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SOBRE O ATO E O EFEITO DE PARTICIPAR: o caso da descentralização

participativa de Montevidéu.

Alfredo Alejandro Gugliano


Professor da Universidade Federal de Pelotas
Pesquisador CNPq (II)

A proposta deste trabalho é realizar algumas observações sobre duas dimensões que
considero importantes para a compreensão dos fenômenos democrático-participativos.
Resumindo, tratarei do ato de participar e dos efeitos desta participação e utilizarei
como pano de fundo a experiência participativa da cidade de Montevidéu.
A descentralização participativa de Montevidéu é interessante porque representa, em
termos de América Latina, um caso com características diferentes daquelas que
usualmente são apontadas como propulsoras das atuais experiências democrático-
participativas.
No Uruguai a desigualdade social nunca foi um dos temas centrais da agenda de debates
públicos, pelos menos, até muito recentemente. Não trato de dizer que neste país não
tenha havido nos últimos anos (a partir dos anos 80), por exemplo, um incremento da
desigualdade e pobreza, pois, sabemos que isso ocorreu. Porém, as percepções dessa
realidade, como apontam alguns estudos sociológicos, são muito recentes. Até muito
pouco tempo atrás os uruguaios se orgulhavam de não terem analfabetos; de não
passarem por carência de alimentos; de manterem o desemprego sob controle.
Em termos políticos, a literatura especializada anglo-saxônica sempre colocou o
Uruguai como uma das democracias mais sólidas da região, diagnóstico bastante
centrado na presença concreta dos partidos políticos no país. Como é reconhecido o
Uruguai constantemente é identificado como uma experiência partidocêntrica onde é
grande a sintonia entre os eleitores e seus representantes eleitos e os casos de corrupção
ou desvio de comportamento dos dirigentes governamentais estão sob controle.
No Relatório Latinobaômetro 2006, por exemplo, o Uruguai foi o país onde a
democracia obteve maior apoio. E de acordo com pesquisa nacional coordenada pelo
Instituto MORI – vinculado ao jornal El Pais – em 2005, 62% dos uruguaios afirmavam
simpatizar com algum partido político; 30% se consideravam indefinidos; 8% não
responderam.
Outra característica interessante do Uruguai, ressaltada por vários estudiosos do urbano,
é a ausência de uma tradição municipalista no país. Em outras palavras, até bem pouco
tempo o modelo administrativo uruguaio era extremamente centralizados, havendo uma
forte relação de subserviência dos governos locais para o nacional. Este último possuía
não somente o controle da maior parte dos recursos públicos das cidades, como tinha
em mãos um conjunto de prerrogativas que facilitavam a intervenção direta do poder
executivo nacional sobre o local.
Deixei por último, talvez a característica mais importante para os estudiosos dos
processos de arranque das democracias participativas, a forca dos movimentos sociais e
a capacidade de mobilização das organizações associativas. E também neste quesito o
caso uruguaio deixa muito a desejar. A esse respeito boa parte dos especialistas no tema
apontam que a organização da sociedade civil uruguaia ainda está bastante fragilizada,
sendo que existe uma forte intervenção dos partidos políticos no seu interior. Para que
se tenha uma idéia, enquanto o último Mapa do Terceiro Setor demarcou a existência de
4589 organizações em todo o Brasil, no Relatório sobre o Estado da Sociedade Civil de
2005, organizado pelo Instituto de Cooperación y Desarrollo, foi feito um levantamento
que não chegou a apontar 200 organizações da sociedade civil sobre as quais foi
possível obter informação detalhada. Entre estas as mais expressivas são as associações
com caráter esportivo, que possuem o maior número de filiados no país (de uma delas,
por certo, saiu Tabaré Vázquez); seguidas um pouco atrás pelos sindicatos.

Frente a uma ausência de várias das características que a literatura especializada indica
como determinantes para o nascimento das democracias participativas como é possível
explicar um caso como o de Montevidéu?
A hipótese que defendo é que democracia participativa montevideana nasceu do único
lugar que se poderia esperar frente às características tão particulares do caso uruguaio:
os partidos políticos ou, mais especificamente, o Frente Amplio. E quando falamos em
partidos políticos no Uruguai estamos referindo-nos a mais de 150 anos de história,
sendo o Partido Colorado fundado em 1830 e o Partido Nacional (Blanco) em 1839.
Fundada em 1971, o Frente Amplio desde o início foi constituído enquanto uma frente
de esquerda, agrupando organizações marxistas de diferentes matrizes, socialistas;
dissidentes dos Partidos Colorado e Blanco, ex-tupamaros, entre outros. Em 1994, o
Frente Amplio teve a adesão de uma importante dissidência do Partido Nacional,
passando a concorrer nas eleições desse ano com a sigla: Encuentro Progresista-Frente
Amplio. Essa foi ampliada, em 1999, com a reincorporacao do Nuevo Espacio, um
partido formado por dissidentes do Frente em 1989. Com essa adesão o partido
começou a competir eleitoralmente baixo a sigla: Encuentro Progresista-Frente Amplio-
Nueva Mayoria. Como veremos adiante, esta dinâmica de frente política, na qual a
negociação intergrupos era o principal instrumento de coesão partidária foi
importantíssima para o desenvolvimento e êxito da descentralização participativa.
A idéia de implementar um plano de descentralização na cidade de Montevidéu,
presente no programa eleitoral do Frente Amplio apresentado nas eleições de 1989
nasceu da influencia exercida sobre alguns dirigentes deste partido do debate europeu
sobre a descentralização e, muito especialmente, dos posicionamentos defendidos por
alguns intelectuais social-democratas catalães, como Manuel Castells, sobre o papel dos
movimentos sociais na gestão das cidades.
Neste sentido, entre as primeiras medidas do Intendente Tabaré Vázquez, em 1990, foi a
divisão da cidade em 18 Centros Comunais Zonais que teriam autonomia administrativa
na organização de um conjunto de serviços público na área de sua abrangência. Na sua
origem os CCZ eram dirigidos por seus coordenadores, nomeados pela Intendência, e
tinham como principal instancia as “assembléias deliberantes”, da qual participavam os
cidadãos.
Numa nação com as características centralizadoras já descritas a proposta de
descentralizar o Estado, mesmo que em nível de apenas uma cidade, caiu como se fosse
uma bomba e rapidamente angariou antipatias entre os mais diferentes segmentos da
classe política. Em especial, a oposição do governo federal, na época dirigido pelo
Presidente Alberto Lacalle (Partido Blanco), redundou na redução de recursos e
investimentos federais na capital uruguaia, principalmente no primeiro ano de governo.
Diferentemente do que ocorreu em outras cidades nas quais as propostas participativas
se afirmaram a partir de uma quebra-de-braço envolvendo os poderes executivo e
legislativo das cidades, a estratégia do governo do Frente Amplio foi o de organizar um
grupo executivo, reunindo representantes de diferentes agrupamentos políticos, com a
finalidade de discutir a descentralização da cidade de Montevidéu.
A Comision Mixta de Descentralización, criada em 1991, foi composta por
representantes da Intendência de Montevidéu, da Junta Departamental Local (na qual
participavam os partidos de oposição) e juristas constitucionalistas. Após longo
processo de negociação, em 1993, é aprovada consensualmente a estrutura que até hoje
vigora nos CCZ. Estes são geridos por uma estrutura tripartite formada pelo Diretor do
Centro, a Junta Local e o Conselho de Vizinhos.
Sublinho que a principal conseqüência da forma como foi conduzida a implementação
dos Centros Comunais Zonais de Montevidéu foi a extensão do modelo de
descentralização para o conjunto do país. Com a Reforma Constitucional de 1996, já no
governo de Julio Maria Sanguinetti, foi aprovada uma abrangente proposta de
descentralização política que incluiu não só o Estado nacional como também o conjunto
dos municípios uruguaios. É também esta reforma que realiza amplas mudanças na
organização do sistema eleitoral uruguaio que, segundo diversos autores, visaram
colocar freios no crescimento da esquerda no país.
Desde o ponto de vista de políticas participativas três aspectos merecem destaque na
proposta executada na Intendência de Montevidéu. O primeiro deles é o desenho da
proposta de descentralização uruguaia que mescla elementos de democracia
representativa com outros de participativa. Interessante é que a proposta trás para dentro
das estruturas de descentralização aos partidos políticos e aos representantes do poder
legislativo, propiciando não apenas espaços de pressão, mas espaços de diálogo entre
parlamentares e cidadãos.
O segundo é a organização do orçamento participativo de Montevidéu com
características diferentes do modelo porto-alegrense. As diferenças não estão no tocante
aos princípios do orçamento enquanto um importante mecanismo de democratização da
gestão local, mas no que diz respeito a forma como esta instancia é levada a cabo.
O orçamento participativo da capital uruguaia tem ingerência sobre dois tipos de
recursos: o primeiro é determinado anualmente pelo Intendente, a partir de uma análise
das finanças municipais, e os cidadãos tem o direito de decidir a finalidade deste
montante por meio do voto universal; o segundo refere-se aos investimentos destinados
às políticas de infra-estrutura e assistenciais dos Centros Comunais Zonais, ficando o
destino destas verbas como uma prerrogativa dos Conselhos de Vizinhos.
A deliberação sobre a primeira verba - ordem que apresento apenas com fins descritivos
- tem como primeiro passo a nomeação do Equipo de Planificación Zonal que é
formado por representantes do CCZ, da Junta Local e do Conselho de Vizinhos. Este
será o responsável pela organização da deliberação orçamentária. Nas mãos da EPZ
ficam as seguintes tarefas aqui apontadas em ordem cronológica: 1) realização de cursos
de capacitação de conselheiros e cidadãos interessados no processo; 2) convocatória de
reuniões barriais nas quais são apresentadas propostas para o orçamento; 3) estudo da
viabilidade das propostas apresentadas e encaminhamento das mesmas para a IMM e o
Conselho de Vizinhos, este último responsável pela lista final de propostas que serão
submetidas a apreciação popular; 4) encaminhamento das propostas para votação (em
outubro elas são votadas de acordo com as mesmas normas da eleição dos conselheiros)
Finalizado este processo as propostas aprovadas são apresentadas ao Executivo e é
assinado um termo de compromisso referente a sua execução no prazo de um ano.
A outra parcela de recursos que e submetida à deliberação popular é definida a partir da
dinâmica interna dos Conselhos de Vizinhos e encaminhada para a Junta Local que
apenas possui poder consultivo sobre a proposta. No final do processo também é
assinado um termo de compromisso nos moldes do processo descrito anteriormente.
O terceiro aspecto importante em termos de políticas participativas diz respeito à gestão
participativa das políticas sociais dos centros comunais zonais, seja em termos das
comissões temáticas oferecidas por estas estruturas, seja pela co-gestão participativa dos
serviços oferecidos, como creches, refeitórios populares, policlínicas, etc.
Em termos do desenvolvimento de políticas sociais participativas uma das áreas que
mais se destaca é a da saúde pública, considerando que houve uma descentralização da
prestação de serviços na cidade de Montevidéu e uma vinculação dos mesmos aos CCZ.
A reorientação das políticas municipais de saúde passou pelo desenvolvimento do
Programa de Atenção Zonal (PAZ), criado em 1990. Inicialmente, esta proposta visou
descentralizar o sistema de saúde aproximando o atendimento às comunidades mais
carentes. Ao mesmo tempo, ocorreu um esforço no sentido de integrar as diferentes
áreas de atenção médica num único local e agilizar o diagnóstico e tratamento dos
pacientes.
Ao deslocar a gestão do serviço de atenção na área da saúde para os Centros Comunais
Zonais ocorreu uma clara democratização da relação dos cidadãos com a sua prestação,
na medida em que o serviço passou a ser co-gerido pela própria comunidade. Além
disso, o sistema do PAZ foi montado de forma a estimular a integração da iniciativa
privada no processo de atenção gratuita à população, uma verdadeira parceria entre o
público e o privado, através da integração de algumas clínicas privadas no sistema.
Atualmente, o PAZ é composto por 20 policlínicas regionais criadas pelo poder público.
Além destas, o sistema é composto por mais 16 policlínicas que são fruto de convênios
com Ong’s e empresas privadas. A partir da parceria público-privado, foram criadas 05
policlínicas móveis que prestam serviços nas regiões mais carentes da cidade.
Um fator interessante nesta experiência é que ela inovou no atendimento de saúde ao
mesmo tempo em que criou um conjunto de organismos e canais participativos que
fizeram com que os cidadãos fossem agentes deste processo (comissões de gestão
social; redes de comissões de saúde; etc).
Em termos da comparação entre os respectivos desenhos organizacionais de Porto
Alegre e Montevidéu várias constatações são destacáveis. A primeira, e talvez uma das
mais importantes, é que as propostas participativas praticamente se encontram numa
ordem inversa de organização, cabendo sublinhar que quando, no caso uruguaio, se
descentraliza o sistema de execução das políticas públicas, no caso brasileiro o que se
democratiza é o processo decisório sobre a organização dos investimentos em políticas
públicas e vice-versa.
Acompanhando a experiência porto-alegrense, o que se vê é que a grande participação
popular está dirigida para a mobilização que envolve a discussão orçamentária, processo
que é extremamente rico. Contudo, mesmo existindo um acompanhamento das políticas
aprovadas na estrutura participativa, sua execução passa pela mediação das
possibilidades financeiras do município que, indiretamente, acaba dando a última
palavra sobre quando as deliberações populares serão atendidas. No caso de
Montevidéu, a definição das políticas a serem executadas passa muito mais pelas
estruturas formais da administração municipal do que pelos canais participativos, no
entanto, considerando que uma parte das políticas sociais são descentralizadas e passam
pelos centros comunais zonais, existe um espaço consistente para a remodelação destas
a partir da análise das particularidades de cada região.
Outro ponto a destacar é que o grau de autonomia obtido pela sociedade civil em Porto
Alegre é muito maior do que no processo uruguaio, no qual a participação mais ampla
da população está restrita à eleição dos representantes nos conselhos de vizinhos.
Entretanto, também não se pode negar que o grau de abrangência qualitativo do
processo participativo em Montevidéu é bem maior do que em Porto Alegre, na medida
em que os cidadãos da capital gaúcha vêem muitas das suas expectativas restritas às
limitações das parcelas do orçamento municipal destinados à discussão do orçamento
participativo.
Neste sentido, o modelo uruguaio se aproxima muito mais de uma idéia de reforma do
estado do que a experiência porto-alegrense, sendo que isto não pode ser considerado
um ponto menor.
A proposta de renovação orçamentária porto-alegrense tem enormes e inquestionáveis
qualidades no tocante à participação cidadã, considerando que é um processo que
transforma a dinâmica de organização da cidade e mobiliza a população. Neste sentido,
é uma experiência que gera capital social e reconduz segmentos historicamente alijados
da sociedade gaúcha na direção da cidadania e inclusão social.
Já no tocante a Montevidéu, o projeto executado tem a vantagem de, desde o início, ter
sido fruto da discussão entre diferentes segmentos políticos, fato que fortaleceu esta
proposta frente as previsíveis oscilações dos resultados eleitorais e a possibilidade de
alternância de partidos políticos no governo. Além disso, a perspectiva reformista
presente nesta experiência fez com que a descentralização participativa e a estrutura
estatal formal passassem por um processo de fusão através da qual todos os atores
sociais envolvidos (poder legislativo, executivo e cidadãos) acabassem sendo parte
indispensável do processo, o que também está fortalecendo a perspectiva de
continuidade desta proposta independentemente do partido político no governo. Em
síntese, o esquema descentralizador uruguaio permite uma abrangência maior de
interferência dos cidadãos no conjunto das políticas públicas, além de também garantir
uma integração no interior dos centros comunais zonais dos distintos segmentos da
estrutura política municipal. Nestes organismos os representantes do governo, dos
partidos políticos e dos cidadãos acabam sendo estimulados a construir um espaço
público de discussão e negociação que, no final das contas, é fundamental na construção
de uma experiência coletiva de gestão.

Bibliografia
CHAVEZ, D. (2004), “Montevideo. De la participación popular al buen gobierno”, en
CHAVEZ, D. y GOLDFRANK, B. (Orgs.), La izquierda en la ciudad. Gobiernos
progresistas en América Latina, Barcelona, Icaria.
GOLDFRANK, B. (2002), “The Fragile Flower of Local Democracy: Participation in
Montevideo”, en Politics & Society, vol. 30, No. 1.
HARNECKER, Marta. Haciendo camino al andar. Caracas, Monte Ávila.
MASDEU, W. (2004). Participación con descentralización social. La Era Urbana, n. 2,
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VENEZIANO Esperón, A. (2003), “La participación en la descentralización del
gobierno municipal de Montevideo (1990-2000). Evaluación de 10 años de gobierno de
izquierda y algunas reflexiones para América Latina”, en Documentos IIG, No. 110.

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