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© pesquisador deve sempre estorgar-se Para apreendera realidade totale concre- ta, mesmo que saiba nao poder alcancé-la, andoserdemaneira parciale limitada;para i880, deve empenhar-se para integrar ao estudo dos fatos sociaisa historia das teo- rasa respeito dessesfatos, bem como para ligar 0 estudio dos fatos da consciéncia é sua localizagao historicae é sua intra-estru- tura econémicae social Lucien Goldmann, Aarvore que néo dé frutos Exingada de estéril, Quem Bxaminaosolo? Ogatho quequebra Exingado de podre, mas Nao havia neve sobre ele? Dorioque tudo arrasta Se diz que é violento, Ninguém diz violentas Asmargens que o cerceiam Bertold Brecht Raizes historicas das concepges sobre o fracasso escolar: 0 triunfo de uma classe e sua viséo de mundo As idéias atualmente em vigor no Brasil a respeito das dificuldades de aprendizagem escolar — dificuldades que, todos sabemos, se manifestam predominantemente entre criangas provenientes dos segmentos mais empobrecidos da populacéo — tém uma histéria. Quando tentamos Feconstituila, percebemos rapidamente que para entender o modo de pensar as coisas referentes a escolaridade vigente entre nés precisamos entender o modo dominante de pensé-las que se instituiuem paises do leste europeu e da América do Norte duranteo século XIX; visivel que os Primeiros pesquisadores brasileiros que se voltaram para oestudo desta questo — e que imprimiram um rumo duradouro ao pensamento educa- clonal no pais — o fizeram baseados numa visdo de mundo que se consolidou nesse tempo e nesse espaco. Quando falamos em visio de mundo trazemos & tona a questo da natureza das idéias:serao elas resultado de "puro esforgo intelectual, de uma elaboracao tedrica objetiva e neutra, de puros conceitos nasci dos da observacao cientifica e da especulacao metafisica, sem qualquer ago de dependencia com as condicées sociais e histéricas” ou'sdo, a0 Contrario, expresso destas condigoes reais”? As idéias explicam a reali- dade histérica e social ou precisam ser explicadas por ela? Quando um tedrico elabora uma explicacéo do mundo, ele esta produzindo idéias verdadeiras que nada devem a sua existéncia histérica e social ou est realizando uma transposi¢ao involuntaria para o plano das idéias de relagdes sociais muito determinadas? (Chaul, 1981 a, p. 10-16), Partindo do modo materialista histérico de pensar esta relagaoé que afirmamos a necessidade de conhecer, pelo menos em seus aspectos fun- damentais,a realidade social na qual se engendrou uma determinada versio sobre as diferencas de rendimento escolar existentes entre criangas de diferentes origens sociais. Eeste 0 objetivo deste capitulo: reunirinforma {bes que nos permitam ao menos vslumbrarafillagao histérica das dias — Stier assumama forma de crengas, quer de certezas cientificamente fury Gadas_-sobrea pobrezae seus reveses, entreos quaisseincluia difculdade deescolarizar-se. Realizar esta tarefa requer, alem do retorno a que nos referimos, um contoro, de natureza epistemolégica, que possibilite captar o que testa realidade social & (incluindo 0 entendimento do que é a ciéncia que nela se faz),a partire além do que ela parece ser! Nesse retorno. inevitavel o encontro com 0 advento das sociedades industrials capita~ listas, dos sistemas nacionais de ensino e das ciénclas humanes, especialmente da psicologia. Esse contorno, por sua vez, permite cap tara essencia do modo de producao capitalista e das idéias produzidas fem seu Ambito, condicéo necesséria para que se faca a critica destas {deias, Sem qualquer intengao de resumir a historia do século XIX ou de reproduzir a andlise materialista histérica do modo capitalista de pro” Gucdo, propomo-nos a elaborar um quadro de referéncias historico @ sociolgico apenas suficiente para encaminharmos uma reflexso a res- peito da natureza das concepcdes dominantes sobre fracesso escolar numa sociedade de classes. AERA DAS REVOLUGOES E A ERA DO CAPITAL Oséculo XIx,em todasas suas manifestacées,éfilholegitimo da du- pla revolugso que se deu na Europa ocidental no final do século XVI Fevolugdo politica francesa (1789-1792) ea revolugao industrial ingles9, {que tem come marco construcso, em 1780, do primeira sistema fabri do thundo modernorashistéricas ndUstrias téxteislocalizadas na regiao brit ca de Lancashire, Ambas vem coroar? 0 surgimento de relagbes de "A respeto desta dstngio, veja Ks (1969) + fu press eth sendo ttc aa deeraamsnt no lugar Go verbo “produc: somes ca Sa singin € posse ze jasca 3 comple dos momentos da Hsia, Hobsbawm igo real npornca desta fren quando afr: eden que uma tonsa 9 thats no pode sar ertendia Sm todos ma str eas de 1789. c¥ meme Fa doe tnedktamerte a precederam cue refcem cramente arse dos ales res ee produgao inéditas na historia, no seio das quais se elaboram justifcativas para uma nova maneira de organizar a vida social? Segundo Hobsbawm (1982),"a grande revolugso de 1789-1848 Fo) o tiunte nao da industria'como tal mas da indlstria capitalist no da Gaordade e da igualdade em geral, mas da classe média ou da socieda- the bunguesa'iberatneo da’economia moderna’ ou do'éstado moderne ee das economias e estados em urna determinada regiao geogrsfica Jomundo (parte da Europa e alguns trechos da América do Norte), culo so ho eram os estados rivais e vizinhos da Gré-Bretanha e da Francar {E.17),A passage do modo de producao feudal para 9 modo de PY” Gjucao capitalista naosefezsem grandes convulsoes socais,quecuimninarath sexseriodo de 1789-1848; em termos socials ¢ politicos, o advento do repatalismo mudou gradual mas inexoravelmentea face lo mundo: 9 Fondo seculo XIX praticamente varreu da face da terra amonarauiia como esime polities dominante, destituiuanobreza.eaclero do poder econ? 1 oe politico, inviabilizoua relacao servo-senhhor feudal enquanto relago Geproclucdo dominante, empurrougrandes contingentes das populace sarais para os centrosindustrais,qerou os grandes centros urbanos com aon contrastes, velo coroaro processo de constituigao dos estados nacio- sate moernos eengendrou uma nova classe dominant — a burguesia—~ aaa nove classe dominada—o proletariado — explorada economica- fnente segundo as regras do jogo vigente no novo modo de produc jase instal e triunfanno decorrer desse século. Naprimelrametade do See eXIX, as mudangas propiciadas pela dupla revolucéo foram de tals proporgbes que alguns historiadores, como Hobsbawm(1982).nao hes aac oem consideréclas como”a maior transformagao da histéria humana sade os tempos remotos, quando o homem inventou a agricultura ¢ 8 metalurgia, a esctita,a cidade e o Estado" (p. 17) a parte oro do no, ae seam demos pla dpa revo. nes ene da pate vor tsmentas pias eines desta tansformacio jt estavam prepara 67) SR a ture sucertemente grande para reluconar oreo. Nosoprobiona® SCS ete elementos de ura ova economia sociedad, mas 0s unl: Ha ra gual apes ae foram execendo em sécuos anteriores, miranda & eho Sordi mas sua decisiva conqubta da fortaleza.” (p- 18-12) ee uma ase do process da pasagem das sociedaes feuds por as soccdades cre nn aropa, bem oro de st consol, em Hobsbavm (1979: 1787) Aa ielsone enna seg sho pouco mals Go a wn eu delgumas de sss pines SSE 32 +s pratigio do aca ecott Se aordem feudal ainda estava socialmente muito viva nesta passa- gem de século, ela se mostrava cada vez mais ultrapassada eimprodutiva em termes econdmicos; tecnicamente, a agricultura européia era, com faras excesbes, tradicional e ineficiente, colocando obstaculos as novas exigéncias de proclugao agricola, o que tornavao mundo agricola especial. mente lento e invigvel a uma massa crescente de camponeses, ©eposto ocortia simultaneamente no mundo comercial ¢ industrial manufatureiro;seu desenvolvimento, proporcionado pela rede cada vez mais complexa das relacdes comercials tecida pela ampliagao da explora S40 colonial e pelo crescimento em volume e capacidade do sistema de vias comerciais maritimas, foi acompanhado por intensa atividade intelec- {wale tecnolégica, Neste contexto,foi-se consolidando uma categoria social ativa e determinada que se beneficiou, mais do que os demais setores da burguesia emergente, das novas oportunidades de enriquecimento: o smercadorprecursor do capitalista industrial, © mercador “comprava os produtos des artes3os ou do tempo de trabalho ndo-agricola do campesinato para vendé-los num mercado mais amplo*Nesta nova relacao,0 artesao transformou-se pouco a pouce num trabalhador pago por artigo produzido, principalmente nos casos cada vez mais freqiientes em que o mercador era o fornecedor ce matéria. Prima eo arrendatétio dos instrumentos de produc. Neste nove processo Produtivo, o mestre-arteséo podia transformar-se num empregador ou num subcontratacior de mao-de-obra assalariada; a especializacao de Processos e funges comecou, por sua vez, a criar subcategorias de trabalhadores semiqualificados entre os camponeses. Precursores dos grandes industriais capitalistas, estes novos empregadores que salam das proprias fileiras dos produtores ainda néo passavam, neste periodo de transicao, de simples gerentes, dependentes dos mercadores¢ lon. 98, Portanto, de se transformar nos proprietérios de industrias que jé existiam, como excegao e em pequeno ntimero, na Inglaterra. merea. dor era controlador dessa producao descentralizada e elemento de "igasao entreo produtore mercado mundial cf. Hobsbawm, 1982, p.36), A coexisténcia da nobreza com este nove homem empreendedor, GUE apestava no proceso econdmico e cientifico viabilizado pela ‘acionalidade, naose dava sem antagonismos. A medida queo anacronismo va helena soura pte «33 Ja produsao agraria diminuia seus rendimentos, aaristocracia procurava ocupar 0s altos cargos governamentais, valendo-se de seus privilégios hereditérios de prestigio e posicao social. Nesta lta, freqiientemente esbarrava com os"mal-nasciclos” que, pelas maos dos préprios monarcas, JSecupavam muitos destes postos na maquina.estatal Segundo andlises hist6ricas, a determinacao da nobreza em expulsardo aparelho estatal os altos funcionatios plebeus e sua rejeicao aos que adquiriram titulos de nobreza por vias que nao a do nascimento — movimento conhecide como “reagao feudal” — parece ter sido um dos precipitadores de revolugao francesa Mas a “reacao feudal” nao consistiu apenas em contra-atacar a es- calada dos comerciantes e industriais ambiciosos que faziam fortuna nas cidades € suas pretensoes politicas reformistas; economicamente ameagada, a nobreza procurava recuperar 0 controle politico ¢ ecand. mico da situagao ocupando, a qualquer preco, os postos oficials na administrasao central e provinciana e usando os diretos adcjuiridos nes, tes postos para extorquir © campesinato. Portanto,"a nobreza nao sé exasperava a classe média mas também o campesinato’ (Hobsbawin, 1982, p. 75). Anélises hist6ricas indicam que, nos vinte anos que prece deram a revolugdo, a situagao do homem do campo francés piorou sensivelmente;compreenciendo 80% da populacao,o campesinato fran. <és,embora proprietaio majoritario de terras, ndoas possulaem quantidade suficiente, defrontava-se com dificuldades advindas do atraso tecnico, nao conseguia fazer frente as presses que o aumento populacionalexer, clasobre a produsao agricola e era saqueado por tibutos de toda order As dificuldades financeiras de monarquia agravavam ainda mais.» ‘quadro, Uma estrutura fiscal eadministrativa obsoleta,aliada a tentatives de * Scpindo Mobsboun, os moracas abodes eue rena em todos os Estados europe, com ecto da Gri-Bretnha,F havi percebido ae para enfentaraintenea tdade Meet {lata com pessoal cil. no aristocrat, Nesta cojunta, tuo idea gue os Wonaien enn ss mea stra © empreendedora pa iphrar um Estado moderizad plage aoc com base em sggansWuminsts,garantsse a mulipeagao de ua ruera e de teu pole eehace Imei, por sua vez, necesita do apoio da monarait“tuminada™ pura teen sees nde es s:peranas, Anis, potato, apotnam-se mauamente em busca da eatin de teen os Pose essencislmente incancaves (1982.39) 34+ prado doco ecole reforma incipientes e malsucedidas, gastos palacianos eo envolvimento ‘coma guerra de independéncia americana, numa tentativa de enfraque- cer 0 poderio inglés, tornaram a situagao insustentavel. Nas palavras de Hobsbawm (1982),"a guerra ea divida partiram a espinha dorsal da mo- narquia’ (p.76)- (O combate & aristocracia nao foi obra, no movimento revoluciona- rio francés de 1789, de uma lideranca partidéria nem se deu de forma organizada. Sua unidade foi garantida pelo consenso existente entre 95 integrantes de um grupo bastante coerente — a burguesia — cons: tituido de advogados, negociantes e capitalistas. O"Terceiro Estado” — entidade ficticia destinada a representar todos os que nao eram no- bres nem membros do clero, mas de fato dominada pela classe média ~ tinha em sua retaguarda uma massa popular faminta e militante que se acumulava em Paris. Na verdade, a revolucao francesa foi uma rea- ao politica da burguesia,cujos lideres mais radicais, miltantes einstruidos a os jacobinos — tornaram-se porta-vozes dos interesses dos trabalhado- res pobres das cidades (os sans-culottes) e de um campesinato insatisfeito erevolucionério# Os sans-culottes— grupo militante formado por traba- Ihadores pobres, pequenos artesaos, lojistas, artifices, pequenos empresarios, ete. —formavam alinha de frente das manifestagées, agita- Goes e barricadas.’ Mas na transigo do modo de produgéo feudal pare o capitalista, 0s antigos artesdios e camponeses vao perdendo suas condigées ante- riores de produtores independentes e de agricultores que ocupavam © ‘ultivavam a gleba; destituides de seus instrumentos de producao, de Sua materia prima ¢ da terra para cultivar, suas condicoes de vida tor- naram-se insustentéveis;a peste e eventos climaticos contributram para tomar o quadro mais dramatico. Sao eles que vao integrar os grandes contingentes famintos que se acumiularam nas cidades e que vieram a constituir um tipo de trabalhador inédito na histéria da humanidade:o + Por ecastio da reolugioFancesa, no havi ainda na Franca uma case opera strict sensi et eanghse a uma masa de easatidos contalads em eslabelecmentos case sempre no industria ws suns culotes st um rano doauela importante € universal tendénca pica ave procra & Jprosar on lresies ds grande masa de ‘pequenos homens ae ete ne os polos lo ugueS Pigott feafcrtemene takex mas préunos deste do ave doqele pore so, em trai, pobves.” @bsbawm, 1982 p. 81) oa een sua pata «35 trabalhador assalariado, que vende no mercado de trabalho o Unico bem que Ihe resta, a energia de seus miisculos e cérebro. Sao eles due vo formar ocontingente dos trabalhadores da industria e as populacdes Po~ bres das cidades, submetidos a um regime e a um tipo de trabalho que thes eram estranhos mas dos quais nao podiam fugir. Sao eles que vo trabalhar nas maquinas e na industria extrativa de sol a sol, em troca de ssaldrios aquém ou no limite fisiologico da sobrevivencia. ‘A medida que o capitalista ia acionando diversos mecanismos tecnicos e politicos que garantissem 0 aumento do lucro @ a acumu lacao do capital, a situacao do proletariado ia-se deteriorando progressivamente. Se no momento da revolucao francesa burgueses P trabalhadores pobres e explorados pela nobreza se irmanaram na uta contra o inimigo comum, & medida que os anos passam a divisao social se expressa basicamente pelo antagonismo entre capitalistas € proletarios. A concentragao crescente da renda nas maos dos gran: Ges financistas e capitalistas @ a primeira crise de crescimento que s¢ labateu sobre a produgo capitalista em torno da década de 1830 ge~ faram miséria e descontentamento; nesta €poca, os trabalhadores pobres quebravam as maquinas, acreditando que elas eram respon ‘saveis pela onda de desemprego, tal comoja havia aconteciclo na década de 1810. Masa insatisfacao nao era apenas da classe trabalhadora:a pe- quena burguesia de negociantes também foi vitima da nova economia. ‘Apartir de um periodo inicial de expansao da producao edo merca- doe de lucros fantasticos, crises periédicas afetaram a vida econdmica entre 1625 ¢ 1848.No contexto destas crises, a diminuicao da margem ide lucro necessitava ser contida e o rebaixamento direto ou indireto dos salarios era a medica mais eficaz no barateamento da produgio. Diminui-los tornou-se a meta: para atingi-la, o valor da mercadoria“for~ cade trabalho" foi diminuido, trabalhadores mais caros foram substituidos Go trabalho da maquina interferiu sobre a quantidade e a qualidade de trabalho humano necessario.’ Nas palavras de Catani (1982),daaurorado 7 tembremor aje, segundo 3 anise de Mac, © aumento da mais-ak € possivel mediante duas wade fandamenias: 0 aumento da jorada de tabaho (ai-afis absolut © 2 reducao do tempo de uabulho neces (rma relate plo recurso 3 mecanizacio da produsio ¢ 3 segmentagio do trabalho. capitalismo, quando ele se desenvolviano invélucro de uma sociedade pre- dominantemente feudal” (p.53) e nao existia ainda o trabalhador proletario, até a desintegragao final da producao artesanal (na qual um artesio ja semiproletarizado se tornou um operario industrial eos que o financiavam e muitos dos que produziam nas condicoes semi-industriais se transforma- Fam nos capitalistas em ascensao), os grandes desafios enfrentados pela industria capitalista foram a racionalizacao eo aumento da produgao eo incremento das vendas. Embora a produgao por trabalhador tivesse au- mentado muito até os anos 30 € 40 do século XIX, Hobsbawm (1982) nos informa que“a aceleracao realmente substancial das operagées da indis- triairia ocorrer na segunda metade do século” (p. 59). Otrabalhoalienado tem suas origens no momento em que produ- tor comecaa ser destituido dos meios de producéo e comega a produzit para outrem eos homens comegam a dividir-se em proprictarios exclu= sives das maquinas e da matéria-prima e trabalhadores que no as Possuem. As relacbes de producao que assim se estabelecem fazem Parte da prépria natureza do modo de produgio que comega a vigorar. No Primero Manuscrito Econémico e Filoséfico, Marx (em Fromm, 1970) propde-sea desvendar a verdadeira natureza desse trabalho, dessa for ma de trabalho na qual a) o trabalhador se sente contrafeito, na medida em que o trabalho nao é voluntario mas Ihe éimposto, é trabalho forcado, b)o trabalho nao ea satisfacdo de uma necessidade mas apenas um meio ara satisfazer outras necessiciades; c) 0 trabalho nao é para si, mas para ‘outrem;e d) 0 trabalhador nao se pertence, mas sim a outra pessoa. Para Marx, a alienagao do objeto do trabalho simplesmente se resume na alie- nagao da prépria atividade do trabalho. Ocaréter alienaclo deste processo de trabalho fica patente, segundo Marx, pelo fato de que, sempre que possivel,ele é evitado.Trabalhar,nes- tasnovas condicoes da indiistria capitalista, significa mais do que sactificar-se, significa mortificar-se. De vida produtiva, o trabalho reduz-se a meio para satisfacao da necessidade de manter a existéncia, Esta identificagaocoma atividade vital é caracteristica do animal, que nao distingueaatividade de si mesmo: ele é sua atividade. J4 0 homem faz de sua atividade vital um ‘objeto de sua vontade econémica. A atividade vital consciente do ho- mem que o distingue da atividade vital dos animais; mas quando submetido a um trabalho alienado, 0 trabalhador sé se sente livre quando as esa ura ptt «37 desempenha suas funcées animais:comer, beber, procriaretc, enquanto atos a parte de outras atividades humanas e convertidos em fins definit- vos e exclusives. Uma tal condicéo de vida produz uma inversao desumanizadora: em suas fungoes especificamente humanas,o trabalha- dor animaliza-se;no exercicio de suas fungoes animais, humaniza-se. A medida que a reagao do proletariado foi se delineandoe passoua se expressaratraves de formulacdes tedricas socialistas e movimentos re- volucionarios concretos, como ocorreu entre 1815 e 1848, 0s varios tipos de governo reformista que se sucediam nao passavam de formas de de- fender osinteresses da burguesia das press6es revolucionérias socialistas emonarquistas. Mas aruptura entre burguesia e proletariacio nao se daria, exceto na Gra-Bretanha, antes de 1848, Nesta primeira metade do século, oproletariado, mesmo o mais conscientee militante, considerava-se um dos extremos de uma luta comum em prol da democracia e via a reptib ‘ca democratico-burguesa como o caminho em ditecao ao socialismo® ‘Mas a historia deste periodo ¢ também a histéria da desintegracao dessa alianga. Durante o século XVII enas primeiras décadas do seculo seguinte, a burguesia foi porta-voz do sonho humane de um mundo igualitério,fra- temo e livre; mais do que isto, do lugar que ocupava na nova ordem social gerou e disseminou a crenga de que este sonho se concretizaria na sociedade industrial capitalista liberal; em meados do século XIX, 0 50- ho havia acabado para alguns setores mais conscientes das classes trabalhadoras e para seus intelectuais organicos. Em torno de 1830, um movimento socialistae proletario era visivel na Gra-Bretanha ena Franca, uma massa de trabalhadores pobres'via nos reformadores e liberais seus Provaveis traidores e nos capitalistas seus inimigos seguros” (Hobsbawm, 1982, p. 139). Em contrapartida, os liberals moderados eos situacionistas Passaram anao ver com bons olhos os criticos da sociedade capitalista e os radicals militantes, especialmente em sua versao operéria revolucionéria, * Para Hobsbawm (1982. p. 146), 0 Aanfesto Comunita de Macx ¢ Engels (1848) € uma declragio de guerra ftura contra a burgusi, mas de ana presente BB + patio dofrcase ecole oque resultou no rompimento da alianga de radicals, republicanos ¢ pro- letarios com os grupos liberais conservadores.” Oque inviabilizou 0 sonho? Segundo Hobsbawm (1979),'a subita.vas- taeaparentemente inesgotavel expanséo da economia capitalista mundial forneceualternativas politicas aos paises mais avangados’A revolugao poli tica recuou, a revolucao industrial avangou;"a revolucao industrial havia engolido a revolucae politica” (p. 22), quebrando a simetria destas duas ‘dimensBes. Asociedade colimada era 0 reino da igualdade de oportunida- desa todos os cicladaos, da melhoria das condigesde vida que oliberalismo fecondmico supostamente viabilizaria;a sociedade real foi a do triunfo da alta burguesia, a custa do sacrificio das classes trabalhadoras, que através de seu esgotante trabalho cotidiano produziam a sua propria misériae oent- quecimento crescente dos empresarios. Esta contradicdo fundamental instalada na medula do modo de produsae capitalista, sera omotor da histo- ria nos anos posterioresa 1848. Navera do capital que se inicia em 1848,a politica se caracterizou por refermas sociais que tinham como metadefenderos interesses da burguesia: dirigirasmassas,traduzirsuas reivindicagdes em termos assirnikivers pela Or- dem social existente era o caminho mais eficaz para Ihes permitir uma particjpacao politica sem que se tornassem amearas incontrolévels ja que nao podiam ser simplesmente excluidas desta participacao.A superiorida- de econdmica, tecnolégica e conseqiientemente militar de estacos da Europa central edo nortee de paises fundados em outros continentes por seusim agrantes, especialmente os Estados Unidos, torna-se um fato neste perfodo. Emibora poucos dos pafses restantes se tenham tomado colénias desses esta- dos, economicamente todos estavama suamercé, “As forgas sci que eigen o au oe se chuma de séelo XIX encontrar pla frente ds atthe Foram tempos de coreacio do captalsmo, da consolidacio da burguess, mas form tans tam de uma cca soil cents, de ess reolcionnos. de prods floss saree ee critica, de denincia da miserivel explorag#o do homem pelo homem. de cerstamamenos Portant, fazer a Hsia do suo XIX sige fazer a hist do eaptalisno do anticaptalsmo, (Costa, 1982. p. 13-14) vo Quando rue 1865-1875, uma ond de gress agitago da classe tabaador espolhou'se pelo cartncit, sigue governs e alguns stores da burgusia Hearam apreensis com © cescinenton sennbathom. As formas soci eno desencadeadastinam como objetivo preven o urgent veate montmento coms fora polica inlependente; 25 aividades e rganizaoes wrablhisas foram eetecidas pura serem contfladas, medi protic conta o contonto de cases. (Mobs. 1979. 130-130) paris Wena sonra pats «39 Nostiltimos anos do século XIX, o mundo atingido direta ou indireta- mente pela economia capitalista estava basicamente dividido em perdedorese vencedores, tanto dentro quanto fora das ronteiras nacionais. Em termos nacionais, os perdedores, nos estados europeus capitalistas, tram sobretudo os grandes contingentes de trabalhadores assalariados, ho campo enascidades, que se dedicavam a produgio agricola, asinds- trias de extragao e de transformagio e a variedade crescente de servicos bracais subalternos e mal remunerados. As condig6es dle vida no campo produziram nao sé um significative éxodo do campo para as cidades, Flentro de um mesmo pais, como também grandes correntes emigratorias internacionais. ‘Ocapitalismo agrério,resultado do crescimento e aprofundamento da economia mundial do periodo pds-1848, provocou nova expulsso de grandes massas camponesas que se dirigiam as cidades do conti rente e208 paises de além-mar. Hobsbawm (1979) situa nesta segunda pretade de s&culo“0 inicio da maior migrag8o dos povos na Historia" (p. 307), que assumiria proporcbes ainda maiores nos primeiros anos do caculo XX. De outro lado, a crescente demanda de forca de trabalho thos setores da producao industrial e de servicos atraia massas campo- esas falidas e famintas para as cidades. ‘© que eram a cidade, a industria e classe trabalhadora a partir de meados do seculo XIX? Industrializacao, urbanizagao e migracao andam juntas, A cidade industrial tipica neste periodo era uma cidade super- povoada, carente de infra-estrutura, centro de comercio e de servicos Que enquistava os trabalhadores na periferia e em vilas operarias ave contrastavam com 0s bairros que abrigavam a vida burguesa." A grande industria, por sua vez, ainda no era a regra; a manufatura ainda era freqiiente no proceso produtivo capitalista; as industrias geridas pelos membros de uma mesma familia ainda nao se haviam defrontado com as questées de direcdo, de organizacao e de aumentode produtividade nos moldes em que elas comecavam a se colocar para as grandes organiza- ‘Goes capitalistas, na passagem do capitalismo liberal para o capitalism © segundo Habshawm, em 1848 a popula do mundo, mesmo na Europa, snd consi, sobre aaaarr homens do canpo. No fina da dé de 1870, astuagio hantase modcadosubstaneiamente tras popu rr anda prevalea sabre a wrbama, Assim sendo, a malar parte da buona (aeus destinos nda dependiam do que acontecesse na ¢ com a tera (1979, p. 139% 40» a prtnio do facet ecole monopolista que se verifica a partir da década de 1850. Se “a empresa caracteristica da primeira metade do século tinha sido financiada de for- ma privada — por exemplo, com recursos familiares — e sofrido expansao através de reinvestimento do lucro” (cf. Hobsbawm, 1979, p.226) a em- Presa que comega a se consolidar na segunda metade basei ‘mobilizacao de capital para o desenvolvimento industrial, Ainseguranga era fator que dominava a vida dos trabalhadores do século XIX;a miséria era uma ameaca constante. E por isso que Hobsbawm (1979) afirma:"O caminho normal ou mesmo inevitavel da vida passava Por estes abismos nos quais 0 trabalhador e sua familia iriam inevitavel- mente cair: 0 nascimento de filhos, a velhice e a impossibilidade de continuar o trabalho” (p. 231). A maioria das familias operarias com filhos ainda pequenos para o trabalho, mesmo que trabalhasse no limite de suas Possibilicades durante osanos especialmente favordveis ao comércio, nao Podia esperar mais do que viver abaixo da linha diviséria da miséria. Aos quarenta anoso trabalhador bracal via sua capacidade de producao decair © com ela seu nivel de vida." Embora a classe trabalhadora nao fosse homogénea — havia gran- des diferencas salariais, de estabilidade no emprego e, portanto, de Condigoes de vida entre as varias categorias de operarios — ela estava unida pelo destino comum do trabalho manual, da exploragao, da pro- Pria condi¢ao operaria, enfim. No entanto, o empresariado e até mesmoa classe operdria faziam uma distingao entre o”trabalhador respeitavel"e o “pobre sem respeito"; estes ultimos, néo-especializados e sempre a beira do desemprego e da nao-sobrevivencia, tinham pouco acesso as organi- Zas0es que comegavam a dar expresso ao movimento trabalhista dos Operdrios mais especializados e mais bem pagos.”* Oséculo XIX caracteriza-se por uma contradicao basica: neste perio- do a sociedade burguesa atinge seu apogeu, segrega cada vez mais o trabalhador bragal ese torna inflexivel na admissao dos que vém de baixo, "se na * Ao conuiio do ave acontecia ma alt burguesia, que teve nos meados do século XIX a kde de ouro dis pessoas em dade madura.na qual os homes agian o pontoeulinante de suas cores de sua renda € de sua atvidade Wobstwm, 1979, p.233) * Na sociologia funcionatitanorte-americana, esta fsura na clase operinia & entendda como un Proceso de consitugio de diss classes socials dss: a classe “bu at ea clase bas boar eieeeeeneeneesrmenenenne sa era sours pats «41 No nivel politico e cultural, mantém-se vivaa crenga na possibilidade de uma sociedade igualitaria num mundo onde, na verdade, a polarizacao social cada vez mais radical. Entre as pequenas conquistas de uma mino- ria do operariado e a acumulagao de riqueza da alta burguesia cavara-se um abismo que saltava aos olhos. Justifica-lo serd a tarefa das ciéncias shumanas que nascem ese oficializam neste periodo, Por mais que se desse énfase a melhoria geral das condicoes e pers- pectivas de vida trazida pela nova estrutura social, a pobreza que ainda dominava a vida da maior parte dos trabalhadores era por demais visivele contradizia concretamente as palavras de ordem da revolucao francesa Tal como ocorrera neste movimento revolucionério, batalhées de misera. veis participaram ativamente da Comuna de Patis (1871), liderada nao mais pela burguesia mas pelos seus antigos aliados, agora antagonistas."* Mesmo entre os operarios especializados que conseguiram atingir um padrao de vida que quardava semelhancas remotas como estilo de vida burgués,a vida era pesada. Conseguiam, aduras penas, manteruma facha- da de respeitabilidade: comiam pouco, dormiam mal, economizavam migalhas ¢ eram constantemente perseguidos pela iminéncia cla miséria, Segundo Hobsbawm (1979),a distancia queos separava do mundo bur. gués eraimensa— e intransponiver’ (p. 240). A visdo de mundo da burguesia nascente foi profundamente marcada pela cren¢a no progresso do conhecimento humano, na racionalidade, na riqueza e no controle sobre a natureza. O idedtio iluminista se fortaleceu com o visivel progresso ocorrido na producao eno comercio, resultado, segundo se acreditava, da racionalidade eco- nomica e cientifica. E, fato compreensivel, esta ideologia encontrou maior receptividade e entusiasmo entre aqueles mais diretamente be- neficiados pela nova ordem economica e social em ascensio0s circulos mercantis e os financistas e proprietarios; os administradores socials & econdmicos de espirito cientifico, a classe média instruida, 0s fabrican- tes @ 0s empresérios” (Hobsbawm, 1982, p.37). Apartirdos dois principals "Mas 9 era do triunfo burgués, como Hobsbasum chama a segunda metade do século XIX. nao fl uma era de revolugdes ou de movinentos cle massa. faa de "miscelies des pres” da ead {er apotado a Comura deu apoio a tese de Bsn (etomads pox H. Matcuse ane ceo ners Aepois) de ave © potencsl de insurreicio esta mass nos matginas € subprolcanoe de ae ne Proletariado propeamente dit, 42+ a prado do toes esctr centros dessa ideologia (Franga e Inglaterra), ela irradiou-se para as mais diversas e distantes regides, tornando-se voz corrente internacional. £m termos individuais, o self made man, racional e ativo, representava 0 cida- dao ideal. O fato de osnovos homens bem-sucedidos o serem aparentemente por habilidade e mérito pessoal — ja que nao o eram pelos privilegios advindos do nascimento — confirmava uma visao de mundo na qual 0 sucesso dependia fundamentalmente do individuo; como afirma Hobsbawm (1979),"um individualismo secular,racionalista e progressista dominava o pensamento'esclarecido” (p.37).Tudo contribula, entre os vitoriosos na nova ordem, para o desenvolvimento da cren¢a na liberdade individual num mundo racional como o valor maximo de onde adviriam todosos resultados positivos em termos de progresso cientifico, tecnico e econémico.A ordem feudal ainda em vigor,com seus esforcos no sentido de fazer frente aos avangos econdmicos e politicos de uma parcela da plebe, constituia o mais sério obstéculo a realizagao das aspiraées da bur- guesia; por isso, um dos principais objetivos politicos dos que se organizavam em defesa da ideologia iluminista e do modo de producao capitalista era instalar uma ordem social que em tese libertaria.a todos os cidadaos do tradicionalismo medieval obscurantista, supersticioso eirracio- nal, que dividia os homens em estruturas hierérquicas segundo criterios indefensdveis. 0 liberalismo cléssico,tal come formulado pelos filésofos e econo- mistas dos séculos XVIL-XVI, era a ideologia politica da burguesia. A Declaracao dos Direitos do Homem e do Cidadio, de 1789, documento representativo das exigéncias burguesas, nao @, segundo Hobshawm, um libelo a favor de uma sociedade democratica ¢ igualitaria; é,acima de tudo, "um manifesto contra a sociedade hierarquica de privilégios Jsténcia de distingdes sociais, tem a propriedade natural e inaliendvel, preconiza a /gualdade privada como um dit dos homens frente a Leie 4s oportunidades de sucesso profissional, mas ddeixa claro que, embora seja dada atodos os competidoresa possibllida- dede comecar no mesma pontodelargada, ‘os corredtores ndo terminam juntos’ ! | OS SISTEMAS NACIONAIS DE ENSINO seacrenca de quea divisso social em classes superiores ¢inferiores teria como criterioo talento individual rd, mais adiante, nos ajudara com- preender 05 caminhos trhados pela psicologia nascente ¢ pelas erplicagées do fracasso escolar,0 nacionalismo,cula primeira expressi0 sncialé obra da burguesia de 1789, & 0 pano de fundo que nos permite entender pelo menos em parte,oadvento dos sistemas nacionaisdeensi- oo, Atraves da defesa de um regime constitucional, a burguesiaacreditava cater sendo porta-voz dos interesses’do povortomado como sindnimo de *nagao' ‘a pesduisa historica revela que uma politica educacional, em seu gentile estrito," tem inicio no seculo XIX e decorre de trés vertentes da Sigzo de mundo dominante na nova ordem social:de um lado, crenca fo poder da razdo.e da ciéncia,legado do iluminismo;de outro, proje- to liberal de um mundo onde a igualdade de oportunidades viesse a Sobstituir aindesejavel desigualdade baseada na heranca familiar; halmente? luta pela consolidacao dos estados nacionais, meta do pacionalismo que impregnou a vida politica européia no século passa~ To Mais do que os dois primeiros, a ideologia nacionalista parece ter Sido a principal propulsora de uma politica mais ofensiva de implanta~ Go de redes pubblicas de ensino em partes da Europa e da América do Norte nas ultimas décadas do seculo XIX. ‘A crenca generalizada de que chegara o momento de uma vida social igualitaria e justa era 0 cimento ideol6gico que unia forcas © Puy ‘Ana em relevo a necessidade de instituir mecanismos sociais que Garantissem a transformagao dos suditos em cidadiis.Para isto,a cons tuigdo determinaria direitos e deveres;o aparelho judicisrio,considerado um poder independente, garantiriaa cada cidadao a defesa de seus i No momento histo em que emerge, esta ideniieago nice estes des conceit € a0 mesmo Tempo revluonstia raed em ae mpgs antso de mundo dominant até eno, usiedora tara socal sob as monarauis abaluas — conser vadora, pos contém uma coneepeS0 de omer, de soctedade eds storia que obscurece a percepcao da realiade socal nascent zero ao Steels de tlegraco e ecprocdade onde a contradSoe fteessesnconctves & de {faldae etbcrdade onde se sediments una rvs forma de desigatiade de press w» Benno Zanot (1972), poiica cacoral é “a aso semi permanente do Estado det 2 entacio,supervisdoe provsio do sistema educatvo escolar” (P. 22). 4a. tos;a imprensa livre ficaria encarregada da dentincia e da critica dos des. viosias eleicdes garantiriam a participacao popular nas decisoes, através da escolha de seus representantes e da rejeigaio dos maus governantes, Para garantira soberania nacional e popular,que entao se supunha possivel numa sociedade de classes,a educacao escolar recebe, segundo Zanotti (1972),uma fundamental missdo:"ailustragao do pove,a instrugao publica universal, obrigat6ria,aalfabetizacao como instrumento-mae que atingird © resultado procurado. A escola universal, obrigatoria, comum —e, para ‘muitos, leiga — seré também omeio de obtera grande unidade nacional, serd 0 cadinho onde se fundirao as diferencas de credo e de raca, de lasses e de origem" (p.21). Daf paraa concepgao da escola como institu ‘s30"redentora da humanidade" foi um passo pequeno,o que nao significa afirmar que os sistemas nacionais de ensino tenhiam assumido proporcoes significativas deimediato; ao contrério, do final do século XVillaté meados do seculo seguinte, a presenga social da escola é muito mais intencao de um grupo de intelectuais da burguesia do que realidade, Ainexisténcia de uma efetiva politica educacional neste periodo, apesar de sua prescricao legal, deveu-se, segundo anélises historias, a varias circunstancias: 1) a pequena demanda de qualificacao de mao- de-obra no advento do capitalismo eas maneiras altemnativas ce suprila; 2) a desnecessidade de acionar a escola enquanto aparato ideolégico os anos que se seguem a revolucao francesa, até pelo menos o final da Primeira metade dos oitocentos; 3) as pressdes inexpressivas das classes Populares por escolarizacao, nos primeires anos da nova ordem social;4) @ prépria marcha do nacionalismo e suas contradicdes. Quanto’ relacao entre escola e capital, fontes historicas disponiveis 1nd autorizam a conclusio de que, de 1780 até pelo menos 1870, aescola tenha sido uma instituicaonecesséria & qualificagao das classes populares ara o trabalho que movia os setores primérioe secundario da economia capitalista, Na Gré-Bretanha, por exemplo,a transferéncia de mao-de-obra clo campo paraa cidade foi o resultado da passagem para uma economia Industrial que implica uma diminuicao da populagdo agricolae aumento crescente da populagao urbana, Estas analises indicam também que a izagao do modo de produ¢’o no campo foi obtida muito mais por | | } I | | | | i | | sna ele sours pt «45 transformacoes sociais clo que pela introducio de inovagbes tecnolégicas na producio agricola.” Com estas transformagées, os camponeses ficaram reduzidos, a partir de 1815, a uma massa expropriada, 0 que levou Hobsbawm (1982) aafirmar que“em termos de produtividacle econdmica cesta transformagéo social foi um imenso sucesso;em termosdle sofrimento humano, uma tragédia” (p.66). A industrializacdo beneficiou-se deste con- tingente de camponeses erradicados que se amontoavam nos centros. industriais e se transformavam, segundo iglesias (1981),em“farta mao-de~ obra disponivel, que se sujeita a qualquer salério, vivendo em condicoes de miséria, promiscuidade, falta de confortoe higiene, em condigdes sub- humanas” e constituindo “variantes do que Marx chamou de ‘exército industrial de reserva" (p.77). Aquestio da adequacao dessa nova classe de trabalhadores is novas condig6es de trabalho era resolvida através de outros meios que nao a escolarizagao. Na medida em que a maquina ainda nao era o principal instrumento de producao, as existentes eram de funcionamento simples e grande parte da producao téxtil se dava através do trabalho manual ouem ‘earesrudimentares que funcionavam nas casas ou em pequenas oficinas, ‘grande problema de qualificac3o da mao-de-obra nao era aaquisicao de habilidades especificas mas sobretudo de atitudes compativeis com a nova maneira de produzir:"..todo operario tinha que aprender atrabalhar de uma maneiraadequada a industria, ou seja, num ritmo regular dle traba- ‘ho cro ininterrupra,inteiramente diferente dos altos ebaixos provocados elas diferentes estacoes no trabalho agricola ou da intermiténcia autocontrolada do artesao independente. A mao-de-obra tinha tam- bem que aprender a responder aos incentives monetirios” (Hobsbawm, 1982, p.67) As medidas mais imeciiatas e eficazes de capacitagao da classe tra~ balhadora inclulamimpor uma disciplina rigida no ambiente de trabalho, agar pouco a0 opersrio para forgé-loa trabalhar sem descanso duran. te toda a semana para poder sobreviver, recorrer a uma mao-de-obra mais décil, como as mulheres e as criancas, e mediar a relacao entre A el das cers, por exemplo, acabou com o eultvo comunal da Wade Béd, com a calura de Subssénca com 2 relagdo no-comectl com 2 tera, fazendo ds Gi Brena um tented alguns grandes propcietrios ¢ de mulos atendatiias comercis ae conrtaram vabalhadores ura, © ae promores a interionzagso do mado capitalist de pode, AG» a potasio do facaso eal patroes © empregados pela acio vigilante ¢ cobradora de intermediarios Gue garantiam a cisciplina do trabalhador. De outro lado, a demanda de trabalhadores tecnicamente habilitados estava suprida no primeiro pais capitalista;ainda sequndo Hobsbawm, alenta semi-industrializacao da Gra- Bretanha nos séculos anteriores ao dezenove produziu um contingente suficiente de habilitados, Este fato a levou, ao contrario dos paises do.conti nente, a nao dar maior atencéo a educacao técnica e geral durante muito tempo, No entanto, mesmo quando a especializagao técnica do operdrio passaa ser uma necessidade, seu treinamento é feito no proprio trabalho; por isso, abe afirmar que a fabrica foi, nos anos de consolidagao do capita- lismo, a escola profissionalizante por exceléncia. Neste periodo, a escola também nao e necesséria enquanto institu ‘cao destinada a fixar um determinado modo de sociabilidade; sua dimensio Teprodutora das relacdes de produgio, via manipulagao e domesticagao dda consciéncia do explorado, também era dispensavel num momentoem [que este ainda nao se constituira como forca de oposigao ao estado de coisas vigente e enquantoas instituic6es religiosas davam conta do papel justificador das desigualdades existentes. Além disso, € preciso lembrar que ‘no inicio do processo de ascensao, € verdade que a nova classe representa um interesse coletivo:ointeresse de todasas classes nao-domi nantes” (Chaul, 1981, p. 100). Neste sentido, a universalidade de suasideias éreal numcertomomentoea medida quea classe ascendente se transfor ma em classe dominante criam-se as condigdes para que seusinteresses particulares aparecam como universais ese tornem sensocomum,Como vimos, & somente em torno de 1830 que a classe operdria comeca a se organizar ea engrossaras ileiras dos descontentes com anova estrutura social; porém, nao sera antes das ultimas décadas desse século e dos pri- meiros anos do século XX que as organizagoes operarias se tornarso ativas ‘como forcas antagénicas nos paises industriais capitalistas. Entre 1780¢ 1848, 0s trabalhadores compartilham da ilusao da chegada de um mundo novo, livre de opressao e pleno de oportunidades e formam uma especie de"comunidade de destino” com as demais parcelas socials insatisfeitas com a dominacao da nobreza. Nao se esté ainda na“era do capital”;em- bora rica de mobilizacao politica, a primeira metade do século XIX sobretudo aera das revoluges” que, come vimos, tem como alvo os antigos regimes. nase sours ato «47 E certo que odesejo de ascensao social fazia parte deste sonho igua Iitério e libertério. As vias que ofereciam aos pobres alguma possibilidade dese aproximarem de alguma forma dos ricos eram as que traziam prest gio, mas no riqueza:o sacerdiicio,o magistério ea burocracia. Amaquina Sstatal se ampliara, aumentando o numero de funcionarios publicos:f tnalmente,o século XIX esta distante da estatica sociedade hierérquica do ppassado. Asduas revolucées abriram possbilidades de carreiras profisio- peice aslinhas que dividiam as classes eram menos impermedveis. Porém, a rnaioria da populagao nao tinha acesso aos cargos burocréticos ce maior prestigio edevia se contentar com modestos cargos enquanto servidores vig, mas isto bastava para que os que o conseguiam vivessem 0 encanta~ mento de deixar a categoria dos trabalhos bragais. Sea precaria rede de tensino piblico fundamental existente nesta primeira metade de seculo teve alguma funcao social, esta foi a de preparar este pequeno contingen- te de funciondrios publicos de médio e baixo escalao requerido pelo desenvolvimento do estado moderno, Finalmente,anilises histéricas do nacionalismo tém permitido con- dir que os movimentos nacionalistas conscientes praticamente inexistiram antes de 1830." Mais que isso, tudo indica que na primeira metade deste seculo 0s movimentos nacionalistas fora do mundo bur (guése fora da Europa no passavam de movimentos protonacionalistas. Mesmo em sua segunda metade, 0 nacionalismo de massa ainda nso era uma realidade nas nacdes emergentes,até pelo menos 1860. Assim, gmbora 0 seculo XIX tenha concluido o proceso de consolidagso dos estados nacionais modernos, segundo Julian Marias (cf.Zanotti, 1972, . 1a), é "a partir de 1870 que a nacao @ 0 grande pressuposto da vida politica europeia’ Até ent&o, 0s sistemas nacionals de ensino so muito frais anseio da pequena e média burguesia e da pequena nobreza. As ‘lasses empresariais, nesta epoca, preferiam os grandes mercados em fexpansio,e a grande massa popular, para quem a religiae era o grande indicador da nacionalidade, ainda nao tinha qualquer interesse digno de nota pela escola elementar. Afinal, os aparatos ideolégicos por exce lencia ainda eram a lgreja e a farnilia. A respeto dos meximentos sacionaists ne século XIX, ve Hobsbanm (1982, cap, 5: 197°, cap. 7. 4B sprouse dof Esomente nos paises capitalistas liberais, estaveis e présperos, que, a Partir de 1848, a escola adquire significados diferentes para diferentes grupos e segmentos de classes, em funcao do lugar que ocupam nas relac0es sociais de producao. Neles, a escola é valorizada como instrumen- toreal de ascensao e de prestigio social pelas classes médias e pelas elites emergentes. Como instituigao a servico do desenvolvimento tecnolégico necessario para enfrentaras primeiras crises do novo modo de producio, de modo a racionalizar,aumentar e acelerar a produgéo, ela interessa 205 empresarios. Como manutencao do sonho de deixar a condi¢do de traba- Ihador bragal desvalorizado e de vencer na vida, ela almejada pela grande massa de trabalhadores miserdveis de uma forma ainda fragil e pouco ‘organizada. Ossistemas de ensino nao sao, portanto, uma realidade durante os setenta primeiros anos do século XIX, Embora os ntimeros referentes aos. varios tipos de escola revelem um inegavel progresso, é preciso lembrar que este aumento foi sensivel nos niveis secundiario e superior. Mesmo nos Palses que jé contavam com um sistema puiblico de ensino, a educacso Primaria, segundo Hobsbawm (1982, p.211-12),era negligenciada e onde existia limitava-se a ensinarrudimentos de leitura, aritmética e obediéncia moral. Alem disso, nao se deve esquecer que em torno de 1850 a grande maioria dos que se dedicavam ao ensino das primeiras letras era constitu- fda de professores privados e governantas dedicados as criancas da burguesia. Apesar da vulgarizacao do livre da énfase na necessidade de uma lingua nacional oficial, aimensa maioria da populacao mundial per- ‘maneceu analfabeta até por volta de 1870. Certamente, fol levando em conta todos estes aspectos que Zanotti (1972), a0 periodizar a historia da politica educacional no mundo oci dental em trés grandes etapas, coloca como marco da primeira 0 ano de 1870, quando, até 1914, se atribui a escola a missao de redimir a hue manidade. A partir de 1870 vigora,em varias partes do mundo, 0 ideario nacionalista em sua segunda versio: 0 da construgso de nacées unificadas, independentes e progressistas. Para que a dimensio desenvolvimentista se efetive, faz-se necessatio que as nacées-estado se- Jam territoriaimente grandes, condicao para serem econdmica, tecnolégica emillitarmente vidvels. Osidedlogos das nagées-estado insistiam em que © propre Marx, segundo andes hstrcosacatges, mostroy etuiamo elo dann, 20 oer recom “be das cence natura", © pelo Cent, ao demonstar a intencio de dear Darwin o segundo volume de O capita 2 Radner aber de Play sobre Spencer € Darwin cainham nesta mesma ceesbo, ApS ese eee cores “sobreencia dom ato" c “ta pela exstna" foram cohacs or Spencer sre Darn, porta, fot portaroz de uma geo de inclectuns ~ este autor referee & ‘Jeuillae de Doran eso da tona da vou paris eolgfos a segue Page 9 aereteentane permis nigra 9 um ssiera gandioso, due exutha a genedogi ascndente dos aan es dato ao homem.avelha Hea de supeoidade das chomads rags aang car vehi de Spencer, qe aeredkava na marcha inexrivel dos homens para um fare sb o aoe a trance, Danan era mas prudent nesta peso: embora actetsse 23 eisténcia qartas supcrces¢ nfeiovs, dia ee os costumes chzados ptkam muidar © caso ds Cae epee garantie a sobeevénca de sres que, na mera ha pela exsténea,estariam ‘ondenados ao desapareciment (p. 282-284. pas. SX tepine pasagem em Chau (19813) ese o ae estamos ered rss: A ela tung temo ulto da htta entenda como progress, a a idolgla burgess ds + Herre eo progress dx racoes dos etados, as cic, ds ares, das écricas.E ave 0 filo rior barges eek a nage progresssta ve augue tem des mesma, cd met cm ae 2 ‘Rapucal ones am pres seu modo de domiar a Naurcza€ de dona of oa aanee an ese cata do progresso. 2 burgvesa eeu Wcblogos justia o diet do capitalism reece os pos dten primitives ov soda” para cic se beneicem dos ogress do ce jeseae Asi auando a antopolog socal expca ‘letilanente" 2» sociedades dis seh Sear fap 3 dares bs come vendo pegs, como fez Le-fruh_ Ou eno, cuando os srropbloges percebem ae al xacezago &colosst e passim a destever 05 'sehagens de ug teins curapats «59 Igreja.ofezatravés de outros dagmas,tambem ceaciontios,que pretend ae gorverdades objetivas. Este capitulo da historia da ciéncia ilustra bem a atpmacao de que s6é possivel entender como se engendram as represen: tacoescle mundo se atentarmos paraomodo como oshomensserelacionm para produzire reproduzira vida; numaestrutura social como adas soci Hoc industriaiscapitalistas,arespostaa questao primordial — deonde venho? seuecs sereshumanos se ormulam desde um passado remote, s6 poderia qeeumira formade atribuigao de uma genealogia dstinta aos queddominam oesGesta vez sob a pretensa objetividade e neutralidade da ciéncia. "A cociologia cientifica que se desenvolve a partir de Comte, por sua yez,padece dos mesmos problemas epistemoldgicos que a antropelogia Fanconalista. Aoultrapassaros limites da biologi, a teoria da evolucso pela gelecaonaturalaboliua linha diviséria entre ciencias naturals e humanase possibiltou a constituigao de uma sociologia que concebe as sociedades Pamanas a imagem e semelhanca da estrutura edo funcionamento dos rganismos nos quais diferentes 6rga0s (ou diferentes classes) precisam funcionarintegrada e harmoniosamente no desempenho de funcoes ¢5- peaficas mas complementares em beneficio da satide do organismo (ou Be sociedade) como um todo. Como afirma Hobsbawm (1982, p, 278), nunca mais iria ser tao facil para o senso comum, que acreditava que © pnundo triunfante do progresso liberal capitalista era o melhor dos muncos possiveis, mobilizar 0 universo para confirmar seus prOprios preconcelt0s Durkheim & 0 mais difundido representante desta forma de entender a vida social; preocupado com a instabilidade da sociedade produzida pelo “Capitalismo liberal, propés reformas sociais que harmonizassem as partes femconflito, acreditando estarassim contribuindo para ainstalacdo de uma sociedade justa na qual. distribuigao das pessoas pelas classes socials se fizesse com base apenas na capacidade pessoal, tida por ele como de naturezaconstitucional. Imad a revelar ave sto dterentes e nia atrsades, ainda assim permanecem sob a hegeronia ds Meal burgues(.) porate ago mosran que as socedades pms sto lenis ds nos teen sotedadcs som escrito, stn mercado, se sla «sem Natta (.) [80 ro ii Fee eemtropdlogas aber defendcro coloialémo (em gel. defendem os ineresss das sock Sea phar assim au sua cinca permanece presaavana facorldade ¢ ums intifiidade fe conser, slenciesmente. a iia burguesa de progresso.” ip. 121-122) 60+ arom A psicologia cientifica nascente neste mesmo periodo nao poderia serdiiferente;gerada noslaboratorios de fisiologia experimental fortemente influenciada pela teoria da evolucdo natural e pelo exaltado cientificismo a época, tornou-se especialmente apta a desempenhar seu primeiro.e Principal papel social:descobriros maise os menos aptosa trlhar’a carr ra aberta aotalento” supostamente presente na nova organizacao social e assim colaborar,de modo importantissimo,com acrenca na chegada de uma vida social fundada na justica. Entre as ciéncias que na era do capital Participaram do ilusionismo que escondeu as desigualdades sociais, histo- ricamente determinadas, sob o veu de supostas desigualdades pessoais, biologicamente determinadas, a psicologia certamente ocupou posicao dedestaque. APSICOLOGIA DIFERENCIAL A genialidade hereditaria Emborao marco do nascimento da Psicologia cientifica seja afunda- $80 dolaboratério de Wundt, na Alemanha de 1879, aconsultaa qualquer manual de psicologiaaiferencia!—ou saja, da psicologia que se quer inves, tigasao quantitativa e objetiva das diferencas existentes entreindividuose grupos — poe em relevo um nome: o de SirFrancis Galton (1822-191 We descendente de familia tradicional inglesa que produziuhhomens einen. tesno mundo daaltaadministracao.e das artes. Nodecorrer de suas atividades intelectuais, Galton transitoupelas quatro vertentes da psicologia das life. rengas individudis: dedicou-se ao estudo da biologia,e ainvestigagoesines reas da estatistica(contribuindo significativamente paraodesenvolvimen. to das nogées de distribuicao normal, significancia estatistica e correlagao), da psicologia experimentalatraves da | Pesquisa, em laboratério, das mani- festacdes psiquicas) e dos testes psicolégicos (criando varios testes © medidas ele processos sensoriais, precursores dos testes deinteligencia). No entanto, seu objetivo principal era medir a capacidade intelectual ecom. Provar a sua determinecdo heredtdri Um dos maisconhecidos adeptos da teoria de Darwin, Galton foio primeiroa fazer o transplante dos principios evolucionistas de variacao, selecao e adaptacao para o estudo das capacida- des humanas. vs bos sua pit «OT Seu primeiro livro, Hereditary Genius, publicado.em 1869, um estu: dodehomens de reconhecido britho, através clo método da historia familial Seu objetivo é claro:”Pretendo demonstrar, neste livro, que as aptidées naturals humanas sao herdadasexatamente da mesma forma comoosas- pectos constitucionais e fisicos de todo 0 mundo organico” (p. 1, grifo nosso). Como ontimero de parentes (pais, irmaos, filhos) eminentes era maior nas familias estudadas do que se poderia esperar pelo acaso, Galton considerou que esta era uma prova suficiente de que a genialidade é herdada.Todo o restante de sua obra est voltada para este mesmo fim ‘Como precursor dos testes psicolégicos, tentoumedir processos sen- soriais (comoa discriminagao visual, auditivae cinestésica)e motores (como a velocidade do tempo de reago), tendo em vista estimar o nivel inte- lectual. Dizia ele:“Tudo indica que as tnicas informagées sobre os acontecimentos externos que nos alcangam passam pela via de nos- sos sentidos; quanto mais os sentidos detectarem diferengas, maior o campo sobre o qual nossa avaliagao e nossa inteligéncia podem agin.” (1883, p.277" 1965) ressalta 0 fato de que Galton inaugura uma preocupa- 0. quendoestava presente na”psicologia das faculdades'da escolastica medieval e que também nao é objeto das varias formas de associacionismo que, do século XVII ao XIX, procuravam os principios gerais através dos quaisasidéias se associariam na constituigao dos processos mentais com- plexos. A preacupagao com as diferengas individuaise seus determinants, coma deteccao cientifica dos normais e anormais, dos aptos edos inaptos, so poderia ocorter no Ambito da ideologia da igualdade de oportunidades como caracteristica distintiva das sociedades de classes. Como conclui > €inpotare rept as i logo a psc esou a acm dds cue mast dren asta redagh de es senso-ores lire grupos haoncr bos como Wee po Seog acta o bon rent en proesos emi celts ilo por Cal poco mas de uma dads aes como nda e a cacao, ps2 feceber rego epesa io pass ser toad con idtno de infra nlc ache (1895) fs txemplo, 20 cantata ce broncos cram inferres a neios © ins em med emp ‘exo, nlo hesou em amar que “eo homer far ¢ noo super ave ie mel 3 Stinks deta matress, slacoadon 8 ag ete secadi, A meds eve seg fame eden os homens vig com spd cadaver menor mlm © fae tells € 0 mals rd do Fer Kocher, p 126 sta manga de mtpreloge Erecadra ds eds em ae nce Heslop pod se cont Hobsbawm (1979), uma das crengas fundamentals no século XIX eraa de que“o mundoda classe média estava livremente abertoa todos-Portanto, os que nao conseguiam cruzar seus umbrais demonstravam uma falta de inteligéncia pessoal, de forca moral ou de energia que automaticamente os condenava ou na melhor das hipéteses, uma heranca racial ouhistérica que deveria invalidé-los eternamente, como sea tivessem feito uso, para sempre, de suas oportunidades." (p. 219-220) Entre os supostos inaptos, estavam os trabalhadores pobres das cidades industrais. ‘Osobjetivos de Galton, contudo, iam mais longe do que ameracom- provacdo do cardter genéticodas capacidades psiquicasindividuas;estava ‘em seus planosinterferirnos destinos dahumanidade através da eugen cigncia que visava controlar dirigir a evolucdo humana, aperfeigoando a espécie atraves do cruzamento de individuos escolhidos especialmente para este fim. Ao que tudo indica, este propésito encontrou receptividade nna comunidade cientifica durante um bom tempo. A prépria Anne Anastasi, a maior compiladora das pesquisas e idéias vigentes na psicologia dife~ rencial até meados do século XX, nao teve problemasemidentificar Galton com a eugenia e em defini-la como ciéncia na primeira edigao de seu dlassico Psicologia aiferencial,em 1937.Compreensivelmente, esta refe- réncia é omitida e a palavra“eugenia’é varrida de seu livro nas revisoes de 1949 € 1958. Afinal, omundo acabara de viver a segunda grande guerra e falar em aprimoramento da espécie tomnara-se no minimoinconveniente” Galton estava, sem duvida, imbuido do espirito de seu tempo; anticlericalismo e a preocupacdo com a questao da hierarquia das racas No se pode negar ae esta picdlaga nore-americana ji fara, na edie de 1937. creas ao peso ‘Que Gitonatbuls ao papel da hereiaredade eae a Enfase na eft ambiental ak aumentan Mdoveste manuel em consonincia com uma tendénda que se val trmando dominant na psicologia fo decree daeueleséculo. No enanto, conv destacar que © meio socal € por els concebido ~ Como, de resto, por todos 05 pesqusadores © telcos Incuios em sua obra do mesmo modo Iiologieado como comparece na socilogia fuaconalsta. De outta lado, sui feturaatenta © 2 comparagio dis sucessvas euigdestrazem revelagdes Interessantes @ue dlc rspeito & pia natuteza a psicologa diferencia ede sa evolucto: por exemplo, na ego da década de 1930 {eds capitulosineiramente dediados 3s cfeengas facia, acrescidos de um sobre diferengas ene populagées russe urbana, Nesta ediio,o terme clsse soca no const do indice remssivo, Ree so va ocorter na edgio de 1949, depois que esse term fo translormado, rs Heratura Soviligicanorte-americaa, em sindnimo de ariel sdciaecondmico. ova ela sowa pate «63. cencontrarse no centro de sua obra. Noentanto,elenso pode ser incluido crege os teoricas do racismo com a mesma facilidade com que 0 fol epineau. Dizer, como ele fazia, que"o nivel médtio (de inteligéncial da tera dosnegrosera inferior de'dois graus'ao daraca brancaequeodaracn rae aliana deta de'res graus (citado por Poiakoy, 285, fos nossos) aes gomesmoqueafirmar, cle modo absoluto,ainferioridade dessas rasas tuto mais cientista do que filésofo da historia, Galton nao foi tao longie somo muitosde seus contemporaneos e discipulos na definigo de ume politica social que visasse a preservacao da raga superior.Embora tenha ooo fundadior da eugenia, mostrava-se cautelosona prescrigao de med! “jas eugénieas,alegando o estado ainda precario do conhecimento sobre alols da hereditariedade. Ao colocar em foco a distribuicao desigual dos Gonse dos talentos de acordo com as familias eas linhagens, diminuiua Gafase no crtério meramente racial. Contudo, convém relembrar: numa Srdem social em que oacesso aos bens materiais e culturaisndo Gomes: mmo para todos.o"talento”é muito menos uma questao de aptidao natural do quededinheiroe prestigio; mais do que isto, numa sociedace em que Salseriminagao ea exploracao incidem predominantemente sobre deter ainados grupos étnicos,a definicao da superioridade de uma linhagem a partir da notoriedade de seus membros 56 pode resultar num grancie mab patendido: acreditar que @ natural o que, na verdade, € socialmente determinado. ‘Asidéias de Galtona respeito da inteligéncia herdada marcaram epo- canappsicologia; sua influéncia sobre o movimento dos testes mentats que sRdesencadeou na tiltima decada do seculo XIX foi marcante: basta dizer que Cattell, pionelro na criagao dos testes psicoldgicos e seu introdutor fos CUA, estava entre seus alunos. Mas de Galton eseus discipulos para a (geracdo de psicélogos ede pedagogos escolanovistas que desenvolveu Sous trabalhos entre 1890 e 1930 existe uma diferenga fundamental: o apego dos segundos crenca entusiasmada na real possibilidade de icen- tificar e promover social mente os mais aptos, independentemente de sua ‘etnia ou de sua origem social. E em torno dela que se congregaram psico- Jogos e pedagogos que, na virada do século, sonharam com uma psicometria e uma pedagogia a servico de uma sociedade (de classes) igualitria 64+ spate do faces ease COMO DIAGNOSTICAR AS APTIDOES DOS ESCOLARES Oaumento da demanda social por escola nos paises industriais capi- talistas da Europa e da América e a conseqiiente expansao dos sistemas Raconais de ensino trouxeram consigo dois problemas para os educado- resicie um lado, a necessidade de explicar as diferencas de rendimentoda clientela escolar; de outro, a de justificar o acesso desigual desta clientela as graus escolares mais avancados. Tudo isto sem feriro principioessencial da ideologia liberal segundo o qual o mérito pessoal é o Unico eritério legitimo de selegio educacional e social. No ambito da liberal-democracia, é compreensivel que a preocu- Pagiio coma superdotacao e sua contrapartida, a subdotacao intelectual, tenha sido a principal atividade da psicologia nos setenta anos apés a Publicacao da primeira obra de Galton. Se as aparéncias j faziam crer que a5 oportunidades estavam igualmente ao alcance de todos — pois éine- gavel que, em comparacao com aestatica sociedade feudal, anova ordem Possibilitou grande mobilidade social — a psicologia veio contribuir para a sedimentacéo desta viséio de mundo, na exata medida em que os resul- tados nos testes de inteligéncia, favorecendo via de regra os mais ricos, reforcavam a impressao de que os mais capazes ocupavam os melhores lugares sociais. Aexplicacao das dificuldades de aprendizagem escolararticulou-se na confluéncia de duas vertentes: das ciéncias biol6gicas e da medicina do século XIX recebe a visdo organicista das aptidées humanas, carregada, como vimos, de pressupostos racistas eelitistas; da psicologia e da pedago- giada passagem do séculoherda uma concepcio menos heredolégica da conduta humana — isto é, um pouco mais atenta ds influéncias ambien tals ~emais comprometida com os ideais liberais clemocraticos. Aambigiiida- deimposta por esta dupla origem sera uma caracteristica do discurso sobre 95 problemas de aprendizagem escolar e da prépria politica educacional, nele baseada, nos paises capitalistas no decorrer de todo o século XX. No Préximo capitulo, faremos algumas observacées a respeito das manifesta- 6es desta contradi¢ao no pensamento educacional brasileiro; por ora, examinemos um pouco mais este momento constitutivo da psicologia educacional, Os primeiros especialistas que se ocuparam de casos de dificulda- de de aprendizagem escolar foram os médicos.0 final do século XVill ¢ ra helo sua puto «65; 0 século XIX foram de grande desenvolvimento das ciéncias médicas ¢ biolégicas, especialmente da psiquiatria, Datam desta época as rigidas classificacdes dos*anormais"e os estudos de neurologia,neurofisiologia eneuropsiquiatria conduzidos em laboratorios anexos a hospicios, Quan- doos problemas de aprendizagem escolar comecaram a tomar corpo, os progressos da nosologia ja haviam recomendado a criacao de pavilhoes especiais para 0s"duros da cabeca” ou idiotas, anteriormente confundidos com os loucos;a criacdo desta categoria facilitou o transito do conceito de anormalidacedos hospitais para as escolas:as criancas que no acompa- nhavam seus colegas na aprendizagem escolar passaramaa ser designadas como anormais escolarese as causas de seu fracasso procuradasem algu- maanormalidade organica. Em 1914, nos anais do Congreso de Assisténcia realizado em Montpelierios anormais infantis sao definidos nos sequintestermos"Aque- les que, sob a infléncia de taras mérbidas hereditérias ou adquiridas, apresentam defeitos constitucionais de orem intelectual, caracterial ou moral, associados no mais das vezes a defeitos corporais e capazes de wir o poder de adaptacao ao meiono qual eles devem viver regular- mente” (cf. Ramos, 1939, p. XVD, De sua raiz psicopedagégica mais tardia, plantada em laboratérios de psicologia muitas vezes anexos a estabelecimentos de ensino, as expli- cagées do rendimento escolar desigual receberam como principal contribuicdoos instrumentos de avaliacdo das aptiddes. Medias apticioos naturaistornara-se o grande desafio que os psicélégos se colocavam na virada do século, Além de Binet, um dos fundadores da psicologia diferen- «ial ao publicar La psychologie individuelle, em 1895, e auitor da primeira escala métrica da inteligéncia para criancas, Edouard Claparéde, professor na Universidade de Genebra e contemporaneo de Piaget no Instituto J. Rousseau, tornou-se um autor obrigatorio entre as obras de referénciade Psicdlogos e pedagogos voltados para o estudo.ea mensuracaodas dife- rengas individuais de rendimento escolar em todo o mundo.” Comment * Entre 1880 ¢ 1920, sio multos os wos € aigos ae trae no uly a expresso “crass normals” enre os uals ds ciscos: 0 Aappurt su éhication des enfants nomen ef snore de Seguin (1887), € Les entosanormain. de Binet ¢ Sion 1907), Seu Into A educrio fnciona & @ euro vlume ds colegio “AndadesPedagigcas” ave 4 Edtora Nacional publcow a parte de 19534, 66» 2 pralio do eas diagnostiquerles aptitudes chez les écoliers,publicado em 1924, encon- trou grande receptividade em varios paises, formou mais de uma gerasao de psicdlogos e pedagogos e deixou marcas permanentes e de faciliden- icacaio nos meios educacionais. “Amatriz biolégica da formacao de Claparéde fica patente nao s6 nos temas dominantes em sua vasta producao intelectual como nos conceitos por ele veiculados nessa publicacao. Nela, 0 termo aptidiao refere-se 20 fendimento decorrente de uma disposicao natural? Senesta €pocaja nso pode ser considerada inata, a aptidaoé tida como resultante de uma Pre- disposigao que se revelarianum rendimento liquide, distintodorendimento bruto, decorrente de outras influéncias além da predisposigao, como o exercicio ea educagao, a fatigabilidade e o estado afetivo. Foram muitos 0s psicdlogos que, nesta época, empenharam suas vi- das na pesquisa de instruments que pudessem verificar se, por tr4s do rendimento bruto, um individuo era intelectualmente mais apto que outro. Isto & muitos foram os que se dedicaram com afinco a tentativas de medi, com objetividade e precisdo, as verdadeiras aptidoes das pessoas,inde- pendentemente das influencias ambientais, entre elas as de natureza Focioeconémica. Neste sentido, € preciso fazer justica: muitos dos pesqui- sadores que, da ultima década do século passado aos trinta primeiros anos do século XX, se debrucaram sobre as questoes da mensuragao dasapt! does, da orientacao e da seleao profissional, fizeram imburdos de ideals democraticos e compartilharam da esperanga de que era chegado o tem oda sociedade igualitara, livre e fraterna. Em outras palavras fazem parte do grande contingente de intelectuais que, neste periodo, sob a nitida influencia das concepgdes de Durkheim, criticam os caminhos pelos quais anova ordem social enveredara e denunciam as injusticas sociaisem vigor uma sociedade que, de acordo coma viséo durkheimiana, seencontrava desregulada ou anémica, Através da especificidade de seu trabalho, pro- pOem,sea destinar os mais aptos, endo necessariamente os mais icos, 298 v veis mals altos da piramide social, Nao eram, portanto, pessoas demé-fe que defendiam conscientemente os interesses do capital, mas humanistas ‘equivocados que ingenuamente sonhavam um sonho quea historia tem D tm Basel (1979) enconita-se uma anise dos diferentes ignificados anc o terme aptisio ee a wos séulos XU e XIX e ds mudangas economies © soca subjpeenes wa puto « OF mostradoimpossivel o de ustica numa ordem social estruturalmente in- Justa Bxatamente por isso acabaram, sem o querer fortalecendo a cren¢a ne possiblidade de oportunidactes iguats que tentavam viabilizar atraves Te dois recursos: 0 USO de instrumentos que queriam infalivels na srensuracao das verdadliras disposigdes naturais.ea expansao eaprimora- mento do sistema escolar.” Claparéde é um fiel representante dasinuietacoes e desejosde seus pares: quer aprimorarinstrumentos de medida que astrelem as diferencas Pidividuais, quer saber quem sa0.0s retardadios e 0s bem dotaclos o mais, precocemente possivel, defende a criacao de classes especiais pata os Primeiros e de escolas especiais para os segundos, propoe, em 1920, 2 eecola sob medida e em 1922 a orientagao profissional — tudo isto em ome de menor desperdicio emenor desgaste individual e social. A colo Cygao do”homem certo no lugar certo" era para ele o caminho mais curto fara restabelecimento da justica social almejacia ea seu ver possivel, mas ainda naoalcancada, Eneste contexto ideolégico reformista que, na ultima década do sé- culo XIX, se verifica nos meios universitérios de paises capitalistas europeus, Gnorte-americanos uma verdaderia cruzada em busca de instrumentos de medida das diferencas individuais. Logo em seguida, a partir dos pri- freitos anos do século XX e em especial durante e apésa primeira grande (guerra, varios paises engajam-se numa nova epopélaca identificacdo dos super e dos subdotados na populacao infantil, de modo a thes oferecer Condizente educagao escolar. Desde ent’o,0s testes psicoldgicos ingres- ‘garam nas escolas e passaram a fazer parte de seu cotidiano nos paises capitalistas centrais.€ a partir desta época que, nos paises dependentes, feducadores mais progressistas sofrem forte influencia do que se passa nes meios educacionais da Europa e da América do Norte e comegam a lutar pela introducao da psicometria e da pedagogia nova em seus paises. Astrea 1agso ene a pstcologia a soctologacentiieas, de um ido, a pedagog cntiica (0 frovimento ds Escola Nova). de outro, € uma prova concrela desta Comunidade de esorgos ave Nisam a tsosormaio de uma sociedade de cases usta numa socedade de lasses usta: O ave FPreouipava socilogos, pscdlogos e pedagogos manados nesta lula no era a esrutra social de Gases, mas 2 reersio de disfangoes de ave est estrurs padees 20 lio de Lourengo Flo, nodugo 20 estado co Esclr Nova. publicado em 1927, € um case ‘eaemplar desta iiénchs€ deste abjetvo ——— 6B + peli Facao ox Imente circunscrita a avaliagao médica segundo os quadros linicos da epoca, avaliagao dos“anormais escolares" tornou-se, du= rante os trinta primeiros anos do século XX, praticamente sindnimo de avaliagao intelectual; nesta época, os testes de Ql adquiriram um gran- de peso nas decisdes dos educadores a respeito do destino escolar de grandes contingentes de criangas que, na Europa ena América, conse- guiam ter acesso a escola. No entanto, a incorporacao de alguns conceitos psicanaliticos veio mudar nao $6 a visio dominante de doen- ¢a mental como as concepcées correntes sobre as causas das dificuldades de aprendizagem. A consideracao da influéncia ambiental sobre o desenvolvimento da personalidade nos primeiros anos de vida € aimportancia atribuida a dimensao afetivo-emocional na determing- ‘s80 do comportamento e seus desvios provocou uma mudanca terminolégica no discurso da psicologia educacional: de anormah.a crianga que apresentava problemas de ajustamento ou de aprendiza- ‘gem escolar passoua ser designaca como criancapproblema.Aspublicagées que témno tituloesta expressao sao tipicas dos anos trintae operam mu- dangas na concepcao das causas das dificuldades de aprendizagem ‘escolarsse antes elas s0 decifradas com os instruments de uma medicina ‘ede umapsicologia que falam em anormalidades genéticas e organicas, agora osio com os instrumentos conceituais da psicologia clinica de ins- piracao psicanalitica, que buscam no ambiente sécio-familiar as causas dos desajustes infantis, Amplia-se, assim, o espectrode possiveis proble- mas presentes no aprendiz que supostamente explicam seu insucesso escolar:as causas agora vao desde as fisicasatéas emocionaise de perso- nalidade, pasando pelasintelectuais. Anova palavra de ordem éa higlene mentalescolar.com intencoes preventivas, as dlinicas de higiene mentale de orientacao infantil dissemi- aram-se no mundo a partirda década de vinte e se propéem a estudare corrigiros desajustamentos infantis, Sob onome de psico-clinicas, clinicas ontofrénicas,clinicas de orientacao ou clinicas de higiene mental infantil, las servem diretamente a rede escolar através do diagnéstico, o mais precocemente possivel, de distUrbios da aprendizagem. A obsessio pre- ventiva tem comolema “keep the normal child normal"(mantenha normal acrianga normal) ¢em seunome sao criadas as‘clinicas de habitos" para ccriangas em idade pré-escolar. below sow patio «69 Deum lado, este movimento cria uma rede de clinicas psicolégicas escolares ou paraescolares, onde as criangas que apresentam problemas de aprendizagem e desajustamento escolarsao diagnosticadas e trata- das; de outro, gera uma preocupacao coma higiene mental do professor ecom a possibilidade de seus disturbios emocionais interferirem negati vamente na satide mental de seus alunos; por fim, orienta uma série de medidas pedaggicas destinadas a corregao dos desajustes revelados pela clientela escolar, como as “classes fracas que na época surgem em contraposi¢o as “classes de anormais” que, no entender dos psicopedagogos,deveriam ficarreservadas apenas aos*atrasados consti- tucionais” (cf. Ramos, 1939, p.XX-XXV). Hoje sabemos que desse expressivo movimento das décadas de vin- teetrinta restoua pratica de submetera diagnésticos medico-psicolégicos as criancas que nao respondem as exigéncias das escolas. Nos anos qua- renta, esta proposta jé se transformara, em varios paises, numa rotina ‘quantificadora. Nos E.U.A.,a assimilacao a rede escolar de um grande ni- mero de psicélogos clinicos que atuaram na segunda grande guerralevou as ltimas consequéncias a tendéncia a psicologizagao das dificuldades de aprendizagem escolar que ja vinha se esbocando. Embora tenham nascide com intencdes mais amplas que abrangiam um trabalho perma- nente de orientagio de pais e professores, estas clinicas ortofrénicas transformaram-se rapidamente em verdadeiras fabricas de rétulos. Eos mais provaveis destinatarios destes diagndsticos serao, mais uma vez, as criangas provenientes de segmentos das classes trabalhadoras dos gran- des centros urbanos, que tradicionalmente integram em maior nmeroo continaente de fracassados na escola, E verdadle que, nesta época, o peso atribuido a hereditariedade e & raga na determinacdo do comportamento ja havia diminufdo. Diante da recorréncia de dados que apontavam os negros e os trabalhadores Pobres como os detentores dos resultados sistematicamente mais bai X05 nos testes psicolégicos, a explicacdo comeca a deixar de ser racial —no sentido biolégico do termo — para ser cultural. A psicologia dife- Fencial assimilou muite dos conhecimentos acumulados pela antropologia cultural e valeu-se deles para explicar o menor rendimento obtide pelos grupos e classes sociais mais pobres na escola enos instrumentos deme- dida das capacidades psiquicas. Mas se um passo importante foi dado quando o conceito de raca fol substituido pelo de cultura como elemento 70 apis do aca ecole explicativo das desiqualdades sociais, é preciso continuarmos atentos &s armadilhas da ideologia presentes nesta passagem: os juizos de valor centracios no modo de vivere de pensar dos grupos dominantesimpreg- nam 0s trabalhos dos antropélogos culturalistas, que freqiientemente consideram"primitivos""atrasados’e“rudes” grupos humanos (muitas ve- zes, classes sociais) que nao participam ou participam parcialmente da cultura dominante. A influencia desta maneira de pensar sobre as pesq sas que investigaram as relacdes familiares e as praticas de criagao infantil em diferentes segmentos sociais é nitida desde o inicio do século;a ausén- a Tals pesquisas confirmam aos educadores a propriedade de sua visio Preconceituosa das criancas pobres ede suas familias, impedindo-os, as- sim, de olhar para a escola e a sociedade em que vivem com olhos mais eriticos. Dizem para 0 oprimido que a deficiéncia & dele e Ihe prometem. uma igualdade de oportunidades impossivel através de programas de educacao compensatéria que jd nascem condenados ao fracasso quando Partem do pressuposto de que seus destinatarios so menos aptosAapren- dizagem escolar. Mesmo assim, fazem renascer, com estes programas, a esperanca na justiga social, mais uma vez gracas ao papel democratizante atribuidoa escola compensatéria que supostamente revertera as diferen- sas ou deficiéncias culturais e psicolégicas de que as classes “menos favorecidas” seriam portadoras. Geram, desta forma, uma nova versdo da idéia da escola redentora: sera da que redimira os pobres, curando-os de suas deficiéncias psicologicas e culturais consideradas as responsaveis pelo lugar que ocupam na estrutura social. Em sintese, partem do senso comum e apenas 0 devolvem a sociedade revestido de maior credibilidade. A crenga na incompeténcia das pessoas pobres é generalizada em nossa sociedade. As vezes, nem mesmo os pesquisadores munidos de um referencial tedrico-critico estdo livres dela. Como veremos, mesmo quia do voltam os olhos para a escola eo ensino numa sociedade de classes e neles identificam inumeras condigSes que podem por si sé explicar as altas taxas de reprovagao e evasio, continuam a defender asteses da teoria da caréncia cultural. O resultado é um discurso incoerente que, em ultima instancia, acaba reafirmando as deficiéncias da clientela como a principal causa do fracasso escolar. Neste momento € importante resumir:o tema das diferencas indi- viduais numa sociedade dividida em classes — e, conseqiientemente, a Pesquisa das causas do fracasso escolar das classes empobrecidas e os Programas educacionais a elas especificamente destinados — movi- menta-se num terreno minado de preconceitos e esteredtipos sociais, |sto serd tanto mais verdadeiro quanto mais a divisao de classes coinc dir com a diviséo de grupos étnicos. A defesa da tese da inferioridade congénita ou adquirida, irreversivel ou nao, dos integrantes das classes subalternas é antiga e persistente na histéria do pensamento humano. As diferencas de qualidade de vida entre as classes sempre foram justificadas através de explicagoes geradas pelos que, em cada ordem vrs Yelena sows pat «77 social, si0 consideraclos competentes para elaborar uma interpretacaolle- gitima do mundo. Ea interpretacao tida como verdadeira @a que dissimula eoculta, com maior sutileza, queas divisdes sociais séo divisoes de classes, aque equivale a afirmar sua condigao ideologica, aqui entendlida como "um conjunto l6gico, sistematico e coerente de representacdes (idéias © valores) ede normas ou regras (de conduta)... cuja fungao é dar aos mem- bros de uma sociedade dlividida em classes uma explicacao racional para asdiferencas sociais, politicas e culturais, sem jamais atribuir tais diferencas Adivisdo da sociedade em classes” (Chaui, 1981a, p.113-114)> Geradas no calor dos movimentos reivindicatérios das minorias lati- nas e negras norte-americanas, era de esperar que as conclusdes das pesquisas produzidas neste pais a partir dos anos cingtienta fossem ex- Bresso, mesmo que suti da crencaarraigada nainferioridade demnegros, Indios e mesticos. Nao foi por acidente que no auge da teoria da caréncia cultural o psicélogo norte-americano Arthur Jensen reviveua tese da infe- rioridade genética do negro; na verdade, ele estava sendo porta-voz da mensagem muitas vezes implicita nessa nova formulagao teérica do pro- blema das desigualdades sociais. Como se trata de um tema altamente polémico, voltaremos mais adiante a tratar da questéo dos distirbios de desenvolvimento da crianga das classes pobres e sua relacdo como rendimento escolar. investigarem que medida a pesquisa e o pensamento educacionais brasileiros encontram-se impregnados destas versées sobre individuo, escola ¢ sociedade é 0 objetivo do capitulo seguinte. (Os anos vinte do século XX constituem um marco na histériada edu- cacao brasileira, menos pela ocorréncia de mudangas qualitativas ou quantitativas dignas de nota no sistema educacional do que pela intensa movimentagao intelectual em tomo da questo do ensino que os caracte- Fizou e que exerceu decisiva influéncia sobre os rumos da educacao no pais nas décadas subseqiientes. * Sobre as formas que estas “apace recor paras ferns Socks ae rs menos a sdvsio da sociedad em classes" assumiam no pensamento norle-american, wea “concer de Prvagio © de Desaniayem". documento prodieida pelo U.S. Depariament of Heath, Educates and Welle (1968), in Patt, 198. p. 76-86. 7B + ap Falarna década de 1920 significa falar em Primeira Republica, perio do da historia brasileira no qual adistancia entre o real e 0 prociamado nso foi muito diferente da que se verificou no periodo anterior, monarquista e esctavocrata. Foi no mbito do proclamado, também vincado de contra- dices, que se desenvolveram as ideias que se oficializaram nesta epoca a respeito da natureza humana, em geral,e da natureza do brasileiro, em particular.€ nosso objetivo, neste capitulo, verificar sua expresso no pen samento educacional.a respeito da escolarizagao.e suas dificuldades, sem qualquer pretensao, contudo, de realizar um estudo do universo cultural neste periodo. Mais especificamente, a partir de um esboco dessas con- cepe6es, queremos examinar seus reflexos sobrea maneira predominante de entender a escolarizacao das criancas das classes populares, tendo.em vista um objetivo mais amplo:ode fornecer elementos & compreensaodo modoatual de pensar e pesquisar esta questo,

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