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0 poder da palavr: ‘Quslquer adjetivo serie fraco para qualiicar aimporténcie des 0 culturas ‘Valores morals da sociedade, a concepe8o religioss do mundo, © dominio das forgas ocultas que cercam 0 omom. 0 segredo da inielagle nos diversos offios, 0 no dos eventes passados ou contomporinect, 0 canto ritual, a lende, a poesia = tudo Isso 6 guardado pele meméria coletiva, 2 Yafdadelra modeladora.da alma airicana o arquivo daveus histéri. Por Issa jf-se disse que ‘cede sncito que morte na Arice & ume biblistecs que perde”, Tods hiet6ris votdedalea du Africa exth na {radiga0 oral, Bo digne de {6 como qualquer fonte excrts Eo poder da palavra faada que o ertste quis simbolizar ‘nesta paca cerimonial esculplaa do povo Lelé (Zaire). \Amadou Hampaté Ba ‘co oral. Nenhuma tentativa de penetrar na historia e no es pirito dos povos africanos 6 vélida ge no se apdia nessa he: ranga de conhecimentos de toda espécie, tansmitide pecieate: mente de boca a ouvido @ de mestre a discipulo através dos tem ‘pos. Ease haranca ainds nfo se perdu ese mantémnameméria da ‘hima geracio de seus grandes depositérios, de quem se pode di 2er que slo @ meméria viva da Attica Para alguns pesquisadores 0 problema so resume em saber se @ transmissdo oral, enquanto testemunho de acontecimentos passe dos, merece a mesma confianca concedida 8 transmissao escrita ‘A meu ver, essa colocacdo & errénea. Em iltima andlise, o teste. fuinho, escrito ov oral @ sermpre um testemunho humano, © seu frau de confiablidace é 0 mesmo do homem. O que se questiona, flém do préprio testemunho, & o valor da cadeia de transmissa0 8 ual o hamem est ligado, a Fdelidade da meméria individual e co Tetiva eo peero atribuido 4 verdade em determinada sociedade. Ou pia, elo que une o homem & Palavra, (01a, & nas sociedades orais que a funcdo da meméria é mais de: senvoivida,'e mais forte 0 elo entre o homem e @ Palavra. Na au: ‘éncia de eserita, o homem se liga a sua palavra. Tem um compro: fmisso com ela. © homem é eua palavra e sua palavra dé testemu- fnho do que ele &, A propria coeséo da sociedade depende do valor @.60 respeito pela palavra ‘Nas tradig6es africanas — pelo menos nas que conheco, que s30 1s de toda a zona de savane a0 sul do Saara — a palavra felada, ‘além de seu valar moral fundamental, possui um caréter sagrado {que se associa a sua origom divina e &s forces ocultas nela depos! tadas. Sendo agente magico’ por exceléncia e grande vetor de ‘forces etéricas”, ndo pode ser usada levianamente Varios fatores magicos,raligiosos e sociais — concorrem para reservar a fidelidade da transmisado oral. Farei a seguir um breve fstudo que me parece necessério para melhor situar a tradicao oral atricana em seu contexio e, de certa forma, esclarecé-\a por den: tro, ‘Se perguntéssemos 2 um verdadeire wradicionaliste africano 0 que é @ tadicgo oral, ele certamente ficaria bastante embaracado. ‘Talvez, ape um longo siéncio, respondasse que é o conhecimento total, e nBo dissesse mais nada, Qual o alcance da expressio tradicio oral? Que realidades con: tém, que conhecimentos transmite, que ciéncias ensina © quer so seus transmissores? : - ‘Ao cantrario do que alguns paderiam pensar, a tradicdo ora aft ceana nq se limita aos contos e as lendas, ner mesmo aos relatos miticas ou histéricos; © os menestiéis/poetas ambulantes cue = ttansmitem — designados pelo termo francés griot — no so ab solutamente seus Uricos guardides e transmissores qualiticados. F ALAR de tadicdo na historia africana significa falar de wad [A tradigdo oral 6a grande escole ca vida, recobrindo e englaban {0 todos as seus aspectos. Pode parecer 0 caos Squeles ave enetram em seu segredo; pode confundir o espirito cartesiane ha: bituado @ separar todas as coisas em categorias ber definicas. Na verdade, 0 espiritual ¢ 0 material no se dissociam na tradicao oral [AMADOU HAMPATE BA, excritor ¢ vplomata do Mal, foi mambro do Consetho Exeeutvo da Unesco ce 1952 9 1970. Fundador eex-detor do Instituto de Ciéncias Humanas do Mal, & especialita em iteratura@ etno login aicanas.prinepaimente as das pevos da Curva da Niger. Entre seus tras enotam ee UEmpra Poul du Macina, Les Relans Aficines Trad tioneles ¢ UEtange Deen da Wangtin. Por ent utima obra recebeu em 1974 0 Grande Prermio de Literature da Atco Neg, 7 » » ‘que, se colocando ao aleance dos homens, fala thes segundo sues ‘aptiddes. E ao mesmo tempo religo, conhecimento, ciéncia da natureza, iniciae30 de oficio, histéra, divertimento e recreacdo, @ ‘cada mindcia sompre pode ajudar a romontar 8 Unidade primorcial Baseada na iniciacdo e na experiéncia, a tradicdo oral se refere 20 homom em sua totalidade, e assim pode.se dizer que contibulu pa ‘accra um tp aspecial de homem e para moldar a alma africana 1A “cultura” africana — ligada ao comportarento quotidiano do homem 2 da comunidade — ino ¢ uma materia abstrata'que nossa ser isclada da vide. Implica uma visdo particular do mundo, ou me Ihr, uma presenca particular no mundo, concebido como um To do ende tuda tem igacio ¢ interage. Como no posse falar de maneira valde sobre wadigdes que n3o vivi nem estudei pessoalmente — sobretuco as dos paises da flo ‘esta — firarei meus exemplos das tradicdes da savana ao sul do Saara (local outrora charmado Bafu) ‘A tradicdo Bambara do Komo (uma das grandes escolas de ini ciagio dos Mandé, no Mali) ansina que a palaura, Kuma, é uma for a fundamental que emana do prépria Ente Supremo, Maa Ngala, © criador de todas as coisas. Ela @ o nstrumento da criacdo: “O que Maa Ngala diz, 81" proclama 0 sacerdote-cantor do deus Kamo (O mito da eriagio do universo e do homem, ansinado pelo mos tre iniciador do Komo {que ¢ sempre um ferreiro) 30s jovens circun: cidados, conta que quando Maa Ngala sentiu a nostalgia de um in terlocutor, criou @ primeiro homom, Maa, Ouirora, a historia da génese era ensinada durante sessenta & trés dias de recolhimento impostos aos circuncidados de vinte e um anos de idade, Os vinte @ um anos seguintes eram dedicados 2 um esiudo cada vez mais profundo. No orla do bosque Sagrado, morada de Komo, o prime circum cidado do grupo recitava ritmadamente as seguintes palavias ‘Moa Nala! Moa Neala! Quem éAfaa Ngale? Onde esta Maa Ngala? (O cantor do Komo respondis: ‘Maa Ngala 6 2 forca infinita Ninguém pode situd-io no tempo nem no espace. Ele & Domb lIncognescivell, ‘Dambai Ineriado — Infinit A seguir, ands a iniciago, comecava o recitativo da génese pri mordia: Nada existia sendo um Ser, Esse Ser era um Vazio vivo {que continha potencialments as existOncias contingentes. (© tempo infnito era a morada desse Ser-Unico (0 Ser-Unica deu a si mesmo o nome de Maa Nyala Entdo ale criou Fan Um Ovo matavilhoso com nove divisbes, fe introduziu a8 nove estados fundamentais, a existencia. ‘Quondo esse Ovo primordial se abr, deu @ luz vinta seres fabu 1os0s que constitulram a totaidade do universo, a totalidade das forcas existentes do conhecimento possivel Mas,» nenhuma dassae vinte primoiras criaturas se revelou ca, paz de tomar-se 0 interlocutor [Kuma nyon) por quem Mea Ngala Entdo ale retiou um pedacinho de cada uma das vinte criaturas, misturou-os, e depois, soprando na mistura uma centelha de seu broprio halito de fogo, eriou um novo Ser,.o Homem, ao cual deu Uma parte de sau préprio nome: Maa. Assim, esse novo ser conti nha, por seu nome e pela centelha divina nele insutlada, alguma iSa do proprio Maa Nigaa. ‘Sendo sintese de tudo que existe, receptaculo por exculéncia da Forca suprema 8 a0 mesmo tempo confluéncia de todas as forcas. existentes, Maa, 0 Homem, recebeu como heranca uma parcela do oder eriador divine, o dom do Espirito e da Palavra ‘Maa Ngala ensinou a Maa, seu imerlocutor, as leis segundo a ‘quais todos os elementos do cosmo haviam sido formados e cont uavam 2 exist. Instituiy Maa como guaréiéo do univers @ tencarregou-o de zelar pela manutene8o da Harmonia universe. Por essa razdo, 6 difcll ser Moa, ~ Tniciado por sau criador, Maz wansmitiy mais tarde a seus des: ccendentes tudo que havia aprendido, e assim teve inicio a grande Cadeia de transmissao oral incistica da qual a ordem de Komo 18 [assim como ae de Nama e Koré, no Mall se proclama continua ‘Quando Maa Ngala ériou seu interlocutor, falou com ele €otou: 0 da faculdade de responder. Estabaleceu-se 0 diaiogo enue Maa ‘gala, ciiador de todas as coisas, © Ma, simbiose de todas es co: ‘Ro descorem de Moa Ngala para o homem, es palavre vinas, porque ainda no haviam ensrado em contato com 3 m; tia, Mas depois de terem contato com 0 que era corporen, ram parte de sua divindade e adquirirarn carater de secralidace. Sa craizado pela Palavra divina, 0 corpéreo, por sua vez. p femitirvibragies sagradas que estabcleseram 2 rolacio gala ‘Aimagem da palavra de Maa Ngale, da qual @ aco, 3 palevra hu: mana poe em movimento forcas latentes, que aciona e suscita, co ‘mo ocorre quando um homem se ergue ou se volta 20 ouvir chamar Pode criar a paz, assim como pode destrutta. Ea imagem do fo ‘90. Uma 58 pelavra inoportuna pode fazer estourar uina guerra, 2s im coma uma fagulha pode provocar um enorme incénio Este porta de celeiro dagen (Mali) nodia chamar-se "A Porta do Geness'. A vis8o cosmoganice do sou pove guiou o escultor fontados os sistemas do mundo. As fils de personagens simbol "do mundo inteira hascidos dos primeiros antepassades, A fechadura & o altar decsos homens originals. Ar duas colunas de ambos os lacos do painel simbolicen 2 flur da 6gua.o de polavra. As tartarugas talhadas nas laterals invocam o patriarca de cada fama, que blas substituem em suas ausencias, ‘bra. Nola est2o ro ll RN AE iin 0: Sitestios atricanos tadicionais acompenham seu trabalho com .Zantos ttuais ou palavras cadenciades sacramentala, e 0s gestos ‘de cada oficioreproduzem o mistério da eriaeso primordial Vineulada a0 poder da Palavra. Assim se diz: "O ferrero forja 9 Palavra /o teceldo a tece / 0 sapateiro a amacia curtindo-a". O teceldo afr ‘dot segredos do seu tear. A armagao do tear compie-se de olte paras princi {quatro vertices, que slmbolizam os quatro elementos (err, ‘au, ar, fogo) © 2€ quatro pontos cardeais; 9 quatro transversais, ‘que simbolizam ox quatro pontos colaterais.O tecelio representa O Homem primordial, Mao, situado no centro des oito direcdes do ‘ue o encarnam. imbra o ritmo original da palovre crladora A wadicao confere pois a Kuma, a Palavra, nao apenss poder criadar, mas uma dupla funedo de conservar e destrur. Por isso a Palavra é, por exceléncia, o grande agente ative da magia africana, E preciso ter em mente que, de modo geral, todas as tradicdes aficenas postuiam uma visio religiasa do mundo, O uriverso vsivel & concebido e vivenciado como sinal, concratizaco ou camada ex- terna de um wniverso invsivel e vivo constituido por forcas em per: patuo movimento, No interior dessa vasta unidade césmica, tudo tt ligado, tudo é solidério, ¢ © comportamento do homem em re- Taco a si mesmo e em relagao ao mundo que o cerca mundo mi: reral, vegetal e animal, e também a sociedade humana) passa a ser Sbjeto_de uma regulementagio ritual extremamente precisa — que teatretanto pode varia, em sua forma, Segundo as etnias ou as rel ides, ‘Acreditava-se que a violagdo das leis sagradas era capaz de into- duzir no equilbrio das forcas perturbacSes que se manifestevam através de diferentes distirbios, Por iss0 a ado raqica, ou sea, 8 ‘manipulacio das forcas, tinha geralmente o objetivo de restaurar 0 fequilrio perturbado, restabelacer a Harmonia da qual o homer, como i vimos, fora designado guardio por seu Criador. 'A palavra “magia” é sempre tomada em maui sentido na Europe, cenquanto que na Africa simolesmente designa a manipulaga0 das forges, coisa neutra em si mesma, que pode se revela wl ou noc fade acordo com 9 uso que se faz dela. Costurna-se dizer: “Nema magia nem @ fortuna so mas em si mesmas. E sue utilizaeko que 2 torna boas ou més.” ‘A boa magia — a dos inciados e a dos “mestres conhecedores! — ‘visa a purifier homens, animais e objetos a fim de recolocar as forces em ordem. Nesse panto, a forca da palavra é decisiva, Na verdade, assim como a palavra dvina de Maa Ngala veio ani mara foreas cdsmicas que se achavam em repauso, esidticas, as sim também em Maa a palavra humana vem animar, pér em movi ‘mento @ suseitar as orcas que se encontram estaticas nas coisas "Mas para que a palavra produza plenamente seu efeito, ¢ preciso {que seja recitada ritmicamente, porque 0 movimento tem necessi dlace de citma, sendo ele mesma baseado no sagredo dos niime: 198. E preciso que a palovra reproduza o vaivirn que é a esséncia do Nos cantos rituais e nas férmulas encantatérias, a palavia & 3 materalizacio da cadéncia. E se ¢ considerada capaz do agi sobre 1 espiitos ¢ porque sua harmonia cria movimentos, movimentos {que mobilizam forcas, forcas que atuam sobre os espiritos que séo ‘28 poténcias da acdo. Segundo a tradicdo africana, 2 palavra, que tra do saqrado seu poder criador e operative, encontra-eo om relaedo direta tanto com ’a manutengao como com a ruptura da harmonia, seje no homem, Sela no mundo que 9 cerca Pr isco @ maioria das sociedades orais tradicionais considera a rmentira uma verdadeira lepra moral. Na Africa tradicional, quem falta & propria palavra mata sua pessoa civ, religiosa © acuta ‘Afssta-se de si mesmo © da sociedada, Para si mesmo e para 0s us, seta preferivel sue morte & sua sobrevivéncia. 0 cantor de Kome Dibi, de Kulkoro (Mali), cantou em um de seus poeras rituals: A palavra ¢ divinamente exots, ‘dove:se ser exato com ela A lingua que folseie 3 palavra vioie 0 sangue daquele que mente, » No case, 0 sangue simboliza a farga vital interior cuja harmonia é perturbads pela mentia. “Quem estraga sua palavra estraga-se asi mesmo’, diz 0 adagio. Quando se pensa uma coisa e se diz outra rompe-so consigo mesmo. Quebra-se 2 unigo sagrada, refiexo da unidade césmica, criando assim a desarmonia aentro @ em torn0 de Podomes assim compreender melhor contexts magico religioso e social no qual se situa o fespeito pela palavra nas socie: ddades de tadicSo oral especialmente quando se wrata da transmis: so des palavias herdadas dos ancestais ou dos mais veihos. O imsior apego da Africa tradicional é a tudo que foi herdado dos an tepassados. As expressbes "Recebi ce meu Mestre”, "Aecebi c meu pai”, “Mameio do seio de minha mae" exprimem o apego re ligioso ao patriménio transmitido. 1s grandes depositirios dessa heranca oral sto os chamados Tradicionalstas". So a meméria viva da Africa e seus melhores testemunhos, Quem sio esses mestres? Em bambara, se chamados Doma ou Soma, os Conhecedores", ou Danikeba, fazedores de conhecimento”. Em poul, sogundo ae regiGes, so chamados Silnigu, Ganda ou Tehiorinké, palavras que tm © mesmo significado de ‘conhecedor’ Pdiem ser Mestres inicio (e iniciadores) de urn ramo tradicio ral particular liniciagdes de ferretos, teceldes, cacadores, pesca ‘ores etc.) ou possuir 0 conhecimento completo da wradiea0 em to dos os seus aspectos. Assim, existem Dama que conhecem a cién: ca dos ferreiros, dos pastores, dos teceldes, e ha também grandes cescolas de iniciagSo na savana — 0 Komo, o Koré, o Nama, 0Doe © Nyawarole, no Mall Mas no nos enganemos, A wadicdo africana nBo divide a vida fem partes distintas @ raramente o conhecedor é um especialista. € ‘ais comum ser um generalista, Um aneio, por exemplo, pode se ‘20 mesmo tempo conhecedor da ciéncia das plantas (conhecer as ‘propriedades boas ou més de cada planta), da “ciéncia das aguas’ {de astronomia, psicologia, etc. O que importa é a ciéncia de vida, ceujo conhecimente deve ser sempre aplicado a0 uso pritico. ‘Aquole que quarda os segredos da génese cosmica e das cién 8s da vida, tracicionalista, geralmente dotado de meméria pro igiosa, costuma ser o arquivista de acontecimentos passados tansmitidos pela tradic30, ou de acontecimentas contempor’ 1ne0s. Uma histéria que pretendesse se: essencialmente africana

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