como minhas, eu (e todos os
outros) submeta minha vontade à sua vontade, meu juízo a seu juízo. Vê-se
claramente a tensão criada: de um ponto de vista natural, as ações do autor (eu)
não são as do soberano; de um ponto de vista civil, posto que autorizei o ator (o
soberano), reconheço suas ações como minhas. A conjunção destes dois pontos
de vista faz a essência mesma da soberania, como ordem absoluta e no entanto
autorizada.
Concentremo-nos assim sobre a segunda ação, o ato de autorização, que é o
pivô do conjunto e que supõe a doutrina, nova no Leviathan, da personificação
(ou da representação). Sabemos que a razão no estado de guerra não nos deixa
mais do que um só meio: criar um corpo único que seja capaz de compelir as
vontades particulares. É preciso que este corpo seja real (procura-se resolver um
problema de efetividade), isto é, que ele seja munido de um poder e de uma
vontade únicos (nisso diferente de uma agregação de vontades ou de poderes
particulares). Hobbes prossegue assim: “unidade realizada por um pacto de cada
homem com todos os homens, de modo que é como se cada um dissesse a cada
homem: (eu) autorizo este homem ou esta assembléia e (eu) cedo e transfiro meu
direito de governar-me a mim mesmo, com a condição de transferires a ele teu
direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações” 17 . É portanto
por um artifício que a realidade do corpo político é engendrada, realidade
bastante diversa da realidade natural, que não se pode colocar como um efeito
direto na cadeia mecânica. E a questão é evidente: a qual causalidade se fará apelo
16Sobre este ponto, ver nosso artigo “Hobbes, obéissance et autorisation”, Hobbes
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para dar conta do pacto social? A necessidade natural não é suficiente. Pode-se,
certamente, na citação acima, frisar-se o eu e este caráter evidente de decisão.
Tratar-se-ia então do eu, princípio inteiramente novo que aqui surge e ao qual
cabe reconhecer toda originalidade, ainda que se deva reduzi-lo unicamente à
dimensão perfomativa do consentimento? Todavia, este eu deve ser posto em
relação com a modalidade do como se que afeta a declaração de cada sujeito: o
raciocínio que cada um faz no pacto é um raciocínio fictício – o que deve ser
posto em relação com a maneira pela qual é definida a pessoa, quando esta
representa uma outra pessoa natural: trata-se então de uma pessoa feigned or
artificial.
Como entender este caráter fictício? Novamente, poderia-se dizer
estarmos diante de uma confissão: o ato do pacto é ininteligível em termos
naturais. Trata-se de uma representação, e de uma representação que não poderia
provir de todo discurso mental antecedente. E mais, trata-se de uma
representação supostamente eficaz por ela mesma, pois, sem representar nenhum
fantasma antecedente, ela engendra porém um corpo novo (artificial).
Admitamos isso. É preciso então fazer deste eu (seja como for que o
determinemos em seguida) um princípio moral e substituir o fundamento
naturalista da política por um fundamento moral (em sentido largo)? Observemos
que o fim não mudou, que os motivos não mudaram, que se trata de criar um
meio eficaz, um poder suficientemente forte, suficientemente coercitivo. Como
se pode criar um poder, isto é, uma realidade natural, ou, ao menos, qualquer
coisa capaz de agir sobre a natureza? Os anti-materialistas têm duas soluções
possíveis: atribuir uma causalidade ao fim, mais fundamental que a causalidade
eficiente ou a última instância da causalidade eficiente – tal a solução de
Aristóteles –, ou então atribuir ao ato racional um poder prático – tal a solução de
Kant. Examinemos esta última solução. A razão prática abre uma ordem nova;
mas não se pode verificar a causalidade numênica na causalidade fenomênica: a
liberdade moral, que é de outra ordem, não rompe o mecanismo natural. Ora,
uma tal resposta não é aceitável, pois trata-se aqui de criar um poder de coerção,
uma realidade capaz de afrontar as forças naturais e que, em conseqüência disso,
vem enfim dar validade às leis naturais. Ora, a única coisa capaz de se opor à
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natureza com forças que são naturais é o artifício. A república e a soberania são
artifícios.
Última questão: como se cria um artifício? Resposta: por ficção. Há por
certo qualquer coisa de inusitado no ato fundador da política, qualquer coisa que
não se pode explicar pelo encadeamento de causas e efeitos, por mais completo
que seja; e, portanto, um efeito sem causa natural. Qual é então a causa?
Resposta: a razão, poder de cálculo, procurando o meio de sair do estado de
guerra, encontrando-o enfim nela mesma, mas em seu poder de ficção (ou seja,
de representação eficaz): uma ficção não empírica, o pensamento de autorização,
é capaz de criar um novo poder, um deus mortal. Uma razão artificiosa. Uma
razão que não diminui em nada a necessidade natural (ela prossegue ainda no
estado civil, em outras condições), mas que foi capaz, precisamente, de mudar a
condição dos homens. Uma razão não impedida e, portanto, livre, sem ser
incompatível com a necessidade. Liberdade e necessidade permanecem
compatíveis. Mas a liberdade de que se trata na ordem civil é a de um ser racional.
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 12, n. 1-2, p. 45-64, jan.-dez. 2002.