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Tropa DA elite

ou
Matou na favela e foi ao cinema
Adriana Facina e Mardonio Barros

“Homem de preto,
qual é sua missão?
É invadir favela
E deixar corpo no chão.”

Esse “canto de guerra” é um dos muitos entoados


pelo BOPE (Batalhão de Operações Especiais da
Polícia Militar) nos seus treinamentos. Muito
significativo e direto, já que mostra claramente onde
se localizam os inimigos a serem abatidos. Trata-se
de uma guerra contra os pobres, recrudescida em
tempos neoliberais nos quais a contrapartida da
criação de uma sociedade do desemprego é a
necessidade das classes dominantes ampliarem não
somente os meios para obtenção do consenso, mas
também os instrumentos coercitivos que mantenham
os oprimidos sob controle.
Em meio às crescentes denúncias contra a atuação
do BOPE nas favelas cariocas, que se pauta por uma
política deliberada de extermínio ao arrepio do Estado
de direito, surgem nas ruas da cidade cópias do filme
Tropa de elite, antes mesmo de seu lançamento no
cinema, previsto para o mês de outubro.
Tropa de elite já é um sucesso de público, está “na
boca do povo”, fascina adolescentes e mesmo
crianças de classe média, e reúne no orkut uma
comunidade com mais de 55 mil membros. Virou
também assunto da imprensa, devido ao suposto
vazamento da cópia não autorizada, que acarretou
processos e ameaças de prisão dos envolvidos.

Com produção no estilo hollywoodiano, o filme tem


como ponto de partida o livro Elite da tropa, escrito
pelo sociólogo e ex-subsecretário de Segurança
Pública do Estado do Rio de Janeiro Luiz Eduardo
Soares, pelo capitão do BOPE André Batista
(negociador no seqüestro do ônibus 174) e por
Rodrigo Pimentel, ex-capitão do BOPE.

Mas não reproduz fielmente nas telas as histórias


nele contadas. O personagem central nessa
articulação é Rodrigo Pimentel, um dos roteiristas do
filme.

Pimentel foi “descoberto” no documentário Notícias


de uma guerra particular, de 1997, dirigido por João
Moreira Salles e Kátia Lund e forneceu o mote do
título do filme, enunciando uma tese que vem
ganhando fôlego e pautando as políticas de
segurança pública do Estado: vivemos num estado de
guerra entre, de um lado, o Estado e os “cidadãos de
bem” e, de outro, os bandidos/traficantes.

E não se trata de qualquer guerra. Mas sim de uma


guerra total que, nos moldes da “guerra ao terror”
empreendida por Bush, justifica a suspensão dos
direitos humanos e legitima práticas ilegais como
torturas e execuções sumárias com base na idéia de
que elas são necessárias para garantir a segurança
pública.

É preciso lembrar ainda que argumento semelhante


foi amplamente utilizado, na história recente do país,
para justificar os arbítrios cometidos pelo Estado
durante a ditadura militar. No caso do filme, é o
narrador, capitão Nascimento, que afirma: “se o
BOPE não existisse, os traficantes já teriam tomado a
cidade há muito tempo”. Nessa lógica de um tudo ou
nada distorcido, quem defende direitos humanos,
defende os bandidos e é cúmplice da violência
urbana que assola a cidade.

Cúmplices são também os que consomem as drogas


ilícitas vendidas nas favelas. O tráfico de armas (e a
indústria bélica que dele se beneficia), as ligações
extra-favela do tráfico que, como todos sabem,
atingem autoridades que organizam de fato as redes
do crime, cujo elo mais fraco são os “vagabundos”
assassinados cotidianamente pelo Estado, não são
levados em conta nesse argumento.

Numa das cenas mais chocantes do filme, capitão


Nascimento, após comandar uma ação que resulta na
morte de um traficante, esfrega o rosto de um
estudante, que estava na favela consumindo drogas,
em cima do sangue que sai do buraco aberto pela
bala no peito do jovem morto e pergunta se ele sabia
quem havia matado o rapaz. O estudante diz que foi
um dos policiais, ao que Nascimento responde: “um
de vocês é o caralho! Quem matou esse cara aqui foi
você. Seu viado, seu maconheiro, é você quem
financia essa merda. A gente sobe aqui pra desfazer
a merda que vocês fazem.”

Portanto, coerção e consumo estão no centro das


teses que organizam o filme.

Tropa de elite conta a história do drama privado do


capitão Nascimento, significativo nome para um oficial
“padrão” de uma polícia que tem como símbolo uma
faca na caveira.

Capitão Nascimento vai ser pai e o nascimento de


seu filho o impulsiona a buscar um substituto no
comando de uma guarnição do BOPE. Cansado da
“guerra” cotidiana travada nas favelas cariocas, com
síndrome do pânico e pressionado pela esposa
grávida, Nascimento é um herói humanizado, um
personagem complexo, ao mesmo tempo forte,
incorruptível, carismático e também frágil, capaz de
sentir remorsos pela morte de um menino fogueteiro,
denominado por ele “sementinha do mal”, que resulta
de uma operação sob seu comando.

Os candidatos a substituto de Nascimento são Neto e


Matias, aspirantes a oficiais da polícia militar que se
negam a participar dos esquemas de corrupção da
corporação e, por conta disso, acabam se
incorporando ao curso preparatório do BOPE.

Neto é descrito como tendo a polícia no coração.


Destemido e impulsivo, exímio atirador, gostava dos
combates nas favelas e era o favorito de Nascimento.
Seu amigo Matias, negro e de origem pobre, era mais
racional, “gostava da lei” e se dividia entre ser
estudante de direito da PUC e pertencer à polícia.
Seguindo a classificação de Nascimento, os policiais
cariocas só têm três alternativas: “ou se corrompem,
ou se omitem ou vão para guerra”. Aprendizes de
heróis, Neto e Matias só poderiam seguir a terceira
opção.

Por conta da faculdade, Matias se envolve com uma


menina de classe média alta que dirige uma ONG
patrocinada por um político no Morro dos Prazeres e
“fechada” com o chefe do tráfico na favela. A
princípio, seus colegas da faculdade, ligados à ONG,
não sabem que Matias é policial. Todos os estudantes
são consumidores de drogas ilícitas. Um deles é
“avião” e vende drogas na universidade.
Baiano, o chefe do tráfico na favela da ONG, assim
como os colegas e a namorada de Matias descobrem
que ele é policial através de uma foto que sai
publicada nas páginas de um jornal.
Esse fato desencadeia uma série de eventos que
culminam na morte de Neto e na conversão definitiva
de Matias em oficial do BOPE durante a caça a
Baiano, motivada pela necessidade de vingar a morte
do amigo. O policial que “gostava da lei” passa a
torturar e executar, provando assim sua conversão de
corpo e alma. O homem preto se torna homem de
preto, “caveira, meu capitão”.

Nossos mariners tupiniquins são apresentados como


soldados muito bem treinados, capazes de suportar
um treinamento destinado a poucos, uma elite
exemplar com um papel fundamental no estado de
sítio em que vivemos: conter os pobres. Tropa de elite
recolhendo corpos supérfluos daqueles que, em
outros tempos, eram exército de reserva de mão-de-
obra e que hoje, em meio ao desemprego estrutural e
à ditadura do capital financeiro, são o lixo da
sociedade.

A necessidade de conter (e mesmo eliminar) os


pobres é o objetivo dessa guerra particular ou privada
e, nesse contexto, uma tropa de elite se configura
como uma tropa DA elite, necessária para garantir a
ordem e o respeito à propriedade privada. Isso
explica porque 100% das operações do BOPE são
realizadas em favelas.

No filme, o discurso que legitima o BOPE e suas


ações é persuasivo e se articula em três níveis.
Num primeiro nível, o BOPE aparece como uma
resposta à ineficiência e corrupção da “polícia
convencional” e aos políticos que a alimentam. Assim,
essa elite de policiais é apresentada como
incorruptível e como um padrão a ser seguido, de
referência internacional. O lema “faca na caveira e
nada na carteira” resume esse discurso moralista e
pragmático que atende perfeitamente aos apelos
midiáticos por ordem e moralidade.

Um segundo nível pode ser identificado na


apresentação do BOPE como uma seita que, através
de um árduo rito de passagem – o curso de
treinamento -, seleciona homens fortes, honestos e
“formados na base da porrada”, preparados para
resistir às piores provações.

A seleção é a base da consolidação de uma


camaradagem entre essa elite, em oposição àqueles
que “nunca serão”, reatualizada nas práticas
cotidianas de transgressão da lei. Numa das cenas do
filme, um coronel e seus comandados, entre eles
Nascimento, estão organizando as turmas do curso
preparatório.
Entre risadas e num clima descontraído, o coronel diz
que não quer saber de tímpano perfurado em aula
inaugural e de mão cortada. Mesma complacência
para com os “excessos”, que afinal sempre podem
ser “merecidos”, que ocorrem durante as operações
nas favelas.
Em tempos de fragmentação, individualismo e
consumismo, podemos imaginar o apelo desse
discurso que louva um corpo de homens unidos por
um forte sentimento de pertencimento a uma elite e
por um orgulho quase racial, seres superiores,
elevados, em meio ao mundo de miséria, fraqueza e
corrupção. Homens de caráter em tempos de
corrosão do caráter.[1]

O terceiro nível desse discurso persuasivo é o do


indivíduo, de seus dramas pessoais, que humaniza o
herói e o aproxima dos seres humanos comuns,
capazes de se reconhecerem e se identificarem com
ele. Capitão Nascimento é o herói que sacrifica a vida
pessoal e que não estende sua brutalização à vida
privada.

Como na cena em que ele, durante uma operação na


favela, logo depois de se emocionar ao ouvir ao
celular o coração do filho batendo na barriga da mãe,
manda seu subordinado atirar dizendo: “senta o dedo
nessa porra!”.

Ou no momento em que, de farda, vindo da “guerra”,


chora ao ver seu filho recém-nascido na maternidade.
Nascimento trata sua mulher de forma amorosa e se
sensibiliza com as pressões que ela faz para que ele
saia do BOPE.

Com exceção de uma cena, após a morte de Neto, a


única em que ele aparece fardado no ambiente
doméstico, na qual ele grita: “quem manda nessa
porra aqui sou eu e você não vai mais abrir a boca
para falar do meu batalhão nessa casa”.
Significativamente, após impor seu comando em
casa, ele fica curado dos ataques de pânico e joga
fora os medicamentos psiquiátricos que estava
usando.

Todos esses níveis se articulam em torno da


naturalização da idéia de que vivemos num estado de
exceção, uma situação atípica que demandaria regras
também atípicas para sua solução.

Essa naturalização permite um relativismo de valores


e práticas, de direitos e garantias no que dizem
respeito à dignidade da vida humana.

Falar em direitos humanos não faz nenhum sentido


num estado de coisas que institui valores desiguais
para as vidas humanas de acordo com critérios como
cor da pele, origem social e mesmo idade, já que os
jovens pobres e negros são hoje as principais vítimas
de homicídios, bem como formam a maioria da
população carcerária do país.
No entanto, é preciso afirmar que o estado de
exceção na verdade é a regra sob o capitalismo, que
não pode prescindir, sobretudo em sociedades
dramaticamente desiguais como a brasileira, do trato
brutal com os de baixo.
Não há como não lembrar aqui de um poema escrito
por Bertolt Brecht num contexto de vitória do
fascismo na Europa, no qual outros homens de preto,
em defesa da ordem do capital, esvaziaram de
significado a palavra humanidade:

A exceção e a regra

Estranhem o que não for estranho.


Tomem por inexplicável o habitual.
Sintam-se perplexos ante o cotidiano.
Tratem de achar um remédio para o abuso.
Mas não se esqueçam de que o abuso é sempre a
regra.

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